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domingo, 29 de abril de 2012

GÊNESIS. E A MÃE?



Meu nome é Adão por sugestão do meu pai. Não conheci minha mãe e tenho problemas. Complexos por não ter tido o primeiro complexo. Mãe faz falta. De vez em quando encho a cara por isso e o velho vai à loucura. Fui corrido da casa dele, não por ter comido frutas com querem dar a entender, mas por ter tomado todas. Minha mulher veio junto. É considerada mais culpada ainda por ter me alcançado o primeiro copo.

Vivíamos muito bem no sítio dele, onde nos dava tudo, menos roupas, com a condição de que atentássemos para suas regras. Ora, éramos leais e entre eu e minha mulher reinava grande harmonia e cumplicidade, além de todo fogo dos recém casados. O grande sonho do meu pai era ser avô, vivia falando alguma coisa sobre multiplicação.  Para mim, tudo bem, meus problemas de ordem psicológica não chegam à dificuldade de fazer netinhos, ao contrário, fazê-los não é nem nunca foi sacrifício, minha mulher  vive grávida, a pobre. Mas meu pai não tolera ser contrariado, muito menos ter uma de suas regras descumpridas. Apesar de pregar o perdão, não nos deu colher de chá. Foi inflexível e definitivo na pena, não pensando nem nas crianças. O que fazer agora neste mundo cão, cheios de filhos, sem um colo de mãe, abandonados a própria sorte? Talvez por tudo isso nossas crianças sejam tão revoltadas. Um deles, por ciúmes talvez, vive atirando pedras no irmão, temo que um dia acerte. Meu pai nos culpa, eu e minha mulher por todos os pecados do mundo. Tem mania de perfeição, não admite ter falhado, por exemplo, na minha educação.

Mãe faz falta. Certamente poderia com a sensibilidade feminina dobrar a cintura do velho e abrandar nossos desconfortos, mas meu pai nunca me falou dela, sei lá o que houve. Acabo sem saber se um dia tive uma. Simplesmente pensa que por ter me feito de  matéria prima  nobre e de sua melhor inspiração, concebido num happy hour de  sexta-feira eu não teria direito a minha própria vida. Teria que viver a dele, como quisesse, onde e como ele decidisse. Aqui ó! Critica inclusive a escolha da esposa, como se eu tivesse opções e como se não fosse tudo um arranjo dele. Agora é tarde, dei a ela meu coração, embora por descaso ou ressentimento, não vai faltar quem diga que dei no máximo uma costelinha. Não sou de dobrar a espinha, em relação a teimosia somos iguais e ele sabe disso, tanto que vive dizendo que sou a sua imagem e semelhança. Sabemos os dois com quem estamos lidando e agora que me apossei deste pedaço de terra, nunca mais ele me tirará daqui. Pode mandar furacões, dilúvios, terremotos, homens-bomba, republicanos puritanos ou democratas tarados, daqui não saio mais. Claro que ele pode a qualquer momento fazer conosco o que bem entender, afinal, é senhor todo poderoso, oni isso, oni aquilo, com grande força política e influência em várias facções religiosas. Dizem que prende e manda soltar. Mas que não venha depois de velho encher meus ouvidos com rabugices, querendo brincar com os netos e se convidar para os almoços de domingo. Precisamos dele é agora, da sua força, sabedoria e poder, enquanto ainda podemos interferir na educação dos filhos e quando somos ainda jovens, inexperiente, expostos, curiosos e cheios de vida.

Talvez um dia se arrependa de ter sido tão intransigente conosco, mas aí será tarde. Toda a dor e privações que estamos sentindo, nossos filhos sentem, nossos netos e assim sucessivamente também sentirão. Certo que haverá discórdia, alguns puxarão pelo avô e até matarão em seu nome,  outros se rebelarão e a desarmonia campeará solta. Tudo por culpa de quem? Claro, a corda sempre arrebenta no mais fraco, estou preparado para isso, ele não assumirá nenhum tantinho de responsabilidade. Eu o conheço. E continuará mandando pregar o perdão! É bem possível que mais tarde mande um irmão meu com outra cabeça e mais engajado para tentar corrigir tudo. Bem, seja como for, espero que se um dia isso acontecer, meu pai faça a coisa certa, da maneira natural, ou seja, dê mãe a essa criança, nem que o pai seja emprestado. Ele que não queira fazer tudo sozinho. Mãe faz falta. Mesmo assim, acho que depois desta intransigência toda de nada adiantará mandar alguém, por mais carismático que seja. Sofrerá o diabo e aposto nossa serpente de estimação como não conseguirá convencer mais do que uma dúzia de pessoas sobre a santidade dos seus propósitos. Bom ainda que algum deles não o traia, entregando-o aos inimigos para que seja ridicularizado, sacrificado e  morto por pouco mais que nada. E o pai não fará nada, não se mete em bronca, mas a culpa adivinhe de quem será? Na identidade de quem estará escrito “Pecador Original”?

Não sei quem de nós, eu e minha mulher, morrerá primeiro, mas seremos eternamente lembrados por um pecadilho que com o mínimo jogo de cintura bem poderia ter sido  consertado e tudo seria diferente. A situação dela ainda é mais comprometedora. Neste mundo machista, ninguém lembrará que pariu, alimentou e cuidou de tantos filhos sozinha, foi companheira fiel (os maldosos dirão que também não teve opção) e totalmente voltada para a família. Será lembrada por ter me ajudado a pecar. Bem, faz parte da vida, ao menos fomos originais.

- Enche mais um copo, Eva, meu amor e vai lá fora acalmar as crianças. Caim recém passou  aqui com uma pedra enorme nas mãos. Esses meninos! Mãe faz falta, nem Deus sabe o quanto

sábado, 28 de abril de 2012

FALANDO SOBRE...




SOBRE ONTEM A NOITE II
A única sensação que eu tinha naquela noite de resguardo era de tédio. Ouvi barulhos vindos da cozinha. Sou macho, nascido em Uruguaiana, não tenho medo de bandido, muito menos de cara feia. Na verdade é quase isso. Fui de passo miúdo, como quem está prestes a se borrar, silente. A porta de correr estava entreaberta. As coisas da cozinha estavam reunidas debatendo a condição de vida atual, com ênfase na situação econômica.

A palavra estava com a margarina, meio mole e bocejante, dizendo que a única alegria dos últimos dias era o friozinho, uma vez que o verão era o caos para ela que sempre ficava fora da geladeira. Passava a noite na mesa e de manhã ainda era xingada pelos donos da casa que não tinham nem o cuidado de limpar a tampa do seu pote,  que caia no chão sempre virada, todos sabem com que lado para baixo. Isso quando não era obrigada a acasalar-se com uma embalagem plástica, que insistiam em chamar de manteigueira, de péssimo gosto e qualidade duvidosa. Era usada para tudo e isso a punha maluca, para fritar, untar (com os dedos!) e o cúmulo do desvio de função: até em dobradiças de porta, imaginem! Sua tarefa mais suave ainda era as torradas, mas ser esfregada num pão de avançada idade e conviver com o padrão dos queijos e frios atuais, não lhe  davam nenhum prazer.


O bate-boca ficou encardido. O pão, ofendido, pediu respeito e fez vigoroso discurso sobre o preconceito com os velhos. Era inaceitável o posicionamento de uma parceira de tanto tempo, logo com ele, ícone da luta contra a fome, referencial nas preces e na simbologia do trabalhador. Não, não. Preferia virar torrada de forno, papinha para o papagaio e até mofar, a contracenar com aquela ingrata. O queijo também protestou. Quem era ela, a margarina, que nem manteiga era, para exigir parceria mais qualificada? ”Soja, é sim, um produto nobre, o país ganha muito com essa matéria-prima” e " SOU VENDIDO EM BOLICHO, MAS TAMBÉM SOU UMA COMMODITY!"– reagiu esbravejando. O queijo aproveitou o ensejo para que fizesse constar da ata a inconformidade com a sua utilização na cobertura das lasanhas e pizzas. Era desgaste puro, ele não iria derreter-se com um calorzinho qualquer e ainda seria chamado de vagabundo. “Cada um na sua, protestou, eles que comprem mussarela!”  O presunto não pode falar nada, não conseguiu juntar todos os retalhos para se posicionar.

Havia uma discussão paralela entre dois companheiros quase siameses, embora de individualidades marcantes: O café e o leite. Um acusava o outro de fraco. O café queixava-se lembrando do tempo em que seu parceiro, estrangeiro e consistente, reinava pela cozinha, dentro ou fora da geladeira, com fama de ter longa vida. Hoje não passava de um saco que nem parava em pé, necessitando passar por teste de fogo para ser aprovado e mesmo assim, oferecer baixa consistência. O leite suava, quase comprovando a tese do oponente sobre as suas misturas aquosas, mas furioso, reclamou do café, lembrando que mesmo quando era coado não se mostrava tão atrevido. É ele, o leite, que apesar das vacas magras, ainda abranda a gastrite do dono da casa, agredida pelo café; é ele que, mesmo debilitado, ainda fornece cálcio e fósforo para as crianças da casa que não comem nada; é ele leite, por fim, que ajuda na economia, pois é totalmente aproveitado mesmo depois de azedo quando, paradoxalmente, e para inveja de muitos, vira doce.  Salvo quando alguém desastrado (engoli em seco) o deixava ferver até derramar. “E fraco és tu, que quase nem embalagem tem mais, vindo num  saquinho ridículo de papel e que sem a minha parceria, até transparente fica”. O leite quase fervia de brabo. No fim deram-se as costas, o café engraçou-se com uma chaleira d’água e o leite com um pote de sucrilhos. “Bicha!”, ainda ouvi o café resmungar.

Outra pequena rusga acontecia entre adoçante e açúcar, mas era coisa leve, tipo: “Gordo! Bandido!”. Dizia o adoçante, lembrando da saúde dos adultos e que era o queridinho da dona da casa. E o contraponto: “Magrela! Seco!”, gritava o açúcar, lembrando das calorias que emprestava às crianças, das tantas festas que patrocinava, inclusive jogando na cara do oponente as frustradas tentativas que tiveram todos os que se arriscaram a fazer a mais prosaica sobremesa com adoçante. “Não-fede-nem-cheira!” - divertia-se. Soberbo, o requeijão nada falava. Estava acima daquelas discussões proletárias.  Talvez temesse ser notado e encarado como supérfluo.  A geleia estava quieta, não havia sido citada, até ser solicitada a opinar, quando saiu-se em favor da manteiga, preferindo chamá-la assim,  pedindo, por sua vez,  para não ser chamada de chimia. Disse que não queria ser preconceituosa, mas que pão velho não dava tesão, e aproveitava para protestar contra os maus hábitos da casa que, na falta de sobremesa, enfiavam-lhe colheres de diversas bitolas. Dava graças a Deus quando não eram os dedos. O menino da casa enfiava os quatro, no mínimo duas vezes, sabe-se lá se lavados! Um nojo.

Notei num cantinho da mesa o mel. Quieto, cabisbaixo. Vez por outra levantava a cabeça, sorrateiro, sempre olhando com o rabo dos olhos, desconfiado. “Falso!” – gemi revoltado, lembrando de uma suposta asinha de abelha que o feirante retirou do pote quando me vendeu.

Sob vaia e reclamação dos talheres que queriam dormir, todos se aquietaram. Eu não sei em que horas nem como me recolhi. Sei que no outro dia, ainda de resguardo, nem abri a geladeira. Só fiz o mate e sai fora. 

sexta-feira, 27 de abril de 2012

SOBRE ONTEM A NOITE





Do livro Castelo de guardanapos
Era uma noite dessas, mal sonhada. Os ruídos noturnos estouravam no inconsciente moribundo. Acordei, acho, ouvindo vozes alteradas dentro de casa. Discutiam. As vozes vinham do banheiro. Pé ante pé espiei. Na cena, a população do banheiro reunida em mesa redonda na tampa do vaso discutia sobre globalização, crise financeira; a missão social de cada um, etc. Num banheiro que se esforça para manter a classe (apenas classe, nem alta, nem baixa, nem nada) a população de coisas não é lá muito ampla e muito menos requintada. Pelo menos os nacionais não são obrigados a conviverem com estrangeiros de nariz empinado. Os atuais eram rigorosamente nacional-socialistas.

Presidia a reunião o sabonete, que  abriu também sua queixosa pauta: estava cansado de ser levado da pia para o box e vice-versa, tendo assim uma jornada de trabalho intensa e uma expectativa de vida muito abaixo da média. Isso quando não secava ao chão, derrubado que fora, sem que alguém o levantasse. Isso quando não passava, por puro descaso, maior parte do tempo se desgastando dentro de uma saboneteira de plástico cheia d’água? Citada pelo parceiro, a saboneteira pediu a palavra e, sem rodeios, isentando-se pelo descaso  referido, reclamou do gosto duvidoso de quem andava fazendo os últimos ranchos(engoli em seco), optando por usuários(dela)  de baixa qualidade, que deixavam em seus delicados ralos  verdadeiras crostas mal cheirosas. A saboneteira pegou pesado e logo se desculpou dizendo que viveria harmonicamente com qualquer um, menos sabão!

A escova de dentes se disse meio chocada. Alguém da casa (comecei a engolir em seco de novo) sem óculos ou bêbado, já por diversas vezes a tem obrigado a esfregar os dentes com creme de barba. Um horror! Se ao menos fosse creme de primeira linha... Sua parceira de tubo e vizinha de espaço no armário, a pasta de dentes, também relatou as  más experiências vividas. Disse que já fora por diversas vezes esfregada num rosto cheio de pelos por um pincel meio broxa, e retirada sem piedade, misturada com sangue, a golpes de uma cansada lâmina. Além disso, tem sido comida freqüentemente pelas crianças da casa e deixada toda deformada dentro da pia, como uma qualquer.  O pincel, ferido em sua virilidade, retrucou desdenhando a pasta de dentes, acusando-a de dura, sem molejo, e de produzir uma espuma rala e sem viço, e ainda assim só depois de muito rola-rola, esfrega-esfrega.  A lâmina, por sua vez, declarou que não há competência que aguente tanto  desvio de função. Nos últimos dias tem arranhado rostos, pernas, axilas e virilhas. Lembra de cor e salteado o grupo sanguíneo de todos.

No meio de tanta insatisfação, xampus e desodorantes nada reclamaram. Estavam deslumbrados aplaudindo a situação que os alçava à condição de emergentes, passando a conviver com  um padrão social atual, muito acima dos banheiros que conheciam. 


Então se manifestou o queixoso papel higiênico. Bem,  o certo é que suas queixas são sempre as mesmas. Esteja onde estiver, com crise ou sem crise, perfumado ou estilo lixa, sua missão social não tem remédio. Chega a dar graças ao Criador, quando é solicitado para assoar o nariz. 

Não ouvi nenhum comentário do sal grosso. Sal grosso! O que fazia ele no banheiro? 

Que noite! Na manhã seguinte, ao entrar no banheiro, examinei com cuidado os personagens da reunião. Tudo em ordem. Passei então a usá-los com todo carinho, mas não sem um certo constrangimento ao passar a mão naquele rolinho triste, solitário,  instalado perto do vaso. Engoli em seco. Por ele e por mim.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

ROSEBUD


Do livro Castelo de guardanapos 
Era o nosso último ano de ginásio, passar era a missão precípua. Era também um tempo, uma idade e várias circunstâncias que se sobrepunham, e se tornava imprescindível deixá-lo marcado para sempre. Passamos o ano inteiro juntando dinheiro. Fazíamos shows, almoços, jantares. Estava decidido que iríamos a Montevidéu, onde ficaríamos no mínimo uma semana.

Esse preâmbulo tem somente uma justificativa: um cinema. 


Para quem migrava do Avenida para o Corbacho ou onde pudéssemos assistir o Búfalo Bill dar um pau no Cavalo Doido em CinemaScope e Technicolor, trocava alguns gibis na frente do Carlos Gomes e tratava de entrar antes que o Nego Duda e séquito chegasse para arrebanhar o saldo, era um luxo supremo. Tela gigantesca, com direito a óculos tridimensionais. O que assistimos não interessa, mas me marcou tanto que guardei o título: Vacaciones en Rússia. Dá para imaginar que maravilha seriam umas férias na Rússia? E antes do Gorbachev? Já gostava, mas ali foi o marco definitivo da minha paixão pelo cinema.

De tantos filmes que vi e gostei guardei detalhes. Alguns vi a exaustão, como E o vento levou, Casablanca e Gilda. Apaixonei-me por atrizes. Tive um caso muito mal resolvido com Suzzane Pleschette, achava que tínhamos tudo para dar certo. Ela preferiu o Troy Donahue e sua carreira não decolou. Em compensação, mais tarde eu a troquei pela Michelle Pfeiffer. Amei e odiei Rita Hayworth, ou a Gilda, porque sempre me fazia de bobo, fosse qual fosse o personagem masculino com quem contracenava, ao qual eu me incorporava. Ademais, bebia e fumava o tempo inteiro, um nojo! 


Morri com El Cid Charlton Heston e, solidário, me deixei amarrar no cavalo para lutar contra os mouros, deixando a Sophia no auge da beleza chupando o dedo. Briguei, reatei, tornei a brigar e a reatar inúmeros casamentos com Liz Taylor, mais por seus olhos violeta do que pelo seu talento, que também tinha. Devo também ter sido amante da Marilyn, embora não tenha uma foto dela saindo de um enorme pacote de presente no meu aniversário, um bilhetinho enigmático qualquer ou  uma camisa manchada pelo seu batom. Mas também não puderam me acusar de nada quando ela morreu.  

Teve uma época que eu curtia La belle de jour. Passava as tardes com a Catherine, no cinema ou no banheiro. Também pude, aprendendo com o  Marlon Brando, entender que nem só de pão vive a manteiga. Serve igualmente para untar. 

Tive ídolos masculinos, porque não, como Robert Redford. Queria ter sido igual a ele, mas não o incorporei em Entre dois amores, questão de gosto pessoal, nem gastaria um milhão de dólares, caso tivesse, pela Demi Moore. Antes dele achava o Rock Hudson um boa pinta. Algo, no entanto, me dizia que aquele não era um padrão masculino a ser seguido. Aí está!  Não era mesmo. E dizer que eu estive na pele dele, sujo de petróleo, lutando contra o James Dean pelo amor da Liz! 

Também não entendia como um sujeito baixinho, feio e mal-humorado como Humphrey Bogart sempre se dava bem, despertando paixões. Coisas do cinema, onde os sonhos são possíveis e podemos viajar um pouco vestindo outras roupas ou ver o queixo despencar, sem parecer ridículo, ante uma cruzada de pernas da Sharon Stone, liberando o instinto para que ele cumpra o seu papel. Selvagem, ainda que sozinho.

Tenho um amigo que quando se deprime assiste Muito além do jardim, com o Peter Sellers. É muito intenso, e deixa à mostra toda a genialidade do ator. Eu, nestas horas opto por Patch Adams e fico tentando enxergar além dos quatro dedos.

Hoje não me sentiria à vontade em me transportar para a tela e bicotar os lábios da Angelina Jolie ou amassar a Nikole Kidmann. Ficaria feio, têm idades de filhas, Quanto as minhas musas contemporâneas, umas tiveram o juízo de morrerem jovens e belas, outras esticaram tanto a pele que parecem japonesas. As que resolveram assumir os desenhos do tempo ficariam muito bem no papel de vovozinha, cujo papel de lobo, respeitosamente declino. Pensaria duas vezes, entretanto, caso colocassem a Suzzane Pleschette na história. Um resgate, talvez.

Rosebud é o quarto mistério da Santíssima, ou um outro enigma da Esfinge. Tentar dar-lhe um significado é declarar amor ao cinema. Kane, o cidadão, moribundo, talvez soubesse o que queria dizer, mas quem garante? Como ficou consagrado que significaria qualquer coisa ou até coisa nenhuma, e a mim parece um nome bonito e sonoro, dei-o a um cachorro ovelheiro de grande estima, que por sinal desapareceu misteriosamente para os lados da antiga carreteira de Uruguaiana, nunca mais sendo encontrado. É estranho chamar um cão de  Rosebud, mas  me parece mais chique do que Dois-contigo. Em casa quando falo rosebud, seja para brincar ou para xingar um juiz, ninguém mais diz nada, apenas meu filho pede “sem cebola”.

Rosebud ... prometo ficar calado quando me preparar para dançar ao som da orquestra do Titanic.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

VERSOS SATÂNICOS 35


 O pedágio Divino
O que adianta ter o melhor clima e ainda por cima, 
natureza de incomparável beleza? 
Muita formosura e pouquíssimo vintém.  
Ah, mas que tem dedo do Criador, isso tem! 
Nossas orações não são bastante, 
nossos apelos ninguém ouve, 
embora não haja santo que o povo não louve. 
Fôssemos nós arrogantes zagueiros argentinos
até entenderia tão desafortunado destino. 
Mas não, pobres de nós insones de esplêndido berço, 
dedos rijos de rezar o terço, 
humildes e genuflexos vassalos, 
ninguém quer saber onde apertam os nossos calos.

O Homem não quis deixar tudo de graça, 

algum sacrifício haveríamos de fazer. 
Ora viver de sol, futebol, carnaval e cachaça! 
O preço, porém, bem que poderia ser mais humano. 
Impostos europeus com retorno haitiano, 
regime democrático instalado, 
mas cheio de político safado 
e eu que nada afano, tampouco tenho amigo bichano, 
embora não seja puritano, como a maioria fico aqui, 
permanentemente entrando pelo cano.

Diariamente vamos contabilizando dissabores 

à proporção que vemos nossos defensores 
reforçando o próprio cofre. 
Do Chui ao Oiapoque! 
Pode ser que me equivoque, 
afinal sou dessas tantas velhas almas desoladas 
que só não está com a cabeça calva 
pelos ancestrais indígenas, 
mas longe de ser um alienígena. 
Basta que eu abra os jornais 
para lavar os olhos de roubos, desfalques, corrupção. 
Todo mundo metendo a mão e ninguém mais leva medo. 
Quando se trata de enfiar o dedo 
qualquer um dá seu jeito e 
para sacramentar o desrespeito, 
aposto e não perco, 
não importa o que venham a produzir de esterco, 
todos haverão de ser reeleitos.

Pagamos caro por este belo país 

cuja política fede de inchar o nariz. 
O que seria de mim, caso fosse deputado? 
Andaria envergonhando o eleitorado 
sujeito a inquérito, ou seguiria a lição do velho Ramão: 
perca dinheiro, mas não perca o crédito. 
Lições velhas do pretérito. 
Mas sem entrar no mérito, 
não vejo partido que me acolha. 
Sinto-me, por isso, um bolha 
já que ajudei a retirar a rolha 
para que tivéssemos o direito de escolha.  
Deu no que deu, busquei a luz encontrei o breu. 
A ocasião faz o ladrão, há muito se diz. 
Creio, porém, que isso vem da raiz. 
Da matriz, dos tempos juvenis, 
lá de onde vem a força motriz e a diretriz 
que faz com que a consciência seja o principal juiz. 
Pouco importa se na origem haja o verniz 
de um berço feliz ou a cicatriz da meretriz.

Ficha limpa hoje é handicap, 

passou a artigo de luxo. 
E chegou até nós o papelucho. 
Até pouco não tínhamos nenhum gaúcho 
metido em falcatrua. 
Súbito, surgiram vários a tripudiar sobre nós outros otários. 
É claro, aqui também se evacua, 
e quando cheirou, cheirou forte 
mostrando que não é só o pessoal do norte 
que mexe onde não devia. 
Apesar da xenofobia 
que ousamos olhando acima da linha do Equador, 
reconheço que somos iguais na saúde e na doença, 
na alegria e na dor, na sujeira e no fedor 
mostrando o quanto é pesado o pedágio cobrado pelo Criador. 
Bem feito pra mim que dei um pau no Sarney 
e no Renan e acabei tendo que engolir o Detran. 
E ainda não chegamos ao fundo do poço. 
“Fora o aipo”, como diz o grosso.

O Altíssimo teria tido um lampejo 
no sexto dia
(não haveria de ser um gracejo), 
antes do primeiro bocejo: 
“Haverá muita alegria, muita beleza nesta terra. 
Clima, campos, praias, serras, 
mas haverá um contrapeso para que não haja ciúmes de outros povos...” 
E assim, de tempos em tempos 
apoiamos velhos problemas novos, 
sempre de onde deveria vir o exemplo. 
Eleições após eleições eu contemplo veteranos e calouros vendilhões do templo.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

LIGAÇÕES PERIGOSAS

Em 1995 o celular era artigo de luxo. Meu sócio tinha, eu não. Caminhávamos pela Rua da Praia quando o aparelho dele chamou.  Tempo estava ruim e a linha uma porcaria, mal dava para ouvir. Mas ele conseguiu identificar que chamada era de longe e para mim. Estranhando e apreensivo, atendi. Consegui descobrir que era de Uruguaiana, um chiado só. Não soube quem era, mas o assunto era sobre meu pai. Ele tinha quase oitenta anos e morava sozinho, viuvara cedo, com pouco mais de quarenta anos, mas não quisera tentar um novo casamento, apesar das sugestões, induções e assédios que recebia. Olhos azuis sempre dão bom mercado. Apesar de não ter primado por um comportamento modelar, fora um apaixonado pela mulher, e tão mais casado sentiu-se após a viuvez que se mudou para perto do cemitério, aonde ia, religiosamente, todos os domingos levar flores.

Do telefonema, pude perceber que ele estaria “esperando a faca”. Bem, meu pai era um Portella, portanto, senhor absoluto de todas as teimosias e com um agravo: ele era o ícone, precursor de uma dinastia toda de irremediáveis cabeças-duras.  Esperar a faca, para nós fronteiriços, é esperar cirurgia e sabe quando e em que condições o velho Ramão aceitaria deixar-se operar? Só por necropsia. Entrei em pânico. Era filho único, dos reconhecidos, e dera a ele muito pouco do que gostaria. Fui para casa, preparei uma pequena mala e me fui, queixoso. 

Eram dezesseis horas quando passei a ponte do Guaíba, rumo às incertezas e no momento exato em que começava a chover. Ainda não existiam pardais e com chuva, ninguém multa. Portanto, afundei o pé. Houve momentos em que o limpador de pára-brisa não vencia a força das águas. Também não tinha pedágio e a estrada era buraco puro, de ambos os lados e todas as bitolas, muito mal sinalizada e eu, a bordo de um potente Uno Mille, com a perna direita esticada. Logo, logo anoiteceu e naquela noite chuvosa poucos se arriscariam a viajar. Se por um lado era bom pela liberdade de andar, por outro se perdiam as referências luminosas que ajudariam a me manter no leito.

No trajeto refiz nossa história familiar. Fui então criança, de arranhar as mãos na barba dele, brinquei de cavalo garroneando suas costelas, soltamos pandorga. Contei quantas bolas de futebol me dera na tentativa vã de me fazer um craque à altura do que ele próprio fora e chorei, mas chorei tanto que não sabia de que lado vertia mais água e que vidros estavam mais embaçados, se os do carro ou os meus, dos olhos. Entre um solavanco e outro da estrada, matava meu pai, para logo a seguir ressuscitá-lo. E tantas vezes o matei e ressuscitei que resolvi ter esperanças de encontrá-lo bem. Mas como encontrar bem aquele velho teimoso que esperava a faca?


Quase setecentos quilômetros, rios de estradas e lágrimas de depois, às 22h45min., cheguei à entrada da cidade, mais precisamente no posto da Policia Rodoviária. Parei o carro e fui aos policiais tentar, por um guia telefônico, descobrir de quem fora a ligação. Fiz alguns contatos e ninguém sabia de nada, até que achei o amigo. O diálogo foi mais ou menos este:
-Mujica, foste tu que me ligaste hoje à tarde? Perguntei
-Sim. E aí, que tal? Onde estás? Quis saber ele, um amigo de todas as horas.
-Estou aqui, em Uruguaiana, como está meu pai? Onde ele está? Quis saber quase retomando o choro, querendo saber do corpo.
-Mas tu és louco, tchê? Não estavas em Porto Alegre? O quê tu estás fazendo aqui??
-Quero saber do meu velho querido, coitadinho.
-Teu pai está bem. Está aguardando uma vaga para fazer alguns exames de rotina, conforme te disse pelo telefone.
-Hein? Uma vaga?! Tu disseste esperando  V-A-G-A????
-Sim. Teu pai está em casa. Pediste que te mantivesse informado sobre qualquer coisa envolvendo ele. Assim fiz.

Agradeci prometendo visitá-lo e desliguei o telefone. A chuva tinha parado e uma lua enorme aparecia no céu. Acho que só nós, uruguaianenses, conhecemos o real tamanho de uma lua cheia. Liguei para casa para tranqüilizar os meus e fui ver o velho. Claro que ele achou uma visita estranha, mas eu não lhe contei por que estava lá. Era um gozador emérito e eu não estava lá para muitas graças, mas lhe dei pela primeira vez um beijo, o melhor que pude dar, e o mais caloroso abraço. Imagine poder abraçar uma pessoa querida ressuscitada? Pois é. Precisava então relaxar e estar só. Fui para um hotel amaldiçoando o celular, mas lembro de ter adormecido rindo, empernado com uma amostra grátis de Natu Nobilis. Era o que tinha.

Ora esperando a faca!

quinta-feira, 12 de abril de 2012

VERSOS SATÂNICOS 37 ...ÁGUAS DE MARÇO

Cabral, meu bom Cabral, 
Onde te meteste, afinal?
Cada março que eu vivo tenho um sobressalto contigo,
Porque sequer consigo me desligar do Planalto.
Embora (acredito e rezo), não espere noticias iguais as do dia dezesseis,
Quando brincando de reis, 
Fernando I e Cia meteu a mão no nosso dinheiro.
Que turma aquela! Lembro como se fosse agora.
Tu, sentando a espora naquela senhora,
Que tinha idade de ser tua nora,
Que a bem da verdade era um bucho,
Porém, também não eras nenhum luxo.
Que papelucho!
O velho gorducho empernado, queimando cartucho,
Naquele arretante Besame mucho!
Lembra? Passou em horário nobre, e o bacudo aqui ó,
O pobre, embuchado, dinheiro confiscado, numa merda de dar dó.

A cada março me acordo no cagaço,
Pensando de que lado vem o relhaço.
Às vezes chego a vergar o espinhaço,
Antes mesmo de acordar, tal o trauma com esse mês.
E tu estás presente em todos os porquês.
Sei lá, a tua imagem grotesca,
Dançando com aquela fresca,
Totalmente alheios ao desespero do povo,
Me vai e vem sempre de novo e,
Por mais que o tempo tenha passado;
Que outros tantos governos tenham me enrabado, 
aquele foi especial.
Foi meu primeiro voto para presidente e acabei me dando mal.
Mesmo que eu tenha votado no rival.

Cabral, meu bom Cabral, por onde te esguelhas?
Por certo que não rasgas mais orelhas.
Na época meteste umas guampinhas na velha,
Tirando uma casquinha com a Zélia, e ela tirou um cascão contigo.
Mas também lembro bem do teu castigo.
Tiveste que largar a teta, não a murcha, a outra, a do ministério,
E de lá para cá tua vida é um mistério.
A Zélia é outra que sumiu do mapa.
Deu uma ciscadinha guapa, teve um namorico com o Chico,
Fechou o bico, pegou o penico e nunca mais figurou na capa.
Dizem que buscou um novo valete, colocando anúncio na internet.
Bueno, se quando nova já era um bagulho,
Vinte anos mais velha onde encontraria arrulho?
Em que estado estará a Zélia?
Era de uma feição quase trágica, que acho, ainda não haver recurso.
Nem botox, nem fio russo, talvez só com mágica.  
Mas será que com dois copos de Underberg,
Rezando para que ninguém me enxergue, eu não seria capaz,
Apenas por vingança, de me permitir tamanha lambança?
Bem capaz!
Dezesseis de março de noventa!
Quando me lembro que da minha poupança
Só me restou cinquenta, penso em ti Cabral,
Em ti e naquela nojenta.
Fiquei mal.
Queimei esterco para comer torresmo,
Andei por aí a esmo
Custei a encontrar meu rumo e de novo sentar o prumo;
Mas não me curei desse mês.
Pior é que depois de vocês andam metendo ainda mais a mão,
E tudo fica por isso mesmo.

Teu amigo PC era fichinha perto da companheirada que veio depois.
Cada um vale por dois, com ágio de não sei quanto por cento.
A diferença é que quem tomou acento, e era para ser o bobota, não é.
Não é poliglota, mas é muito mais esperto.
Faz tudo parecer certo e quando a bronca começa a chegar perto
Tem sempre uma desculpa vazia: “eu não vi, eu não sabia...”.
E o pior de tudo Cabral, velho idiota,
Que nesse chefe da nova camarilha, 
Muito neguinho crê, exalta e vota.

Ah, Cabral, onde te meteste afinal? 
Te foste para onde o saci perdeu a bota;
Saíste daqui quase corrido,
E eu te perdi de vista, não te encontro em nenhuma lista...
Terias tu ido ao encontro do anjo caído? 

quarta-feira, 11 de abril de 2012

A PRIMEIRA NOITE DE UM HOMEM


Do livro: Castelo de guardanapos

Chamavam-no Cacho. Dito assim: Catcho Gonçalez. Não era nome, era apelido, o nome ninguém sabia, nem a origem. Era um tipo e tanto. Eternamente de linho branco, sapato duas cores, anel de rubi no mingo, cabelos abotoados atrás, e um topete seguro com cinqüenta gramas de Glostora.  Acho que nunca vira o sol. Suas únicas luzes admitidas eram nessa ordem: a vermelha, a da lua e a do seu isqueiro Zipp, de estimação, dado por uma prostituta, nunca lembrava qual. Reinava soberano na Uruguaiana antiga, do Ivo às Cabritas, circuito em que era disputado a tapas pelas frequentadoras. 


Quando o conheci já estava veterano. A idade ninguém sabia, nem o que usava nos cabelos para mantê-los pretos. O certo é que, diziam, não era mais o mesmo, apesar de continuar sendo o xodó das mariposas. Parecia manter total energia, mas tantas noites insones e várias gonorreias depois, não haveria de ter saúde para grandes extravagâncias. 


Cacho sempre tinha uma palavra de incentivo aos novos grumetes da noite. Gostava de ser abordado e perguntado sobre sua vida e experiências. Contava que mulher nenhuma o abandonara, ao contrário, tinha orgulho de proceder as trocas, às vezes várias e na mesma noite, deixando para trás um rastro de corações despedaçados. Contava histórias, ensinava truques que iam desde comportamentos sexuais pouco ortodoxos, até olhares que tinham o poder mortífero de levar à sarjeta os mais rígidos pudores. Era, portanto, o alter de todos nós, iniciantes da indormida arte da sedução.

Guardo dele uma passagem. Tínhamos um amigo com pequenos distúrbios mentais. Nada que o impedisse de socializar-se. Achávamos, porém, que aos dezessete anos já estava mais do que na hora de apresentar-lhe os prazeres da carne. Segundo desconfiávamos, e vimos  comprovar, era totalmente virgem, nem pelos na mão tinha. Seu apelido era Jiboia, não sabíamos se pela volúpia com que se atirava à mesa ou por algum recurso físico ainda não explorado. 


Conversamos com Cacho que de pronto se propôs a auxiliar. Falaria com uma de suas parceiras, explicaria a situação e indenizaria o seu horário. Pediria, entretanto, que fosse paciente, pois estaria iniciando alguém que mais tarde poderia vir a ser um cliente eternamente agradecido. Para ela teria ficado tudo bem. De certo há muito não conseguia a chance de agradar o rufião. Difícil, no entanto, foi convencer o Jiboia. Até a família envolvemos, mas claro que somente o pai, que patrocinaria o evento. 


Conseguimos. Sábado, com o personagem devidamente banhado e perfumado, fomos todos ao encontro do Cacho, solidários. Nosso amigo iniciante tremia, não falava, não sentava, apenas salivava.  Cacho havia tomado o máximo de cuidado na escolha da parceira. Escolhera a mais antiga, daquelas que têm todo o tempo do mundo em função da falta de mercado. Ela chegou ao salão rebocadíssima, como mandava o figurino ambiental, e apresentamos nosso amigo. Cacho era bom camarada, tranquilizara o estreante de que estaria logo ali, atrás da porta, a fim de ajudá-lo em qualquer problema que tivesse. Mas era também desprovido de escrúpulos. Providenciara para que estivéssemos todos no quarto ao lado, de onde poderíamos assistir e ouvir os acontecimentos, em função de algumas aberturas estratégicas. 


O casal entrou, a mulher fechou a porta e o Jiboia grudou-se de pé na parede, de costas, imóvel. Não saia de jeito nenhum. A veterana parceira, conhecedora de todas as manhas, começou então a trabalhar. Esfrega daqui, enfia a mão acolá, depois de vencer as já combalidas resistências, abriu os botões da calça do rapaz. O que saiu de lá, justificava o apelido. Descobrimos então porque se chamava Jiboia. Dali para frente tudo se tornou mais fácil, uma vez que começava a se manifestar o instinto básico adormecido, no seu formato mais animal. Estava sendo uma farra. Subitamente o parceiro, corcoveando freneticamente e em pânico, começou a gritar:  "Ai, ai, ai Catcho, filho da puta, vem cá que tá me dando uma coisa!" Não lembro, mas deve ter sido ao redor de cinco minutos de gritaria, de ambas as partes.Satisfeitos, nos reencontramos no salão. 


Jiboia não cabia em si de contentamento e a todo o momento perguntava a que horas estava marcado o encontro para o dia seguinte. Passou a olhar a vida diferente, muito diferente, e tanto retornou ao útero, muito e amiúde, numa espécie chula de regressão, que corrigiu em definitivo seu distúrbio. Talvez nem fosse só mental, mas uma conexão naturalmente improvável entre hipófise e próstata, com realimentação direta. E a veterana parceira, que prometera recebê-lo a qualquer hora, sem ônus, foi trocada por carnes mais novas e enxutas.

E os holofotes vermelhos mudaram de foco, e o mito Cacho, dito assim: Catcho Gonçalez foi engolido pela jiboia que terminara de criar.      

sexta-feira, 6 de abril de 2012

NANA MOUSKOURI

Do livro "Assim como era no principio"

Não sei e nunca soube gostar pouco. Que o digam, caso pudessem dizer, as tortas de bolacha com sabor de mãe, os palmitos tenros, as azeitonas de Libres, os ovos fritos com borda crocante e as bolachas psicografadas da Padaria Modelo. Que o dissessem, caso tivessem sido informadas, as minhas musas juvenis guardadas a sete chaves nos armários da minha timidez. Timidez... Sofri um tempo disso, mas logo, logo, passei a ouvir que na falta de vergonha na cara sobravam espinhas.
Nunca enjoei do que gosto. Em mim, a convivência; o uso ou o consumo se realimentam. A menos que tenham passado a me causar danos severos, como sardinha enlatada, por exemplo, e uma e outra relação que tenha me posto em vômitos.
Assim, num duo personagem/cenário, certa vez em uma das tantas caminhadas al pedo em calle Colón, escutei uma musica francesa cantada por um anjo. Importante esclarecer que anjos emitem sons decodificados pelos ouvidos da alma. Gravei aquela voz em memória randômica, de forma que se tornou de acesso aleatório, ou seja, ouvia sem querer e a todo o momento.
 Era uma voz sem rosto, pois que diabos, nem Da Vince, que fora um gênio criador, nem Getúlio, que prendia e mandava soltar, e nem o AI-5, nos legaram Google e Wikipédia. Assim ouvi ao extremo do massacre Le coeur trop tendre, e faço isso a quase meio século, sem enjoar.
Custei a descobrir o nome da dona daquela voz de travesseiro, e assim, durante um bom tempo, desenhei rostos e jeitos através dos sons.  Tempos depois, da mesma forma despercebida como a ouvira pela primeira vez, finalmente nos encontramos. Ela, na capa de um LP, protegida pela vitrine, e eu babando na calçada. Passei então a imaginar que cantava para mim, uma vez que a minha juventude amava os Beatles e os Roling Stones, e alguma coadjuvância similar. Ninguém sabia quem era Nana Moskouri.  Melhor assim. Dessa forma não precisaria dividi-la com ninguém dos meus pares, de pensamentos pouco higiênicos e de resultados melequentos.
A minha paixão pela música francesa, de melodias sussurradas por erres e biquinhos (boca de “u” e som de “i”, dizia o mestre Cyrillo), não devo a Edith Piaff,  SilvieVartan, MireilleMathieu, Salvatore Adammo e Charles Aznavour, que quando o ouço cantar Hier encore me leva a Paris, com vinte anos. Devo, sim, a esta grega de beleza suave e incomum, jeito professoral, criada em tempos de guerra, cuja biografia ninguém ainda escreveu. Eu, caso pudesse, pagaria para escrevê-la, desde que a ouvisse pronunciar apenas uma vez o meu nome com aquele timbre produzido de uma pequena anomalia nas pregas vocais, que o torna único.
Sei dela o que me foi dado a conhecer ao longo dos anos. Sei que ainda deve ser a mulher que mais vende discos no mundo (na França é a segunda, depois de Dalidá) e que gravou em quinze idiomas, sendo que desses, sete fala fluentemente; Sei que desobsediou-se de Maria Callas assim que conheceu o jazz através do “enorme” Quince Jones, largando canto clássico, para minha alegria, tendo logo depois incorporado Edith Piaff, de onde e quando partiu para ser eterna. Sei também que casou duas vezes, que mora na Suíça com o segundo e incensado marido, e quer porque quer deixar de cantar antes que o canto a abandone. Felizmente as plateias afortunadas da Europa não permitem.  

Pela ordem natural das coisas não devo ouvi-la cantando ao vivo, muito menos me chamando de querido. Assim, me conformo em não ter mais seu vasto repertório guardado em estante, que é coisa de velho, mas na galeria onde penduro as melhores lembranças que um dia levarei para sabe-se onde.  

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Versos Satânicos 26


  Por uma vida menos ordinária

E eu aqui querendo me aposentar. Do jeito que eu queria não vai dar, mas se eu soubesse que arrancando um dedo iria para casa mais cedo, podem ter certeza, arrancaria, mas arrancaria o fura-bolo. Seria mais convincente. Daria, entretanto, a prova cabal de que sou mais tolo. Fosse eu mais esperto pensaria em arrancar o minguinho, como fez nosso amiguinho, aquele a quem muito me refiro, que confesso, entre muitos já preferi e que hoje já não prefiro. Como disse, arrancaria um dedo, nunca os miolos nem as “vistas”, por isso sempre posso passar idéias em revista, mudar pontos-de-vista, convicções também. Dizem que só muda quem as têm.

Mas e se eu fosse deputado? Ah, trabalhar(?) para o povo   no Olimpo! Para chegar lá não precisa ser trigo limpo, nem vacilar quando for convidado a jogar no time do joio. Requer esforço e muito apoio, mídia, por certo, e uma grande cara-dura. Não precisa mais temer a linha dura. A força agora mudou de lado, quem manda é o deputado, e melhor ainda se for “daquele” lado, do lado companheiro. Não há, portanto, perigo de perda, nem de cargo nem de dinheiro. Quem governa agora se diz esquerda, pois os mandantes lutaram contra a ditadura! Ora-ora, é tudo via de duas mãos, sabe disso qualquer cristão, então vamos deixar de frescura.  A bala que vem de lá, faz o mesmo buraco que a bala que vem de cá. Seqüestros por conta de ação repressiva têm o mesmo efeito dos feitos pela “festiva”.  Mas Indenizações por luta armada, ah bom, isso só para os camaradas. Falando em camarada, alguém que esteve presidente foi tão esperto, que mesmo ante o caos eminente e a navalha ter passado tão perto, sequer arranhou a velha imagem barbuda, do cara que trabalha muito por isso não estuda. Ideológico, que dá o sangue pela causa. Lógico, com pausa, muita pausa para uma e outra cachaça, o que também acabou agradando a massa. (Pode ser que haja outro igual, mas não acho: êta povo, este nosso, para gostar de borracho!).

Se eu fosse deputado de cara já teria apoiado um reajuste no meu ordenado. Que tal cem por cento? Não chega a ser “aumeeeento” é apenas um mimo decente que vai agradar até o presidente, e é lógico que a comissão acata, e que apodreça o tal efeito cascata. Aumento, mas aumento mesmo são os seis por cento que deram aos aposentados. “Vai quebrar o Brasil!”, disse o Mantega, cujo nome renega o “i” e a mudança de tônica. Uma desfaçatez crônica que faz parte das relações cômicas não fossem elas trágicas. Pior, este ministro não precisaria de mágicas, pois não tem cabeça de ervilha, mas editou uma cartilha própria da atual bastilha e fica lá botando pilha por que nele, não aperta a virilha. Aliás, o que ele tem de melhor é a filha.

E eu querendo me aposentar! Do jeito que eu queria não vai dar.

Oh Brasil meu, de povo varonil! Tu que botaste na Câmara o Clodovil, por que não pensas em mim? Posso garantir que estou tri a fim. Caso eu venha a receber semelhante graça prometo continuar um boa praça. Repenso tudo que disse ai em cima por pura dor de cotovelo, ironizei apenas por não sê-lo.   Prometo aliviar teu pesadelo, não pintar o cabelo, ser, por fim, autêntico; um político modelo. Ah! Lutar por aumentos equânimes, nunca ser pusilânime e não sugerir que minhas colegas deputadas descansam em pé por que trabalham deitadas. Assim, meu Brasil querido, me confessando mais hodido desde que o Clodô assumiu (e na época todo mundo riu), o coitado, que agora já subiu, pouco além disso eu quero. Chega de zero a zero.

(Ah, viver a apoteose no baixo clero...)

domingo, 1 de abril de 2012

ROMEU MORREU. E AGORA, JULIETA?


                                                               
Lá, se concluirmos que a vida não tiver mais graça; se entendermos que a idade e suas seqüelas podem mais do que eventuais momentos de felicidade, se permitirmos isso. Se olharmos ao redor e enxergarmos pessoas que nos querem bem (não apenas as queridas) esforçando-se por nosso conforto, e se esse esforço ou o conforto que produza sequer nos confortar. 

Lá, se sentirmos a vida (eu chamo de vida a vontade imorredoura de viver) escorrendo preguiçosamente por entre os dedos, ainda não murchos, mas deliberadamente inertes, e essa letargia conseguir trazer um pouco de alivio ou prazer, por mórbido, significa que enfim, morremos. Apenas que por tanta preguiça esquecemo-nos de deitar, e por assim não nos decidirmos, nossos queridos ainda não choram por nós.  Mas como sofrem!

Digo isso por transeunte de uma idade crítica e por ver alguns pares entregando este tesouro assim, à toa. Porque vejo alguém desistindo, e por querido, fragilizando também seus circundantes. Talvez haja mais alguém num cantinho da sala cuja bronquite tenha escarrado o próprio sorriso, ou que uma recém inaugurada artrite tenha entrevado a cintura, as juntas e o olhar, tirando de vez a vontade de dançar ou de apenas retribuir um afetuoso abraço.  Há por perto alguém cujas rugas, ainda em formação, tenham sulcado também a esperança, e o crítico olhar do espelho a tenha feito perder o bom costume de sonhar.

Por fim há por ai mais alguém cuja visão tenha ficado curta e esteja impedindo de perceber que os olhos apenas retratam, mas as imagens ainda são reveladas no laboratório fino da alma e que a resolução depende de como essa interface, olhos/alma é trabalhada. A nossa vida não é “a nossa vida” e sim a resultante de uma convergência de afetos ou nem tanto, mas nunca um conjunto vazio; é, pois, dos que um dia floresceram conosco e hoje meio murcham solidários, e daqueles que vimos sair de nós, homens e mulheres paridos e formatados no melhor do nosso carinho, hoje parindo novas vidas que nos estimulam a continuar vivendo com o fôlego do carinho original. Se verdadeiramente pudermos sentir isso e acreditarmos que somos centro não apenas de dor, mas de geração de afetos, então há vida para viver e quem se foi, deliberadamente ou não, há de perder a melhor parte. Amanhã, quando o sol levantar para reinar sobre o universo não pense duas vezes, apenas siga o exemplo dele. Levante-se e reine.

E que se quebrem os espelhos que não retribuam o seu sorriso, sem medo dos tais sete anos seguintes.