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quarta-feira, 18 de abril de 2012

LIGAÇÕES PERIGOSAS

Em 1995 o celular era artigo de luxo. Meu sócio tinha, eu não. Caminhávamos pela Rua da Praia quando o aparelho dele chamou.  Tempo estava ruim e a linha uma porcaria, mal dava para ouvir. Mas ele conseguiu identificar que chamada era de longe e para mim. Estranhando e apreensivo, atendi. Consegui descobrir que era de Uruguaiana, um chiado só. Não soube quem era, mas o assunto era sobre meu pai. Ele tinha quase oitenta anos e morava sozinho, viuvara cedo, com pouco mais de quarenta anos, mas não quisera tentar um novo casamento, apesar das sugestões, induções e assédios que recebia. Olhos azuis sempre dão bom mercado. Apesar de não ter primado por um comportamento modelar, fora um apaixonado pela mulher, e tão mais casado sentiu-se após a viuvez que se mudou para perto do cemitério, aonde ia, religiosamente, todos os domingos levar flores.

Do telefonema, pude perceber que ele estaria “esperando a faca”. Bem, meu pai era um Portella, portanto, senhor absoluto de todas as teimosias e com um agravo: ele era o ícone, precursor de uma dinastia toda de irremediáveis cabeças-duras.  Esperar a faca, para nós fronteiriços, é esperar cirurgia e sabe quando e em que condições o velho Ramão aceitaria deixar-se operar? Só por necropsia. Entrei em pânico. Era filho único, dos reconhecidos, e dera a ele muito pouco do que gostaria. Fui para casa, preparei uma pequena mala e me fui, queixoso. 

Eram dezesseis horas quando passei a ponte do Guaíba, rumo às incertezas e no momento exato em que começava a chover. Ainda não existiam pardais e com chuva, ninguém multa. Portanto, afundei o pé. Houve momentos em que o limpador de pára-brisa não vencia a força das águas. Também não tinha pedágio e a estrada era buraco puro, de ambos os lados e todas as bitolas, muito mal sinalizada e eu, a bordo de um potente Uno Mille, com a perna direita esticada. Logo, logo anoiteceu e naquela noite chuvosa poucos se arriscariam a viajar. Se por um lado era bom pela liberdade de andar, por outro se perdiam as referências luminosas que ajudariam a me manter no leito.

No trajeto refiz nossa história familiar. Fui então criança, de arranhar as mãos na barba dele, brinquei de cavalo garroneando suas costelas, soltamos pandorga. Contei quantas bolas de futebol me dera na tentativa vã de me fazer um craque à altura do que ele próprio fora e chorei, mas chorei tanto que não sabia de que lado vertia mais água e que vidros estavam mais embaçados, se os do carro ou os meus, dos olhos. Entre um solavanco e outro da estrada, matava meu pai, para logo a seguir ressuscitá-lo. E tantas vezes o matei e ressuscitei que resolvi ter esperanças de encontrá-lo bem. Mas como encontrar bem aquele velho teimoso que esperava a faca?


Quase setecentos quilômetros, rios de estradas e lágrimas de depois, às 22h45min., cheguei à entrada da cidade, mais precisamente no posto da Policia Rodoviária. Parei o carro e fui aos policiais tentar, por um guia telefônico, descobrir de quem fora a ligação. Fiz alguns contatos e ninguém sabia de nada, até que achei o amigo. O diálogo foi mais ou menos este:
-Mujica, foste tu que me ligaste hoje à tarde? Perguntei
-Sim. E aí, que tal? Onde estás? Quis saber ele, um amigo de todas as horas.
-Estou aqui, em Uruguaiana, como está meu pai? Onde ele está? Quis saber quase retomando o choro, querendo saber do corpo.
-Mas tu és louco, tchê? Não estavas em Porto Alegre? O quê tu estás fazendo aqui??
-Quero saber do meu velho querido, coitadinho.
-Teu pai está bem. Está aguardando uma vaga para fazer alguns exames de rotina, conforme te disse pelo telefone.
-Hein? Uma vaga?! Tu disseste esperando  V-A-G-A????
-Sim. Teu pai está em casa. Pediste que te mantivesse informado sobre qualquer coisa envolvendo ele. Assim fiz.

Agradeci prometendo visitá-lo e desliguei o telefone. A chuva tinha parado e uma lua enorme aparecia no céu. Acho que só nós, uruguaianenses, conhecemos o real tamanho de uma lua cheia. Liguei para casa para tranqüilizar os meus e fui ver o velho. Claro que ele achou uma visita estranha, mas eu não lhe contei por que estava lá. Era um gozador emérito e eu não estava lá para muitas graças, mas lhe dei pela primeira vez um beijo, o melhor que pude dar, e o mais caloroso abraço. Imagine poder abraçar uma pessoa querida ressuscitada? Pois é. Precisava então relaxar e estar só. Fui para um hotel amaldiçoando o celular, mas lembro de ter adormecido rindo, empernado com uma amostra grátis de Natu Nobilis. Era o que tinha.

Ora esperando a faca!

Um comentário:

Unknown disse...

História Linda Palito, quisera eu também poder ressuscitar o meu Pai. Um Homem que com o seu jeito humilde, fez muito coisa para bastante pessoas e não teve o reconhecimento que merecia em vida. Eu ainda quero ver se dou um jeito de cultuar a sua memória e dar á ele o reconhecimento merecido. Abraço meu Irmão. Ariel Peres Jr