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sábado, 24 de maio de 2014

MULHERES QUE MATAM BARATAS


Um jovem amigo acaba de separar-se da família, há não muito constituída, e ainda não conseguiu elaborar bem a nova situação. Tateia no mundo especulando novos rumos afetivos, sujeito aos apelos e oportunidades que encontra; procura-se em outros corpos; procura o brilho antigo, ora ofuscado, mirando pupilas de por ai. Enfim, caiu de um barco que já zarpara à deriva, e busca um porto, ou uma tábua. Ou um colo. Ou um porto, uma tábua e um colo.

Disse-me ele que, caso pudesse voltar atrás, faria tudo igual, ou seja, entende que pela força dos motivos, a separação seria inevitável, mas por tudo que perdeu, caso soubesse disso, jamais teria abandonado o barco. 

Tem tentando voltar atrás, a opção dela, entretanto, é outra.
 
Meu amigo jovem não compreende como pode sua ex-esposa aceitar tão facilmente a nova situação, mesmo com um lindo fruto da relação. E até se deprime por vê-la feliz e resolvida.  Ele sabe mais por autoconfiança que por informações do mercado que é um bom amante, e é um cidadão nos limites da normalidade. Não haveria justificativa para que ela, que há não muito o amava, ele tinha certeza disto, num zás, o esquecesse.    
  
A superação da mulher como ente não é tema novo. Mas de fato, e voltado estritamente para as relações pessoais, quantos de nós percebemos isto? Quantos compreendemos e aceitamos ver a ex-dona-de-casa, na cabeça do casal? E luzindo por conta de seus talentos e força, sem um “oi” da nossa presença? Acho que os mais veteranos compreenderam antes, e não só por estarem a mais tempo na pista. Compreenderam na marra e, claro, por juízo, se adequaram. Talvez tenham esquecido de repassar o novo estágio aos filhos varões, embora estes já devessem estar acostumados a duelar com as parceiras em casa e no cotidiano. 

Duelar, sim. Antes os homens não aceitavam competir por prepotência, agora, os que não conseguem fugir da raia têm de ir para o embate. Mas atenção: este pode ser um jogo muito gostoso, e que até sirva de salvo-conduto para uma relação duradoura, desde que percebam que o oponente não é adversário, é apenas o outro lado da cama que precisa ser conquistado constantemente, e o outro lado da mesa que precisa ser olhado nos olhos. Que os homens, principalmente estes, não percam a boca, mas que a façam coadjuvar-se pelos ouvidos também. Adversários há, mas estão sempre do lado de fora e permanentemente à espreita. Um vacilo e eles atacam. Como parece ter acontecido com o meu jovem amigo.

Crescemos nós, machistas veteranos, vendo as irmãs e primas brincando de casinha e boneca, preparando-se para a nobre atividade doméstica. O estudo era quase facultativo e às vezes até proibitivo. Sem ser redundante, o normal era que cursassem a Escola Normal (o nome não deve ter sido escolhido ao acaso). Estudar era tarefa mais para homens: “tem que ser dotor”, ouvia-mos.  

Mas em meio ao murmúrio que se formava lá nos anos 60, de repente as saias subiram para além dos joelhos (quatro dedos! Pois sim...) e a coisa não parou mais de mudar. As saias só voltaram ao leito antigo por circunstancialidades de modas, ou mera opção. Isso é apenas o símbolo de uma época, mas foi assim que  passamos a dividir o protagonismo, quando muito.

As mulheres de hoje nada tem a ver com as que conhecemos até a revolução de 60. E se nós, veteranos do batalhão precursor da “redentora” não preparamos os nossos filhos, a culpa é mais nossa que deles. Mais uma na conta dos nossos erros. Era preciso repassar mais do que o orgulho de termos recriado a liberdade, e revolucionarmos costumes.

Virou o dia. Hoje a caça também caça. A gazela que toda manhã deveria correr mais que o leão ou seria morta, agora tem dentes; e o leão, que toda manhã deveria correr mais do que a gazela ou morreria de fome, hoje tem de ser mais forte, mais esperto, saber negociar. Eis a questão final: Num relacionamento há que saber negociar, perder para ganhar; dividir para multiplicar; diminuir para somar. Uma contabilidade simples. Um livro razão, não por isso racional, mas também afetivo.

Por fim, é justo e democrático que o sentimento que consagra a estima seja via de duas mãos: o desejo de ser escolhido só é menor que a possibilidade de escolher. Esta sim realiza.

A mulher moderna já não perde o chinelo subindo na cadeira, ao contrário, pega o chinelo e mata a barata.

terça-feira, 20 de maio de 2014

HIER ENCORE



Hier encore/ J'avais vingt ans/ Je caressais le temps/ Et jouais de la vie
Ontem ainda eu tinha vinte anos; eu acariciava o tempo e brincava de viver...”

Minha juventude pampeana "bombeou" à distância o surubão de Woodstock como momento ícone do novo tempo, ainda que carregada de espanto.  Mas não me rendi à maioria de seus arquitetos e suas obras, bem como a boa parte dos conceitos resultantes daquela "Exposição aquariana". No entanto, lembro-me de tudo. Gostei de ser uma das partículas minúsculas, eternas e indivisíveis; um átomo daquele momento. Foi ainda ontem, eu tinha vinte anos, brincava tanto de viver que fiz votos de ser jovem para sempre. 
Foi ainda ontem também, e eu nem tinha vinte anos, que a música francesa ultrapassou meus tímpanos e se instalou na memória randômica. Descobri e amei Nana Moskouri, a grega de timbre anômalo, e que não veio só. Trouxe Adamo, Piaff, Dalidá, Vartan, Hardy,  entre vários outros, e... Charles Aznavour, o franco/armênio de voz única.
Aznavour chegou para ser um grande parceiro  de insônias, involuntárias por arritmias cardíacas de curto prazo, ou induzidas por absoluta necessidade de que a noite não terminasse. Com ele, Sinatra, Jobim e os quatro cavaleiros de Liverpool, apocalípticos de muitos sonhos juvenis. São os que deixaram sons reverberando no cosmo, para que pousem em momentos sensíveis de afeto ou falta dele, de alegria ou falta dela. Aznavour nunca será passado. Ele é um dos verbos de Deus que se fez carne. Nele vejo tão somente uma conjugação e um tempo possíveis: o presente do indicativo de “ser”. O verbo de ligação dele com o sempre.
Ainda ontem éramos todos jovens, talvez um pouco mais românticos que os de hoje e acariciávamos o tempo. Éramos menos afeitos às sinfonias rudes. Hier encore foi o modo mágico que Aznavour escolheu para descrever (descrever?) o que foi o “ainda ontem” de todos nós. Não é apenas uma música linda, é um hino à reflexão. Uma regressão sentida; o sonho impossível de extinguir os calendários e estancar o inexorável. Ou uma confissão de culpa por tudo que ficou na estação de partida, lá onde deixamos coisas a serem feitas; momentos que quiséramos reviver a cada sexta-feira, e outros  judiados e jogados fora, marcas que serão os danos emergentes cobrados no juízo final.

Charles Aznavour é eterno! Digo obrigado à vida por ter vivido no mesmo mundo que ele e com todo tempo que tive para deixar que o som da sua voz desse menos rusticidade às coisas. E Hier encore é para mim inesquecível porque, entre outras coisas, pulsa com algo que já foi promessa e que, por impossível, contenta-se com o simples desejo e esforço de ser sempre como ainda ontem. Parte dos tantos projetos que ficaram no ar (J'ai fait tant de projets/ Qui sont restés en l'air).

Ainda ontem imobilizei meus sorrisos e congelei meus choros. Onde estão agora meus vinte anos?  (Hier encore ... J'ai figé mes sourires/Et j'ai glacé mes pleurs/ Où sont-ils à présent/A présent mes vingt ans?). Os anos se vão, e os vinte há muito já se foram. Deles me lembro, porque lembranças e sons sempre me comovem e enfim, porque  trouxe comigo os bolsos do coração cheios de afetos que não envelhecem, e assim a minha passagem por lá não tem como ser esquecida.  

Primeiro de outubro é um dia comum na galeria dos melhores. Charles apenas não fará apresentação ao vivo. E nem precisa.  

Merci, Charles. Toujours.

https://www.youtube.com/watch?v=cjEQVeGIRJc

segunda-feira, 12 de maio de 2014

CONTROLE DA MOTRICIDADE SOMÁTICA




(Os movimentos podem ser voluntários ou involuntários. O motor neurônio leva informação para os movimentos voluntários, equilibrados, associados, que mantêm o tônus muscular e a referência postural)

O córtex está na camada externa do cérebro dos vertebrados, rico em neurônios, e local dos processamentos mais sofisticados. É uma pequena peça cerebral de massa cinzenta, mas que desempenha o papel central e complexo, como atenção, consciência, linguagem, percepção e pensamento. Possui importantes funções cognitivas, essencial para a formulação de planos de ação dirigidos e metas projetadas, bem como supervisão e controle. Também é importante para a regulação das emoções e instruções simbólicas e verbais.

Todos nós sabemos onde fica a cabeça na estrutura bizarra de um time de futebol. O setor pensante. Digamos que na segunda linha do meio de campo fica o cérebro da equipe. Sendo assim podemos dizer que um dos meias-armadores deva ser o córtex, o de papel central e de funções que envolvem planejamento, comando e ações. Ali deve se situar o pensamento treinado. A memória do que foi visto, ensaiado, com amplo espaço para improvisações. Antigamente se dizia do jogador-termômetro que em determinado momento botava o pé sobre a bola, olhava para os lados como se olhasse de cima, com desdém pelo baixo clero.   

Por ali circulam os gênios que levam as tais informações para os movimentos voluntários e ordenados, e os exemplos mais antigos são fartos. Diferentemente do que dispomos hoje.

No Brasil, o melhor meia-armador que conheço é argentino. Ninguém joga mais do que D’Alessandro, do Internacional de Porto Alegre, incrivelmente esnobado pela seleção do seu país. Mas será que a Argentina produz tantos armadores assim, a ponto de abrir mão de um jogador que seria titular absoluto da seleção brasileira? Pior; produz. E eis que aqui reside um dos nossos descaminhos. Eis porque não somos mais o que éramos.

Na terra onde brotavam as mancheias talentosos meio-campistas, morremos hoje nas mãos, ou pés, de medianos, não mais que isso, ou adaptações de sistemas que compensem essa carência.  

De resto, e sem trocadilho infame, sinto pena por Ganso. Teria muitas das ferramentas necessárias para assumir a camisa 10 que escolhesse. Teria, caso tivesse outros fatores indispensáveis para compor a mecânica do córtex: personalidade, profissionalismo e liderança.

E sinto pena por nós, duzentos milhões em ação, tendo o D’Alessandro à mão, e que logo ali vai abandonar os gramados, sermos órfãos de córtex. 

Fora isso, D'Alessandro além de craque, é um cidadão que faz muito bem a Porto Alegre com sua obra social. É um  cidadão que merece toda consideração e respeito.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

CINCO DIAS DE MAIO


                                      Escrito dia 07/05/1994 – publicado no Jornal O Investidor 

Pego o senhor Igor Portela, meu filho, no colo, banhado, cheirando a Johnson e penso no distante dia em que me obrigarei a dizer: “vai filho, vai ser um Senna ou um Quintana na vida. Seja feliz cercando-se de carinho. Viva intensamente, como o primeiro, porém não tenha tanta pressa, e seja longevo como o segundo. Sobretudo não passe em vão”.

Impossível não falar a respeito. O marketing da morte grassou soberbo sobre por esta primeira semana de maio, amargurando o peito frágil do florão da América, fazendo com que, se eu jamais tivesse percebido, descobrisse o quanto as lágrimas são salgadas, e as amargas, ainda muito mais.

Toda a emoção que se derramou olhos à fora pelo Ayrton trouxe à luz que além da vida, a morte também pode ser invejada. Das definições tantas que ouvi sobre sua partida, guardo uma: “a dor é tamanha, porque perdemos um brasileiro que deu certo, conquistou o mundo e se chamava Silva”. Não sei quem disse isso.

E de quebra perdemos o nosso Mario Quintana, deixando Alegrete órfão de seu último expoente cultural. Dele sabemos pouco, o que é quase tudo.  Sabemos que amou Porto Alegre tanto quanto amou Greta Garbo; que foi sempre poeta, e porque poeta deve ser curtido em dores sempre se fez sozinho; que expôs a verdadeira cara da Academia Brasileira de Letras, onde foi recusado, mas se fosse aceito teria de dividir o chazinho da tarde com José “Marimbondos de Fogo” Sarney. E está claro que os dois não podem frequentar a mesma classe.

Dele sabemos que foi boêmio e por isso esperto. Tão esperto que, dando-se conta da enorme distância entre o céu e a terra, apressou-se em pegar carona com o Senna. Pista limpa, sem ondulações, curvas, ou retardatários, logo-logo estarão lá.

Acelera, Ayrton, que o Mario viaja quieto. Só fuma e dorme.

Mãe, aproveito a passagem do teu dia para subscrever um pedaço do coração. Mando no lugar de flores essas duas jóias, que são das melhores coisas que tínhamos por aqui. Espero que goste.

Recomende-os ao Velho.