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sexta-feira, 27 de abril de 2012

SOBRE ONTEM A NOITE





Do livro Castelo de guardanapos
Era uma noite dessas, mal sonhada. Os ruídos noturnos estouravam no inconsciente moribundo. Acordei, acho, ouvindo vozes alteradas dentro de casa. Discutiam. As vozes vinham do banheiro. Pé ante pé espiei. Na cena, a população do banheiro reunida em mesa redonda na tampa do vaso discutia sobre globalização, crise financeira; a missão social de cada um, etc. Num banheiro que se esforça para manter a classe (apenas classe, nem alta, nem baixa, nem nada) a população de coisas não é lá muito ampla e muito menos requintada. Pelo menos os nacionais não são obrigados a conviverem com estrangeiros de nariz empinado. Os atuais eram rigorosamente nacional-socialistas.

Presidia a reunião o sabonete, que  abriu também sua queixosa pauta: estava cansado de ser levado da pia para o box e vice-versa, tendo assim uma jornada de trabalho intensa e uma expectativa de vida muito abaixo da média. Isso quando não secava ao chão, derrubado que fora, sem que alguém o levantasse. Isso quando não passava, por puro descaso, maior parte do tempo se desgastando dentro de uma saboneteira de plástico cheia d’água? Citada pelo parceiro, a saboneteira pediu a palavra e, sem rodeios, isentando-se pelo descaso  referido, reclamou do gosto duvidoso de quem andava fazendo os últimos ranchos(engoli em seco), optando por usuários(dela)  de baixa qualidade, que deixavam em seus delicados ralos  verdadeiras crostas mal cheirosas. A saboneteira pegou pesado e logo se desculpou dizendo que viveria harmonicamente com qualquer um, menos sabão!

A escova de dentes se disse meio chocada. Alguém da casa (comecei a engolir em seco de novo) sem óculos ou bêbado, já por diversas vezes a tem obrigado a esfregar os dentes com creme de barba. Um horror! Se ao menos fosse creme de primeira linha... Sua parceira de tubo e vizinha de espaço no armário, a pasta de dentes, também relatou as  más experiências vividas. Disse que já fora por diversas vezes esfregada num rosto cheio de pelos por um pincel meio broxa, e retirada sem piedade, misturada com sangue, a golpes de uma cansada lâmina. Além disso, tem sido comida freqüentemente pelas crianças da casa e deixada toda deformada dentro da pia, como uma qualquer.  O pincel, ferido em sua virilidade, retrucou desdenhando a pasta de dentes, acusando-a de dura, sem molejo, e de produzir uma espuma rala e sem viço, e ainda assim só depois de muito rola-rola, esfrega-esfrega.  A lâmina, por sua vez, declarou que não há competência que aguente tanto  desvio de função. Nos últimos dias tem arranhado rostos, pernas, axilas e virilhas. Lembra de cor e salteado o grupo sanguíneo de todos.

No meio de tanta insatisfação, xampus e desodorantes nada reclamaram. Estavam deslumbrados aplaudindo a situação que os alçava à condição de emergentes, passando a conviver com  um padrão social atual, muito acima dos banheiros que conheciam. 


Então se manifestou o queixoso papel higiênico. Bem,  o certo é que suas queixas são sempre as mesmas. Esteja onde estiver, com crise ou sem crise, perfumado ou estilo lixa, sua missão social não tem remédio. Chega a dar graças ao Criador, quando é solicitado para assoar o nariz. 

Não ouvi nenhum comentário do sal grosso. Sal grosso! O que fazia ele no banheiro? 

Que noite! Na manhã seguinte, ao entrar no banheiro, examinei com cuidado os personagens da reunião. Tudo em ordem. Passei então a usá-los com todo carinho, mas não sem um certo constrangimento ao passar a mão naquele rolinho triste, solitário,  instalado perto do vaso. Engoli em seco. Por ele e por mim.

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