Meu pai foi um cantor de bar, voz enrouquecida de abusos e intempérie, com
duas espingardas azuis em baixo das sobrancelhas. Viveu sua juventude à custa do charme
e da virilidade. Na idade madura, mesmo desgastado, conseguia arrancar mais do
que suspiros das antigas namoradas. Seu nome deveria subscrever os convites
para os cultos ou missas de domingo: Santo José dos Anjos, apelidado pelas amantes e os amigos, colegas de copo e de
cruz de “Santinho”. Um santo de reino pagão. Quando morreu não resisti,
coloquei na sua lápide com toda a minha saudade: “santificado seja o Vosso
reino”
Há um ditado que diz: Deus cria, o diabo espalha e eles por si se juntam. Santinho encontrou numa de suas tantas noitadas, uma mulher diferente das que costumava vencer pelos olhos ou pelos ouvidos. Uma ruiva de personalidade fortíssima que lhe custou mais do que um encontro, buquês e muitas canções dedicadas. Era uma mulher vivida, sábia, que aceitara o jogo proposto, mas que se sentara a mesa com um coringa escondido. E quanto mais trabalho gerava aquela conquista, mais foco e empenho do velho garanhão. Um dia ela se entregou, ou se deixou entregar. Nesse dia, contava meu pai, se amaram tanto e com tal intensidade que se finaram à míngua. Horas, talvez dias de confinamento. Despercebidos e sem planos, quando sequer sabiam o que seria da manhã seguinte, se houvesse um amanhã, eu começava a minha caminhada em direção a vida. Quem poderá dizer que o período fértil não era o naipe do coringa?
Contam que minha mãe segurou meu pai com grilhões de sedução até a primeira percepção da transformação física. Alguns meses depois, entretanto, ele foi embora a deixando parada, pregada na pedra do porto. Mas ela também era dessas que apequenam o mundo e nem teve tempo de me ninar cantando cantigas de cabaré, embora tivesse (aqui se junta o que o diabo espalhou) o que muitas candidatas a santa gostariam de ver escrito na sua certidão de nascimento, o nome: Agnes de Jesus Purezza. Minha mãe, de quem guardo uma foto, nossa única proximidade desde que me pariu, foi ao mundo cumprir o seu destino. Não sabemos um do outro, mas eu a compreendo, acho. Deve ter tentando construir a sagrada vida em família tendo, desafortunadamente escolhido o santo pelo nome.
Santinho, meu pai, acabou sendo o anjo torto que ressurgiu tão logo eu
nasci, impedindo que eu fosse parar na roda dos enjeitados. Me deu nome, origem
e depois me entregou a um orfanato cuidado por religiosas. Uma espécie de
remissão de pecados via terceiros.
Cresci encomendado para o sacerdócio. Minha infância e adolescência
conheceram um único mundo. O mundo de rezas e privações, perfeito na visão dos
conformados e genuflexos operários de Deus. A primeira inquietação adolescente
veio à luz quando vi um padre benzendo uma noviça. Ele não rezava, apenas gemia
e segurava a cabeça da religiosa, ajoelhada à sua frente, num ritual estranho,
que em determinado momento tornou-se frenético. Quando quis saber que tipo de
benção era aquela, a noviça nada falou. Em vez disso me mostrou o procedimento.
E tantas vezes outras quis repetir a tal benção que fui repreendido, castigado,
confinado e acabei excluído da ordem. Santinho tinha me deixado algo mais do
que origem e nome. Mas enfim, eis o que queriam dizer com “crescei e
multiplicai-vos”.
A propósito, meu nome, certamente mais por ironia que por amor é quase uma homilia: Angelo Purezza dos Anjos,
ou simplesmente Anjo, como chamam os amigos. Mesmo que corte pela metade, faça
conjugações diferentes não tenho saída, o primeiro olhar que recebo é sempre de
reverência. Afinal os nomes dizem o que somos. Ou deveriam.
Nota: Algumas
expressões da música Menino Jesus, Chico Buarque.