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sábado, 11 de maio de 2013

BENÇÃO, SAUDADE





Quero dizer que me lembro de tudo. Herdei uma memória privilegiada e assim como me enche de alegrias e saudades boas, me castiga. E me castiga ao ponto de viver cada momento do nosso último dia, que chego a sentir o cheiro das flores que te acompanhavam. Havia tantas! Não salgam mais os olhos, claro, secaram há muito. Mesmo por que me obriguei cedo a pensar como os que crêem, num novo e melhor lugar que estivesse a tua altura.

Desde sempre, entretanto, me pergunto: onde haveria de ser o melhor lugar para quem ainda não tem trinta anos? Aqui dividindo e multiplicando vidas, espalhando alegrias, chorando mortos ou lá, num tal indefinido melhor lugar? A ausência de respostas, estranhamente, me conforta.

Lembro de tudo, apesar de termos vivido tão pouco tempo juntos. Por isso talvez andem dizendo por ai que a gente vive o tempo suficiente para se tornar inesquecível.

Era um rosto meigo, quase envergonhado, circundado por longos e lisos cabelos e de grandes olhos negros. Quando ria, ria tudo, boca, olhos, enchendo de vincos a pele ainda sem rugas. E seu choro só não era imperceptível por que vez por outra o nariz fungava. E, convenhamos, sem ter completado trinta anos deve ter havido pouquíssimos motivos para chorar, além das coisas comuns às gurias.

Há muito não tenho idade de filho, embora jamais tenha perdido a orfandade. Mas nestes dias tudo parece que foi ontem. Sinto gosto de tortas de bolacha sabor-mãe, cheiro de roupa passada; olhares críticos aos redemoinhos do meu cabelo, fiscalização rigorosa nas unhas e ouvidos, ponta do lápis afinada, borracha limpa e caderno sem orelhas. Tudo acompanhado por melodias indecifráveis, quebradas por sustenidos risonhos.

Lembro de tudo sim. Mais do que o chinelo na mão e o avental todo sujo de ovo.  Do pouco tudo que tivemos, mas que se revigora duas ou três vezes por ano, quando de uma forma ou de outra festejo o fato de estar vivo, e posso me permitir a estes devaneios meio Peter Pan.

A sua benção, saudade.