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sábado, 31 de março de 2012

HAJA HOJE PARA TANTO ONTEM



O título é uma frase de Paulo Leminski
HAJA HOJE PARA TANTO ONTEM

Uruguaiana não é mais Uruguaiana. Certo que é mais bonita, mais moderna, mais quase tudo. Só não me parece tão romântica como foi um dia, mas isso não chega a me deixar contrafeito. O mundo é outro; a vida é outra e eu, mesmo que  Peter Pan vez por outra buzine nos meus ouvidos, já deixei de ser o guri do Portella há muito tempo. Então sem reparos ao que vejo quando chego.

Entretanto, as pessoas que vivem por lá, que caminham em suas calçadas, dançam em seus salões, correm por suas ruas; se cansam e descansam, o fazem sobre o imenso campo santo das minhas lembranças. Lá repousam sem féretro, minhas jóias preciosas infância e adolescência; lá acordei um dia, olhei ao redor enxergando só juventude e pensei “vou antes que viva eternamente  os efeitos colaterais dos dezoito anos, mas nem que seja em pó ou folha levada (Quintana), retornarei” .

Portanto, cuidado, conterrâneos. Cuidado ao arrancarem pedras das ruas que ainda não se hajam  impermeabilizado, pois poderão estar partindo um pedaço da minha lápide. Cuidado ao pisarem na tijoleta mal cuidada da calçada. Poderá derrubá-los. Mas de certo que não será somente a tijoleta. Caso seja em dia de chuva, algo de mim poderá cuspi-los até o meio da perna e isso não será um mero acaso. Cuidado moças ao dobrarem qualquer esquina da Duque em dia de ventania. Em algum ponto, como alma penada eu estarei soprando, tentando levantar vestidos e desarrumar cabelos. Não por maldade ou nem tanto por isso, ou será que vocês acreditam que é só o Minuano que sopra naquelas esquinas? Eu morei na Duque. 

Em cemitérios enterram-se saudades, e nada pode ser maior do que as minhas. 

Cada vez que vou a Uruguaiana faço um download  de alguma coisa etérea, alguma entidade dessas cujo nome desconheço, e vou, numa espécie de regressão profunda a outras vidas, todas minhas e todas vividas por lá. E vivo isso, ainda que eu esteja confinado nesta caixa de ceticismo tomada em comodato do Criador, que está com a estrutura gasta e cheia de desenhos de tempo.  No entanto, ao contrário de Pandora, esta vive aberta e com mais coisas do que somente esperança pendurada na aba.

Quando vou a Uruguaiana, a minha terra santa, e santa porque sempre volto de lá com os fragmentos finais da minha juventude, percebo que há pouco hoje para tanto ontem.  

domingo, 25 de março de 2012

RAMON



Era uma noite de dezembro dessas mormacentas de Uruguaiana, em 1966. De diferente, a formatura do ginásio do Instituto União, com a pompa equivalente a falta de outras pompas ou alternativas. Encharcávamos tudo, desde a camisa Volta ao mundo aos carpins novos, comprados na Surreaux, e secávamos o suor da testa com a manga do casaco de tergal. Havia o lenço, mas este era engomado e enfeitava o bolsinho de cima do casaco. Éramos muitos, não lembro quantos, acompanhados por nossa claque familiar. Parecíamos doutores. Mania aquela dos familiares transformarem qualquer evento dos filhos num grande acontecimento. Hoje seria perigoso em função dos assaltos, ou proibitivo, em função da novela das nove.

O canudo nos foi entregue com um presentinho especial oferecido pelo colégio. Uma Bíblia, com amplas recomendações para que não deixássemos nunca de ler, uma vez que dali retiraríamos os ensinamentos necessários para a continuidade da nossa formação moral e religiosa. Aquele livro continha as setas que nos indicariam o caminho e as luzes que nos mostrariam a verdade e a vida. Justo e perfeito, porém,  o Criador que me anote mais esta a débito, caso haja espaço, tudo haveria de ser farra naquela noite.

Terminada a cerimônia, fomos liberados com meia dúzia de pilas cada um, para os Grapetes. A ideia clara dos pais era que ficássemos sentados no quiosque da praça olhando o footing piscando o olho para os “galetos”. 

Pensávamos diferente, portanto, fomos ao Ramoncito. (Quem não souber de quem se trata e não for mentiroso, digamos que tenha sido a versão pós-moderna e neofresca do Ivo). E de Bíblia na mão! Por certo haveríamos de converter alguma daquelas criaturas de vida fácil que enxovalhavam o nome das suas famílias vendendo seus corpos, ruborizando a sociedade pudica. A profissão mais antiga do mundo é condenada desde os tempos dos personagens do livro que carregávamos, e aquilo haveria de ser um forte argumento em favor dos nossos santos propósitos.

Ramon nos olhou atravessado, na porta de entrada. Alguns fedelhos de terno e Bíblia na mão, o que haveriam de querer?  Mas Ramon era uma criatura doce, não negaria acesso a um grupo de mórmons juvenis, ou seminaristas bem intencionados. Dentro do rendez vous nos separamos, uma vez que cada um teria que lutar por seus interesses usando seus talentos, atributos, etc., e a noite haveria de ser longa.  Soube de um colega que teria sido levado ao quarto por uma das moças para que benzesse algumas partes do seu corpo, digamos que suas ferramentas de trabalho, a fim de que jamais lhe faltasse clientes. Outro pregou durante uma hora um sermão individual, direto na orelha, condenando a atividade exercida pela moça, lembrando a ela que o corpo não nos pertence, é uma estrutura  por onde o Criador manifesta  sua imagem e semelhança, que recebemos em comodato, sendo que somos apenas fiéis depositários.  Portanto, de maneira nenhuma, sob risco de julgamento irrecorrível poderia ser comercializado, quando muito emprestado, ainda assim por uma boa causa que servisse ao próximo. E que ficasse claro que um jovem bem próximo, quase em cima e sedento de experiência seria uma boa causa.

Ramon nos deixou ficar o tempo que desejamos. Acho que tinha alguns de nós, mais taludos que chamaram muito a atenção dele, cujos nomes (calma!) não lembro.  Sei que depois, noutra oportunidade alguém, também não lembro quem, na fila do Corbacho com a namorada foi abordado com a sugestiva proposta: “yo voy a tracer um bluson muy lindo de ayá...Te gusta?”.  Ex-namorada.  

Sua casa faz parte de um tempo rico de histórias que jamais seriam contadas na Ceia de Natal, mas eram obrigatórias em qualquer outro lugar da cidade. Sua luz vermelha se apagou. Que o seu caminho  seja iluminado por  outras mais claras. Mais um que se foi e não deixou um livro, para a paz eterna dos que continuam.    

EM NOME DO FILHO


Páscoa, do livro Castelo de guardanapos


Tenho três fotos suas comigo, de três fases diferentes da vida. Na primeira, lá estava você, no colo plácido da mãe, com jeitão de nem aí para o que ocorria ao redor. Na segunda foto que tenho você montava  o  burro, vestindo aquele modelito demodê cheio de panos e pregas, sol a pino. Parecia constrangido e não mais com a virgindade da mãe. A terceira é preocupante. Não, não, você não está nada bem. Está magérrimo!  Talvez em função do esforço para multiplicar pães e peixes e alimentar-se somente deles. Esta não é uma dieta saudável. A bandana espinhenta também em nada lhe favoreceu.  Sua fisionomia cansada deixa transparecer todo o desconforto causado pela  posição de braços abertos.  Assim você se foi, dizem alguns. Outros dizem que você não demora voltará e de tão convictos pregam cartazes e estendem faixas. E há um segmento que diz que, na verdade, você está por aí, em todas as partes. Mas há ainda outros que perguntam: quem? A gente não agrada todo mundo. Nem você, como dizem.

Bueno, Mano, da minha parte quero dizer que o carrego em boa conta, embora não tenha feito ao longo da vida muita força para receber recíprocas. Confesso até que tenho lembrado mais dos seus assessores, principalmente a atarefada Edwiges (a propósito: você  influiu na mudança do Pai nosso? Estava tão bem o texto que dizia perdoai as nossas dívidas...). Mas se é verdade que você se foi é melhor deixar por isso mesmo. Fique onde está. Momentaneamente há muita necessidade, mas pouco clima para o seu discurso preferido que incluía amai o próximo como a si mesmo... Embora isso pareça amargo. Além disso, para que houvesse melhor adaptação aos novos tempos melhor seria nascer de novo, mesmo que passasse mais uma vida ouvindo cochichos sobre a sua paternidade, ou você acha que ficaria por isso mesmo a historinha aquela do Espírito Santo? Pobre Maria! Pobre José!

De você, a qualquer momento seria exigido que expulsasse os vendilhões do templo, porém não haveria de ser com aquele chicotinho ridículo. O pessoal anda pegando pesado por aqui. Mesmo que conseguisse, sobrariam quantos para ouvir os sermões? Falando em templo, você haveria de receber convites para os cultos de domingo cercados de toda pompa e luxo, uma vez que as igrejas, meu velho, têm uma arrecadação maravilhosa, isentas de impostos, mas e daí, como ficaria o papo do camelo passando pelo buraco da agulha versus rico batendo com a cara na porta do céu? Sua popularidade começaria a despencar.  E se nessa época  estivesse você  com 33 anos? Cuidado, não é uma idade de boas lembranças! Melhor, portanto não arriscar. Seria muito chato ser vaiado na casa do próprio pai e pior: acabar negociado por trinta fichinhas de vale transporte.  Por fim, mesmo que esteja acostumado a pregos, em função da infância na carpintaria do Zé, você sabe como poucos que eles não ficam nada bem cravados no meio das mãos.

Simplesmente reaparecer sem nascer de novo seria ainda pior. Você estaria um caco, quase coisificado, sem fôlego para longas  peregrinações e muito menos para assoprar duas mil e tantas velinhas. Portanto, fique onde está, meu caro. Pode ser que esse lugar seja aqui do nosso lado, como dizem aqueles, ou em todas as partes como dizem os outros, ou simplesmente habitando uma metáfora como pensa quem não quer pensar a respeito.  Pelo sim, pelo não, mantenha-se discreto e me ouvindo de vez em quando. Eu vou lembrá-lo feliz como gostaria de vê-lo. Não se esqueça de me recomendar ao Velho.

quarta-feira, 21 de março de 2012

ESTRELA GURIA






Por onde andavas não sei.
Sei que via teus olhos em cada anoitecer
Piscando promessas.

Por onde andavas não sei.

Sei que via teus olhos em cada anoitecer

Piscando promessas.

Sei que andavas por lá, entre Saturno e Mercúrio,

Brincando de contrariedades.

Revia neles teus anéis de fantasia,

Frios, voláteis, incompreensíveis...

E por vezes, um presumível fogo mercurial.

No lapso cósmico e temporal,

Onde ficou o teu jeito de ser menina,

Dormiu meu jeito menino de gostar de ti.

Amar? Eu amava quindins e caldo de cana.

Mas quindins tinham o gosto do teu jeito;

E eu bebia teu riso no caldo de cana fresco.  

Por fim, imagina os sonhos que sonhavas.

Distantes, procurantes... Por certo sem mim.

 

Por onde andavas não sei.

Por onde andas... Sei.

Vejo-te em cada crepúsculo vestida de Dalva,

Piscante e anunciando as promessas

Que jamais prometeste, 

Mas juro por Deus que as ouvi.

Estás lá, coberta de brilhos e me conformo.

Melhor o devaneio juvenil como mortalha,

Arrebatado, puro, tão lindo quanto impossível.

Cumpre pois o teu destino, estrela-guria:

Sempre distante e jamais cadente;

Talvez nunca candente, porque toda estrela é fria.


segunda-feira, 19 de março de 2012

Gold finger


Do livro Castelo de guardanapos

Você chega aos cinquenta anos e nada, nunca mais, será a mesma coisa. É uma idade que dá para contar em séculos, meio, o que impacta até no mais despercebido ego.

A idade traz na mala de garupa muito mais do que uma eventual e simples aposentadoria. A vida cobra pesados ônus na razão direta das gastanças físicas, intelectuais e financeiras. Mas cobra também pelo simples fato de estarmos vivos e ousarmos desafiar a idade. Antes éramos velhos aos cinquenta, hoje podemos ser quase jovens ou metidos a isso. 

Há homens que justificam plenamente esta versão. Em nossos encontros anuais de Uruguaiana, observamos companheiros cuja cor dos cabelos de alguns que em nada se alterou, e que juram: sem química!  ou no porte de outros, que até hoje chamam a atenção de um antigo professor de geografia, mestre em meritocracia, que costumava premiar os alunos pelo desempenho; físico.  

Na balada dessa pretensão, as mulheres, felizmente estão anos-luz à nossa frente. Há um grupo de amigas, quase um clube, que se intitula PQG (Pensa Que é Gatinha) e curtem muito isso, mas dá um trabalho danado conferir calorias, medir índices de gordura e outras ginásticas, além das atividades de mães e profissionais. Tudo dá trabalho a partir da meia-idade.

Dia destes chegou a minha vez. Busquei no plano de saúde um especialista. Ninguém conhecido meu ou de meus amigos. Urologista.  Marquei consulta. 

Na noite anterior não dormi e na manhã do dia fatídico experimentei acordar mal-humorado. Jamais sou mal-humorado de manhã. Tenho várias testemunhas, todas femininas felizmente que atestam isso. Criei pretextos para não acordar, depois para não sair de casa. Sentia-me velho, um traste, indigno de vestir as calças que até então atestavam a minha condição de  homem. Na porta do edifício de casa fingi que havia esquecido as chaves do carro, na porta do consultório quis voltar, deixar para lá, afinal não tinha nada mesmo. A saúde estava como nos velhos tempos. Entrei. Na porta do consultório vacilei. Não uma vaciladinha qualquer como aquela quando o sinal troca do verde para o amarelo. Uma grande vacilada, como uma falha na hora H, brincando de bombeiro com a Luma.  Mas enfim, não era o único homem a fazer exame de próstata.

Entrei. Havia dois senhores quietos, quase sem respirar para não serem notados, olhos fixos em  revistas que até nem precisariam ter letras. Não queriam ler, queriam esconder os olhos. A educação me ensinou a dar bom dia. E fiz isso, mas nem eu ouvi o som da minha voz. Por outro lado, bom dia quando e onde, cara pálida? 

Sentei e busquei desesperadamente uma revista, qualquer uma. Sabe revista de consultório? A mais nova mancheteava: Caras-pintadas derrubam Collor !  Acho que uma das outras era O Cruzeiro. Não importava nada disso, queria, como todos os desafortunados presentes, esconder o olhos. Por prudência ou discrição, o consultório não tinha recepcionista. Já pensou, você ali, mortificado, e uma secretária lhe olhando, séria, talvez com  pena, vez por outra rindo, sabe-se lá de quê, ruminando um chiclete? Seria a ante-sala do inferno. Assim já o era. 

A porta se abriu e eu gelei. De lá saiu um cidadão, mais constrangido do que nós da sala, boné enterrado até os olhos, olhando para algum ponto do carpete, ou para o infinito além do solo. A seguir saiu o médico. Imediatamente olhei para o tamanho de suas mãos. Meu Deus! Porque não busquei alguém conhecido? O cara era enorme. Como um sujeito daquele tamanho se propõe a passar anos na universidade, gastando os olhos da cara, normalmente explorando os pais, só para se tornar urologista? E sai de sua sala sorrindo e dando bom dia! Só pode ser sádico. Vacilei de novo. 

O seguinte, ou a próxima vítima, foi chamado. Levantou-se da cadeira como uma ovelha cansada de se debater contra a fúria dos cães selvagens, entregue, arrastando-se penosamente até ser recebido à porta por aquele monstro. Fecharam-se.

Na sala de espera restavam dois, olhos fixos nas páginas da mesma revista de horas atrás. Então nos olhamos com profunda sinceridade. Ele tinha mais ou menos a minha idade e parecia em boa forma. Constrangimentos à parte, conversamos sobre o que nos levava a passar por aquilo, e que estávamos ali mais em respeito aos nossos familiares, etc. 

E variamos os assuntos, e seguimos conversando até o elevador, depois tomamos um cafezinho no bar do prédio, acabamos combinando um jantar com as famílias e um treininho da basquete no final de semana. Nos despedimos, cada um pegou seu carro e nunca mais nos vimos.  O exame!  Pela quarta vez, por motivos diversos foi transferido. Pior é que digo em casa que está tudo ok. Acho até que está, mas quem garante? Aliás, é mesmo da garantia que estou fugindo. Sei que não posso adiar ad eternum, até porque a eternidade pode chegar antes.

OS DÍGRAFOS

Adicionar legenda  (poema fraterno)

          

Do livro Assim como era no principio

Por humanos, pares,
A um tempo plurais e singulares.
Quanto mais pares, mais ímpares,
Que aglutinados e aglutinando,
Se encerram em nichos justapostos.
Números naturais, quase sempre primos,
Ao longo da vida divididos por unidade,
Ou por si, quando enfim multiplicados.
Dois perfaz um, nesta primalidade grupal,
Força que não prescinde da submissão diacrítica,

O que somos, como entidade social e afetiva?
O que buscamos além de Primus inter pares? 
Dígrafos. 
Quase sempre iguais. Nunca únicos,
De missão única, quase nunca igual.
Apegos vitais na gramática da convivência;
Recíprocos na formação do todo que importa;
Modulados para dizerem sempre mesmas coisas.
E seguirem juntos para os mesmos lugares.
Separam-se por meio, não fim, repudiando hiatos,
Apenas vez por outra, para dar curso à vida, 
E contrariados quando a linha chega ao final.

Meus afetos; meus pares; meus amigos...
Meus dígrafos... Axiomas do infinito.

sexta-feira, 16 de março de 2012

DE REPENTE DO RISO FEZ-SE O PRANTO



Tributo a Moacir Bastiani

"De tudo, ficaram três coisas:
A certeza de que estamos sempre começando...
A certeza de que é preciso continuar...
A certeza de que seremos interrompidos antes de terminar
...
Fernando Sabino

É certo que já nascemos com o objetivo de morrer e o fazemos desde o primeiro choro que nos traz à vida. É certo que vivemos em busca da longevidade lúcida. Do corpo, muitos de nós judiamos, uma vez que parece ter os prazeres do mundo o dom da judiação material. É certo que nunca é chegada a hora de morrer, mesmo para os que estão ali, no partidor da grande raia, ansiosos pelo “se vieram!”.

Não sei participar de momentos de dor sem ser protagonista. Não me serve o papel de coadjuvante porque olho ao redor e vejo braços querendo abraços, cabeças pedindo ombro, ouvidos que ouvem palavras compungidas, iguais em conteúdo e forma, mas que se esvaem de pronto, pois a única voz de consolo possível se calou. Resolveria alguém que súbito dissesse: “que susto hein? Agora vamos acordar”. E os olhos? Os olhos que se intumescem de vermelho por não conter o aquífero inesgotável bombeado pela alma com a irrespondível pergunta: "meu Deus, porquê?"

Quando morre um amigo morre um pouco do que somos. Morre uma tira preciosa dos nossos sonhos pueris de eternidade. São estes sonhos que nos mantêm teimosamente jovens quando toda estrutura física nos desmente. Por eles encontramos motivos para juntar, vez por outra nossas vidas dispersas, apenas porque sim. As nossas escolhas e o tempo nos fizeram desiguais. Pouco temos em comum; pouco ficou do que fomos na base da existência a não ser eles, os sonhos que sonhamos de calças curtas.

Não sei ser coadjuvante de momentos de dor profunda, porque não me ensinaram a postura da perda conformada. Não nasci para chorar afetos que morrem. Não sei o que fazer, cubro-me de reticências e tartamudeio até no  teclado. Em dias como este chego em casa, olho meus filhos, lembro dos mais próximos e rezo, e rezo, buscando a mais profunda fé que jamais tive para que o calendário do Criador não me negue o privilégio de partir antes.

Mas e a vida? O que é o que é meu irmão. Há quem fale que a vida da gente é um nada no mundo. É uma gota; é um tempo que não dá um segundo (Gonzaguinha). Pois é. Boa caminhada, meu amigo Moacir. Por certo a estrada estará mais fácil do que outras que trilhaste. Quanto a luz, tu mesmo levas.

Jair Portela

VERDES ANOS



Um pouco do que eu sonhava quando guri tinha olhos verdes, franja, algumas sardas e jeito comportado. Mas não era só isso que eu via nela. E não vou dizer tudo o que via porque metáforas têm limites e não haveria espaço para colocar o sol, o mar, todas as flores do jardim e outros exageros produzidos pela paixão juvenil, numa estrutura de mais ou menos 1,50m. 

Vou apenas resumir dizendo que o Criador, no sexto dia, às seis horas da tarde, antes do primeiro bocejo, extasiado com a magnitude de sua obra resolveu inventar o sorriso. É verdade que demorou um pouco mais do que o previsto, aperfeiçoando e adaptando caras e bocas, pois seu padrão era Mona Lisa, o que convenhamos, não tinha graça nenhuma. Enfim conseguiu satisfazer sua divina mania de perfeição oferecendo-o a alguém que conseguiu usá-lo de forma integrada, ou seja, fazendo com que todo rosto risse junto, boca, olhos e até a franja. Resultou então naquele conjunto harmônico, foco permanente dos meus olhos, moradora permanente das estrofes falhadas em meus versinhos de guardanapo e à altura dos mais suaves fetiches. 


Comparada a ela, Suzanne Pleshette, meu primeiro caso mal resolvido, era um nada.  Nesse namoro, que envergonharia Platão, a personagem era uma obra de natureza viva, exclusiva, hoje pendurada na parede das minhas confissões sem culpa.

Jamais me aproximei dela, ouvi sua voz, ou descobri do que gostava. Nem mesmo fiz por ela amplos planos futuros ou ousei fantasias eróticas. Nunca pensei nela como uma namorada de sentar na praça, nem alguém com quem pudesse me consumir nos pelegos.  Não havia e não há sequer uma música romântica que me lembre sua figura ou seu jeito. Só um contexto, um tempo e uma idade, tão bonita quanto contraditória. Uma parte de nós inchava os testículos nas reuniões dançantes e cantava: “eu te amo, meu Brasil, eu te amo...”; Outra vivia escondida, com medo de ter os mesmos órgãos inchados nos testes de amperagem, promovidos pela atividade repressiva extra-oficial.

Nem ao mais próximo segredei sobre aquela obsessão.  Mas ela, por certo, desconfiava. Impossível que não percebesse dois pares de olhos eternamente fixados na direção dos seus, irremovíveís, mortificados, teimosos, porém, vertendo fragilidades. Não havia o que temer, e talvez por isso o assédio virtual não a perturbasse. Assumia com generosidade e consciência social a sua condição de ídolo.


Recentemente descobri que não era único voyeur na vida dela. Nada mais, nada menos que dois times inteiros de basquete da época tinham por ela algum frisson, com variáveis de acordo com a imundice mental de cada um. Experimentei um gostinho amargo, quase me senti traído, mas logo, logo compreendi que eram questões diferentes. Os predadores da inocência queriam algo mais concreto, não lhes bastava a pureza platônica que só eu sentia. Não os culpo por isso. Eram sentimentos mais compatíveis com os padrões da idade, em todas as épocas.

Vi-a pela última vez há mais de trinta anos, mas lembro com exatidão como era.  É uma lembrança que dorme para sempre nos meus nadas bem guardados. Revê-la talvez quebrasse o encanto. Não seria ela e eu teria um motivo a menos para sentir saudades de mim e da minha bucólica Uruguaiana de antes. 


Está, onde deve estar, eterna natureza morta; sempre menina, incomparavelmente bonita, permanentemente impossível, e eu olhando para ela, anestesiado, com o rosto tão cheio de espinhas quanto de vergonha.

quinta-feira, 15 de março de 2012

JE VOUS SALUE MARIE!



VERSOS SATÂNICOS - TRILOGIA


CAPÍTULO I

O CARO PALO DO GALO


Extra! Extra!
Senador metido a galo, 
Nem desconfiou do preço do palo! 
É o que acontece quando se pensa com o falo. 
Mas não é por isso que o Congresso 
Há muito se vai para o ralo. 
Além do galo de quem eu falo, 
Muito cacique entrou no embalo 
E teve o pepino enterrado até o talo.

Eu não me calo, tampouco me abalo, 
E tanto quanto posso falo, exalo, propalo. 
Vez por outra me dá um estalo 
E me dou conta que eu mesmo me encurralo.

Falta vocabulário, falta mídia, falta espaço. 
Acabo ficando no bagaço,
Digo que não merecem o meu cansaço,  
Mas de pronto me refaço, 
Pois considero um erro crasso 
Silenciar e vergar o espinhaço. 
Temos de enfrentar aquele cangaço, 
Coalhado de devassos, 
Que criou metástase no Paço. 
E vivem nos fazendo de palhaço, 
Trilogia neles! Porrada, relho e balaço.

Pouco adianta destratar esses senhores. 
Deputados, Senadores e outros usurpadores 
Que invadem nossos televisores  
E outros receptores. 
Falam como se nos fizessem favores 
E não estão nem aí para os horrores,
Que praticam nos bastidores, 
Totalmente desapetrechados de pudores.

E o povo parece que nem liga. 
Quando muito faz figa, 
Acha melhor do que partir para briga. 
De mais a mais, é mais fácil falar da rapariga, 
Aquela que fez um montão de intriga, 
Planejou bem planejada uma barriga, 
Naquela pegadinha sexual pra lá de antiga. 
Entretanto, hoje já não mais litiga.  
Pudera. Com a conta-corrente que abriga, 
Dá para viver de cantiga, 
Como na fábula, e para inveja deste rábula: 
Mais cigarra e menos formiga.

E vem aí um livro sobre o Congresso. 
Garantido amplo sucesso. 
Alguém duvida que o tal impresso 
Seja o mais vendido até no recesso? 
O que contará miss Veloso? 
Duvido quem não esteja curioso. 
Dirá ela o quanto o Renan é charmoso? 
E que brinca de mimoso depois do gozo? 
Não sei, não, acho duvidoso. 
Aposto num folhetim meio cavernoso.

Mas serão verdades negociadas no prelo. 
Se paga uma omissão aqui, 
Distorce-se uma verdadezinha lá, 
E enfim, bate-se o martelo, 
Com o velho gesto singelo,. 
De depositar onde há castelo. 
O dinheiro deverá sair do paralelo, 
Onde sangra o caixa verde e amarelo.

Moniquinha Veloso hoje veste chinelo. 
Depois de atar o burro na sombra. 
Talento de quem soube usar a pomba
escolher a hora da tromba. 
Ai, ameaça que vai largar uma bomba, 
A velhacada se assombra 
E até o mais resistente tomba.


Preteou o olho da gateada! 
A moça ficou pelada e anda dando risada 
Assistindo de arquibancada 
Os efeitos da sua tacada. 
O Renan, que havia feito a cagada, 
Por não saber usar a espada,  
Desconsiderou a emboscada 
E levou a enrabada.

(Que estrago fez a Mônica, 
No final desta novela tragicômica! 
Mesmo sem bomba atômica 
Ocupou grande espaço na crônica).


O Congresso talvez não seja o mesmo 
Logo após este estrago. 
Muitos recorrerão ao trago, 
outros farão teses como discurso de gago. 
E será terminantemente proibido 
Trocar afago a cem metros do Lago.

Riscar fora da caixa só em ambiente pago; 
Muito sossego no bago,
E tranca forte na bragueta. 
Melissa para amordaçar os gametas, 
Sobretudo, jamais entrar nas gavetas, 
Teúdas e manteúdas, 
Sem jaqueta na chapeleta.



CAPÍTULO II


















A FLOR DO PÂNTANO

Ah, essas mulheres fogosas
Com suas entranhas poderosas! 
A gente mal se lembra das estranhas gostosas 
Que surgem no vídeo como um cometa, 
E num záz, desaparecem, ou vão brincar de Julieta,
Com o primeiro Romeu que vier atrás.


Ou um despercebido de visão turva, 
Mas meticulosamente escolhido. 
Elas sempre esperam a melhor curva, 
Os exemplos proliferam às mancheias. 
Vão, silenciosamente armando as teias, 
E quando o “moscão” bobeia, créu! 
Pensa que está no céu, 
Mas está enrolado nos caracóis, 
Com um e outro pingo nos lençóis, 
No entanto estejam certos: 
Muitos pingos dentro  e um óvulo fertilizado.

O cara até pode ser esperto, atilado, 
Mas na hora do ai-ai-ai pouco se importa, 
Ou sequer imagina, que será de novo pai 
E que a ação foi premeditada, 
Não mede o tamanho da cagada, 
Entorpecido, olha para a china,
Enxerga pouco mais que uma vagina, 
E naquele momento profundo, 
Ejacule-se o mundo, 
Ele, se quiser, que  acabe naquele segundo.

No remanso de uma história destas, 
Borboleteiam o panaca e a oportunista, 
Que faz as coisas sem dar na vista, 
Aproveitando o grande poder da mulher. 
Mas só não vê quem não quer. 
Basta, passado o fato, comparar cada retrato.

Olhem a Mônica Veloso,
Agora olhem o Renan.
Eu ficaria no mínimo sestroso. 
Antes de chegar o tchan-tchan-tchan 
Custava lembrar do que todos temem?
Mulher que circunda o poder não faz pacto de sangue, 
Faz pacto de sêmen.


Pobre do Calheiros! 
Foi brincar de Romeu 
No tempo em que mais se fiscaliza o galinheiro, 
E deu no  que deu. 
Perdeu dinheiro, prestígio, perdeu poder 
E talvez saia das boas, 
Coisa que cultivava a décadas, 
Desde que abandonou as Alagoas. 
Pagou um preço alto por riscar fora da caixa, 
Arriscou a vida pública por uma racha, 
E num momento, quiçá raro, de estado erétil 
Nem quis saber do tal período fértil.


Não vi como pena, vi como jogo de cena 
O fato de ser perdoado pela esposa. 
Aliás, como fez a mulher do Clinton, 
Traída com outra Mônica, a Lewinsky, 
Aquela que fazia chupinsque, 
Enquanto o gringo brincava com o charuto, 
num “meia nove”, no mínimo fajuto.

Peço perdão pelo palavreado bruto, 
Mas a rima é inevitável. 
E pelo sim pelo não, 
A partir de agora é recomendável, 
Todo cuidado com as Mônicas. 
Das discretas às histriônicas.


CAPITULO III






















SE ENTREGA, CORISCO!

A presidente diz que não é um poste, 
Mesmo que alguém não goste, 
Eu arrisco: não sei, não. Depende de tudo.

Que tempos esses, bacudo! 
Parece que tudo vai bem e de repente, 
Quando ganharia mais se fosse mudo, 
Lá vem o outro com discursos de improviso, 
De muita bravata e pouco siso.

Até a ex-maldita CPMF virou queridinha do chefe.
Um dia pedra, outro dia vidraça. 
É bom para aprender que governar 
Não é beber cachaça.

Mas voltemos ao amigo do homem. 
Esse parece que o bicho não come, 
Ao contrário, é ele que come. 
Come e se farta, e depois descarta. 
Ou tenta 
como no caso da sua última transa barulhenta. 
E nós pagamos a farra. 
Na marra!

A tranqüilidade soberba do Renan 
Já me indicava que ele era um arquivo.  
Por isso o senado estava sendo “compreensivo”. 
A maioria daqueles sisudos senhores 
Morreria aos efeitos de um discurso “explicativo”, 
Sobre o porão moral do Congresso. 
Moral  coberta de abscesso, 
Que na verdade está em metástase, 
E como todo mal... Arrasta-se.

O Gabeira, que adora botar lenha na fogueira, 

Lembrando o Antonio das Mortes, 
Grande caçador de cangaceiros da zona norte, 
Hoje em falta, fuzilou o Calheiros, 
Chefe daquela malta, 
Lascou, assumindo o risco: 
Se entrega, Corisco!

Aqui duas questões em uma, 
Pra que a gente apenas resuma: 
O Gabeira é mais macho que a maioria 
(quem diria!); 
Segunda: não tem medo de expor a bunda, 
Ou seja, não prega moral de cueca, 
Embora alguns desaprovem seu estilo boneca, 
Mais enfeitado que o quarto do Ivo,
Nem de seu passado “festiva”, e festivo. 
Também eu enxergo torto esse quadro defectivo, 
E nessa faixa de opção, não dou valor lascivo.

Como se dizia em Uruguaiana: 
Tenho vontade de “largar um osso”. 
Eta raça triste essa que habita o Congresso! 
Não tem um que não mereça cana.
Estamos chafurdando no fosso 
E, por mim, nada mais peço, 
Nada mesmo adianta,.
pois os poderes estão coalhados de sacripantas

Entre situacionistas cúmplices 
E oposicionistas hipócritas 
Quem perde são os idiotas, 
Estes aqui que habitam as planices, 
Que nada tem a ver com aquela zorra. 
(Como nada, porra? 
De tempos em tempos colocamos todos lá, 
Pior: ainda fazemos campanha
Depois ficamos aqui reclamando do Ali Babá. 
Caímos na velha artimanha 
De que votar é preciso, 
Nos curvamos ante um amplo sorriso 
Que nos aborda, na horda de anjos imaculados, 
Santinhos por todos os lados 
No papel e no discurso, 
E muito abraço de urso).

Renan é um ícone castiço 
Que prolifera feito inço. 
E no seio da Pátria amada vem se perpetuando. 
Foi tropa de choque de dois Fernando 
E depois adotado pelo Lula. 
De lá pra cá ele bajula, 
articula, manipula, dissimula, copula, ejacula 
E... nós carregamos o fardo, 
Pagamos o pato e a pensão do filho bastardo.

Renunciando, se salvou 
E talvez nem perca o comando no bastidor. 
Deixa provisoriamente de ser Senador 
Para candidatar-se a... Senador. 
E deverá deixar de lado a revanche, 
Pois a fila continua andando 
A Mônica sai de cena sem .deixar chance, 
Saciada e garantida por ter trocado,  
Um pau de quando em vez por doze paus por mês.