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sábado, 30 de março de 2013

NÃO VERÁS NENHUM PAÍS COMO ESTE




As vezes me pergunto o por que do patriotismo. Num mundo globalizado, eu poderia muito bem amar a Suíça ou o Canadá. Torceria por eles na Copa, embora não joguem nada; pagaria feliz os seus impostos, na certeza de que não alimentaria amantes de senadores e ladrões de gravata,  ou porque teria a retribuição em serviços. Amaria qualquer país, onde não se comprassem votos pela ilusão efêmera da fome saciada; onde governantes corruptos fossem julgados, presos e que ficassem presos, e não  beneficiados pelo lado da balança perverso e desiquilibrado, que coloca em pratos opostos direito e justiça. Sim: que ao invés de serem indenizados, ressarcissem os cofres públicos.

Amaria qualquer outro país que entendesse o quanto é ampla a palavra “ditadura”. Ampla, sem lado, sem ideologia ou cor. Ela pode ser verde ou vermelha. Pode ter olhos escuros, azuis, ou puxados; cabelo cortado a cadete ou ter longas barbas negras. Mas vivo aqui e amo este lindo país de compreensões distorcidas. De verdades absolutas a mercê de versões convenientes, e de mentiras que passam para a história como na velha propaganda nazista de Joseph Goebbels: "Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade".

Ah, “criança, não verás nenhum país como este...” (Bilac).       

Devo ter dormido por um tempo, não sei quanto, mas sei que antes de adormecer cantávamos hinos e hasteávamos a bandeira derramados de emoção. Como tínhamos orgulho daquilo! Como parecia ser bom o fato de sermos brasileiros!

Ouvia que Brasil não era só o negrinho esperto, de camisa amarela, com número dez às costas e uma coroa na cabeça, e que socava o ar enquanto fazia noventa milhões em ação irem ao nirvana. Também não era só aquele moleque, de igual camisa amarela, com número sete às costas, anjo rebelde de pernas tortas, que se divertia chamando os outros de “joão”. Não, não... O Brasil era muito mais que aquilo. 

E bem mais tarde, cheguei a ouvir que o Brasil se preparava para ser bem mais do que supunha aquele obstinado condutor de tempestades, louco por pódio, aonde chegava quase sempre no final de suas voltinhas autistas pelos autódromos do mundo. Não sem antes fazer tremular o lindo pendão da esperança, símbolo augusto da paz, aos acordes de outro hino que se consagrou aos vitoriosos. 


A mim disseram que Brasil era muito mais do que tudo que isso. Que suas cores representavam riquezas nossas, de todos nós, que suas estrelas significavam lugares abençoados, e que na faixa transversal estava escrito o que deveria ser nosso dogma de fé. Andam querendo trocar os tais dizeres, talvez por não significarem mais nada.

Lamento por este gigante inerte, entranhado de vermes que me causam dores sociais; coletivas, de tal forma absurdas, que o riso transcendeu o choro e ambos esmaeceram. Anularam-se.  A indiferença anda  absolvendo as raivas.

Silencio por essa massa de democracia reposta a custa de muito sofrimento, e que por isto mesmo deveria ser respeitada. Mas não é. Hoje, aquilo pelo que tantos de nós brigamos é de um nada quase tão dolorido, quanto foram os resultados dos riscos que corremos para que pudéssemos ter de volta o direito de falar. O que não sabíamos (e se passou aos mais novos que só sabem o que lhes contaram) é que estávamos a serviço de quem calaria ainda muito mais a nossa boca, e de forma mais sutil. E viemos capitular e capitulados permaneceremos, sob a regência do mais bizarro sistema de governo, único no mundo, o "parlamentarismo judiciário", onde togados biônicos dão as cartas e jogam de mão. 

Uma parte da minha geração passou de inimiga da ditadura a filhote dela. Por mim e por alguns que sei, fica de graça, pois não são as adjetivações que aborrecem. Minimamente perturbam de onde partem, e mais pelo monopólio da verdade na boca de pessoas queridas. Sobrevivemos ao período dos exageros praticados em nome de seus próprios princípios, com baixas de ambos os lados. Foram interdependentes e se retroalimentaram aos limites do ódio por mais de vinte anos. Injustiças houve, como em qualquer revolução; brutalidade também, cada qual ferindo com as armas que possuía. O que não me aconselha, entretanto, a viver dirigindo a vida com o retrovisor maior do que o para-brisa.  

Adormeci, adormecemos. Vez por outra acordo cantando o hino, com aquele sentimento cívico juvenil que não soube passar para os meus filhos, até porque cresceram justamente no tempo em que esse civismo andava na contramão da boa cultura, e jazia politicamente incorreto segundo a classe. Submergi a isso covardemente.

Na visão de hoje, percebo que a mim importa muito mais não ter me tornado um cidadão com restrições cubanas, norte coreanas ou soviéticas, pois nunca consegui aprender a lição de que “em boca fechada não entra mosca”. E paguei caro por isso. Esse valor, entretanto, a manutenção da nacionalidade com suas virtudes e erros, é subtraído de quem nos manteve brasileiros. Classes de pessoas que simplesmente leram e souberam interpretar em suas cartilhas o significado de: “ou manter a pátria livre, ou morrer pelo Brasil". À sociedade civil das épocas litigantes e às força armadas que lhes deram sustentação, e vice-versa, eu agradeço o fato de continuar vestindo o uniforme verde-amarelo e ter, ainda que enxovalhado de mágoas, orgulho disso. 

Enfim, convicto de que não há mais mundo para girondinos e jacobinos, posto que a virtude está no meio (in medio stat virtus)  durmo. Mas se durmo, logo existo e tenho CPF. É o que indeniza o meu sono e o mesmo que contribui com o sucesso dos muito bem acordados. Per omnia secula seculorum.

sexta-feira, 15 de março de 2013

O NOME DOS ANJOS





Meu pai foi um cantor de bar, voz enrouquecida de abusos e intempérie, com duas espingardas azuis em baixo das sobrancelhas.  Viveu sua juventude à custa do charme e da virilidade. Na idade madura, mesmo desgastado, conseguia arrancar mais do que suspiros das antigas namoradas. Seu nome deveria subscrever os convites para os cultos ou missas de domingo: Santo José dos Anjos, apelidado pelas amantes e os amigos, colegas de copo e de cruz de “Santinho”. Um santo de reino pagão. Quando morreu não resisti, coloquei na sua lápide com toda a minha saudade: “santificado seja o Vosso reino”

Há um ditado que diz: Deus cria, o diabo espalha e eles por si se juntam. Santinho encontrou numa de suas tantas noitadas, uma mulher diferente das que costumava vencer pelos olhos ou pelos ouvidos. Uma ruiva de personalidade fortíssima que lhe custou mais do que um encontro, buquês e muitas canções dedicadas. Era uma mulher vivida, sábia, que aceitara o jogo proposto, mas que se sentara a mesa com um coringa escondido. E quanto mais trabalho gerava aquela conquista, mais foco e empenho do velho garanhão. Um dia ela se entregou, ou se deixou entregar. Nesse dia, contava meu pai, se amaram tanto e com tal intensidade que se finaram à míngua. Horas, talvez dias de confinamento. Despercebidos e sem planos, quando sequer sabiam o que seria da manhã seguinte, se houvesse um amanhã, eu começava a minha caminhada em direção a vida. Quem poderá dizer que o período fértil não era o naipe do coringa?

Contam que minha mãe segurou meu pai com grilhões de sedução até a primeira percepção da transformação física. Alguns meses depois, entretanto, ele foi embora a deixando parada, pregada na pedra do porto. Mas ela também era dessas que apequenam o mundo e nem teve tempo de me ninar cantando cantigas de cabaré, embora tivesse (aqui se junta o que o diabo espalhou) o que muitas candidatas a santa gostariam de ver escrito na sua certidão de nascimento, o nome: Agnes de Jesus Purezza. Minha mãe, de quem guardo uma foto, nossa única proximidade desde que me pariu, foi ao mundo cumprir o seu destino. Não sabemos um do outro, mas eu a compreendo, acho. Deve ter tentando construir a sagrada vida em família tendo, desafortunadamente escolhido o santo pelo nome.

Santinho, meu pai, acabou sendo o anjo torto que ressurgiu tão logo eu nasci, impedindo que eu fosse parar na roda dos enjeitados. Me deu nome, origem e depois me entregou a um orfanato cuidado por religiosas. Uma espécie de remissão de pecados via terceiros.

Cresci encomendado para o sacerdócio. Minha infância e adolescência conheceram um único mundo. O mundo de rezas e privações, perfeito na visão dos conformados e genuflexos operários de Deus. A primeira inquietação adolescente veio à luz quando vi um padre benzendo uma noviça. Ele não rezava, apenas gemia e segurava a cabeça da religiosa, ajoelhada à sua frente, num ritual estranho, que em determinado momento tornou-se frenético. Quando quis saber que tipo de benção era aquela, a noviça nada falou. Em vez disso me mostrou o procedimento. E tantas vezes outras quis repetir a tal benção que fui repreendido, castigado, confinado e acabei excluído da ordem. Santinho tinha me deixado algo mais do que origem e nome. Mas enfim, eis o que queriam dizer com “crescei e multiplicai-vos”.

A propósito, meu nome, certamente mais por ironia que por amor é quase uma homilia: Angelo Purezza dos Anjos, ou simplesmente Anjo, como chamam os amigos. Mesmo que corte pela metade, faça conjugações diferentes não tenho saída, o primeiro olhar que recebo é sempre de reverência. Afinal os nomes dizem o que somos. Ou deveriam.




Nota: Algumas expressões da música Menino Jesus, Chico Buarque.