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sábado, 10 de agosto de 2019

YOM KIPUR


Há seres iluminados, e eu conheci alguns, que parece já terem nascido pais. Há outros que aprendem com o próprio exercício da paternidade; há os que nunca aprendem e ainda há os que ousam não saber do que se trata. O fator-pai não sei ao certo identificar. Sei que se sustenta em alguns pilares. Uns gostando e sendo amigos, outros rígidos e gerenciais, ou uma mistura disso tudo que, dizem, é o ideal. Mas tudo isso tem o prazo definido pelos filhos e sua tomada de rédeas dos próprio destinos. É inexorável.

Eu, bem assim como o meu pai, só aprendi a gostar, quase nada além disso. E amo à proporção do tempo e as distâncias que só fazem crescer, o que acaba resultando em dor e saudades.


Fui um fracasso como gestor do tema, e tomo sempre o dia dos pais como o meu Yom Kipur (dia do perdão). Nesse dia sempre peço perdão pelo que não fui como filho e pai, seja por obstáculos que eu mesmo criei, seja por circunstancialidades fatais na origem ou seja pela inabilidade inata de lidar com os temas. Nunca, no entanto, por desamor, o que no caso passa de atenuante a agravante, uma vez que consagra a certeza de que eu poderia ter feito melhor.


E o conformismo quando chega é sempre amargo, porque vem nos lembrar que as páginas em branco que nos deram, onde rabiscamos nossos passos não são rascunhos. Não há "control Z" e nada pode ser editado. Cada risco é parte da obra acabada.


No Dia dos Pais, em que os meus fantasmas vêm em bloco arrastar correntes na minha consciência; que lembrar do meu pai tem o mesmo valor que lembrar dos meus filhos, é dia também de agradecer ao Velho o fato de ter herdado e transferido com orgulho um sobrenome; de ter sido amado como filho, e além de amar os meus, ter descoberto, enfim, que ser pai é mais do que um ditongo.


Devo ter aprendido isso quando percebi que aventais, meias, cuecas e camisetas são mimos que, ao serem entregues dentro de um abraço, tem um valor maior do que qualquer conta na Suíça.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

HOMENAGEM AO DÉCIMO ENCONTRO DE BASQUETEIROS - PLACA












X ENCONTRO DOS BASQUETEIROS DE URUGUAIANA

O Encontro dos Basqueteiros nasceu para ser uma espécie de paradoxo temporal. Uma viagem lúdica iniciada em 2001; uma renovação de votos de amizade, carinho e companheirismo entre pares, e de amor a Uruguaiana, a nossa terra santa que nos realimenta e energiza.

Em quase duas décadas de encontros, afora os mapas de tempo desenhados em nossas lousas físicas, nada mudamos. Que bom que nada tenha mudado! E pouco importa para onde tenhamos levado as carcaças cedidas em comodato pelo Criador, em espírito jamais saímos daqui.

Que esta homenagem, tatuada em aço na praça que nos concentra; no coração das nossas melhores e mais puras lembranças, seja a nossa profissão de fé sobre os valores humanos declarados que nos unem desde sempre e que assim permanecerão eternamente.

Basqueteiros de Uruguaiana
Maio de 2019

segunda-feira, 24 de junho de 2019

SUPEREGO





Acumular-me de atenuantes, ainda que inúteis,
Porque sou minha acusação mais dura;
Perdoar-me, ainda que não haja perdões possíveis,
Porque sou eu a minha única redenção;
Amar-me, ainda que já não dimensione mais isso,
Porque sou meu apego mais leal,
Alimentar-me de utopias, ainda que improváveis,
Porque preciso disso e ninguém sonha melhor do que eu.

sábado, 1 de junho de 2019

O JOELHO




Texto de 2005 - do livro Castelo de Guardanapos 

O joelho, salvo duvidosas interpretações, aberrações traumáticas ou genéticas, fica no meio da perna. Via de regra passa despercebido ou quando muito habita o imaginário fantasioso de alguns. Mas não é tão somente isso. Penso no joelho como um Everest feminino. O pico onde meio século atrás as mulheres fincaram a bandeira redentora de suas conquistas.  

No comecinho dos anos 60, meu pai me falava dos vestidos de antes que, ousados, deixavam à mostra tornozelos  e canelas. Falava e deixava brilhar o melhor tom de azul que tinha nos olhos, borboleteando pensamentos nas velhas barras rendadas, saudoso. Súbito, as barras chegaram aos joelhos e no momento imediatamente posterior, ultrapassava-os, marcando limites alguns centímetros acima. A redentora Mary Quant levava a mulher a conquistar o joelho, centro da perna e início de todos os mistérios. A época se prestava a revoluções sociais e de costumes.  

A mini-saia entrou como estandarte feminino no pacotaço, que teve seu auge naquela suruba de Woodstock.  Pais politicamente corretos  e que não queriam pagar o mico de conservadores apenas culpavam as mães pelo abuso das filhas. Pais ortodoxos davam duro em nome da moral e dos bons costumes, reprimiam e castigavam. As filhas usavam saias comportadas, na altura das canelas, plissadas, godês, amplas. Até a primeira esquina. Ali o cós se enrolava com quatro dedos gordos de dobra, até atingir a altura desejada, por elas e pela galera salivante que se desdobravam em estratégias para conseguir o melhor ângulo de observação. Ia desde a fixação nas cruzadas de perna, que instigavam o instinto selvagem de cada um, reuniões em baixo das escadas e até a lenda do espelhinho despudorado se equilibrando no bico do sapato em busca de flashes. Saudades de ti, Colégio União!

Depois que a saia transpôs os joelhos, liberou geral. Romperam-se todas as fronteiras e a mulher não parou mais de conquistar, sempre em duplas, a saber: primeiro tornozelos, depois joelhos, nádegas e seios. Estes que já se espremeram em espartilhos e corpinhos, passaram por porta-seios e outras amarras agora também ameaçam (ou prometem?) liberdade total.  Será como um assalto ou sequestro. Quando menos você, pai zeloso e de férias na praia esperar a filhinha, de costas, lhe pedirá: “pai, desamarra p’ra mim” . Você passa de inocente a cúmplice. E não se iluda, a mãe já sabia. Tudo igualzinho àquele dia de quarenta anos atrás quando uma filha descobriu os joelhos.

Assim como o homem costuma, ou costumava, afirmar seu machismo erguendo obeliscos, a mulher deveria erguer monumentos ao joelho. Lá tudo começou. Mais do que uma articulação fria no inverno, que costuma atingir rins incautos na reversão da posição "conchinha", o joelho dá ginga, balanço,  é cheio de redondices e seduz pelo imaginário, portal das reentrâncias. 


É também responsável direto pela formação da vida e conseqüente preservação da espécie. No entanto, não estarão juntos nesta última tarefa. Ela, a vida, só se faz quando os dois joelhos se afastam.

sexta-feira, 31 de maio de 2019

A CRIAÇÃO





Estava tudo certo. Fora criado o reino animal, mas o Criador estava num impasse. Já tinha decidido que voariam os pássaros, nadariam os peixes e andariam outros bípedes e os quadrúpedes. Precisava então distribuir alguns atributos especiais. Tinha destinado ao homem a inteligência absoluta, mas, só descobriria depois, isso lhe traria alguns desconfortos.

Considerou que a fidelidade deveria ser canina e a deu ao cão, lógico, além de bom faro para que pudesse se achar em dia de mudança. Na onda da mesma fidelidade entraram os peixes que, orgulhosos, sairiam mar a fora proclamando que filhinho de peixe, peixinho é. Deu olhos de lince ao lince, sem esquecer-se de produzir especialíssimos olhos de águia para a própria. Dotou o gato de acrobacia diferenciada para que mais tarde pudesse mostrar ao mundo o que haveria de ser o pulo do gato. A porca teria o rabo bastante flexível, uma vez que alguém haveria de vir torcê-lo em caso de apuros. Já o seu marido teria duas virtudes indiscutíveis: o lombinho e o pernil. Deu à vaca muita paciência  e anticorpos, pois haveria de passar a vida inteira indo para o brejo. A propósito de bovinos e paciência, enquadrou o boi, a fim de que ostentasse sem queixas os chifres e que pudesse elaborar bem suas perdas. Ele passaria a ser o símbolo de doação e desprendimento. Nasceria como qualquer mamífero. Ainda jovem lhe arrancariam a masculinidade barbaramente, sem anestesia; passaria sua curta vida como corno manso para logo a seguir ser morto, retalhado, queimado no calor das brasas e servido como pasto. E algum sádico ainda haveria de gritar: “o meu, mal passado!”.  Pobre boi. Mas ainda assim haveria de ter bom sono, pois dormiria com qualquer conversa mole.

O Criador teve dúvidas quanto ao burro. Burro ele seria, claro, por isso viveria emburrado e empacando, no entanto seria dócil o suficiente para ser amarrado à vontade do dono e humilde para que baixasse sempre as orelhas quando outro burro falasse. Ou quando alguém, despercebido, desse com ele n’água. 

A produtividade ficaria com coelhos e galinhas. Os primeiros viveriam focados num dos mandamentos para preservar a espécie. Cresceriam e se multiplicariam rapidamente, pois, mais dia menos dia, haveria de aparecer alguém com vontade de matar dois com uma única cajadada. As galinhas, que de grão em grão encheriam o papo, deveriam ser rápidas e abundantes na postura, evitando que algum apressadinho viesse a contar com o ovo no... Em trânsito. O marido desta, polígamo assumido, além de cantor e ancestral do relógio-ponto teria grande virilidade, mas não haveria de ser lá essas coisas como amante.

Deus olhou com tristeza para o peru. Haveria de ser uma dessas criaturas que nunca participam de festas, pois enchem a cara antes e morrem na véspera. Até o sétimo dia talvez não conseguisse retira-lo da depressão.


Quando procurou a serpente o Criador não encontrou. Não estava confortável. Não achou uma boa ideia a criação daquele ser frio, rastejante e sinistro. Queria livrar-se dela. Assim, resolveu premiar aquele que a matasse desde que mostrasse o pau. Mas que não houvesse mal entendido.

Por descuido nasceram insetos. O que fazer com eles? Bem, o Criador era criativo. Grilos habitariam a cabeça do homem para fazê-lo refletir,  e pulgas, vez por outra colocar-se-iam atrás de orelhas para após as reflexões.  Estes, então, participariam de momentos chatos. Chatos? De onde vieram esses?

No fim do expediente restavam poucos atributos para serem distribuídos. A quem o Criador contemplaria com a moral e os bons costumes? O homem, pela capacidade de discernimento e para justificar a imagem e semelhança seria o mais indicado. E Deus perguntou ao homem se seria capaz de arcar com essas duas virtudes, e este vacilou. Desconversou dizendo que estava bom demais o que ganhara. Além disso, tinha um projeto futuro já desenhado: seria um ser político, onde esses dois “apêndices” seriam irrelevantes.  Dependeria sim da sua inteligência, capacidade de liderança e observação.

Para esse projeto futuro, também lhe disse o homem, que dispensaria virtudes como as do cão e iria direto ao gato testar seus pulos. De linces e águias, imaginariam como ficaria com os olhos destes; aproveitaria a paciência do boi, mas só para treinar metáforas flácidas, tendo o cuidado para não seguir o caminho da vaca. Iria, por fim, até a serpente negociar. Mas iria de pau na mão, conforme desejo do Criador e, dependendo do bônus poderia matá-la. Antes, porém comeria a maçã e a Eva.

Era o sexto dia, seis da tarde. Não dava tempo para mais nada. A criação fora encomendada para ser entregue em seis dias e, que diabos (opa!), o Arquiteto era pontual. E tinha combinado com Ele mesmo que descansaria no sétimo.


Cansado, concluiu que nem tudo é perfeito. Nem Ele.

“Noé, prepara o recall!”