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sábado, 15 de dezembro de 2012

O ANJO ROSALINO


O anjo Rosalino

Meu pai, com a sabedoria dos velhos me aconselhava: “melhor baixar os braços a perder os dentes”; “nenhuma discussão ganha vale a perda de uma amizade”. E particularmente me dizia: “tu não tens nem tamanho para ser valente”.

E de fato nunca fui de brigar, mas o verbo sempre me atormentou e nunca houve travas suficientes que o fizesse acomodar-se antes da língua. Nem em situações críticas e de perigo eminente como quando de minha passagem pelo quartel, prestando serviço militar em pleno AI-5. Penso, logo falo. Sem meditações metafísicas, não é mesmo seu Descartes? Mas pago por isto. E a respeito de amizades que se perdem por discussões vagas, penso que elas também o tenham sido.  

Eu tinha pouco mais de dez anos e vinha de um bate-boca forte com outro menino, este com tamanho de quinze. O motivo era o futebol, um coicezinho desproporcional, uma cotovelada, ou apenas um “paninho”... Essas coisas. Em um determinado momento, o oponente, perdendo o argumento, não lembro se com um soco, ou com o vento do seu soco me jogou ao solo. Eu ainda me preparava para levantar, quando lá veio a maldita mão pesada, que vi chegar perto do meu rosto. Mas não alcançou. Não alcançou e na seqüência lá estava o “provalecido” estatelado ao meu lado, surpreso e manso. De pé, um amigo da idade dele, enfurecido, mas controlado, dizendo apenas: “tiscapa daqui! Se te pego de novo te cago a pau!”.

Também em outra oportunidade, na saída de um jogo no campo do Ferro Carril, eu estava prestes também a pagar caro por alguma firula debochada, e o mesmo anjo da guarda, ai com calma e jeito afastou o desaforado, abraçando-o e aconselhando. Afinal, aquele era vizinho e amigo.

Minha mãe, vendo o fato, perguntou: “aquele guri mais velho é teu amigo?”. Sim, ele era meu amigo e detalhei às vezes em que ele esteve ao meu lado. Minha mãe perguntou: “sabes por que ele faz isto?”. Eu não sabia, mas desconfiava que ele gostasse de mim. Ela, por fim, com a calma exigível me esclareceu: “ele cuida de ti por que é teu irmão”.

Não lembro se entendi, mas lembro de ter ficado intrigado. “Como assim, meu irmão?”. Jeitosa, me contou que antes de casarem, meu pai tinha tido outra esposa e dali nascera aquele filho. Disse-me ainda que eu deveria gostar sempre muito dele, uma vez que ela também gostava, embora ele não soubesse. 

Depois disso eu o procurei várias vezes para falarmos, mas como era muito tímido, desconversava. O tempo se ia, veloz como quem corre atrás de uma bola, e ele aos poucos iam percebendo que sua missão de anjo anônimo fora cumprida, embora permanecesse sempre vigilante. Falávamos pouco, mas sempre que falávamos o sangue puxava, e a partir de um momento melhor de maturidade e compreensão fomos carinhosos e muito amigos.

A última vez que o vi, combinamos um encontro no final daquele ano em uma das praias, e finalmente praticarmos juntos os abusos permitidos a irmãos em férias. Mas não deu tempo. Um descuido o levou embora mais cedo. Sempre é cedo para morrer, mas irmãos devem viver pelo menos cinqüenta anos juntos, e algumas praias.  
Cumpro assim outra sina. Saudades eternas, Rosalino Ribeiro, meu irmão. Ainda temos uma praia agendada.   





quinta-feira, 8 de novembro de 2012

TUCA




Tenho saudades do irmão emprestado; do irmão que quase tive e por não poder tê-lo mais hoje, tenho um buraco impreenchível no peito. 

Sinto falta do amigo que, sozinho era a festa, e que ao seu redor fazia luzir todas as barbaridades inocentes de uma noite barulhenta, por vezes bizarra.  As noites, sim, não tinham fim. Confundiam-se as luzes amarelas, vermelhas ou negras de dentro de qualquer boteco onde se ouvisse uma batida razoavelmente harmônica com os raios do sol, e tudo continuava no mesmo diapasão. 

Ele era incansável, com um fôlego improvável; vivia com urgência, como se tivesse medo que de hora para outra fosse chamado para uma farra no andar de cima e ainda não tivesse gastado tudo por aqui.

Tuca se foi como se estivesse fazendo um vestibular para a vida eterna. Preparou-se, esforçou-se muito e amiúde nas lições diárias de não conformidade. Desafiava até dormindo seu status físico, como se estivesse acima do bem e do mal. Abusava de tudo, mas muito e especialmente da desgastante tarefa de se fazer feliz a qualquer custo. E se fez. E fez também a nós, que a cada noitada o agradecíamos com nossos olhares cínicos de repreensão. E acho que, afora suas penas clínicas, seus últimos meses de vida foram seu paraíso. Só vi medo em seus olhos na última vez que nos olhamos, e quando ainda lúcido, percebeu que preparava longa viagem. Naquele momento sabíamos, ele e eu, que não nos veríamos de novo. Até porque somos formados da mesma cepa incrédula dos que vivem com tudo, com força e atrevimento, com arrojo, sujeitos a todos os erros e suas sequelas porque, no fim, quando nos formos, seremos nada mais do que restos da carcaça cedida pelo Criador em comodato, até o pó definitivo. 

Se morrer, morremos. E Tuca morreu, as noites ficaram menores, e ninguém depois dele contará as histórias que ele viveu, reais ou fictícias não importa, mas incomparavelmente fantásticas.

Maldito seja nosso metro de vida estabelecido lá, não sei em que momento, quando apertaram nosso “enter”.  Os que se amam deveriam partir todos juntos, como se uma dinastia afetiva inteira perdesse seu reinado, a fim de que não houvesse este residual enorme e quase infindável de sofrimento, quando da ausência de um elemento.  A rigor, ninguém sabe perder afetos, mas pessoas que vivem com o coração no cartão de visitas nunca estarão minimamente preparadas, nem na situação mais candente e finada de seu ente, para o momento de dizer “até breve”, mesmo que não acredite nisso.

Hoje, particularmente hoje, dia em que estarei contigo vivo na memória, desconfiarei de qualquer música alta que escutar. E caso beba uma cerveja o farei em dois copos. Vamos brindar a essa festa de aniversário que em algum lugar está acontecendo.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

PEDRO COUTINHO




Não me lembro dele com precisão. Era uma figura imponente, fundida com o cavalo. Perto dele não havia molecagem, nem dos moleques mirins da bucólica Uruguaiana de pretérito tão perfeito, muito menos dos provectos.  Meu pai era amigo dele, mas o chamava de “comandante”, quase um pronome. E era mesmo.

Em momentos como este quando eu, em especial os irmãos paulistanos, e de resto toda torcida verde-amarela andamos por ai encagaçados, entrincheirados em nossos bunker’s, enquanto a marginalia toma conta, destemida, livre e debochada, estabelecendo uma nova federação criminosa plenipotenciária, figuras como aquela me passam da mera lembrança à cruenta saudade.

Segurança pública parece não dar votos. Ou por outra, bandido também vota, e vejam que nicho populoso de interesses que não deve ser contrariado! Por isso talvez não haja legisladores a fim de investir campanha mexendo no Código Penal. Muito menos executivos eleitos aportando verba, ou melhorando as estruturas em nome da defesa do cidadão. A omissão tem duas formas nocivas: a covardia e a cumplicidade. Ou, concluo por simples, que não desejam legislar contra si.

O cidadão que me empresta o título e o símbolo era uma espécie de personalização da liderança autoritária. Jamais falei com ele, mas sei que quando andava por perto havia ordem.  E é do que mais sentimos falta do Chui para cima: ordem; lideranças; Gente que não apenas mande, mas que saiba mandar; que não apenas seja transeunte de cargo, mas o faça respeitar. Crescemos, evoluímos e nos modernizamos, mas se há algo que ficamos devendo ao passado é na formação de lideres, embora haja hoje escolas, cursos, orientadores e outros gurus para esse fim. Hoje sabemos, por exemplo, que se comanda por autoridade, capacidade e/ou influência; Que essas características juntas fazem um grande líder. O duro, porém, é identificá-las, com tantos jogos de interesses que os circundam. Poder também é recurso de comando (na Democracia este é o nosso).  O poder está na base, na massa, mas ela continua sendo de manobra. Nem vamos considerar que atualmente nos falta até mocinho para rodarmos um bang-bang, seja porque os atuais estão comprometidos, ou porque atualmente andamos nos apixando até para os índios. E bobota tem um monte. Ah, como a minha geração tem culpa por isso!

Por outro lado, as vezes observo postagens, listas, correntes pedindo para anular o voto. E gente esclarecida, o que potencializa a responsabilidade ou falta dela. Para qualquer vivente de médias luzes deveria ser fácil perceber que é muito melhor ter o poder de decisão na mão do que transferi-lo para terceiros. A questão é: não votar é a solução? Claro que não. Não podemos permitir que o desencanto com os políticos e seus partidos faça com que eles se eternizem em seus postos. Se os atuais não estão resolvendo, ou por outra, trabalham e/ou legislam em causa própria, se apropriam de bens públicos, e não estão nem ai se você “dança na corda bamba de sombrinha e em cada passo dessa linha pode se machucar”, então trabalhe para renovar os quadros. Opte por não reeleger. Energia nova, gente que venha prospectar novos caminhos e levar não só como plataforma, mas como dogma os anseios e medos de quem vive longe do Olimpo. Os pedrocoutinhos surgem naturalmente, mas hoje só vamos descobri-los garimpando nas urnas eletrônicas.

Não custa lembrar que Democracia requer disciplina, ordem e regras. O que não requer nada disso chama-se anarquismo (acorda São Paulo!).  Excluir-se, omitir-se; é conformar-se em ver a marginália cantando tá tudo dominado, dando as cartas e jogando de mão, enquanto que você, pagador dos maiores impostos do mundo está proibido de tomar mate na calçada às sete da noite.   

domingo, 19 de agosto de 2012

SASHENKA




Acabei de ler Sashenka, de Simon Montefiore, um romance de fôlego, inspirado na história soviética. Conta a vida de uma jovem idealista de origem judia que aos 16 anos, nos dias turbulentos do início do século passado, rompe com sua família, rica e de grande influência no czarado, comensais da Casa Romanov, e se lança na grande utopia revolucionári
a bolchevique. A revolução social mais importante da História da humanidade.

Quando menina, Sashenka viveu a fartura e o glamour imperial dos Romanov; depois conspirou para sua derrocada, ajudando erguer a fantástica dinastia proletária. Mesmo convicta e juramentada na causa, morreu sob o terror de Stalin, o monstro social que ajudara a criar. Uma história comovente que conta a luta pela fé no ideal socialista, a supressão da identidade pela causa; o obscurantismo do pensamento padrão, o culto a personalidade totalitária e o massacre das contrariedades, por ínfimas que pudessem ter sido.

Os vários personagens reais são retratados com a fidelidade de quem viu a luz, e seus comportamentos, o que os arquivos secretos que Kremlin nos permitiram. Mas penso, como muitos, que o pior virou cinzas nevadas, indo morar no substrato junto dos milhares que ousaram desviar-se da linha mestra moral e política estabelecida pela burocracia do Politiburo. Regras duras e casos omissos decididos pela Punição Maior dos inimigos do povo, sem contemplação, dor ou remorsos.

Sashenka é um personagem fictício, segundo o próprio autor, mas sua história bem pode ter sido a de milhares de pessoas, atores da revolução de 1917, que tornou a União soviética centro do que ficou conhecido na Guerra Fria como Cortina de Ferro. Uma história que também pode ter sido nossa; Que também pode estar sendo a nossa, pois não aprendemos nada com o passado político. Pior: uma parte de nós continua venerando ditaduras tenham elas a cor que tiverem. Vermelha ou verde, tanto faz.

Enfim, é uma leitura intensa, dramática desenvolvida com maestria, pois prender o leitor numa trajetória de 90 anos contados em mais de 400 páginas é dom dos ungidos.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

ESQUERDA, VOLVER!

VERSOS SATÂNICOS (50) – 
Grande chefe da tribo Tupiniquim, morubixaba Molusco que Voa estava muito a fim de andar por ai à toa, ele mais patroa, a índia galega Caturrita de Pirata. Com o fim da  mamata, não iria querer embrenhar-se na mata. Por que não ser diplomata? Ah, botar um biquíni à moda Gabeira, um maiozinho tomara-que-caia, muito coco na algibeira e um Panamá estilo Zelaya! Mas ele, por influente, precisou dar suporte à pretendente que é oriunda da tribo afluente Val Palmares. Morubixaba Molusco que Voa, ele mais patroa, queria novos ares, porém, não sem antes de eleger um sucessor. Queria alguém que lhe fizessem um favor singular: que lhe guardasse  faixa, cetro e cocar, e que depois lhe restituísse. Alguém da casa que o substituísse, usufruísse, mas que soubesse que no ano da Copa, dali a quatro luas, chave da oca seria de novo sua.

Deve ter pensado numa embaixada de além-mares, onde pudesse exercitar seus milhares de conhecimentos invulgares. Suaves formas de sugar jugulares e outras artérias auxiliares. Morubixaba Molusco que Voa, ele mais patroa, queria ficar numa boa, mas sabe que o oceano não se atravessa de canoa. Meio apedeuta pode ser, mas não é burro nem louco, portanto, todo cuidado seria pouco. Assim, aceitaria viver em outros lugares, de preferência onde não houvesse militares. Não que descarte, pois sabe que existem em toda parte, mas sabe que seria vigiado desde o desembarque, a menos que.... a menos que estivesse na jurisdição das FARC.

E assim, com uma oposição mequetrefe, nem precisou de blefe. Temos um novo comandante-em-chefe. Por sinal, acho que morubixaba Molusco que voa quase se deu mal. O marsupial não se bandeou do curral, e não que venha a ser rival, mas é poste de luz própria, etcétera e tal. Apesar da herança recebida do antigo patrão, roubalheira do primeiro ao quinto escalão, parcerias indigestas; a companheirada em festas; mensalão, ela se vira pelas Emendas. Óbvio, tem que contentar a legenda, ajeitar-se com os coligados, nem sempre do mesmo lado, mas sempre exigentes e quase sempre descontentes. A  nova morubixaba não está disposta a  governar a esmo. Não quer deixar nada “por isso mesmo” e pelo visto não quer nada que não seja seu. E por isso, de cara, indispôs-se com Palocci, Genoino e Zé Dirceu. Isto para “economia externa” creio eu.


O que vale, no entanto, é a tendência. Afinal, na vizinhança todo mundo está ficando igual. Uruguai, Colômbia e Venezuela, claro. O Uruguai elegeu um Tupamaro. E é certo que com eles nos comparo quando me deparo com esse tal fato raro. Tupamaro lá, Val Palmares, cá. Huguito (por que no te callas) acima, verdadeira obra-prima da neodemocracia latina, e morubixaba Evo Morales, a bombordo (todos a bombordo). E para completar o balaio tivemos um prolífero ex-padre paraguaio. Este com um modo peculiar de multiplicar seu rebanho, já que vinha produzindo o próprio desde antanho. No melhor estilo lacaio, vinha servindo hóstia às beatas, olhando de soslaio, examinando em que anca fincaria roseta e papagaio.

Morubixaba Molusco que Voa andava frouxo que nem calça de palhaço. Andou com muito companheiro devasso que lhe causou embaraço, mas incrivelmente não lhe tirou nenhum pedaço, pois nas pesquisas nunca dobrou o espinhaço (tipo: saiu da suruba sem perder o cabaço!). Ele sempre soube que não se transfere carisma, por isso usou e abusou do sofisma. Entretanto, com ele o povo não cisma, tampouco se abisma, e por isso seu apoio foi decisivo na conquista do objetivo, que nada mais é do que a continuidade do comando festivo rotativo.   

quarta-feira, 23 de maio de 2012

APRES MOI LE DELUGE



A Bíblia fala em retornarmos ao pó, mas não sei não. Segundo a classe competente somos ao redor de oitenta por cento compostos de água, o resto é matéria orgânica de qualidade duvidosa. Se bem que alguns seres vivos honram por demais a categoria. Dá gosto de vê-los nas telas, passarelas, praias, etc. Mas a menos que o Livrão esteja profetizando que iremos, no fim dos tempos, secar o planeta com nossos vícios e maus costumes, e nos matarmos desidratados, não vejo a menor possibilidade  de voltarmos ao tal pó, se é que de lá viemos. Acho que a coisa está mais para o lado da que consagrou o velho Noé.  

Fala-se tanto em aquecimento do globo, derretimento das camadas polares e outros cagaços metereológicos (vide os tsunamis), fora os não sei quantos desastres naturais com nomes mimosos ( El niño, La niña, imaginem!) que matam e destroem todos os anos, tudo regado a água guasqueada, que penso no nosso fim de caso com o vale de lágrimas na condição de afogados.

Dizem que vivemos vários ciclos desde os primórdios e a informação que fica é a que lá, bem no início, isto aqui era tudo água. Tudo o que é gelado na terra vira água e todo o vapor também. É o ciclo.  Tudo que sobe desce, tudo que nasce morre; quem cai para a segunda divisão sobe depois às estrelas, erguendo-se por Tóquio. O tamanho do ciclo define as grandezas, ora pois.

A metáfora religiosa fala sobre o Dilúvio e eu me ponho cá a pensar  se não é isso mesmo que acontecerá. A dúvida intrigante é saber quem seriam os escolhidos para subirem à arca. 

Quem seria o novo Noé, por exemplo? Haveria por certo algum deputado de já hoje , como se diz nas casas, fazendo lobby, acordos de lideranças, etc. Acontece que pelo tamanho da torta a disputa haveria de ser muito acirrada. Republicanos assexuados e democratas tarados; petistas e anti-petista, cada um com seu dogma de fé e uma quadrilha de aproveitadores por trás.  

Muçulmanos e judeus, católicos e protestantes,  Eta, Ira ; Ferro e Sá Vianna,... União contra Dom Hermeto e os dois enquadrilhados  contra Club Barracas, numa disputa a morrer. Jamais poderíamos admitir  um Noé nascido em Libres! Enquanto isso, a turma do Bin nem ai, largando bombinhas nas nuvens para fazer chover mais. 

Seria difícil encontrar um novo Noé que agradasse a todos, o Mano cansa de dizer  “nem eu consegui isso”. Por outro lado posso imaginar, se é que continua valendo a velha sentença  de que é mais fácil um camelo passar no buraco da agulha do que um rico entrar reino dos céus, alguns figurões sendo barrados na porta da arca pela sua condição social, todos prudentemente acompanhados de advogados com mandado de segurança na mão. E  Paulo Salim e Zé Ribamar? Quem haveria de segurar o Paulo Salim e Zé Ribamar? Não adianta.  Eles vão, vestidos não sei de que espécies, mas vão. Portanto, não vem ao caso. 

Como o Noé haveria de ser biônico, espera-se dele que seja justo e honesto . Que no exercício da função não faça conchavos, não edite MPs, não distribua cargos de confiança, não pratique nepotismo, nem seja fisiológico, e muito menos faça acordo com o anjo caído para livrar o seu, tipo duas almas por uma; que faça as licitações corretamente na aquisição da matéria prima para a construção da arca; que leve moças do sul, por que  lá  é que a gente deve casar quando a chuva parar, e os  rios  e os juízos voltarem ao leito normal;  que leve ovelha texel e gado  de sobre-ano,  e não repita a burrice histórica de juntar serpente com maçã.

Ah! E que verifique na entrada atentamente as mãos de quem entra. É fundamental que todos tenham todos os dedos. Não podemos arriscar. E desde já convido meu amigo Precioso para manipular a bomba e gelar a serpentina, por que ninguém é louco ou burro de ficar quarenta dias e quarenta noites de bico seco ou bebendo água da chuva.

terça-feira, 15 de maio de 2012

A MÃO QUE BALANÇA O BERÇO



O fato de lacrimejarmos quando ouvimos o hino não é o suficiente para que possamos nos definir como patriotas. Parece que somente aqueles povos que tiveram um dia, ou têm, suas casas e famílias mutiladas por guerras e outras hecatombes conseguem verdadeiramente experimentar este sentimento. Pena que assim seja. 

Temos um país digno de paixão. É muito fácil amar o Brasil. É multicolorido, clima tropical, gente bonita miscigenada para todos os gostos, sejam mulatófílos ou germanófilos, e outras tantas virtudes default, que um dia alguém chamou de florão da América.

Mas patriotismo é também educação e aí, com esses milhões de sub-letrados que grassam do Oiapoque para baixo pela ordem de importância; que elegem governos, mas sequer sabem os porquês, nos resta mesmo lacrimejar quando a bandeira sobe e quando o hino toca.  


Vivemos ainda em berço esplêndido e nessa condição, a mão que nos balança acha que as nossas únicas necessidades são as de sobrevivência. Andamos entregues a babás deprimidas que pensam em matar a nossa fome, mas não pensam que está mais que na hora de começarmos a andar, a crescer, a pensar num grande futuro. Babás que até desconfiam termos tudo em casa, mas como nada sabem e nada vêem não podem tirar proveito. E assim vamos nós, deixando-as que realizem suas tarefas básicas, ensinando-nos apenas a ser como elas, creditando seus equívocos à sua condição de origem. Não crescemos nada, aprendemos pouco e tudo ao nosso redor parece poder mais do que nós, mesmo que não possa. Daqui a pouco nem vamos mais entender por que disseram que um dia iluminaríamos o sol do novo mundo.

Aprendi com os sopros da juventude a odiar as ditaduras. Condição em que os comandos nos mantinham sob controle. Não nos deixavam reclamar, votar; sequer pensar em voz alta. Assim, nossa salvação somente viria pela via democrática. A ditadura que eu vivi, apesar dos olhos da espreita, pudemos fazer as revoluções sociais e de costumes que quisemos. Pudemos usar cabelos longos, pouco importando se os mais velhos considerassem inversamente ao tamanho das idéias; apertamos as calças e as meninas subiram as saias; as mulheres iniciaram a libertação dos grilhões domésticos; mudamos músicas, comportamentos, mesmo a contragosto dos pais. Poderíamos fazer de tudo desde que ordeiramente. 


Mas em nome da liberdade de podermos decidir nossos caminhos como nação, exageramos e a perdemos, e tivemos de suar sangue para recuperá-la.

Muito bem. Saímos daquela clausura e conquistamos todos os direitos reivindicados, e o que vejo: uma ditadura ainda mais forte e mais violenta; mais intransigente e o que é pior: cheia de tentáculos escondidos sob o disfarce da inclusão social. Ou não será repressão extrema o fato de vivermos enclausurados em residências de segurança máxima, ainda assim inócuas, com medo das ruas? Ou não será ditadura assistirmos impotentes sermos monitorados por Medidas Provisórias, ou firulas do politiquês equivalentes, ao bel prazer do gerente de plantão? Ou não será de exceção um governo que permite a formação de oligarquias fascistas ao seu redor? Que democracia é essa que permite a formação de milícias rurais impunes e soberanas do seu direito de apropriação do bem alheio, e cujos gerentes se dão ao desplante de se declararem despercebidos? 


E que regime é esse que nos deixa  aplastados no sofá da sala ouvindo diariamente que hoje,  mais uma vez, alguém em algum lugar sangrou os cofres públicos e deverá ser investigado? Talvez seja mesmo, talvez seja preso, talvez devolva algo do que roubou, mas certamente não dirá o quanto e mancomunado com quem. 


Ricos, sim. Somos muito ricos. Temos reservas que sustentam nosso mínimo conforto, reservas para emprestar aos vizinhos e grandes reservas para satisfazer o apetite dos nossos sócios majoritários que, vez por outra, limpam nossas gavetas sem deixar recibo. 


Um dia, tido como ato patriótico, uma parte da juventude letrada pintou a cara e fez com que se retirasse do poder um presidente alvo de suspeitas e de acompanhar-se mal. Aquela juventude amadureceu, assumiu poderes, mas parece ter perdido a capacidade de julgar e de se indignar. Deixou-se contaminar, necrosar, criar metástase daquelas feridas morais que espontaneamente antes quis ver extirpadas.

Sou contra todas as ditaduras, mas me tornei ainda mais inimigo dessas que são “escolhidas” por fantoches que se deixam induzir pela mídia conveniente, e por uma maioria que vota pelo trágico apelo da fome.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

SE TODOS FOSSEM IGUAIS A VOCÊ (Dia das Mães)





Uma moça chamada Ernestina, aos dezenove anos fazia o que hoje se reverbera como trabalho social. Não tinha grande preparo a não ser na delicada missão de ser mãe, mas o que a maturidade precoce e a escolaridade média lhe ensinaram distribuía graciosamente à vizinhança ainda menos favorecida. Assim, brincava de dar aulas alfabetizando crianças, e ensinava as meninas coisas práticas para as exigências vigentes, como costurar, cozinhar, aplicar injeções. Tarefas que a levavam a percorrer grandes distâncias vez por outra. Lembro que era muito querida e requisitada naquela periferia erma, distante do grande povo. Parte do contexto, ganhei com isso a alfabetização aos quatro anos e as honras mal percebidas de ser o filho da “santinha”. Ela morou pouco por aqui, viveu com urgência extrema, mas fez além da parte dela, um grande pedaço da minha.

Fez o que manda fazer aquele velho pescador da fábula, que ao amanhecer encontrou a orla repleta de estrelas do mar. Uma por uma ia gastando seu dia devolvendo-as à água, esquecendo de sua própria tarefa de sobrevivência. Alguém que observava teria lhe dito: “meu velho, nem que leves a vida inteira poderás devolver todas ao mar”.  Ao que ele teria respondido: “mesmo que conseguisse devolver apenas uma já teria feito a minha parte”. Piegas? Pode ser. Pessoas assim se multiplicam pouco, tornam-se fototrópicas negativas e vicejam apenas no substrato social, pela grandiosidade da sua modéstia. 

Minha mãe morreu numa idade de chorar perdas. Foi enterrada numa idade de enterrar seus mortos: vinte e oito anos. Não deve ter levado nada, pois tudo que teve e foi,  sepultou na enorme cova que deixou no peito dos que a amam, com um recado monossilábico, mas suficiente na  lápide: inesquecível. Foi um lapso de vida de desfecho incompreensível, resistente a curas. E se foi brilhar no nada, deixando um homem e meio tateando caminhos de penas, abrandadas pelas pegadas de luz que deixou cair.

Neste dia eu paro um tempo, não sei quanto. O tempo suficiente para desenhar seu jeito. Sei que existem ameixas pretas e até as vejo por ai, graúdas e lindas, mas nunca terão o brilho e a doçura que ela tinha no olhar. A grande floresta negra  que despencava em linha reta para muito além dos ombros, hoje talvez tivesse outra cor, ou outras cores, mas ai já não seria a grande floresta negra onde eu enroscava meus dedos infantis. Paro um tempo e paro no tempo. Lá longe, onde nem lembro mais, mas onde tenho certeza que vivi por que é o endereço da minha saudade.  Passados dezenas de anos, neste dia, ela bate na porta do meu coração trazendo seus biscoitos com sabor de mãe.

Feliz Dia das Mães, guria. E que estejas bem e feliz ai onde nossos queridos, contemplados por fé dizem que estás. 

terça-feira, 8 de maio de 2012

DO QUE AS MULHERES GOSTAM



Mulheres têm gostos estranhos, somente vindo a furo após a revolução feminista. Bundas, elas adoram bundas masculinas, o que nos obriga hoje a levantar da cadeira e, no mínimo, caminhar sobre uma esteira para que se mantenham. É cansativo agradar mulheres. Não é por nada, mas quando passamos por aquele grupinho sentado, tricotando, bem sabemos por onde seremos reconhecidos. Já vi e achei natural cabelos, barbas, bigodes, bíceps e outras protuberâncias mais lógicas serem admiradas, mas porque a fissura por glúteos?

Tenho um amigo diabético, zen, que adora olhar quindins. É doente por quindins. Fica longo tempo olhando-os nas vitrines salivando e desafiando o desejo de possuí-los. Acha-os incomparavelmente lindos. Mas o meu amigo não pode, não agora, na flor da idade, consumi-los, deixará para fazê-lo quando estiver quase desistindo do mundo cão, por que aí dependerá de um simples assumir riscos e conseqüências, e seja lá o que Deus quiser.  Quindins e glúteos, assim, me parecem casos quase análogos.

Uma amiga gosta de queixos. Um em especial. Não, não é o do  Brad Pitt ou do Fabio Assunção, é do Nick Nolte. Ele tem queixo. E como tem! Quadrado, enorme, um fetiche, segundo ela. Essa minha amiga, sonha com o queixo do Nick Nolte e por não encontrar similares disponíveis, fechou-se em copas para o mercado. Mas por que queixos? Queixos não são olhos que seduzem. Mal comparando, também não é aquele armador de pé esquerdo com grande visão de jogo que pode a qualquer momento decidir uma partida com o seu talento. Não, não. O queixo fica lá na ponta de baixo do rosto, sem autonomia e sem saber qual é a sua função no esquema tático, sangrando após a barba, batendo forte no inverno e despencando por qualquer coisinha. Biquínis, por exemplo. Tem mais: Noel Rosa fez sucesso sem ele.

Queixo, quando muito serve como anteparo de jab’s. Não decide jogo nenhum e não interfere nas relações humanas, a não ser quando se eleva. Aí está. Talvez seja isso. Queixos elevados podem querer dizer: Aí mulheres, venham, aceito o desafio!   Em tempos de fragilidade masculina talvez funcione. Estranho não haver notícias sobre implantes.

A última vez que vi o Nick foi no Príncipe das Marés e mais me chamou a atenção  o nariz da Barbra, embora o filme seja lindo. Meu queixo não é igual ao dele, não consigo conferir a retaguarda, bíceps, tríceps e outros que tais nunca foram o meu forte. Mas respirar, respiro e a vida se esgueira lentamente.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

HOUVE UMA VEZ UM VERÃO


Ao amigo Antonio Martins - um grande contador de histórias - Do livro Castelo de guardanapos
Meu nome é Antonio, sou casado há pouco tempo com a Lú. Um dia serei advogado, mas por enquanto dou um duro danado no banco. Colegas e amigos me conhecem pelo excelente senso de humor. Estou com a perna engessada. Quebrei a tíbia jogando futebol. Os colegas de departamento haviam me avisado que o pessoal da cobrança sempre dividia por cima da bola. Eu não acreditei.
Estamos em 1986, tempos difíceis estes, sem graça. Por exemplo: O que fazer neste feriadão de fevereiro em Porto Alegre, sem um pila no bolso?  Um colega, não sei se por simpatia ou culpa (foi o que entrou por cima da bola) me convidou para um final de semana na praia. Magistério. Não queria deixar transparecer minha mágoa, mas praia com este gesso? Pensei na Lú e resolvi aceitar. Meu colega tinha um fusca, mulher e filhos, não contei quantos. Agora, no entanto já estava combinado e não sou de voltar atrás. Tratei de acomodar a perna engessada da forma mais confortável possível, temendo pelo meu bom humor.

A viagem de ida foi relativamente calma. O amigo era calmo, ou melhor, lerdo. Sessenta por hora, curvas a trinta. Quatro horas depois, a praia. A praia e os pingos, pois começara a chover. Chegando a casa o primeiro grande susto: Caberíamos todos? Por certo daríamos um jeito, éramos jovens, fortes, dispostos e, mesmo apertados, certamente estaríamos melhores do que no bafo de Porto Alegre. Ademais, haveria de ser uma chuvinha de verão e a areia da praia estava logo ali nos esperando, iluminada pelo solaço de amanhã. Por enquanto era chuva e chuva. Na casa tratei de acomodar a perna de forma que ficasse longe dos bolaços, tropeções, almofadaços, lambidas do cachorro, que fora junto, imaginem. Chuva e chuva, percebida pelo suor das vidraças fechadas, barulho no zinco e uma ou outra goteira. E mosquitos, muitos, de todos os tamanhos e apetites. E choveu no outro dia, no outro, e até virmos embora de volta. Já não lembrava de um dia ter sido bem humorado.

Mesmo inchados por vários motivos, portanto ainda maiores, coubemos todos no fusca.  A estrada era estreita, ruim e por essas coisas da vida, todo mundo resolveu voltar ao mesmo tempo. Lá vínhamos nós. Dez, vinte km por hora era lucro. Eu naturalmente não ria. Apenas olhava fixo e incomunicável para a estrada sendo engolida pelas rodas do carro, quando este conseguia se mexer.  Súbito, enguiçou o limpador do pára-brisa, bem no meio. “Não falta mais nada” – pensei. “Agora mesmo que este corno não anda”. Tive a impressão de que ele ouvia o meu silêncio, por isso não parou. O cara, no entanto, usava lentes grau sete para enxergar mal, e enxergar nada para o jeito que estava dirigindo: com a cabeça para fora, limpando os óculos com a mão. Paramos para pensar. Chuva e chuva. E veio a idéia. Amarraríamos um barbante no limpador, cada um de nós ficaria com uma das pontas e estudaríamos um sincronismo perfeito para movimentarmos o instrumento. A alternativa que tínhamos era uma fita, dessas de pacote de presente. Talvez houvesse outra, mas como procurar no meio daquela multidão? Blasfemando em função da dificuldade para enxergar, meu colega foi até a frente do carro amarrar o barbante. Voltou pingando, mas satisfeito, afinal tinha solucionado o problema. Testamos a sincronia, deu certo e reiniciamos. “Vai” – dizia ele, feliz. “Vai”- repetia eu entre dentes. Pelo menos estávamos indo, janelas abertas inundando tudo. Sabe cheiro de cachorro molhado?  Até uns 100 metros adiante quando o laço desfiou e rebentou. E o limpador parou, de novo, bem no meio.  Não lembro o que pensei, nem o que resmunguei, mas era sobre a mãe de algum dos presentes. Andamos mais um pouco e paramos em um boteco, desses que vende tudo. Estava tão necessitado de liberdade e de algo que me tornasse a cabeça um pouco menor que mal chegando a frente do boteco  saltei de carro, não dando a mínima para a perna que há muito já doía, e fui saltando até a casa. O bom homem tratou de arranjar o que lhe pedira. Tirou um barbante que enrolava não sei o quê e gentilmente me entregou. Saltei de volta. Um pé só, ensopado, rindo. De raiva. Amarrei o cordão no limpador e retomamos a viagem, agora sem ensaio. “Vai” – dizia ele, feliz. “Vai” – dizia eu como uma vontade louca de completar a frase com todas as indelicadezas que conhecia. Chuva e chuva, a perna doendo, e eu ali, olhos fixos na estrada sendo engolida pelas rodas do fusca, quando este conseguia se movimentar.

Anoitecia ligeiro. Engraçado, olhando pela janela não parecia tão escuro, olhando para frente já não víamos nada. Estava ficando impossível de continuar quando passei a mão no pára-brisa. Graxa, graxa pura. Lembrei que o tal barbante gentilmente cedido pelo bolicheiro estava amarrando lingüiças e salames, e trazia consigo toda gordura que conseguira absorver com a convivência. Era o caos. Sem recordar em que dia e em que circunstâncias rira com gosto pela última vez, retirei do fusca meus 1,85m e fui lá esfregar a Zero Hora de domingo inteira para retirar a gordura. Chuva e chuva e eu ensopado, ainda assim, melhor na chuva do que lá dentro. Aquele pára-brisa nunca mais seria o mesmo. Mas em algum momento aquelas lesmas, carro e motorista haveriam de atingir o ponto em que a estrada alargaria e talvez pudéssemos retomar os saudosos 40 km por hora. E chegamos ao ponto. No exato momento em que pifaram as luzes do carro e a chuva parou. Quem estava na frente sumiu, quem estava atrás sumia na frente e todas as referências luminosas que indicavam o leito da estrada foram para o brejo. Dez, vinte... Meu amigo míope pisava leve, não podia arriscar. Oito horas de purgatório, um fio de cabelo branco e alguns dentes gastos depois chegamos em casa. Nunca um JK pareceu tão espaçoso. Nunca o bafo de fevereiro em Porto Alegre foi tão refrescante.

-II-

Hoje sou advogado, tenho ótimo senso de humor. Eu e a Lú vivemos bem, somos felizes e temos uma filha. Fiquei momentaneamente tenso revivendo uma história ao receber um convite para ir à praia. Magistério é logo ali, diz a Lú. Eu não lembro. Nunca mais fui lá.

domingo, 29 de abril de 2012

GÊNESIS. E A MÃE?



Meu nome é Adão por sugestão do meu pai. Não conheci minha mãe e tenho problemas. Complexos por não ter tido o primeiro complexo. Mãe faz falta. De vez em quando encho a cara por isso e o velho vai à loucura. Fui corrido da casa dele, não por ter comido frutas com querem dar a entender, mas por ter tomado todas. Minha mulher veio junto. É considerada mais culpada ainda por ter me alcançado o primeiro copo.

Vivíamos muito bem no sítio dele, onde nos dava tudo, menos roupas, com a condição de que atentássemos para suas regras. Ora, éramos leais e entre eu e minha mulher reinava grande harmonia e cumplicidade, além de todo fogo dos recém casados. O grande sonho do meu pai era ser avô, vivia falando alguma coisa sobre multiplicação.  Para mim, tudo bem, meus problemas de ordem psicológica não chegam à dificuldade de fazer netinhos, ao contrário, fazê-los não é nem nunca foi sacrifício, minha mulher  vive grávida, a pobre. Mas meu pai não tolera ser contrariado, muito menos ter uma de suas regras descumpridas. Apesar de pregar o perdão, não nos deu colher de chá. Foi inflexível e definitivo na pena, não pensando nem nas crianças. O que fazer agora neste mundo cão, cheios de filhos, sem um colo de mãe, abandonados a própria sorte? Talvez por tudo isso nossas crianças sejam tão revoltadas. Um deles, por ciúmes talvez, vive atirando pedras no irmão, temo que um dia acerte. Meu pai nos culpa, eu e minha mulher por todos os pecados do mundo. Tem mania de perfeição, não admite ter falhado, por exemplo, na minha educação.

Mãe faz falta. Certamente poderia com a sensibilidade feminina dobrar a cintura do velho e abrandar nossos desconfortos, mas meu pai nunca me falou dela, sei lá o que houve. Acabo sem saber se um dia tive uma. Simplesmente pensa que por ter me feito de  matéria prima  nobre e de sua melhor inspiração, concebido num happy hour de  sexta-feira eu não teria direito a minha própria vida. Teria que viver a dele, como quisesse, onde e como ele decidisse. Aqui ó! Critica inclusive a escolha da esposa, como se eu tivesse opções e como se não fosse tudo um arranjo dele. Agora é tarde, dei a ela meu coração, embora por descaso ou ressentimento, não vai faltar quem diga que dei no máximo uma costelinha. Não sou de dobrar a espinha, em relação a teimosia somos iguais e ele sabe disso, tanto que vive dizendo que sou a sua imagem e semelhança. Sabemos os dois com quem estamos lidando e agora que me apossei deste pedaço de terra, nunca mais ele me tirará daqui. Pode mandar furacões, dilúvios, terremotos, homens-bomba, republicanos puritanos ou democratas tarados, daqui não saio mais. Claro que ele pode a qualquer momento fazer conosco o que bem entender, afinal, é senhor todo poderoso, oni isso, oni aquilo, com grande força política e influência em várias facções religiosas. Dizem que prende e manda soltar. Mas que não venha depois de velho encher meus ouvidos com rabugices, querendo brincar com os netos e se convidar para os almoços de domingo. Precisamos dele é agora, da sua força, sabedoria e poder, enquanto ainda podemos interferir na educação dos filhos e quando somos ainda jovens, inexperiente, expostos, curiosos e cheios de vida.

Talvez um dia se arrependa de ter sido tão intransigente conosco, mas aí será tarde. Toda a dor e privações que estamos sentindo, nossos filhos sentem, nossos netos e assim sucessivamente também sentirão. Certo que haverá discórdia, alguns puxarão pelo avô e até matarão em seu nome,  outros se rebelarão e a desarmonia campeará solta. Tudo por culpa de quem? Claro, a corda sempre arrebenta no mais fraco, estou preparado para isso, ele não assumirá nenhum tantinho de responsabilidade. Eu o conheço. E continuará mandando pregar o perdão! É bem possível que mais tarde mande um irmão meu com outra cabeça e mais engajado para tentar corrigir tudo. Bem, seja como for, espero que se um dia isso acontecer, meu pai faça a coisa certa, da maneira natural, ou seja, dê mãe a essa criança, nem que o pai seja emprestado. Ele que não queira fazer tudo sozinho. Mãe faz falta. Mesmo assim, acho que depois desta intransigência toda de nada adiantará mandar alguém, por mais carismático que seja. Sofrerá o diabo e aposto nossa serpente de estimação como não conseguirá convencer mais do que uma dúzia de pessoas sobre a santidade dos seus propósitos. Bom ainda que algum deles não o traia, entregando-o aos inimigos para que seja ridicularizado, sacrificado e  morto por pouco mais que nada. E o pai não fará nada, não se mete em bronca, mas a culpa adivinhe de quem será? Na identidade de quem estará escrito “Pecador Original”?

Não sei quem de nós, eu e minha mulher, morrerá primeiro, mas seremos eternamente lembrados por um pecadilho que com o mínimo jogo de cintura bem poderia ter sido  consertado e tudo seria diferente. A situação dela ainda é mais comprometedora. Neste mundo machista, ninguém lembrará que pariu, alimentou e cuidou de tantos filhos sozinha, foi companheira fiel (os maldosos dirão que também não teve opção) e totalmente voltada para a família. Será lembrada por ter me ajudado a pecar. Bem, faz parte da vida, ao menos fomos originais.

- Enche mais um copo, Eva, meu amor e vai lá fora acalmar as crianças. Caim recém passou  aqui com uma pedra enorme nas mãos. Esses meninos! Mãe faz falta, nem Deus sabe o quanto

sábado, 28 de abril de 2012

FALANDO SOBRE...




SOBRE ONTEM A NOITE II
A única sensação que eu tinha naquela noite de resguardo era de tédio. Ouvi barulhos vindos da cozinha. Sou macho, nascido em Uruguaiana, não tenho medo de bandido, muito menos de cara feia. Na verdade é quase isso. Fui de passo miúdo, como quem está prestes a se borrar, silente. A porta de correr estava entreaberta. As coisas da cozinha estavam reunidas debatendo a condição de vida atual, com ênfase na situação econômica.

A palavra estava com a margarina, meio mole e bocejante, dizendo que a única alegria dos últimos dias era o friozinho, uma vez que o verão era o caos para ela que sempre ficava fora da geladeira. Passava a noite na mesa e de manhã ainda era xingada pelos donos da casa que não tinham nem o cuidado de limpar a tampa do seu pote,  que caia no chão sempre virada, todos sabem com que lado para baixo. Isso quando não era obrigada a acasalar-se com uma embalagem plástica, que insistiam em chamar de manteigueira, de péssimo gosto e qualidade duvidosa. Era usada para tudo e isso a punha maluca, para fritar, untar (com os dedos!) e o cúmulo do desvio de função: até em dobradiças de porta, imaginem! Sua tarefa mais suave ainda era as torradas, mas ser esfregada num pão de avançada idade e conviver com o padrão dos queijos e frios atuais, não lhe  davam nenhum prazer.


O bate-boca ficou encardido. O pão, ofendido, pediu respeito e fez vigoroso discurso sobre o preconceito com os velhos. Era inaceitável o posicionamento de uma parceira de tanto tempo, logo com ele, ícone da luta contra a fome, referencial nas preces e na simbologia do trabalhador. Não, não. Preferia virar torrada de forno, papinha para o papagaio e até mofar, a contracenar com aquela ingrata. O queijo também protestou. Quem era ela, a margarina, que nem manteiga era, para exigir parceria mais qualificada? ”Soja, é sim, um produto nobre, o país ganha muito com essa matéria-prima” e " SOU VENDIDO EM BOLICHO, MAS TAMBÉM SOU UMA COMMODITY!"– reagiu esbravejando. O queijo aproveitou o ensejo para que fizesse constar da ata a inconformidade com a sua utilização na cobertura das lasanhas e pizzas. Era desgaste puro, ele não iria derreter-se com um calorzinho qualquer e ainda seria chamado de vagabundo. “Cada um na sua, protestou, eles que comprem mussarela!”  O presunto não pode falar nada, não conseguiu juntar todos os retalhos para se posicionar.

Havia uma discussão paralela entre dois companheiros quase siameses, embora de individualidades marcantes: O café e o leite. Um acusava o outro de fraco. O café queixava-se lembrando do tempo em que seu parceiro, estrangeiro e consistente, reinava pela cozinha, dentro ou fora da geladeira, com fama de ter longa vida. Hoje não passava de um saco que nem parava em pé, necessitando passar por teste de fogo para ser aprovado e mesmo assim, oferecer baixa consistência. O leite suava, quase comprovando a tese do oponente sobre as suas misturas aquosas, mas furioso, reclamou do café, lembrando que mesmo quando era coado não se mostrava tão atrevido. É ele, o leite, que apesar das vacas magras, ainda abranda a gastrite do dono da casa, agredida pelo café; é ele que, mesmo debilitado, ainda fornece cálcio e fósforo para as crianças da casa que não comem nada; é ele leite, por fim, que ajuda na economia, pois é totalmente aproveitado mesmo depois de azedo quando, paradoxalmente, e para inveja de muitos, vira doce.  Salvo quando alguém desastrado (engoli em seco) o deixava ferver até derramar. “E fraco és tu, que quase nem embalagem tem mais, vindo num  saquinho ridículo de papel e que sem a minha parceria, até transparente fica”. O leite quase fervia de brabo. No fim deram-se as costas, o café engraçou-se com uma chaleira d’água e o leite com um pote de sucrilhos. “Bicha!”, ainda ouvi o café resmungar.

Outra pequena rusga acontecia entre adoçante e açúcar, mas era coisa leve, tipo: “Gordo! Bandido!”. Dizia o adoçante, lembrando da saúde dos adultos e que era o queridinho da dona da casa. E o contraponto: “Magrela! Seco!”, gritava o açúcar, lembrando das calorias que emprestava às crianças, das tantas festas que patrocinava, inclusive jogando na cara do oponente as frustradas tentativas que tiveram todos os que se arriscaram a fazer a mais prosaica sobremesa com adoçante. “Não-fede-nem-cheira!” - divertia-se. Soberbo, o requeijão nada falava. Estava acima daquelas discussões proletárias.  Talvez temesse ser notado e encarado como supérfluo.  A geleia estava quieta, não havia sido citada, até ser solicitada a opinar, quando saiu-se em favor da manteiga, preferindo chamá-la assim,  pedindo, por sua vez,  para não ser chamada de chimia. Disse que não queria ser preconceituosa, mas que pão velho não dava tesão, e aproveitava para protestar contra os maus hábitos da casa que, na falta de sobremesa, enfiavam-lhe colheres de diversas bitolas. Dava graças a Deus quando não eram os dedos. O menino da casa enfiava os quatro, no mínimo duas vezes, sabe-se lá se lavados! Um nojo.

Notei num cantinho da mesa o mel. Quieto, cabisbaixo. Vez por outra levantava a cabeça, sorrateiro, sempre olhando com o rabo dos olhos, desconfiado. “Falso!” – gemi revoltado, lembrando de uma suposta asinha de abelha que o feirante retirou do pote quando me vendeu.

Sob vaia e reclamação dos talheres que queriam dormir, todos se aquietaram. Eu não sei em que horas nem como me recolhi. Sei que no outro dia, ainda de resguardo, nem abri a geladeira. Só fiz o mate e sai fora. 

sexta-feira, 27 de abril de 2012

SOBRE ONTEM A NOITE





Do livro Castelo de guardanapos
Era uma noite dessas, mal sonhada. Os ruídos noturnos estouravam no inconsciente moribundo. Acordei, acho, ouvindo vozes alteradas dentro de casa. Discutiam. As vozes vinham do banheiro. Pé ante pé espiei. Na cena, a população do banheiro reunida em mesa redonda na tampa do vaso discutia sobre globalização, crise financeira; a missão social de cada um, etc. Num banheiro que se esforça para manter a classe (apenas classe, nem alta, nem baixa, nem nada) a população de coisas não é lá muito ampla e muito menos requintada. Pelo menos os nacionais não são obrigados a conviverem com estrangeiros de nariz empinado. Os atuais eram rigorosamente nacional-socialistas.

Presidia a reunião o sabonete, que  abriu também sua queixosa pauta: estava cansado de ser levado da pia para o box e vice-versa, tendo assim uma jornada de trabalho intensa e uma expectativa de vida muito abaixo da média. Isso quando não secava ao chão, derrubado que fora, sem que alguém o levantasse. Isso quando não passava, por puro descaso, maior parte do tempo se desgastando dentro de uma saboneteira de plástico cheia d’água? Citada pelo parceiro, a saboneteira pediu a palavra e, sem rodeios, isentando-se pelo descaso  referido, reclamou do gosto duvidoso de quem andava fazendo os últimos ranchos(engoli em seco), optando por usuários(dela)  de baixa qualidade, que deixavam em seus delicados ralos  verdadeiras crostas mal cheirosas. A saboneteira pegou pesado e logo se desculpou dizendo que viveria harmonicamente com qualquer um, menos sabão!

A escova de dentes se disse meio chocada. Alguém da casa (comecei a engolir em seco de novo) sem óculos ou bêbado, já por diversas vezes a tem obrigado a esfregar os dentes com creme de barba. Um horror! Se ao menos fosse creme de primeira linha... Sua parceira de tubo e vizinha de espaço no armário, a pasta de dentes, também relatou as  más experiências vividas. Disse que já fora por diversas vezes esfregada num rosto cheio de pelos por um pincel meio broxa, e retirada sem piedade, misturada com sangue, a golpes de uma cansada lâmina. Além disso, tem sido comida freqüentemente pelas crianças da casa e deixada toda deformada dentro da pia, como uma qualquer.  O pincel, ferido em sua virilidade, retrucou desdenhando a pasta de dentes, acusando-a de dura, sem molejo, e de produzir uma espuma rala e sem viço, e ainda assim só depois de muito rola-rola, esfrega-esfrega.  A lâmina, por sua vez, declarou que não há competência que aguente tanto  desvio de função. Nos últimos dias tem arranhado rostos, pernas, axilas e virilhas. Lembra de cor e salteado o grupo sanguíneo de todos.

No meio de tanta insatisfação, xampus e desodorantes nada reclamaram. Estavam deslumbrados aplaudindo a situação que os alçava à condição de emergentes, passando a conviver com  um padrão social atual, muito acima dos banheiros que conheciam. 


Então se manifestou o queixoso papel higiênico. Bem,  o certo é que suas queixas são sempre as mesmas. Esteja onde estiver, com crise ou sem crise, perfumado ou estilo lixa, sua missão social não tem remédio. Chega a dar graças ao Criador, quando é solicitado para assoar o nariz. 

Não ouvi nenhum comentário do sal grosso. Sal grosso! O que fazia ele no banheiro? 

Que noite! Na manhã seguinte, ao entrar no banheiro, examinei com cuidado os personagens da reunião. Tudo em ordem. Passei então a usá-los com todo carinho, mas não sem um certo constrangimento ao passar a mão naquele rolinho triste, solitário,  instalado perto do vaso. Engoli em seco. Por ele e por mim.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

ROSEBUD


Do livro Castelo de guardanapos 
Era o nosso último ano de ginásio, passar era a missão precípua. Era também um tempo, uma idade e várias circunstâncias que se sobrepunham, e se tornava imprescindível deixá-lo marcado para sempre. Passamos o ano inteiro juntando dinheiro. Fazíamos shows, almoços, jantares. Estava decidido que iríamos a Montevidéu, onde ficaríamos no mínimo uma semana.

Esse preâmbulo tem somente uma justificativa: um cinema. 


Para quem migrava do Avenida para o Corbacho ou onde pudéssemos assistir o Búfalo Bill dar um pau no Cavalo Doido em CinemaScope e Technicolor, trocava alguns gibis na frente do Carlos Gomes e tratava de entrar antes que o Nego Duda e séquito chegasse para arrebanhar o saldo, era um luxo supremo. Tela gigantesca, com direito a óculos tridimensionais. O que assistimos não interessa, mas me marcou tanto que guardei o título: Vacaciones en Rússia. Dá para imaginar que maravilha seriam umas férias na Rússia? E antes do Gorbachev? Já gostava, mas ali foi o marco definitivo da minha paixão pelo cinema.

De tantos filmes que vi e gostei guardei detalhes. Alguns vi a exaustão, como E o vento levou, Casablanca e Gilda. Apaixonei-me por atrizes. Tive um caso muito mal resolvido com Suzzane Pleschette, achava que tínhamos tudo para dar certo. Ela preferiu o Troy Donahue e sua carreira não decolou. Em compensação, mais tarde eu a troquei pela Michelle Pfeiffer. Amei e odiei Rita Hayworth, ou a Gilda, porque sempre me fazia de bobo, fosse qual fosse o personagem masculino com quem contracenava, ao qual eu me incorporava. Ademais, bebia e fumava o tempo inteiro, um nojo! 


Morri com El Cid Charlton Heston e, solidário, me deixei amarrar no cavalo para lutar contra os mouros, deixando a Sophia no auge da beleza chupando o dedo. Briguei, reatei, tornei a brigar e a reatar inúmeros casamentos com Liz Taylor, mais por seus olhos violeta do que pelo seu talento, que também tinha. Devo também ter sido amante da Marilyn, embora não tenha uma foto dela saindo de um enorme pacote de presente no meu aniversário, um bilhetinho enigmático qualquer ou  uma camisa manchada pelo seu batom. Mas também não puderam me acusar de nada quando ela morreu.  

Teve uma época que eu curtia La belle de jour. Passava as tardes com a Catherine, no cinema ou no banheiro. Também pude, aprendendo com o  Marlon Brando, entender que nem só de pão vive a manteiga. Serve igualmente para untar. 

Tive ídolos masculinos, porque não, como Robert Redford. Queria ter sido igual a ele, mas não o incorporei em Entre dois amores, questão de gosto pessoal, nem gastaria um milhão de dólares, caso tivesse, pela Demi Moore. Antes dele achava o Rock Hudson um boa pinta. Algo, no entanto, me dizia que aquele não era um padrão masculino a ser seguido. Aí está!  Não era mesmo. E dizer que eu estive na pele dele, sujo de petróleo, lutando contra o James Dean pelo amor da Liz! 

Também não entendia como um sujeito baixinho, feio e mal-humorado como Humphrey Bogart sempre se dava bem, despertando paixões. Coisas do cinema, onde os sonhos são possíveis e podemos viajar um pouco vestindo outras roupas ou ver o queixo despencar, sem parecer ridículo, ante uma cruzada de pernas da Sharon Stone, liberando o instinto para que ele cumpra o seu papel. Selvagem, ainda que sozinho.

Tenho um amigo que quando se deprime assiste Muito além do jardim, com o Peter Sellers. É muito intenso, e deixa à mostra toda a genialidade do ator. Eu, nestas horas opto por Patch Adams e fico tentando enxergar além dos quatro dedos.

Hoje não me sentiria à vontade em me transportar para a tela e bicotar os lábios da Angelina Jolie ou amassar a Nikole Kidmann. Ficaria feio, têm idades de filhas, Quanto as minhas musas contemporâneas, umas tiveram o juízo de morrerem jovens e belas, outras esticaram tanto a pele que parecem japonesas. As que resolveram assumir os desenhos do tempo ficariam muito bem no papel de vovozinha, cujo papel de lobo, respeitosamente declino. Pensaria duas vezes, entretanto, caso colocassem a Suzzane Pleschette na história. Um resgate, talvez.

Rosebud é o quarto mistério da Santíssima, ou um outro enigma da Esfinge. Tentar dar-lhe um significado é declarar amor ao cinema. Kane, o cidadão, moribundo, talvez soubesse o que queria dizer, mas quem garante? Como ficou consagrado que significaria qualquer coisa ou até coisa nenhuma, e a mim parece um nome bonito e sonoro, dei-o a um cachorro ovelheiro de grande estima, que por sinal desapareceu misteriosamente para os lados da antiga carreteira de Uruguaiana, nunca mais sendo encontrado. É estranho chamar um cão de  Rosebud, mas  me parece mais chique do que Dois-contigo. Em casa quando falo rosebud, seja para brincar ou para xingar um juiz, ninguém mais diz nada, apenas meu filho pede “sem cebola”.

Rosebud ... prometo ficar calado quando me preparar para dançar ao som da orquestra do Titanic.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

VERSOS SATÂNICOS 35


 O pedágio Divino
O que adianta ter o melhor clima e ainda por cima, 
natureza de incomparável beleza? 
Muita formosura e pouquíssimo vintém.  
Ah, mas que tem dedo do Criador, isso tem! 
Nossas orações não são bastante, 
nossos apelos ninguém ouve, 
embora não haja santo que o povo não louve. 
Fôssemos nós arrogantes zagueiros argentinos
até entenderia tão desafortunado destino. 
Mas não, pobres de nós insones de esplêndido berço, 
dedos rijos de rezar o terço, 
humildes e genuflexos vassalos, 
ninguém quer saber onde apertam os nossos calos.

O Homem não quis deixar tudo de graça, 

algum sacrifício haveríamos de fazer. 
Ora viver de sol, futebol, carnaval e cachaça! 
O preço, porém, bem que poderia ser mais humano. 
Impostos europeus com retorno haitiano, 
regime democrático instalado, 
mas cheio de político safado 
e eu que nada afano, tampouco tenho amigo bichano, 
embora não seja puritano, como a maioria fico aqui, 
permanentemente entrando pelo cano.

Diariamente vamos contabilizando dissabores 

à proporção que vemos nossos defensores 
reforçando o próprio cofre. 
Do Chui ao Oiapoque! 
Pode ser que me equivoque, 
afinal sou dessas tantas velhas almas desoladas 
que só não está com a cabeça calva 
pelos ancestrais indígenas, 
mas longe de ser um alienígena. 
Basta que eu abra os jornais 
para lavar os olhos de roubos, desfalques, corrupção. 
Todo mundo metendo a mão e ninguém mais leva medo. 
Quando se trata de enfiar o dedo 
qualquer um dá seu jeito e 
para sacramentar o desrespeito, 
aposto e não perco, 
não importa o que venham a produzir de esterco, 
todos haverão de ser reeleitos.

Pagamos caro por este belo país 

cuja política fede de inchar o nariz. 
O que seria de mim, caso fosse deputado? 
Andaria envergonhando o eleitorado 
sujeito a inquérito, ou seguiria a lição do velho Ramão: 
perca dinheiro, mas não perca o crédito. 
Lições velhas do pretérito. 
Mas sem entrar no mérito, 
não vejo partido que me acolha. 
Sinto-me, por isso, um bolha 
já que ajudei a retirar a rolha 
para que tivéssemos o direito de escolha.  
Deu no que deu, busquei a luz encontrei o breu. 
A ocasião faz o ladrão, há muito se diz. 
Creio, porém, que isso vem da raiz. 
Da matriz, dos tempos juvenis, 
lá de onde vem a força motriz e a diretriz 
que faz com que a consciência seja o principal juiz. 
Pouco importa se na origem haja o verniz 
de um berço feliz ou a cicatriz da meretriz.

Ficha limpa hoje é handicap, 

passou a artigo de luxo. 
E chegou até nós o papelucho. 
Até pouco não tínhamos nenhum gaúcho 
metido em falcatrua. 
Súbito, surgiram vários a tripudiar sobre nós outros otários. 
É claro, aqui também se evacua, 
e quando cheirou, cheirou forte 
mostrando que não é só o pessoal do norte 
que mexe onde não devia. 
Apesar da xenofobia 
que ousamos olhando acima da linha do Equador, 
reconheço que somos iguais na saúde e na doença, 
na alegria e na dor, na sujeira e no fedor 
mostrando o quanto é pesado o pedágio cobrado pelo Criador. 
Bem feito pra mim que dei um pau no Sarney 
e no Renan e acabei tendo que engolir o Detran. 
E ainda não chegamos ao fundo do poço. 
“Fora o aipo”, como diz o grosso.

O Altíssimo teria tido um lampejo 
no sexto dia
(não haveria de ser um gracejo), 
antes do primeiro bocejo: 
“Haverá muita alegria, muita beleza nesta terra. 
Clima, campos, praias, serras, 
mas haverá um contrapeso para que não haja ciúmes de outros povos...” 
E assim, de tempos em tempos 
apoiamos velhos problemas novos, 
sempre de onde deveria vir o exemplo. 
Eleições após eleições eu contemplo veteranos e calouros vendilhões do templo.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

LIGAÇÕES PERIGOSAS

Em 1995 o celular era artigo de luxo. Meu sócio tinha, eu não. Caminhávamos pela Rua da Praia quando o aparelho dele chamou.  Tempo estava ruim e a linha uma porcaria, mal dava para ouvir. Mas ele conseguiu identificar que chamada era de longe e para mim. Estranhando e apreensivo, atendi. Consegui descobrir que era de Uruguaiana, um chiado só. Não soube quem era, mas o assunto era sobre meu pai. Ele tinha quase oitenta anos e morava sozinho, viuvara cedo, com pouco mais de quarenta anos, mas não quisera tentar um novo casamento, apesar das sugestões, induções e assédios que recebia. Olhos azuis sempre dão bom mercado. Apesar de não ter primado por um comportamento modelar, fora um apaixonado pela mulher, e tão mais casado sentiu-se após a viuvez que se mudou para perto do cemitério, aonde ia, religiosamente, todos os domingos levar flores.

Do telefonema, pude perceber que ele estaria “esperando a faca”. Bem, meu pai era um Portella, portanto, senhor absoluto de todas as teimosias e com um agravo: ele era o ícone, precursor de uma dinastia toda de irremediáveis cabeças-duras.  Esperar a faca, para nós fronteiriços, é esperar cirurgia e sabe quando e em que condições o velho Ramão aceitaria deixar-se operar? Só por necropsia. Entrei em pânico. Era filho único, dos reconhecidos, e dera a ele muito pouco do que gostaria. Fui para casa, preparei uma pequena mala e me fui, queixoso. 

Eram dezesseis horas quando passei a ponte do Guaíba, rumo às incertezas e no momento exato em que começava a chover. Ainda não existiam pardais e com chuva, ninguém multa. Portanto, afundei o pé. Houve momentos em que o limpador de pára-brisa não vencia a força das águas. Também não tinha pedágio e a estrada era buraco puro, de ambos os lados e todas as bitolas, muito mal sinalizada e eu, a bordo de um potente Uno Mille, com a perna direita esticada. Logo, logo anoiteceu e naquela noite chuvosa poucos se arriscariam a viajar. Se por um lado era bom pela liberdade de andar, por outro se perdiam as referências luminosas que ajudariam a me manter no leito.

No trajeto refiz nossa história familiar. Fui então criança, de arranhar as mãos na barba dele, brinquei de cavalo garroneando suas costelas, soltamos pandorga. Contei quantas bolas de futebol me dera na tentativa vã de me fazer um craque à altura do que ele próprio fora e chorei, mas chorei tanto que não sabia de que lado vertia mais água e que vidros estavam mais embaçados, se os do carro ou os meus, dos olhos. Entre um solavanco e outro da estrada, matava meu pai, para logo a seguir ressuscitá-lo. E tantas vezes o matei e ressuscitei que resolvi ter esperanças de encontrá-lo bem. Mas como encontrar bem aquele velho teimoso que esperava a faca?


Quase setecentos quilômetros, rios de estradas e lágrimas de depois, às 22h45min., cheguei à entrada da cidade, mais precisamente no posto da Policia Rodoviária. Parei o carro e fui aos policiais tentar, por um guia telefônico, descobrir de quem fora a ligação. Fiz alguns contatos e ninguém sabia de nada, até que achei o amigo. O diálogo foi mais ou menos este:
-Mujica, foste tu que me ligaste hoje à tarde? Perguntei
-Sim. E aí, que tal? Onde estás? Quis saber ele, um amigo de todas as horas.
-Estou aqui, em Uruguaiana, como está meu pai? Onde ele está? Quis saber quase retomando o choro, querendo saber do corpo.
-Mas tu és louco, tchê? Não estavas em Porto Alegre? O quê tu estás fazendo aqui??
-Quero saber do meu velho querido, coitadinho.
-Teu pai está bem. Está aguardando uma vaga para fazer alguns exames de rotina, conforme te disse pelo telefone.
-Hein? Uma vaga?! Tu disseste esperando  V-A-G-A????
-Sim. Teu pai está em casa. Pediste que te mantivesse informado sobre qualquer coisa envolvendo ele. Assim fiz.

Agradeci prometendo visitá-lo e desliguei o telefone. A chuva tinha parado e uma lua enorme aparecia no céu. Acho que só nós, uruguaianenses, conhecemos o real tamanho de uma lua cheia. Liguei para casa para tranqüilizar os meus e fui ver o velho. Claro que ele achou uma visita estranha, mas eu não lhe contei por que estava lá. Era um gozador emérito e eu não estava lá para muitas graças, mas lhe dei pela primeira vez um beijo, o melhor que pude dar, e o mais caloroso abraço. Imagine poder abraçar uma pessoa querida ressuscitada? Pois é. Precisava então relaxar e estar só. Fui para um hotel amaldiçoando o celular, mas lembro de ter adormecido rindo, empernado com uma amostra grátis de Natu Nobilis. Era o que tinha.

Ora esperando a faca!