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quinta-feira, 19 de abril de 2012

DESODORANTE


O Carlitos, hoje um cidadão, amigo querido e homem responsável, foi um guri terrível. Só não aprontava todas por que dividia o território com outro peso-pesado das malandragens juvenis, o Precioso, que também não era flor. Por serem duas lideranças em seus pequenos nichos, e disputarem eventualmente a mesma namorada, não se gostavam. Pior: se odiavam gratuitamente, apenas por que sim.  

Corria os Jogos da Primavera e o ano era 1966. Jogávamos contra o arqui-rival, e aí era jihad pura. Um calor insuportável, de fazer desmaiar os ‘’galetinhos’’, barulho ensurdecedor com o cântico das torcidas organizadas (naquele tempo eram organizadas mesmo) potencializado pela gritaria generalizada. Numa recepção de bola o Precioso foi ao solo. Ao levantar-se ouviu um grito especial saído do fundo do inferno: ‘te levanta, desodorante!’. Mas não era do fundo do inferno. Vinha detrás de uma das tantas tesouras do ginásio e de uma boca sumida no meio de centenas de outras. Uma boca especial, de voz especialmente detestável. Era ele, o Carlitos. Como ele conseguiu identificar a origem do grito no meio daquela balbúrdia toda, sem dúvidas é o quarto segredo de Fátima.

Precioso não disse nada, mas apertou dentes e perdeu a concentração no jogo. Só olhava para a arquibancada, e se não fosse o técnico trocá-lo, babaus, seria uma derrota inevitável. Vôlei tem disso: todos têm que estar ligados o tempo inteiro. Precioso foi trocado, não só naquele jogo, mas passou a amargar no banco para um colega que naquele tempo fazia a festa da torcida adversária por seus jeitos e trejeitos, digamos que nada convencionais para uma equipe masculina, embora jogasse muito bem. Por conhecer bem meu amigo, ao término do jogo entrei junto com ele no vestiário, mas na velocidade da raiva ele nem tomou banho. Pegou seus pertences e correu para fora mordendo o freio.

Bueno, o ginásio do União estava superlotado, como em todas as noites dos Jogos da Primavera. Na saída as pessoas se moviam lentamente, mas o Precioso nem aí, pulava por cima, com raiva. E eu sem raiva me movia atrás como dava, e nem adiantava pedir licença. Cheguei lá fora com o bolo ainda armado e a turma do deixa disso em pé de guerra com a turma do deixa rolar. Mas venceu o bom senso e acabou dando em nada. Garroteados, tiveram que se contentar em criar e expor aos gritos atividades extracurriculares para mães e irmãs, e engolirem em seco seus ódios.

Até hoje, quando os encontro lembro do fato, e deve andar perto da milésima vez que repito a história para eles, para o desagrado de ambos (modéstia a parte eu sei ser chato), mas que já não negam a dimensão do confronto. Não conseguem lembrar, no entanto, por que não se gostavam. Eu sei. Carlitos e Precioso, quando finalmente cresceram passaram a se gostar. Hoje se amam como se fossem irmãos.

Desodorante! Nunca entendi o porquê.  

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