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sábado, 7 de outubro de 2017

PASSAGEM DE TEMPO

   "Devo ter chorado na infância, mas juro, não me lembro. E hoje... Que o Velho me poupe motivos"

Quando a gente completa cinqüenta anos convém uma pausa para reflexões. Meio século não é pouca coisa. Mas, que diabos, diferente do que era completar cinqüenta anos, cinqüenta anos atrás, hoje somos jovens senhores com um bom metro de tempo para viver.

Já nos sessenta, nos dizem que passamos a viver no amarelo piscante. Todo cuidado é pouco. Há sessenta anos, ter sessenta era ter idade de vovô longevo, não muito mais que isto, com direito a pantufas, cadeira de balanço, mimos e rabugices. Hoje não. As facilidades, o crescimento cultural e os cuidados da vida moderna, fazem com que sejamos sexagenários “envelhecentes” de academia, disputando espaço com “bombadões” formados a ferro, ou a base de sofismas químicos.

É bom ultrapassar essa barreira. A alternativa me parece bem pior, mas como vamos saber? Meus amigos, conhecedores por esperança e fé de outros planos, me dizem que quem morre vai para um lugar melhor. Contraditoriamente, no entanto, dão um duro danado para não serem chamados pelo Criador para a última sabatina. Todos preferem uma inhapa, à simples troca de nível.

Eis mais uma passagem de tempo. Com ela o refluxo de um lamento antigo pela mãe que se foi ainda menina, pouco mais que isso. A cada passagem destas, por melhor que tenha elaborado a perda, me surpreendo pensando à toa. Perco os olhos por ai, buscando o esboço mais preciso da mulher que nunca esqueci, mas que não tem mais forma própria. Seu jeito se confunde com o de todas essas que vieram e foram da minha vida, e o dessas outras tantas que ficaram aconchegadas no meu desarranjado berço edipiano.

Minhas festas em família sempre acusaram essa a ausência. Do olhar materno; do amor que a mulher dedica ao filho, seu homem definitivo na obra mágica em que brinca de ser Deus. Faz falta a torta de bolacha sabor-mãe e seus jeitos de enfeitar a mesa. E mais lamento por não ter tido a chance de vê-la enchendo os balões da festa com os netos e bisnetos que começaram a chegar. É dela, que papai do céu chamou ainda com idade de filha, que mais me lembro nesses dias. 

O preto com que o Criador pintou as minhas passagens de tempo veio paulatinamente desbotando, acompanhando o tom dos cabelos. E o tempo... Este desmanchou a camada espessa da dor. Já não sofro tanto com isso, embora o bichinho da rã-rã me engasgue por alguns segundos, enquanto busco fôlego para assoprar velinhas. Afinal, já são sessenta e tantas. 


E eu sei, por esperança ou por uma fé que nem sei se tenho, que em algum lugar do cosmo ficou dela uma energia boa conectada ao meu destino. E sou, ou me sinto iluminado pelo mesmo rastro de luz que a trouxe, mas que a levou de volta assim, cheio de pressa, como uma estrela ascendente.