Powered By Blogger

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

PTHIRUS RANSUS


Eu sou um chato. Convicto, juramentado e praticante. E a estas alturas da vida me resta tratar de amenizar impactos que eu possa produzir, driblar desconfortos causados por uma e outra palavra ou gesto, e tratar de segurar os tesouros que são os meus afetos restantes, sobreviventes ou teimosos. Acima de tudo, mais do que me aturarem, gostam de mim. Afinal, tem gosto para tudo.

Sou o tipo de chato que concomitante ao bom dia deveria pedir desculpas. Me desculpar pelo que poderei fazer no largo do dia. É sem intenção, ou quase isso. Uma espécie de legitima defesa putativa.

Chatice é um estilo de vida, contrário senso, para evitar que esta seja muito chata. Um chato social é um ser interativo, que alguns lêem ou ouvem apenas para ficar com raiva. Um chato que passa despercebido não é um bom chato, mas atenção: não ser percebido não é não receber retornos. As vezes as respostas não vêm por que os eventuais incomodados sabem que "não vai ficar por isso mesmo”.

Mas se tenho esta convicção o correto seria contar carneiros, respirar fundo, olhar ao largo, e outros tarja - pretas comportamentais naturais. Sim, esse seria o correto, entretanto esse não seria eu, e no ato contínuo morreria engasgado pela bili do sarcasmo. Seria uma violência e eu sou da paz. Chato, mas da paz.

Me conforta o fato concluso de que para ser esse chato social ativo requer certo talento e humor. Há que saber o que dizer, a quem chatear, escolher momentos sensíveis e estar preparado para réplicas, tréplicas e também exclusões de listas de amigos

Eu sou, portanto, confessadamente um chato. Há quem seja e não diz. E há uma categoria acima destes: quem não se acha. Mas toda esta confissão de culpa tem um sentido: nem todo chato é rançoso.

O ranço é algo terrível. Tem um poder inimaginável. Ele é superior as inteligências; transpõe quaisquer prioridades; é obsessivo-destrutivo. Por ele perdem-se amigos, causas, projetos... Seu programa de qualidade estabelece como missão “a contrariedade”, como valor “o que eu acho”, e como lema o “não”. Não escolhe motivos nem o tamanho deles e se manifesta, as vezes apenas pelo beiço. Sim, o beicinho. Agora imaginem o chato rançoso.

Faça o auto-exame. Apalpe-se, toque-se. A qualquer sinal de Pthirus ransus procure ajuda. Isso pega, e o portador pode ser afetado até pelo antídoto.


sábado, 23 de novembro de 2013

MALANDRO SEM SORTE



Lendas "sharpeanas" 6

Estávamos em Curitiba. O motivo era um seminário de reciclagem para a equipe comercial, com previsão de uma semana. Delegações de todo país se fariam presentes.

Entre nós um colega em especial, muito conhecido pela fama de conquistador. Sem barreiras, mínimos escrúpulos, e não muito exigente. “Caiu na rede é peixe”, embora fosse um homem de boa aparência, permanentemente bem vestido e perfumado.

Na primeira noite, recomendados pelo gerente do hotel fomos jantar e "tirar o avião do corpo" numa casa de espetáculos. A ordem era, entretanto, que não demorássemos; Que ninguém se dispersasse, e que em hipótese alguma desperdiçássemos energias, pois a partir da manhã seguinte o pau iria pegar.

Jantamos, assistimos shows, alguns se dispuseram a dançar, mas antes da meia noite o grupo foi reunido a fim de retornarmos ao hotel. Entretanto faltava um. Ele! Procuramos e nada. Enfim, alguém o vira sair e assim fomos embora.

Pouco depois de chegarmos ao hotel um colega, companheiro de quarto do galã apareceu com uma queixa: ele estava com uma menina da boate e ao invés de mandá-la embora, insistia em compartilhá-la. Fomos até lá em comitiva. Lá estava o casal em pelo, rindo e convidando para a orgia. Ela ainda não havia recebido seu cachê, pois o colega pretendia com um eventual compartilhamento baratear o custo. A garota, por sua vez havia concordado, ante a possibilidade de aumentar seu faturamento. Simples assim. Frustradas as tentativas, a moça foi embora levando um pouco das reservas financeiras do colega, deixando uma pilha de preocupações que jamais imaginaria. 

Mas aquele desaforo não haveria de passar assim no mais. Não mesmo. Na manhã seguinte, sentado no saguão do hotel alguém se deparou com uma propaganda da tal boate. Lembrou de ter lido numa revista algo sobre o alto índice de AIDS. E então brilhou a idéia. Mixou a matéria sobre a doença, assustadora novidade da época, com o  panfleto da boate e fez algumas cópias ajustando imperfeições. Serviço pronto, mostrou ao colega garanhão. Ele entrou em pânico. Pânico? Além do pânico. Tinha um relacionamento sólido e a companheira era tão bonita quanto ciumenta. Ficou de tal forma desesperado que um dia depois saiu do apartamento examinando o “documento” no corredor, afirmando como uma súplica “vejam, não tem mancha nenhuma!”, e se foi até o elevador examinando-se.

O tempo do seminário passou rápido, proveitoso e divertido para alguns, trágico para o colega “saidinho”.

Quando preparava-nos para retornar, no aeroporto, um querido colega estava conversando com o diretor comercial que tecia os melhores elogios ao grupo gaúcho, gente nova, idéias novas, ativos e um, em especial, extremamente concentrado. O diretor então pediu para lembrar-lhe os nomes. Assim fez, citando cada um sem mirar o grupo, mas quando foi referir-se ao “concentrado”, o querido colega, venenosamente virou-se e apontou-o (este se enterrou ainda mais no sofá). O diretor olhou balançando afirmativamente a cabeça, mas como nunca ria, fez com que o colega em desespero acabasse demitindo-se por justa causa. O que faria? Desempregado, doente e abandonado pela mulher?

Todos os colegas de todas as delegações sabiam da história. Então alguém se chegou ao coordenador da sacanagem e sentenciou: “Chega! Vou contar pra ele”. Ok. Assim fez. O gostosão, depois de disparar rajadas de olhares assassinos ao coordenador e libertar aquela galinha, temporariamente presa, que vivia dentro dele era só risos e piadas. Estava aliviado, feliz, potencializado pela raiva antes contida, e já exagerando em brincadeiras, como era seu feitio.

Diante disso, um outro colega resolveu chamá-lo a um canto e dizer-lhe mais ou menos isto: “Cara, não sei o que te contaram, mas mentiram pra ti a fim de te tranquilizar. Cuidado.  Tu estás correndo um risco muito grande. Quando chegares em Porto Alegre, corre para a Policlínica. E não transa com a tua mulher! Não vais querer prejudicá-la”. Pronto. Desterro, o retorno!  Depressão e muitos vômitos durante o vôo foram o futuro imediato do caro colega.

Nos dias seguintes o expediente dele foi coberto de expectativa e apreensão. Já não adiantava mais dizer que fora tudo brincadeira. Ele tinha todos os sintomas. Estava certamente contaminado. E o que dizer para a mulher? Galo reprodutor, cheio de tesão, depois de quinze dias chegado de viagem só dando boa-noite e até amanhã?!  Não era mais o mesmo.


Por fim chegou o resultado dos exames. Estava limpo. A partir de então não restou pedra sobre pedra. O alivio foi tão grande que não sobrou espaço para raiva contra o autor da brincadeira (?) e seus cúmplices. A Sharp recuperou o vendedor dinâmico e produtivo; nós recuperamos o colega brincalhão e, claro, as colegas  recuperaram a pressão auricular. 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

LUIZ HENRIQUE SCHEFFER


Certa vez eu perguntei a um amigo: “tu és doador de órgãos?” Não me lembro da resposta por que a minha intenção era continuar falando, e assim fiz. Disse-lhe: “antes de partir me deixa tuas cordas vocais”. Mas Luiz Henrique se foi e eu vou continuar saudando os novos dias do mesmo jeito mortal e simplesinho de sempre.  

E neste momento, ao agradecer a Deus pelo milagre que se renova há tanto tempo quando dou bom dia à vida, aproveito para também agradecer ao Velho o fato de ter colocado no meu caminho, ainda que por pouquíssimo tempo um profissional; um amigo dos amigos; um cidadão que carimbava seus dias de gentilezas e boas palavras.

Luiz Henrique se foi assim, como quem tem pressa de chegar a algum lugar melhor. Mas cansado daqui não deveria estar; tinha planos, um em especial, uma gestação demorada, por vezes tensa, mas que prometia logo ali o seu nirvana. Sei que vivia cada dia com esta expectativa. Sua voz estava presa, e falar, para quem vive disso é remédio e alimento. Retroalimento.

A boca se fechou, mas voz vai continuar por ai, flutuando em várias freqüências, randômica, migrando da memória para os ouvidos e destes para nossa saudade.

Siga em paz, meu amigo. Que teu espírito volte pelo mesmo rastro de luz que o trouxe.  

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

NARCISO


Lendas "sharpeanas 5"

Tínhamos um colega que era objeto da sua própria paixão. Vivia dizendo: “Chefia, a maior frustração que eu tenho é não conseguir dormir de conchinha comigo mesmo”. Narciso era fichinha perto dele. O seu próximo era ele, a quem amava tanto ou mais do que a si mesmo. Entende? Não precisa.

Num dia qualquer foi preparada uma surpresa para ele, cuja execução carecia de uma encenação prévia.

 Era muito crédulo, principalmente nas questões que envolviam religiões afro. A partir daí, foi montada a estratégia. Primeiro foi-lhe dito que uma fulana qualquer (e ele tinha os pés de barro neste quesito) o teria colocado "na boca do sapo", e mandara fazer alguns trabalhos com o intuito de prejudicá-lo. Inicialmente ele perderia o cabelo, sua segunda paixão depois do todo, o qual lhe custava bom tempo de cuidados antes de ir à rua. E posteriormente haveria danos à saúde e, muito especialmente, à sua masculinidade.

 Mais ou menos impressionado, mais menos do que mais, se foi trabalhar, como sempre, de alma leve, não retornando à empresa no fim da tarde. Era o que o grupo de “queridos colegas” precisava para dar sequência ao plano.

Seu armário no departamento de vendas tinha na parte interna da porta uma enorme foto sua com pose que faria de Marlon Brando um amador. A foto foi retirada e copiada algumas vezes. Nas cópias feitas eram apagados os cabelos, até que chegassem a uma imagem fidedigna com o galã totalmente careca. Hoje, com os recursos disponíveis seria moleza, mas na época foi uma verdadeira engenharia. E depois foram às próximas providências.

 No dia seguinte, primeira hora da manhã  chega o colega, flutuando como sempre. O impacto foi grande. Na mesa que correspondia a sua equipe de vendas estava armado um “trabalho” contendo pipoca, cachaça, charuto, velas, no centro um papel onde estava escrito seu nome. Atônito abriu a porta do armário e... A sua foto... Estava careca! Esfregou os olhos e foi arrancar aquela imagem grotesca, quando ouviu um grito: “NÃO TOCA NISSO, PODE SER PIOR!”. Incontinente recuou, sentou-se cabisbaixo, tentando relembrar algum pedaço de vida em que pudesse ter deixado tanto rancor.  Adeus alma leve!
O colega entrou em desespero. E como a cumplicidade no departamento era grande, ninguém moveu uma palha  para consolá-lo, ao contrário, alguns ainda pisavam dizendo: “eu avisei...”

 Aos poucos, e com a pressão de algumas chefias, o mistério foi se dissipando, tendo levado alguns dias o quase “coma psicológico”. Alguém foi encarregado de lhe contar em detalhes sobre o tal trabalho, naturalmente que sem assumir culpas, nem indicar culpados.

 Como foi dito, era um sujeito de alma leve, e assim, não guardou mágoas e não quis saber de responsabilizações individuais. Preferiu culpar a todos, o que era justo. E imediatamente voltou a desfilar seu impressionante ego pelos corredores da filial.


 Dizem, porém, que se tornou mais seletivo nas suas futuras conquistas. Dizem também, que em uma oportunidade, durante um rola-rola desnudou-se um pescoço, e lá havia duas guias vermelha e preta. Visão mais do que suficiente para recompor-se e abandonar o "campo de batalha", sem mais delongas.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

CORNO PROFISSIONAL




Lendas "sharpeanas 4"

Os apelos do mercado quando se é jovem, recebe bons salários e usa boas roupas é muito atrativo. Sempre foi e sempre será.

A Sharp proporcionava razoáveis benefícios e os garotões não deixavam por menos. Nunca saiam da pista.

Numa oportunidade um colega conheceu uma mulher. Linda e loira, vivendo a vida noturna. Começaram a se relacionar, evoluiu para cliente preferencial, mas a coisa foi ampliando, ampliando, e engataram um caso de alto envolvimento. Todos os horários livres eram dedicados à gastura de energias do moço, cuja capacidade de raciocínio mudara de lugar.

Certo dia ela fez um pedido especial, seria uma grande demonstração de carinho, que naturalmente receberia generosas recompensas. Ela tinha um parente que necessitava emprego. Era vendedor, segundo  ela muito experiente e qualificado, mas estava momentaneamente sem trabalho. Eis o pedido: uma oportunidade de emprego para o parente dela.

O colega conseguiu que o  candidato fosse chamado para uma entrevista, onde se mostrou não muito convincente para a condição que postulava. Mas enfim, tinha certa experiência e acabou sendo aproveitado, muito também em função do esforço do segundo interessado. Mas não havia convicção nenhuma que daria certo, ao contrário, a aposta era outra.

Passaram algumas semanas e nada de venda; um mês e necas. Em compensação, o romance seguia torrando colchões.

Num dos tantos momentos de imersão, o sharpeano, deitado no quarto da namorada que havia saído para fazer algumas compras resolveu mexer em algumas gavetas. Não procurava nada, mas achou algo que mudaria os rumos daquela história. Uma foto de casamento. Nela os fofos protagonistas eram, nada mais, nada menos, que o vendedor da história casando com a namorada da história. Cacete!

Vestiu-se rapidamente e esperou a moça chegar. E foram às necessárias conversas. Chorosas conversas de esclarecimento. Bingo. Era verdade! Pior, o marido sabia e estava de acordo com as condições. Aliás, ele sabia da atividade dela.  

Dia seguinte na empresa o fulano foi chamado para conversar. O diálogo foi mais ou menos este, segundo os autos da história:

- Tu sabes exatamente quem eu sou, não é?
- Sim
- Então sabes com quem eu estou saindo?
- Hum, hum
- Tu não tens vergonha?
- Vergonha é ficar sem dinheiro. Mas fica frio, vamos levando...

Corno profissional! Fim de papo. Foi mandado embora por falta de vendas, mas muito pelo esforço do segundo interessado.

"E a china”? Nunca mais viu. O romance acabou no dia da revelação. Não se pode facilitar.  

terça-feira, 12 de novembro de 2013

ALFREDOS

No semáforo, quando o amarelo acende você deve aguçar sua atenção. Há os outros, você não está sozinho na via... Veja os sinais, você não está sozinho na vida.  
Construí minha vida cercado de afetos, brincando de equilibrista em cordas de espinho. Flutuei em versos que sentenciam ”nenhum pesar me derruba, qualquer paixão me arrebata” (Luiz Coronel).

Isso no tempo do “bota fora” afetivo, quando se judiava de corpo e alma em nome da grande busca. Da busca, sim. Ou não passamos metro e meio de tempo buscando pouso em olhares transeuntes; ninhos de braços; vozes sussurradas de dormir; vozes roucas de acordar, e ouvidos sintonizados numa frequência perto da nossa? Mas o foco foi e sempre será viver arrebatado pelas mesmas paixões. E a esperança de que jamais venham delas os pesares.

A mim acostumaram a identificar que o primeiro e grande amor é o próprio. Tese que invalida qualquer auto atentado, seja ele pragmático e drástico, seja por processo depressivo, para dar fluxo lento à definitiva consequência. Por isso nunca compreendi bem pessoas que se matam ou matam culpando o amor. Mesmo que este seja ultrajado; que enuvie os olhos e traga bile à boca, com notas de acre gosto de sangue. Resistir a isso  é a  forma que temos de duelar com as nossas meio-mortes ao longo da vida.

Há pessoas que me fazem falta. Amigos que partiram para a última grande viagem e estão por ai dando uma voltinha pelo cosmo, indecisos. Não por alma penada, mas por terem deixado uma presença tão forte, que nós os aprisionamos em nossas memórias, e é impossível não percebê-los como personagens permanentes nas paisagens cotidianas. Suas luzes (ou grilhões) são nossas saudades.

Há entre eles os que viveram ensimesmados, tornando-se ícones do vazio, com quem nos distribuímos entre carinho e pena extremados. Onde guardavam seus dias, normalmente cheios de sentimentos fortes e amargos, nunca soubemos. Recolhiam-se no baú de tempo onde viviam, definhavam e morriam de amor. Por excesso ou falta dele. Por nunca termos ousado invadi-los com nossa curiosidade solidária (ou mórbida, que fosse), tornamo-nos cúmplices por seus encurtamentos de vida.

Vinicius chamou de Alfredo um  vizinho do lado que “se matou de solidão. Abriu o gás, o coitado, o último gás do bujão!” Triste vida e triste fim de uma metáfora. Não sei porque se matam ou se deixam morrer os “alfredos”, embora carreguem um pouco de cada um de nós. O certo é que não se permitem  deixar que as etapas se cumpram naturalmente; que a morte chegue no seu tempo. Nossos "alfredos" não conseguem lutar contra a degradação dos mapas corporais, os algarismos dos planos de saúde e os ais sofridos de organismo e alma.

A primeira lição de afeto que devemos aprender, portanto, é esta: o auto amor. Ou o Criador não teria mandado, e alguém prontamente obedecido, escrever que devemos amar o próximo como a nós mesmos.  

Os "alfredos" sofrem disso... Carência desse senso, e depois de suas sequelas. Nunca foram ensinados, ou não aprenderam o amor por si. Assim não conseguem; não se permitem deixar que simplesmente se encharquem suas patologias espirituais em tangos e malbec’s. Vivem de ser a própria letra do tango, e deixam de sentir, para se tornarem saudades. Quase sempre cedo demais; quase sempre esperado, mas sempre incompreendido. E ainda assim, as vezes nos permitimos a surpresa e o o espanto. 

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

ZIFIA MARIA



Lendas "sharpeanas" (2)

Maria era uma mulher de fé. Não só por suas ações como pela quantidade de guias multicoloridas que pendurava no pescoço, uma para cada entidade, e segundo ela, todas do bem. 

E a filial Porto Alegre da Sharp era cheia de criaturas sempre dispostas a fazer graça com tudo, inclusive com a boa fé dos outros. Mas uma em particular.

O fato de esta criatura ter, certo dia, quebrado uma bolinha de pingue-pongue na sala da associação de funcionários lhe sugeriu uma idéia. Imaginou de cada metade da bola um globo ocular enorme. Então, com pincéis atômicos preto e vermelho desenhou pupilas e vasos sanguíneos, testou para ver se seguravam bem franzindo o cenho, e reservou.

A cozinha da filial, reduto da Maria, era um pequeno corredor escuro, com os equipamentos necessários à limpeza e ao cafezinho, situados no final deste espaço.  

Na primeira oportunidade, quando Maria voltava do almoço e se recolhia à sua cozinha, lá estava o engraçadinho esperando por ela, na luz difusa do ambiente. Mas ele simulava um ritual de umbanda, girando, gesticulando e resmungando cantos típicos, de costas para a porta. Maria entrou, se impactou, mas imediatamente se sentiu privilegiada, afinal, estava sendo visitada por uma entidade de poder, ela tinha certeza. Em posição de respeito e ansiosa por participar perguntou: “Saravá, que tu qué de mim, meu pai?”. O “pai” atendeu: “Saravá! A zifia tem colírio?”. E virou-se para ela mostrando o rosto com os dois enormes olhos inventados. 

Maria desmaiou, houve pedido de socorro, muita preocupação, sobretudo demoradas explicações, e uma grande mijada com ameaça de demissão. E por muito tempo um comportamento quase exemplar do engraçadinho.



Maria nunca mais tratou o malandro, que era mimado por ela, da mesma forma. Não gostava mais dele, claro, mas tinha um respeito... Vá que fosse? 

sábado, 9 de novembro de 2013

FITA PARA PORNÔ...



Lendas “sharpeanas” (1)

A Sharp foi pioneira em muitas coisas. Sistema de vendas, remuneração diferenciada, vanguarda tecnológica. Seus comerciais de TV estavam sempre na frente do tempo em produção e beleza. Sem considerar o ambiente de trabalho dinâmico e apaixonante.

Em 1983 lançou o primeiro vídeo-cassete no Brasil. Não era lá grande coisa em termos de tecnologia, mas enfim, era um produto nacionalizado e pronto para revolucionar o nosso mercado, numa época tão carente de novidades.

Na onda deste aparelho, o consumidor  se entusiasmava com a possibilidade de poder escolher  o que assistir em casa, muito em especial o “macherio”, que salivava com as fitas pornográficas. Assisti-las era tarefa muito espinhosa para homens que queriam manter o status de seriedade, já que as salas de cinema que as exibiam ficavam na nossa “boca do lixo”. Então, ante a possibilidade de assistir um filme tipo Garganta profunda em casa deixava em cãibras cabeça, tronco e membros, um em especial. 

A primeira operação de venda feita na filial Porto Alegre, lembrando que a venda era feita direta ao consumidor final, foi realizada para um militar de alta patente. Nosso vendedor foi ao destacamento com visita pré-agendada. O futuro cliente estava fascinado com a idéia de possuir o aparelho, mas abismado com o preço (foi lançado a U$3.000). Após longa negociação, habilmente então o vendedor deu o golpe de misericórdia: “meu comandante, assine o pedido e eu lhe mando uma fita pornô, de brinde”.  Pedido assinado e entrada  na mão, o colega retornou à filial como o pioneiro na venda de vídeo cassete no estado.

A entrega demorava cerca de 30 dias e nesse meio tempo era uma ligação atrás da outra, do cliente para o nosso colega. O aparelho chegou perto de um final de semana, não lembro o dia. Soube depois que, ato contínuo, o comandante mandou mulher e filhos para a praia, com a justificativa de que teria uma operação de alto envolvimento durante todo o final de semana, e não poderia dar a devida atenção para a família. Contou  que  preparou a imersão logo na sexta. Poltrona a um metro da TV, uísque e salgadinho. Uma vez  instalado o aparelho, sala a media luz e já em ebulição, colocou a fita (o aparelho, em função da novidade era entregue com uma fita VHS demonstrando todo o processo operacional, passo a passo).  

Play!” O apresentador contratado pela Sharp começou a demonstração... Passo a passo... Passo a passo... E a tensão aumentando... O telespectador passou então a pressionar o fw para que começasse logo o fudunço... E pressionava cada vez com mais força e a tensão aumentando... E o apresentador passo a passo, didaticamente. E... Terminou a fita. Foi ao lixo para ver se tinha colocado fora a tal fita  pornô prometida... E nada. Nada além de muita raiva e uma imagem fixa: a jugular do colega.

Segunda-feira, oito horas da manhã, toca o telefone do departamento. Atendo, era o comandante. “Cadê o + &@@%#$ X*§-?".  Passei o telefone ao “+ &@@%#$ X*§-”, que ouviu, ouviu, ouviu... E no final disse candidamente: “Mas meu comandante, eu lhe prometi uma fita para por no vídeo-cassete, não foi? Pois então, deve ter ido a fita para pornô vídeo cassete. ..”

Mas antes que o camburão fosse acionado, nosso querido colega se prontificou a ir imediatamente cumprir o prometido. Até hoje não se sabe como conseguiu, por que na época era artigo raro.        

terça-feira, 5 de novembro de 2013

OS BONS COMPANHEIROS

Do livro Castelo de guardanapos

O Tuca se aposentou do serviço público ainda jovem. Justo reconhecimento do Estado para alguém que, ao longo da vida, jamais arrepiou o pelo por medo de trabalho. Tão logo consolidou a aposentadoria, e antes de sentir-se um peixe fora d’água por desocupado, juntou-se a mim num pequeno e infrutífero escritório na Rua da Praia.

O Tuca era um daqueles gordinhos elétricos, ágeis física e mentalmente. Comia como poucos e de tudo, principalmente gorduras nas suas diversas formas. Por ele pensei a frase que eventualmente uso “mais ansioso que gordo em buffet”. E fumava. Mas fumava tanto que se o cigarro acabasse no meio de uma tragada acendia outro para concluí-la. Eram no mínimo três carteiras por dia. Três, sem tirar! Ainda na ativa já era grupo de risco juramentado. Na ociosidade da aposentadoria, então, pule de dez para o enfarte.

Normalmente almoçávamos juntos. O show começava lá pelas 12h30 indo até por volta da 14h00, preferencialmente espeto corrido, com picanhas lacrimejando gorduras e galetinhos com peles crocantes. “Uma beleza”, segundo ele. Um dia falei à sua esposa: “se continuar assim, dou um ano para o enfarte...”

Em seis meses, porém, o meu querido amigo de tantas jornadas, ele que sempre fora um homem de peito aberto e língua solta, lá estava, de peito sim, totalmente aberto, cheio de pontes e pontos. E de língua presa. Escapou; vibramos e renascemos todos com isso. Tão logo pode receber visitas fui vê-lo. Mas, conhecendo-o como conhecia, comprei antes uma carteira de cigarros.

Estava no apartamento do hospital, entubado, constrangido, quase imóvel, mas vivo e esperto como sempre. Pedi então que me deixassem um pouco sozinho com ele; precisávamos conversar. Todos sabendo do afeto que nos unia, atenderam. A sós lhe disse: “meu irmão, eu sei que o sofrimento é grande e que a renúncia dói tanto ou mais que os pontos que te desconfortam, então te trouxe isto (mostrei a carteira de cigarros), com a condição de que só a use em último caso”. Ele me olhou enigmaticamente. Não disse nada, mas pensei ter visto umidade em seus olhos, não sabendo dizer se de agradecimento ou decepção. Depois disto chamei todos de volta ao quarto e fui embora. ´

Antes de sair pude ouvi-lo pedir à esposa uma caixa de fósforos e uma vela. Queria fazer orações depois do almoço; reencontrar-se com Deus, e gostaria de ficar só, e que não fosse interrompido. Pois sim. No momento oportuno correu todo mundo do quarto, arrastou-se como pode até o banheiro, chaveou-se e preparou-se para degustar o fumacento ágape. Levou o cigarro à boca, acendeu o fósforo e puxou a melhor tragada, com o cuidado para não fazer tanta força. Nada. Um pouco mais de força... Nada. De repente amoleceu o cigarro. Tirou da boca e entre decepção e raiva percebeu: era de chocolate.

Conta ele que ficou sentado no vaso por muito tempo, contemplativo, até voltar à cama já sem ódio. Chamou a mulher e pediu meio amarelado, entre dentes: “Marlene, me chama o Jair”. Demorei em voltar a vê-lo. E quando fui, guardei respeitável e prudente distância.