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segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

NONATO

 





Papel, caneta e envelope sozinhos não representam nada. Junte-os e alguém saberá mais sobre você

 

Ramon viuvou cedo. Depois de algumas tentativas sem muita convicção, resolveu assumir de fato a viuvez como estado civil permanente. Casava vez por outra, tipo duas três vezes por mês, mas nada que configurasse estabilidade, direito adquirido e tal. Só uma companhia passageira, de forma que não gastasse o status de “agradável”.

 Aposentou-se cedo, com 55 anos, em função dos ganhos de tempo previdenciário compatíveis com sua atividade de risco, e porque precisava dedicar-se à esposa que tinha uma doença irreversível. Cumpriu dura batalha até o falecimento dela, assistindo-a morrer aos poucos com muito sofrimento. Porém, de algum lugar precisava reunir forças, afinal, não estava sozinho no mundo: tinha um filho, que morava longe, em função dos estudos.

Ramon Filho, ou Ramonzinho morava há alguns anos na Austrália, e como naquele tempo as comunicações eram precárias, comunicavam-se por cartas e algumas ligações telefônicas previamente combinadas.

A aposentadoria, que lhe trouxera certo conforto, trouxe também a questão do isolamento. Vivia só, na companhia de “Meufilho”, um vira-lata que foi se chegando aos poucos e acabou ficando. Foi adotado e recebeu um nome, que para Ramon, era uma forma de encher um pouco mais a casa. Como nos velhos tempos. Logicamente que ele conversava com o cachorro. Quem não conversa?                  

No início de dezembro foi ao Correio enviar noticias ao filho junto com um cartão de Natal. Enquanto aguardava sua vez de ser atendido, ouviu de um funcionário uma novidade: a empresa estava recebendo cartinhas de crianças carentes, cujos pais, quando havia pais, não tinham condições de comprar-lhes presentes, estimulando os clientes a “apadrinharem” o Natal daquelas crianças. Ramon pegou uma cartinha, meio que por impulso, e guardou-a no bolso.

 Depois de ser atendido, tomou o caminho de casa. Antes, porém, passou no mercado, a fim de comprar “um osso” para Meufilho.Voltou caminhando porque, segundo o médico, o esqueleto precisava se movimentar, senão enferrujava, e sua saúde era um bem precioso que ele tratava de manter.

Os dias subsequentes passavam naquela modorrenta rotina. Alguns programas de TV, leitura do jornal, uma releitura de livro, sempre com o radio ligado. O rádio era o som permanente da casa; e um pequeno espaço de tempo para o preparo da sua comida e de Meufilho. Os cuidados da casa... Bem... Tratava e mantê-la limpa.

Dia 22/12, portanto vésperas do Natal, Ramon tomava chimarrão na varanda, rádio ligado, enquanto Meufilho se coçava, rosnava para um gato vizinho, ou para sua sombra ou ainda levantava e fazia um corrupio, tentando pegar o próprio rabo. Em determinado momento o locutor fez menção à quantidade de cartinhas que foram pegas nos Correios e que fariam muitas crianças felizes.

A notícia caiu como um soco no peito de Ramon. Ele esquecera que também tinha pegado uma cartinha! Agora não daria tempo para enviar nada para lugar nenhum. E também acabaria privando a criança de ter outro padrinho mais responsável.

Levantou-se, foi tatear os bolsos da roupa que usara para ir ao centro e sentou-se para ler.

A carta era um menino de nove anos, que residia em uma creche do outro lado da cidade, que mesmo escrito em uma linguagem juvenil, havia muito bom discernimento. Dizia não querer presente nenhum. Queria que sua carta fosse recebida e lida por alguém, e que se não fosse muito difícil, queria ver como era uma noite de Natal em família. Ou seja: a criança queria como presente uma noite de Natal.

Ramon perdeu o chão:“Que bosta! Por que não pediu uma bola, um carrinho, uma mochila?”, resmungava.

Mas enquanto esbravejava tomou uma decisão. Mesmo que fosse bem depois do Natal, faria chegar àquela criança alguns mimos. Seu desejo, mesmo que houvesse tempo, não poderia ser realizado, uma vez que nem Ramon tinha família.Guardou então a cartinha.  Mas teve a impressão que a guardou no cérebro. Não tirava a criança do pensamento.

No outro dia, bem cedo,foi visitar sua amiga Eloisa. Aquela com quem casava de vez em quando e com quem tinha uma cumplicidade que só não era  fraternal, porque havia outros apelos, trocas, desejos etc. Perguntou o que ia fazer no Natal; se ficaria em casa... Essas coisas. Sabia que ela também vivia sozinha, ou quase.

Ela lhe respondeu:

- Ora... Fico em casa. Não tenho parentes. Dos meus filhos, um morreu tragicamente e o outro sumiu do mapa. Há muito não me manda notícias. Mas não deixo a data passar em branco...

E concluiu:

- Por que não vens para cá? Assim assistimos a Missa do Galo juntos.

Estava indo tudo muito bem; bem demais, mas Ramon, que só entrara na igreja para casar e batizar seu filho, não iria gastar seu precioso sono com homilias. Não mesmo!

Despediu-se e já estava com o pé na porta, quando a amiga fez mais uma tentativa:

- Tá bom. Sem missa do galo. Apenas vamos beber algo e, caso tu queiras, podes dormir aqui.

Ramon saiu sem confirmar, mas a proposta era boa. Do portão lançou a pergunta que tinha reservado:

- posso trazer um sobrinho?

 E se foi sem ouvir a resposta, imaginando a cara de espanto da amiga.

Na casa de Eloisa, enquanto conversavam, surgiu uma ideia, a princípio absurda na cabeça de Ramon, mas que veio ganhando corpo. Afinal, o que teria a perder?

Saindo da casa da amiga, foi até a secretaria da creche que abrigava o menino, pedir informações. Descobriu que se tratava de um órfão que estava na instituição desde bebê (fora abandonado) e que não tinha tido a sorte de ser adotado porque tinha uma pequena deficiência física nas pernas, que com o tempo o impedia de fazer coisas comuns a todas as crianças, como jogar futebol, por exemplo, embora fosse totalmente independente. Tinha, no entanto, rara sensibilidade e uma capacidade intelectual acima da média para sua idade. E mais um fator de dificuldade, segundo a diretora, para a adoção: era negro.

Perguntado pela diretora da creche se queria ver ou conversar ele, Ramon vacilou. “Melhor não” pensou e disse.  Mas explicou também que só não poderia atender ao pedido do menino porque também era um homem só e a noite de Natal com ele, talvez fosse de um vazio ainda maior do que a que teria na creche. No entanto, mais tarde, em um dia qualquer, viria para conhecer a criança e trazer-lhe alguns mimos para tentar compensar a falta. Ficou tudo esclarecido e a diretora agradeceu a Ramon, ao menos por ter ido lá explicar-se, e que entenderia sua próxima visita como uma promessa.

Ramon estava angustiado. “Maldita carta!” chegou a blasfemar e completou “Por que não pediu a porra de uma bola?”

Quando chegava a casa, sua amiga Eloisa o esperava no portão, e foi logo perguntando:

- Ramon, o que tu quiseste me dizer com ‘posso trazer um sobrinho’?

Ramon e Eloisa, desde que se aproximaram, sempre foram muito francos, nunca houve motivos para que algo ficasse sem explicação. A própria situação dos dois, que tinham uma relação boa, de respeito e harmonia, mesmo à distância, comprovava isso. Então Ramon, acuado, abriu o jogo e mostrou a cartinha.

Eloisa leu. Comoveu-se tremendo os lábios, mas mantendo os olhos secos. Ficou um tempo em silêncio e fez um convite a Ramon, que não cabia réplica, pois foi dito como sentença:

-Vamos lá em casa.

A casa de Eloisa era maior e mais confortável que a de Ramon, e tinha duas salas. Uma delas estava sempre fechada e Ramon não conhecia. Pois foi essa sala que Eloisa abriu e convidou Ramon a entrar.

A paisagem era totalmente natalina. Árvore enfeitada, luzinhas, mesa posta, um grande Papai Noel de plástico com saco nas costas e demais enfeites.

Eloisa disse que mantinha aquele ambiente limpo e arrumado daquela forma desde o último Natal que tivera em família, e lá já se iam quase 10 anos. Por quê? Eloisa não sabia bem, mas dedicara seus melhores anos da juventude à família que construíra, e que de uma hora para outra, um dia depois de um Natal, tudo se acabara. Começando pelo enfarte fulminante do marido e quase imediata a saída dos filhos de casa.

E o que ela propunha a Ramon era simples. Passar um Natal em família e trazer o menino da carta, mesmo que essa família fosse de mentirinha. Aliás, de mentirinha seria em qualquer situação para o menino.

Era perturbador. Tirar Ramon da zona de conforto era uma tarefa hercúlea, e ele em princípio não sabia o que fazer. Ficou de dar resposta no dia seguinte, que já seria 24/12. 

Ramon não dormiu. Levantou várias vezes durante a noite. Pensou em ir à casa de sua amiga pedir abrigo, mas acabou cochilando na varanda, sob os cuidados do indefectível Meufilho.

Às oito horas da manhã, Ramon bateu à porta de Eloisa que, só quem se conhece pode entender, já o estava esperando, vestida para sair, com o café na mesa, e Ramon nem fez cara de espanto. Iriam, com toda a certeza a creche.

Havia algumas complicações, como por exemplo, eles não eram casados, não viviam juntos, portanto não eram uma família, e isso talvez fosse uma pedra a mais no caminho. Com isso, a história haveria de ser muito bem produzida e contada. Para subsidiar, tiveram o cuidado para levar contatos telefônicos de amigos de alguma representatividade na cidade como referências, e até o delegado, amigo de longa data de Ramon foi consultado para ver se permitia ser citado.

A diretora os recebeu um tanto desconfiada, uma vez que Ramon havia dito que era sozinho, mas aceitou ouvi-los. E começaram a contar suas histórias alicerçadas na melhor produção possível: a verdade. Eles tinham vivências parecidas, eram grandes amigos de cama e mesa, mas que não abriam mão de suas independências. De resto, tinham situações econômico/financeiras modestas, mas sólidas.

Havia, naturalmente, muitos impedimentos para que a criança pudesse dormir fora, que envolviam até o poder judiciário. Mesmo que a creche tivesse deixado sair uma cartinha com aquele teor, tratava-se de um menor que estava aos cuidados da instituição. E já era 24/12!

Eloisa e Ramon pediram para ver o menino e foram atendidos. Nonato. Um nome quase óbvio.

Nonato os recebeu com um sorriso que qualquer um, que por um desses absurdos quaisquer da vida viesse a morrer feliz, gostaria de estampar na lápide. Não era exatamente um menino alegre, mas transpirava esperança e tinha enormes olhos negros, como sua pele, de pura vivacidade.

Conversaram com o menino, explicaram o que queriam fazer e as dificuldades que estavam enfrentando, especialmente pela falta de atenção do Ramon, que se esquecera da carta. E prometeram que, caso não conseguissem, viriam mais vezes visita-lo. Nonato pareceu entender. Mas seus olhos não esconderam um pouquinho de tristeza.

Nonato passou o resto da manhã recolhido, cabisbaixo. Uma atendente da creche percebeu o comportamento diferente e foi vê-lo. Estava febril, teve indisposições, e foi recolhido para a enfermaria. Teve atendimento médico e foi recomendado que não saísse do alojamento por se tratar de virose. E que, infelizmente, seu Natal estava comprometido.

À tarde, Ramon e Eloisa com documentos legais, compareceram a creche. Estava nos planos deles de pronto levarem Nonato, passarem em algumas lojas, comprariam roupas e algum brinquedo do gosto do menino, e depois iriam todos à casa de Eloisa. Haveria de ser uma linda noite de Natal em família, ainda que família de mentirinha.

A frustração com a enfermidade do menino foi madrasta. Todo esforço, todos os planos mortos por uma virose!

Eloisa havia feito muitos quitutes e sua sala estava ainda mais enfeitada. Tinha comprado “de olho” um pijaminha para Nonato e outro para Ramon. Ele que não fosse, em plena noite de Natal, com uma criança pela casa, dormir pelado!

Mas não havia o que fazer. Nonato não iria e o mote da noite especial estava desfeito.

No entanto, Eloisa não se deu por vencida. Aquele trabalho todo não iria para o ralo. Assim, pôs-se a caminhar com Ramon, como nunca antes ousara,de braços dados rumo a casa dela e, como já sabemos, só quem se conhece vai entender,  Ramon nem olhou para os lados da casa dele, cuja teria ficado bem trancada e Meufilho com ração e água suficiente para um dia ou mais.

Ramon e Eloisa passaram uma noite, não como a que tinham programado, mas especial. Decidiram que não era dia de sexo, porém de muita conversa, e o fizeram até a barra do horizonte ficar vermelha.

Conheciam-se havia muitos anos, desde quando os falecidos ainda viviam. Moravam relativamente perto e mal e mal se cumprimentavam.. O começo da relação foi um tanto bizarro. Encontraram-se no cemitério em um dia de finados, quando foram chorar seus parceiros. A conversa se estendeu para além dos muros. Mas não demorou muito para Ramon queixar-se da sua falta de jeito com as coisas de casa; e Eloisa de solidão. E as conversas se perderam entre uma queixa e outra, e cada vez mais frequentes.

Um dia Eloisa bateu à porta de Ramon e perguntou se ele queria uma ajuda para arrumar suas coisas, já que havia lhe dito não ter jeito para tal.

- Claro! Ramon falou tão alto que mereceu um latido de Meufilho

É certo, no entanto, que desde o encontro no cemitério, ambos perceberam que se formaram algumas afinidades a mais entre eles, além dos parceiros que partiram.

Então Eloisa arrumou a casa e deixou o nome de uma pessoa para eventuais faxinas. Ramon preparou um café e ambos sentaram-se para conversar. A tarde caía e a conversa não parava; ficou noite e Eloisa não foi embora. E assim, vez por outra, Eloisa aparecia para arrumar algumas coisas na casa de Ramon e este lhe retribua, também vez por outra, indo até a casa dela tirar-lhe a solidão. E as vidas de ambos nunca mais foram iguais.

Na conversa dessa noite de Natal, proporcionado pelo menino Nonato, avaliaram sua relação e o quanto eram compatíveis em gênios e jeitos. E com todas essas afinidades, como conseguiram sustentar suas independências, creditando a elas, as independências, a tal afinidade. Ou seja: o círculo afetivo só era bom porque havia independência.

E os anos estavam chegando. Tinham pequena diferença de idade, beirando os 60, excelente saúde e muita vida pela frente.

Mas e Nonato? E Nonato? O que seria daquela criança que, apesar de ter estado com eles apenas algumas horas, fora responsável por algo de diferente na vida deles. Estabelecera entre ambos um novo tipo de link. Algo novo e inesperado.

Já não dava para pensar. Era de manhã e eles precisavam ao menos de um cochilo.

No dia do Natal foram novamente ver Nonato. Continuava recolhido e bastante abatido. O médico sugeriu que tal virose talvez tenha sido potencializada por alguma carga emocional, uma vez que, pela primeira vez, alguém havia se interessado pelo menino, fora do ambiente em que vivia. Não puderam vê-lo e voltaram para casa, cada um para a sua, para a felicidade de Meufilho.

Passaram alguns dias, com boas notícias sobre a saúde de Nonato. Breve tornariam a vê-lo. Mas Ramon estava incomodado. Tinha algo que não estava dentro dos seus conformes, e que lhe empurrava para fora da tal zona de conforto. Foi falar com Eloisa.

Quando chegou, tinha alguém na casa. Um homem fazia uma pequena obra na cozinha, de calção e sem camisa, e pela primeira vez, desde a juventude, Ramon sentiu o gosto amargo do ciúme. Eloisa percebeu (elas sempre percebem), mas como não tinha culpa no cartório não deu bola. O homem continuou seu trabalho, terminou, recebeu seu dinheiro e foi embora.

Ela então foi ao fígado de Ramon, e lhe disse em claro tom de brincadeira:

- ciúmes a essas alturas da vida, meu amigo? Não esqueça que não somos casados.

E Ramon respondeu prontamente:

- Pois foi para isso que eu vim aqui.

Eloisa começou a rir, embora não tenha ficado claro, sabia o que ele quis dizer, e porque foi algo precipitado, impensado. Ao fim ambos riram, e riram muito. Depois foram ficando sérios, muito sérios, quase brabos e em silêncio. Então Ramon retomou a palavra:

- quem sabe a gente casa?

Aí já não era precipitação. Eloisa saiu do ambiente, foi fazer algumas coisas, preparar um café, muda como uma porta. Deu umas voltas, gastou tempo à toa. Então se sentou à mesa, serviu Ramon e olhando-o fundamente respondeu:

- Eu gosto da minha liberdade; da minha independência; até da minha solidão de vez em quando. Também gosto muito de ti, seu velho teimoso.

Eloisa tomou mais um gole de café e concluiu:

- Mas se tem algo que eu espero há muito tempo é isso. Porém, como não me pediste em casamento, vou responder a tua pergunta como ela merece ser respondida: acho que pode ser uma boa. 

Ramon e Eloisa se casaram tempos depois, foram morar na casa dela, venderam a casa dele e Meufilho ganhou a companhia odiosa de Hamlet, o gato da nova casa. Mas passou a ter mais conforto e um humano muito mais cuidadoso. E do outro lado do mundo, Ramon ouviu do filho mais que uma bênção. Ouvia que um dia ainda iria convencer a mulher a vir morar perto deles.

Era tácito e consensual que por trás do casamento de Ramon e Eloisa havia uma missão inicialmente velada, que se tornou explícita: a adoção de Nonato, que até não haveria de ser muito difícil pelo histórico do menino. Sabe-se lá, entretanto.

Enquanto o processo se desenvolvia, tornaram-se amiúdes na creche. Visitavam e levavam Nonato para passear, cada vez mais encantados com a vivacidade e inteligência do menino. A educação primorosa que recebera e absorvera da creche; a forma suave, conformada e valente com que encarava sua deficiência.  Antes mesmo de conseguirem a adoção, Nonato já era um membro da família, com seu espaço reservado na casa e intimidade com Meufilho e Hamlet.

A mudança de Nonato para a nova residência, em função dos envolvimentos burocráticos de adoção e dos próprios novos tutores levou muitos meses. Portanto, ele mudou-se quase no final do ano.

E nesse Natal, agora sim, a noite haveria de ser quilômetros além do especial.  Eloisa sublimou nos preparativos. Trocou as decorações antigas da sala, que nunca mais se fechara, por novas, fez pratos maravilhosos e até Meufilho e Hamlet, que já interagiam amistosamente, ganharam tocas vermelhas.

Tudo pronto e nada no mundo haveria de impedir uma noite inesquecível de Natal. O primeiro da vida de Nonato, já com 10 anos, e o primeiro da família constituída de baixo para cima, ou seja: começou pelo filho.

A propósito, nessa manhã do Natal, Ramon foi ver algumas correspondências. Abriu e leu com emoção o cartão do filho e da nora, que ainda não conhecia. No meio de tantas tinha uma cartinha, dessas do tipo que recebera de Nonato, um ano atrás. E era dele! Sabe-se lá porque, vacilou em abrir. Ficou um tempo pensativo, mas que diabos, tinha de abrir, afinal, o remetente era de casa. Nela só tinha uma pergunta, sem pedido de presente ou sugestões. Uma pergunta nem curtinha, porém gigantesca:

“posso te chamar de pai?”.

Ramon estava muito emocionado, imobilizado, surpreso. Um tempo depois, conseguiu recompor-se e foi mostrar a cartinha à Eloisa. A encontrou em prantos, soluçando convulsivamente com um papel na mão, que Ramon apanhou para ler. E lá também uma perguntinha simples:

“Posso te chamar de mãe?”

 

A viuvez é como uma ausência; um dia volta o ausente, mas que por encanto não é o mesmo”. N. Clarasó


A vida de Ramon se transformou em poucos anos. Desde a notícia da doença da esposa Mirian, logo a seguir sabendo que era algo irreversível; que a única saída humana seria que levasse o tempo que lhe restava com o máximo de conforto e o mínimo de sofrimento, expectativa prevista para no máximo 12 meses, mas nada certo se abriu um precipício à sua frente.

Mirian era uma mulher jovem, cheia de vida, com um permanente olhar de paz e carinho. Tinha os lábios entre parêntese. Eram pequenos sulcos de expressão que davam a impressão de estar sempre sorrindo.  Nem chegara aos 40 anos, que é quando, diziam, a vida começava! 

Bem que queriam ter tido outros filhos. Porém,  o seu organismo já avisava de que estava doente e fragilizado, lhe foi retirado o útero quase concomitante ao nascimento de Ramon Filho, este que já não fora um parto fácil.

- Temos de aceitar como uma vontade divina, Mirian. Mais tarde quem sabe a gente adota uma criança. O importante é que tu e o nosso filho estejam bem.

O desafio de Ramon, que se aposentara justamente para dedicar-se à mulher em seus momentos finais, começava por primeiro defender-se da vida e aprender a ser só, para ter forças de terminar de criar o filho, recém saído, ou nem bem saíra, da adolescência.  Agora eram só os dois, e ele, que sempre entregara a gerência da casa e circunstâncias correlatas, como contas, compras, etc à mulher, estava sem saber por onde começar. Sua atividade de policial era muito intensa e absorvente. Praticamente não havia descanso.

Mas também essa profissão, que sempre lhe exigia decisões rápidas e definitivas, haveria de contribuir para que orientasse seus passos. Em relação ao filho, agora não se tratava mais de um simples “faz o que eu digo e não faz o que eu faço”. Haveria que demonstrar, porque as lições a seguir seriam daquelas que se aprendem melhor vendo do que ouvindo.

Os primeiros momentos, dias, semanas, meses foram de intermináveis sofrimentos. Pai e filho praticamente não ficavam em casa. Conversavam pouco, o necessário para que vivessem na harmonia possível. Uma conversa mais longa, fatalmente acabaria em choro e o recrudescimento da dor. Datas comemorativas então passavam ao largo. Apenas abraçavam-se sem dizer nada e cada um ia a um canto da casa, ou para a rua, onde pudesse chorar  à vontade.

Certo é que, em algum dia teriam de vencer a dor da perda daquela mulher comum de dois, e isso haveria de começar estendendo suas conversas, sem medo. Ramon precisava tomar coragem e a iniciativa, mas não foi por ele que começou.  Para a surpresa do pai, a iniciativa foi do filho, um pouco antes do final daquele ano.

- Pai, a família agora somos nós dois. Precisamos estar mais juntos. Eu preciso do meu velho comigo, como era antes. Eu sei que passavas pouco tempo em casa, por causa do teu trabalho, mas eu não me lembro de alguma vez, quando estavas aqui, que não estivéssemos os três juntos, seja comendo alguma coisa, seja conversando ou brincando. Brincávamos os três, lembra?

Os olhos do pai pareciam duas represas intumescidas, prestes a explodir. Ao passo que o filho falava serena e seguramente.

- Quer chorar, pai? Chore. Vamos chorar juntos, afinal desde o dia em que a mãe se foi, é algo que só fazemos escondidos.

Pai e filho choraram abraçados, convulsivamente.

- Agora pai, até nisso, se tivermos que chorar que não façamos escondidos. Não precisamos ter vergonha das lágrimas e saiba, as suas lágrimas para mim são o melhor exemplo do que é ser um homem.

- Tu estás certo, meu filho. Essa conversa, porém, era para ter sido provocada por mim. Fui covarde, mas agradeço por ter sido. Pude ver que o meu guri cresceu, é um homem; um homem de bem, de bons sentimentos. Devo isso também a nossa Mirian. Obrigado, meu filho. Vamos mudar o rumo das coisas por aqui. Tua mãe, a essas horas deve estar muito feliz de onde nos olha. “Veja o homem que eu criei!”, deve estar dizendo para um daqueles seres assexuados que a circundam.

- Bola para frente! Ah, sim! Feliz aniversário, meu filho. Que Deus e a tua mãe te abençoem sempre. Na sala, com um cartãozinho, está a enciclopédia que eu sei que querias. Eu deixei lá e ia sair de fininho.

- Obrigado, pai.

Havia novos ares a seguir. O luto permaneceria pra sempre, mas deixaria de ser fechado, intransponível, profundamente doloroso. Ramon continuaria indo todos os finais de semana ao cemitério. Até cultivara um pequeno jardim com dálias, que era a flor que Mirian mais gostava, quando floresciam, sempre levava para enfeitar o túmulo. 

Suas perdas, no entanto, não haviam terminado, se é que o fato a seguir poderia ser considerado perda. Dois anos depois, seu filho apareceu com uma novidade: intercâmbio. E não era para morar logo ali, na cidade vizinha ou para a capital, não. O tal intercâmbio seria para lá onde o diabo esquecera-se das botas e só não voltara para buscar porque era muito longe.

- Que idéia é essa, meu filho? Isso é uma loucura! Não vou compactuar com isso. Peça qualquer outra coisa que eu trato de atender. Se quiseres estudar na capital, tudo bem. Pago faculdade e estadia. Mas lá! Nem pensar.

- É intercâmbio, pai. Alguns custos são subsidiados e há um bom apelo do governo de lá para captar estudantes e profissionais do mundo inteiro.

Deixamos para finalizar essa conversa depois. Saiba, no entanto, que eu estou decidido a ir, e ficaria muito feliz que tu me apoiasse.

A cratera que se havia aberto quando da perda da esposa, e que tinha sido aterrada, cedera. Voltara a abrir. Precisava ser forte. Confiança de que o filho não faria bobagens mundo à fora ele tinha, mas sabe-se lá... O seu filho longe das suas asas... O que Mirian diria? Essa era uma pergunta que faria diretamente a ela.

Dias depois foi ao cemitério, levou seu banquinho e sentou-se frente ao túmulo da mulher, que exibia uma foto linda, com aquele sorriso que só ela tinha. “O que fazer, meu bem? Que falta estás me fazendo!”

Como tinha por hábito nunca deixar  pendências. Chegando em casa chamou o filho para conversarem.

- Filho, e então, e a idéia louca aquela que tiveste, já abortaste?

- Em princípio, sou contra o aborto provocado, pai. Não. É uma idéia já formada que consolido cada vez mais. Penso em ir para Adelaide, que é uma cidade relativamente pequena, mas com boas universidades.  Ainda estou esperando a tua bênção e, claro, algum subsídio financeiro. Infelizmente, a falta disso, o subsídio e que só pode ser teu, é a única coisa que me faria não ir. Algum bico eu hei de fazer por lá, mas sabes que medicina é muito absorvente e deixa pouco tempo livre. Os anos que fiz de inglês me servirão para alguma coisa. A bola está nos teus pés. Chuta em gol ou manda pra fora. Mas olha... Caso batas o martelo para não me ajudar nesse sonho, nossa conversa morre no não. Prometo não deixar frustrações, mágoas e outras miudezas interferirem na nossa relação de pai e filho.

“Cachorro!” – resmungou o pai. Aprendeu direitinho a conduzir as coisas, de modo que elas fiquem à sua feição.

- Falou alguma coisa, pai?

- Sim. Te mandei à merda.

Ramon pai passou a fazer as contas. Sempre fora econômico e ajudado pela esposa, que valorizava muito o dinheiro e controlava os gastos da casa. Tinha gasto os tubos com a doença da mulher, mas afinal, eram ele e o filho. Metade do que ele ganhava poderia ser dele, que ainda assim viveria bem, dentro de sua pouca exigência de luxo.Viver sozinho parece que seria a sua sina. Estava decidido a ajudar o filho. Tinha certeza de que Mirian aprovaria sua atitude. Mesmo porque, o filho queria estudar, ser alguém na vida. Que pai não se orgulharia disso? Não seria ele, com o seu egoísmo a truncar o sonho do filho.  

Filho, para quando é essa viagem? Vamos falar a respeito.

- Opa! Temos novidades!  Olha, seria importante estar lá em janeiro, assim  eu teria dois meses para me acomodar. Vou no peito e na raça. A única coisa que sei é que vou conseguir  vaga na universidade.

- Mas não é uma loucura isso, filho?

- Se for, aprenderei com ela, pai.

- Está bem. Temos quatro ou cinco meses ainda. Vamos providenciar o que for preciso. Vou até a delegacia ver como podemos agilizar alguma coisa... Sei lá, vou procurar alguma luz por lá.

- Obrigado, pai. Tem mais uma coisa que eu sei e quero que tu também saibas: nunca vais te arrepender disso.

- Vamos ver, meu filho, espero que não.

Ramon passou  a ir com mais frequência ao cemitério. Conversava com Mirian, aprendeu a rezar, pedia a Deus para que abençoasse a viagem do filho. As pessoas do cemitério, como ele chamava, funcionários e visitantes, já conhecia todas. Tinha até alguns conhecidos mais próximos, como um casal de vizinhos que perdera um filho, uma moça que perdera os pais no mesmo dia, com a qual conversava algumas vezes porque achava que ela, a qualquer hora, acabaria se suicidando. Tinha D. Eloisa, viúva do Roberto, conhecido seu, funcionário público, com quem apenas trocava cumprimentos de longe. Enfim, era o seu público. Pessoas que o viam conversar com Mirian.

Ramon e o filho passaram as festividades de final do ano com o coração apertado. Não era o primeiro que passavam sozinhos, mas talvez fosse o último. Nunca se sabe. Logo a seguir, Ramonzinho iria embora e ele ficaria só. Até quando? Entregava nas mãos de Deus, e pedia que Mirian intercedesse por ele para que as coisas não fossem tão difíceis.

Eis que, na metade de janeiro era chegado o momento. Ramonzinho iria atrás das botas do diabo. A aproximação da partida fora um pequeno enfarte por dia. O velho coração ameaçava pular fora da boca, mas a garganta, que estava trancada, não deixava.

A despedida foi em casa mesmo. O pai não queria ir à estação despedir-se do filho, porque quando voltasse, a sensação de ninho vazio seria maior. Abraçou longamente o filho, choraram juntos e recebeu o beijo que esperara a vida inteira, mas que não acostumara o filho a lhe dar.  

Ramonzinho se foi. Quando veria de novo? Meu Deus... Quanta perda!

Ramon comprara um telefone, e esperava notícias do filho para avisá-lo disso. Assim, quando quisessem falar, ficaria mais fácil. Andava aflito sem noticias do filho, refugiando-se no cemitério e suas almas. As mortas e as vivas.

Ramon não era de muitos amigos. Sua profissão exigira muitos cuidados e resguardos, agora fazem falta. No cemitério, costumava brincar, a maioria dos seus amigos só ouvia.

Mas aquele isolamento, no entanto, o fez buscar novas relações. E começou em casa! Diariamente um filhote de vira-lata chegava à frente, pelo visto com fome e sede. E ali ficava, mesmo depois de se satisfazer. Ramon o mandava embora, mas ele ia e voltava. Então Ramon abriu-lhe o portão. Examinou-o... Até que era bonitinho. Deu-lhe um banho, arrumou algumas toalhas velhas e improvisou um ninho. Adotara o cusco. Pelo visto era tão sozinho quanto ele.

“Vou chamá-lo de Sultão... Sultão? Mas isso é uma bostica de cachorro, Sultão é muito pomposo! Então vou chamá-lo de... Como será que o meu filho o chamaria, aquele cachorro que não me manda notícias?” . “Ãrrã... É isso. Já tenho o nome: Meufilho”.

Finalmente, no final de fevereiro chegou carta de Ramon Filho. Disse que estava tudo bem, que se instalara em uma república de estudantes e que estava pronto para o início do curso. E mandou o número de uma conta-corrente, claro e seu endereço. Recomendou que não se preocupasse com ele, porque, entre tantas coisas que aprendera com o pai era a capacidade de decidir e resolver qualquer situação. Estava gostando da cidade, embora conhecesse muito pouco dela.

Ramon ficou exultante com a carta do filho. Feliz mesmo, e logo logo tratou de responder, informando sua nova aquisição: o telefone.

No mesmo dia foi ao cemitério conversar com a finada. Que alívio, enfim tivera notícias do filho!

O ano passou dessa forma, algumas cartas, uma ligação no dia do aniversário dele e outra no dia dos pais. Ramon Filho disse que ligaria bem de vez em quando, em função do custo, mas que mandaria cartas com mais frequência. E assim ficaram combinados. Ramon aproveitou para comunicar o filho de que tinha a companhia de um vira-lata chamado de Meufilho. 

O jardim de dálias de Ramon estava pleno, no dia de finados daquele ano.  Fez uma grande colheita e foi cobrir o túmulo da esposa de flores. Estava feliz. Levou seu banquinho e ficou lá conversando com Mirian e apreciando a cama de flores.

- O senhor tem fósforos? Quero acender algumas velas e acabei me esquecendo de trazer.

Era D. Eloisa. Ramon não tinha, mas foi tratar de conseguir para ajudá-la. Depois de feito isso e ouvido os agradecimentos dela, ”aliás, que bela mulher”, ousou pensar, nunca tinha presta a atenção, voltou ao seu banquinho. Olhou fixamente para a foto risonha de Mirian e teve a impressão que ela piscara para ele. “Que diabos! Estou enlouquecendo?”

Na saída do cemitério Ramon voltou a encontrar D. Eloisa e andaram um pouco a pé, conversando até se despedirem. Ramon  teve receio de oferecer carona a ela, e foi embora. Cada vez que se encontravam no cemitério a conversa aumentava um pouco mais, até evoluir para uma carona até a casa.

“Que mulher interessante! Bonitona, para ser justo”

Pelas últimas notícias, Ramonzinho estava se dando bem por lá. Mandou dizer que tinha conhecido a mulher do Zorro, mas que conseguira tirar a máscara dela e que a coisa se encaminhava para um namoro, talvez um pouco mais. “Mulher do  Zorro? Que bobagem era aquela? Mas que bom! Era uma brasileira”.

- Ele que não invente de emprenhar ninguém por enquanto – Meufilho apenas concordava.

Entretanto, o velho Ramon, se tudo continuasse na mesma balada, daqui a pouco também teria novidades para o filho. Descobriu que não estava morto.

 

 

 

 

 

 

“... Então eu te olharei com teus olhos / e tu me olharás com os meus”.  JL Moreno

         

Eloisa era normalista. Ensinar crianças era um sonho e o que dispunha no momento como carreira, além das prendas domésticas, cujo treinamento delongava toda sua vida, sob a supervisão da mãe. “Mulher cuida da casa e homem se prende pela barriga!”, dizia sua resignada mãe. 

 

Eloisa era uma moça discreta. Longos cabelos negros derramados em cascata para além dos ombros, mas que mantinha permanentemente subjugados na nuca ou em rabo-de-cavalo, e grandes olhos castanhos.

 

Namorava Roberto, quatro anos mais velho que ela, ex-militar e prestes a assumir a condição de funcionário público, para o que havia prestado concurso. A assunção a essa carreira, mais do que a estabilidade desejada, significaria o noivado já encaminhado e não muito distante o casamento. Apenas esperaria Eloisa concluir seu curso Normal, que era um sonho dela.

 

Roberto e Eloisa praticamente haviam crescido juntos, pela proximidade das famílias e das casas. Frequentavam a mesma escola, nas brincadeiras permitidas a meninos e meninas sempre estavam lado a lado, bem como passeios e confidências. Por ser um pouco mais velho e estar em classe acima dela, muitas vezes Roberto a ajudava em temas de matemática, o martírio de Eloisa. E assim passaram a adolescência sem prestarem a atenção no homem e na mulher que se formavam.

A mesma diferença de idade, somada a condição masculina vigente,fazia também com que os programas dos dois não fossem iguais. Um e outro baile comemorativo se encontravam, cumprimentavam-se, eventualmente dançavam e Roberto seguia para o destino mais liberar dos homens.

Em um desses bailes, Roberto e alguns amigos chegaram após o início. Era um evento muito especial, comemorava-se o aniversário da cidade. Música bem tocada, gente bonita e bem vestida, pares dançando, luzes pela metade, e alguém logo de cara chamou a atenção de Roberto. A moça usava um vestido longo, prateado, justo, desenhando um corpo muito bem feito. Ele não sabia quem era, mas sabia que tão logo fosse sentar, descobriria a mesa e, claro, ao menos uma volta daria no salão com ela. Ah ia! Claro, desde que o par com quem estava fosse ocasional.

Com o salão cheio, e entre uma conversa e outra com os amigos, perdeu o casal de vista. A saída então foi circular pela periferia do salão, como sempre fazia, procurando “caça” como diziam os machistóides da época. E assim fez . Cumprimentou pessoas conhecidas; abanou para os pais de Eloisa e seguiu. Nada do “broto”. Foi então tomar um ar na sacada, beber alguma coisa, afinal a noite seria longa.

Conversando animadamente alguns metros à sua frente estava ela! Falava com um amigo seu a quem cumprimentou com um aceno de cabeça e ficou por ali, como quem não quer nada. Precisava descobrir quem era, já que estava de costas. Súbito o tal amigo o chamou para juntar-se aos dois. Curiosa ela se virou para saber quem estava sendo chamado. Era Eloisa. “Meu Deus, é a Eloisa!”.  Deslumbrante! Como ele nunca tinha percebido isso? Aquela era a menina que ele tratava como se fosse pouco mais que uma irmã? Sem o menor jeito e com o coração aos pulos foi cumprimenta-los. Conversaram a três por um tempo, quando Eloisa quis ver os pais e sentar-se, não sem antes intimar Roberto para que dançassem.

Roberto não sabia o que fazer. Um holofote de mil watts se ligara por dentro e ele não tinha a menor noção dos sentidos. Como eram amigos próximos, e às vezes dançavam é claro que dançariam. Mas naquele estado, dançar com ela? Nem pensar! Ficar parado feito dois de paus assistindo-a dançar com os outros e sujeito a vê-la sendo paquerada, muito menos. Não dessa vez!

 Decidiu ir embora. Foi até a mesa de Eloisa, cumprimentou seus pais, deu dois beijinhos nela, chamou-a de linda, olhando-a nos olhos como nunca tinha feito, mas ela não deve ter notado nada de diferente, e foi embora. Não sem antes, brincando meio sem graça, recomendá-la que se comportasse.

Roberto foi dormir. Dormir? Nunca. Ficou à espreita para ver a que horas a família vizinha chegava, e se eventualmente alguém estaria acompanhando Eloisa. Só para dar boa noite do portão, o que já seria um péssimo sinal. Dormiu sentado sem ver nada.

O dia seguinte era um domingo. Tradicionalmente o almoço seria um pouco mais tarde, e naquele em especial, em função da noitada anterior, ninguém acordaria cedo para cozinhar ou assar uma carne.

Eloisa aprontou-se para sair, perto do meio dia. Pouco depois, o amigo com quem conversara e tinha dançado na noite anterior, chegou frente a casa dela, bateu na porta e aguardou. Tinha um pequeno buquê de flores na mão. Eloisa abriu a porta, entrou para guardar o buquê e saíram, para o desespero do pobre Roberto. Nada poderia ser feito naquele momento e ele passaria o dia lamentando a sua cegueira.

Mas Roberto, que nem sempre fora um rapaz decidido, agora o seria. Ele tinha certeza de que, naqueles curtos momentos em que vira Eloisa como mulher, a quem conhecia desde criança, com quem tinha total afinidade e cumplicidade, a sua Elô, como a tratava, era a mulher de sua vida e precisava dizer isso a ela, acontecesse o que acontecesse.  E eis a questão secundária: como ela reagiria?

Dias a seguir, Roberto foi esperar a saída de Eloisa na escola Normal. Ainda não se livrara da farda, mas estava mais bem arrumado que o costume. Cheiroso. Ela estranhou em vê-lo, mas riu e o abraçou afetuosamente. Ele a convidou para um sorvete, pois tinha algumas coisas que gostaria de conversar, o que a deixou apreensiva.

Roberto não sabia onde tinham escondido o fio da meada. Não engatava o assunto que interessava, vacilava muito, até gaguejou algumas vezes e Eloisa o estranhou. Sempre serena e segura, disse-lhe:

- Roberto, estou ficando preocupada. A gente se conhece desde criança. Seja o que for que queiras me dizer diga, nada vai mudar entre nós.

- Nada mesmo? Perguntou o inseguro Roberto. E completou:

- Jura?

- Absolutamente nada. Se disseres que não queres ser mais meu amigo eu vou chorar muito, mas tratarei de entender. Se disseres que estás apaixonado por mim eu vou chorar mais ainda, mas tratarei de entender - concluiu rindo.

Piorou. “Mas enfim, Beto, tu és um homem ou um camundongo?”, ralhou consigo.

- Então vamos lá. Mas antes vou fazer um preâmbulo e, por favor, não me interrompa.

- Eloisa... Crescemos juntos. Não digo que como irmãos. Como primos, talvez e nunca, em momento algum, vi em ti uma mulher. Uma mulher para ficar, namorar, casar... Essas coisas. Sempre foste a minha Elô, como devo ter sido o teu Beto. Olhava para ti com carinho fraternal, achando que um dia nos reuniríamos, como fazem nossos pais, em um final de semana, tu cheia de filhos e eu também, e nos esconderíamos em algum canto da casa para falar mal de nossos companheiros.

O sorvete de Roberto já era. Derreteu, mas ele continuou falando para olhos e ouvidos apreensivos de Eloisa.

- Vai daí que um dia desses eu te vi e não te reconheci. Vi um pouco além de ti, um pouco além da minha Elô. Ou enfim, o que vi de fato foi a minha verdadeira Elô. Foi no baile, e naquela noite, que não preguei os olhos, refiz nossos momentos, encontros, brincadeiras, confidências... Percebi que não consigo ver a minha vida longe de ti. Na verdade, eu nunca imaginei a minha vida sem a tua presença, e naquele momento eu vi a mulher da minha vida.

-Bueno - continuou o aflito Roberto, que àquelas alturas já chutara a jaca e fosse o que Deus quisesse-. Disseste que se eu me declarasse apaixonado por ti irias chorar muito, mas trataria de entender. Pois então está feito, minha querida Elô, pode chorar à vontade. Estou apaixonado por ti, e agora, com o pau da barraca chutado, estou a descoberto. Não sei absolutamente nada do que vou fazer. Sei que não quero te perder por nada nem para ninguém, mas claro, sobre isso já não posso decidir.

Eloisa estava perplexa. Por certo que iria chorar muito, mesmo tendo dito apenas por dizer que essa seria uma das condições que a poria a chorar, mas não ali. Sempre foi muito centrada e a situação requeria firmeza e serenidade. Roberto era um “tipão”. Suas amigas diziam isso, mas assim como ele, nunca havia passado pela sua cabeça algo mais do que aquela amizade fraterna que tinham. Que, obviamente, deveria mudar, e por isso as lágrimas encomendadas para depois. 

- Roberto... Meu Beto querido! Não sei o que te dizer (há uma resposta pior do que essa para uma declaração de amor?). Como te disse antes, embora por brincadeira, vou chorar muito porque, queiramos ou não, a partir de agora nada mais vai ser igual, e acho que termina aqui a nossa cumplicidade fraternal. Jamais, no entanto, deixaremos de ser amigos, ao menos de minha parte. Não podemos sepultar um sentimento que nos uniu por quase vinte anos, em função de outro sentimento, que aliás, é bem mais amplo e nobre.

Roberto ouvia em um silêncio conformado. Eloisa continuou:

- Vou para casa. Estou angustiada; chocada e um pouco orgulhosa, sei lá.... Preciso organizar minha cabeça. Fui pega de surpresa e, como tu, também ainda não sei o que fazer. Vamos deixar sentar a poeira desse redemoinho que colocaste no meu colo. Conversaremos depois.

- O que sei, concluiu Eloisa, é que teremos de voltar a esse assunto. É sério demais para ficar pendente. Trata-se de nossas vidas. A vontade que tenho agora é de te abraçar e ficarmos um tempão abraçados e em silêncio, como algumas fizemos quando morriam nossos cachorros ou gatos, ou quando festejávamos qualquer data. Mas acho que não devemos. Esse abraço vamos deixar para uma hora não muito grave. Ou mais grave, não sei. Fica em paz, meu Beto, acalma teu coração. E não esqueça: eu sou e serei sempre a tua Elô.

Despediram-se. Roberto foi para um lado e Eloisa para outro.

Já em casa, depois do banho e um café, Eloisa pegou um livro e sentou-se na varanda. O livro era para não ser incomodada. Nem foi aberto.

“Roberto! O que deu em ti, meu querido Beto? Meu amigo, meu irmão... Meu Deus, o que vamos fazer?” Pensou e olhou ao redor temendo ter falado. Ela não podia definir o que estava sentindo. Um misto de angustia, medo, tristeza, mas com quase imperceptíveis notas de alegria.  

Uma providência Eloisa tomou de imediato. Como não havia compromisso ou algum sentimento maior que justificasse a manutenção do “namorico” com o rapaz do baile, ela tratou de interromper qualquer tentativa de avanço na relação. Se não desse esperança a Roberto, ao menos não machucaria seu amigo. Não naquele momento. 

Já Roberto, com o passar dos dias sem nenhuma abertura de Eloisa quanto ao assunto que ele tinha proposto, se esforçava ao máximo para varrê-la da cabeça, inutilmente. Uma namoradinha de baile aqui, outra acolá, nada firme e gastava o resto de suas energias com as tias da zona.

Os dias andavam. Aulas, estudos; uma e outra conversa entre Roberto e Eloisa, totalmente vagas, muito diferentes das de antes, sem coragem para encararem os novos fatos.

Roberto então tomou uma decisão um pouco mais radical: precisava sumir por uns tempos. Foi viajar e deixou dito em casa que, caso perguntassem por ele, que dissessem não saber quando voltaria. Saíra do quartel e enquanto não fosse chamado pela administração pública para a qual prestara concurso, precisava trabalhar e arejar a cabeça.  Não se despediu de Eloisa.

E uma tarde uma colega perguntou a Eloisa se poderiam conversar, e se poderia ser na saída do curso. Eloisa concordou. Na saída, a colega a abordou e foram em um banco da praça próxima.

- Eloisa, eu sei que és muito próxima do Roberto. Quero te perguntar se há entre vocês algo mais que amizade.

Eloisa estranhou, mas respondeu prontamente:

- Não. Não temos nada.  Somos amigos. Por quê?

- Então acho que posso te contar. É o seguinte: eu sou completamente apaixonada por ele. Tivemos uma pequena história, lá no começo do ano, que começou no aniversário do meu irmão. Houve uma festinha, rolou uma música, dançamos, conversamos bastante e tal... Encontramo-nos algumas vezes, mas quando eu achei que iríamos  ter algo mais firme, ele simplesmente fugiu, sem dizer A nem B. Marcamos de nos encontrarmos no Baile da Cidade e até o vi chegar. Mas mal chegou, vi que conversou um pouco contigo e foi embora. Sabes algo dele?

Eloisa não sabia. Nem onde estava Roberto, muito menos o que dizer para a colega. E naquele momento, nem que soubesse diria, ora!. “Como Roberto tinha tido um caso com uma colega dela e não tinha contado nada? Homens! Homem nada. Cachorro!”. “Por onde andaria aquele sem-vergonha?”. Foi a vez de Eloisa sentir algo diferente. “Quer dizer que Roberto, o seu Beto, tinha tirado uma casquinha com aquela biscate?”.

- Clara, eu não sei do Roberto. Acho que está viajando. Faz um bom tempo que não falo com ele.

Eloisa custou a admitir. Estava, porém, indignada e com ciúmes.

Semanas depois Roberto voltou. Foi à casa de Eloisa cumprimenta-la e a seus pais, desculpou-se por ter ido viajar sem se despedir. Estava alegre, bem disposto e se dizendo feliz. Conversaram um pouco, mas não puderam ou não quiseram retornar ao assunto.  Eloisa até tentou uma abordagem periférica a respeito, mas não rolou, não deu tempo.  E Roberto foi embora, deixando Eloisa com um pequeno nó na garganta.

Dias depois, Roberto estava no portão da escola, à espera. Eloisa riu, ficou muito feliz. Como era bom ver Roberto lhe esperando! O seu Beto!

- Oi meu Beto! - disse Eloisa com o seu melhor sorriso - Que bom te ver por aqui... Tinhas perdido o rumo?

Roberto riu também, abraçou e beijou Eloisa .

- Tudo bem, minha Elô?

Mal tinham se cumprimentado e apareceu o mote da visita: Clara, que beijou Roberto, deu o braço para ele e se foram a perder de vista. Roberto ainda piscou para Eloisa antes de ir, que se sentiu entrando chão adentro.

Ela tinha o passo firme. Sempre andava rápido, acostumada a fazer as compras com a mãe. Nesse dia, no entanto, experimentou o passo lento. Caminhou devagar, com os olhos passeando por onde andavam também seus pensamentos: no nada. Não sabe quanto tempo levou para chegar a casa, mas já anoitecia. Fez algumas tarefas, deu boa noite aos pais e recolheu-se ao quarto. Estava aturdida. Não sabia o que pensar. Que sentimento era aquele? Quase uma dor. Mas por quê?  Jamais tinha se sentido assim. Tivera dois namoradinhos, nada sério. Talvez um deles até tivesse futuro, mas Roberto o conhecia e não tinha uma boa opinião a respeito e ela acabou deixando para lá. Por que raios estava se sentindo assim? Por que essa sensação de dor e perda?

Eloisa precisava falar com Roberto. Precisava vê-lo e o mais rápido possível. Antes, no entanto, precisava retornar ao centro de si e isso levaria algum tempo. Não se lembrava de quando tinha sido a última vez que tinha perdido o foco, ou se até tinha, alguma vez se perdido tanto. O certo, e precisava começar a admitir por aí, é que passara a ver outro Roberto, ou o verdadeiro Roberto, tal igual acontecera com ele. “Isso, Eloisa! Admita que é isso. Tu achaste o teu homem, que nem escondido estava. Admita que estás com ciúmes e esse ciúme quer dizer muito mais,  mulher!”, pensava quase em voz alta.

- Que coisa difícil, meu Deus! Mas goste ele ou não, esteja ainda em tempo ou não, preciso dizer a ele.

Dois dias depois era sábado. Roberto costumava correr no parque à tarde e Eloisa foi até lá. Roberto corria e ao vê-la parou, pegou uma água e uma toalha e sentou-se ao lado dela. Estavam sérios e Eloisa depois de um breve tempo começou a falar:

- Roberto, és o meu Beto, assim como sou a tua Elô e acho que isso é para sempre, certo?. Mas dia desses também vi um pouco mais do que isso. Na verdade, naquele momento o que vi foi um homem que eu conhecia, mas que não dimensionava o que representava. Foi dia quando saíste com a Clara. A partir de então, passei a rever a nossa história, nossos momentos, desde a nossa origem. Sabes qual foi a conclusão que eu cheguei? Não sei o que vais pensar disso, mas cheguei a conclusão de que não quero passar mais um minuto da minha vida longe de ti.

- Observe que estou falando da mesma maneira e quase as mesmas coisas que me falaste, um tempo atrás. É para que percebas o quanto gravei o que foi dito.

 Roberto tentou falar, mas teve os lábios impedidos pelo dedo indicador de Eloisa..

- Por enquanto só me ouça, por favor. A essas alturas, não sei se já te curaste, ou mudou o sentimento que declaraste por mim. Também não sei em que estágio está a tua relação com a Clara. Importa, é lógico, mas importa mais que eu te diga que aquilo que sentias e já nem sei se sentes, eu retribuo com toda força do meu coração. Demorei muito, eu sei, estava cômodo para mim. Tu estavas sempre disponível, sempre do meu lado... A eminência de perder isso acabou com o meu sono. Por fim, quero te dizer uma coisa e, por favor, não me diga nada, só vim desabafar: Eu tenho muito amor por ti.  Amor de mulher para homem, simples e verdadeiramente é o que sinto.

- Bem, é isso. Volta para a tua corrida e eu vou para casa. Estarei lá, caso queiras conversar. Até mais

Eloisa levantou e saiu. Roberto não voltou a correr. Ficou no banco, sentado, suando, surpreso e sabe-se lá o que mais. Com uma leve e explicável sensação de alívio, foi embora para casa carregando uma certeza: à noite conversaria com Eloisa.

Era noitinha. Eloisa estava sentada na varanda de casa, de pijama, com os cabelos soltos e com o livro “não me incomodem” no colo quando Roberto chegou.

- Oi minha Elô.

- Oi, meu Beto.

Roberto ficou um tempinho de pé, na frente dela. Estavam ambos um pouco constrangidos. Então a pegou pela mão para que levantasse, olhos nos olhos, sem piscar e se abraçaram. Ficaram um bom tempo abraçados, se acariciando; se embalando  como se dançassem. Mudos. Separaram-se lentamente e voltaram a se olhar nos olhos, ou um pouco além deles. Assim trocaram o primeiro e demorado beijo, depois se sentaram lado a lado. Eloisa recostou a cabeça no ombro de Roberto e ouviu dele quase uma sentença:

- Eu quero casar contigo.

- Eu também quero.

E assim começaram a namorar. Comunicaram aos familiares, que vibraram com a notícia. Prometeram noivar tão logo Eloisa se formasse e Roberto fosse chamado para assumir sua função pública, e logo a seguir marcariam o casamento. Roberto e Eloisa casaram dois anos depois, ela com 19 ele com 23 anos. 

 

Filhos... Filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos...” V. de Moraes

Eloisa teve algumas dificuldades para engravidar. Passaram-se alguns anos, tratamentos e “simpatias”, até que conseguisse a correta fixação do embrião. Sofrera alguns abortos espontâneos, o que quase a levou a um processo depressivo, ainda não bem entendido à época.  A notícia dessa última gravidez colocou o casal em expectativa. Uma felicidade amordaçada, medrosa. Mesmo após as confirmações de que tudo se encaminhava satisfatoriamente, não conseguiam se libertar dos fracassos anteriores. Até o último momento temeram. E havia mais uma possibilidade: talvez não fosse um único filho.

 Assim, no dia de São Bartolomeu, nasceram os gêmeos. Foram retirados com todo o cuidado, pois estavam em sofrimento. O cordão umbilical se enrolara em seus pescoços. Felizmente, correu tudo bem. Mamãe e bebês restaram saudáveis de todos os procedimentos..

 Diogo e Diego, como foram batizados, tiveram uma infância normal. Pequenas moléstias de idade e muito trabalho para a mãe, que precisou abandonar a carreira do magistério para cuidar dos filhos.

 Soube-se muito tempo depois, já que a época não se falava a respeito, que ambos seriam hiperativos, cujos sintomas então, eram tratados com chinelo, toalha molhada, varinha de marmelo e outras interfaces facilitadoras de diálogo entre pais e filhos levados, lá  nos tempos rudes.

 Os gêmeos bem cedo começaram a colocar fiozinhos brancos naquela vasta cabeleira da mãe e arrancar chumaços da cabeça do pai. O casal discordava pontualmente da educação dos filhos. Eloisa era paciente, mas rígida, Roberto nem tanto as duas coisas, ou seja, endurecia e amolecia facilmente, os meninos sabiam disso e usavam com esperteza. Incontáveis foram as vezes em que pai e mãe foram dormir emburrados  em função das peripécias da dupla..

.Se a infância não foi fácil, a adolescência foi terrível. Há, não se sabe se estudos ou crendices, que se um dos gêmeos tem a personalidade má, o outro tem a boa. Devem ter se baseado em Abel e Caim os que afirmam isso. Esse não foi o caso de Diego e Diogo, gêmeos univitelinos, idênticos em tudo. Terrivelmente idênticos!

 Havia em Roberto a esperança de que o serviço militar, que era obrigatório, endireitasse aqueles gênios. Mas o quartel, sabe disso quem por lá passou, mal comparando, é, ou era, mais ou menos como se especula sobre as prisões. Endireita ou estraga de vez.  Não teve sorte aquele pai, que por muito pouco não seguiu a carreira de farda. Seus filhos nem chegaram a cumprir o período regular. Um foi excluído e o outro desertou.

 A família tinha uma vida confortável. Sem luxos, mas o suficiente para tudo o que estivesse a disposição da classe média. Roberto ascendera na carreira, tinha uma vida regrada. No entanto, constatou estar diabético e isso caiu pesadamente sobre seu estado moral, com isso somado a desilusão com os filhos entregou-se para a bebida. Mesmo sabendo dos riscos, o vicio era crescente, fato que o levou a ter crises frequentes e cada vez mais sérias. O casamento, que passara por um grande amor nos primeiros anos, foi-se desgastando por essas e outras miudezas domésticas. 

 Um dos momentos críticos da família acontece quando um dos gêmeos, Diego, teve uma namoradinha, que mantinha em segredo. Tinha vergonha dela por ser negra. Nem Diogo, sua companhia quase que permanente sabia. A relação durou algum tempo, até Diego ter noticias por ela de que estava grávida. Diego enlouqueceu. “Vai tirar, ah vai. Não quero de jeito nenhum”, “Imagina ser pai de um negro! Nem pensar!”, disse à namorada. E passo seguinte tratou de   conseguir drogas abortivas. Conseguiu uma que diziam “era batata”. Era só tomar. Como a namorada se negava, ele a fez engolir à força e o fez mais de uma  vez .

 A namorada não tinha certeza, ou manipulava a informação, e Diego não se interessava em saber em quantos meses estava a gestação. E mantinha forte vigilância para que o aborto se consumasse.

 Um dia a moça passou mal. Desfaleceu, sangrou e Diego foi buscar o irmão para que o ajudasse a achar uma saída. Ela precisava de atendimento médico e ambos decidiram interná-la no hospital público. Internar não, largaram a moça lá e foram embora. Passo seguinte foram ao pai pedir algum dinheiro para o viajar, dizendo que tentariam a sorte na capital. Ficariam um tempo por lá, mas no final do ano estariam em casa, como de costume.

 Eloisa intuía que havia algo errado. Tentou impedir Roberto de dar dinheiro aos filhos, mas não adiantou e eles partiram. Nessa noite Roberto bebeu até cair, teve uma crise glicêmica e foi hospitalizado. Ficou dois dias internado e saiu com uma noticia que pioraria ainda mais seu estado moral: necessariamente deveria amputar um pé.

 Os gêmeos ficaram na capital, como era esperado, até terminar o dinheiro e as coisas sérias que Diego aprontara tivessem se acalmado e seguissem seu rumo. Quando retornaram, Diego tentou saber, sem dar muito na vista, noticias da namorada. A coisa parecia , para ele, resolvida. Soube que ela sofrera uma intervenção de emergência e ambos, mãe e filho, haviam morrido durante os procedimentos.   

Diego não tinha vísceras. Ficou aliviado com a solução encontrada pelo destino e, enfim, a vida que retomasse seu rumo.  Mas em casa as coisas jamais voltariam a ser as mesmas. Eloisa, que intuíra algo grave antes da viagem dos gêmeos, chamou os filhos às falas. E ali já não estava mais a mãe paciente e amorosa de antes, e que talvez tivesse contribuído para que se tornassem o que se tornaram. A qualidade e a expectativa de vida de seu marido diminuíra bastante e algo haveria de ser feito para que um mínimo de normalidade retornasse àquela casa. E ela faria, ou tentaria de tudo para isso. Estava muito sofrida. O seu Beto morrendo aos poucos e aos pedaços e os frutos do amor de ambos, azedos, bichados, inúteis.

De tudo o que deveria saber, Eloisa soube apenas meias verdade. Diego teve uma namorada que ela não conhecia, que engravidou, tomou alguns remédios,  abortou e acabou morrendo durante o processo.

- Pode ser triste, mas essa é a verdade, mãe.

- E não deste a mínima atenção à moça e à família dela? Foi por isso que fugiste? Tu és um covarde! Infame! Senhor, que monstros eu criei? Que castigo é esse, Meu Deus?

Eloisa mandou os filhos saírem de perto e recolheu-se ao quarto para chorar as lágrimas mais amargas que já sentira. Roberto, que caminhava com extrema dificuldade chegou do trabalho e percebeu a gravidade da situação. Jamais tinha visto a sua Elô tão desesperada e triste. Sentou-se na cama, ao lado da mulher e esperou o melhor momento para começar a falar. Mas foi Eloisa que falou:

- Tu sabias que Diego teve uma namorada que engravidou, abortou e morreu?

Roberto não sabia. Perplexo pediu detalhes. Não havia detalhes. Essa era toda a história contada por Diego e Diogo.

- Onde estão esses trastes? Perguntou

- Saíram.

Eloisa dormiu profundamente, em função de um calmante que tomara. Acordou no meio da noite e viu Roberto sentado na varanda. Temeu que estivesse bebendo, mas ele não estava. Foi até ele, sentou-se e ali ficaram  o resto da noite, maior parte do tempo quietos, outra parte do tempo chorando. A vida, que começara tão boa para eles, estava sendo cruel demais. Tudo fugira do controle.

- Minha Elô querida. Estou morrendo. Eu sinto que estou morrendo e o que é estranho: sinto certo alívio por isso. Fomos tão felizes! Não sei onde erramos, se é que erramos. Devemos ter errado sim e muito, mas onde? Por que nossos filhos são o que são? Por que Deus decidiu me matar aos poucos e aos pedaços? Viver assim está sendo um tormento, minha Elô. Daqui a pouco nem a fortaleza que és será suficiente para sustentar o tamanho do peso que represento. Não quero viver assim.

- Roberto! Se te cuidares a vida pode ser longa e razoável. Podemos viver muito tempo e bem. Tempo suficiente, por exemplo, para descobrirmos porque merecemos essa cruz. Mas olha: essa cruz só é grande e pesada porque podemos carregá-la. Onde está o meu Beto?  Aquele companheiro que me viu crescer e que depois cresceu comigo? Por quem me descobri apaixonada quando vi que ia perder?  Nossos filhos hoje só são filhos do mundo. Infelizmente já não podemos mais fazer nada por eles. São donos dos seus destinos e nos resta rezar para que algo aconteça e que mude seus rumos. Não estão mais sobre as nossas asas. No entanto, assim como sou tua Elô e tu és o eu Beto, eles são nossos filhos, isso é para toda a vida, e esta é será sempre a casa deles. Força! Me ajuda a te ajudar.

Quando Diego e Diogo voltaram para casa já amanhecia e encontraram os pais ainda na varanda. Como sempre não estavam muito a fim de conversa, no entanto, Roberto fez com que ficassem e ouvissem.

- Por favor. Preciso falar sem ser interrompido. Não sei quanto tempo ainda vou viver. Morrer já me assustou, mas querem saber? Hoje vejo como um alívio não só para mim, como também para a Eloisa, essa guerreira que nos suporta. Algo deu errado na criação de vocês. Não agem como pessoas normais. Mas como bem disse a mãe de vocês, são nossos filhos, essa é sua casa e isso é para sempre. Agora quero pedir uma coisa: semana que vem é Natal, data que sempre respeitamos em família. A sala ainda não está arrumada e quero que ajudem a mãe a arrumá-la. Com nos velhos tempos. Digo isso, ou peço isso, porque provavelmente, no Natal do ano que vem já não esteja mais por aqui. Não estou fazendo questão nenhuma e peço à minha querida Elô que me perdoe por isso. Voltemos a ser então, ainda que só pela data, uma família, e que Deus tenha piedade dos erros que cometemos, em especial por esse que acabo de ficar sabendo, e que por sermos justos e tementes a Deus não deveríamos, mas vamos engolir calados. Repito: que Deus nos perdoe por isso.

Roberto terminou de falar, levantou-se com a ajuda de Eloisa e seguiu para o interior da casa. O sol já estava alto.

Às vésperas daquele Natal, todos, com exceção de Roberto, trabalharam duro para deixar a sala pronta. E trabalharam alegremente, como se nada de ruim tivesse acontecido; como se todos estivessem plenos de saúde e felicidades. Roberto apenas observava. Estava satisfeito. Feliz? Não. Isso nunca mais, mas ao ver Eloisa comandando as ações, da cozinha para sala e vice-versa, incansavelmente, voltou vinte e poucos anos atrás. Percebeu que as queixas de hoje talvez se justificassem. Ele já não entregava mais para a sua Elô o homem que prometera para além da eternidade. Ou melhor para além da eternidade talvez sim.

“Como ela é linda! As mudanças corporais da idade só potencializaram sua beleza. Como é forte e determinada a minha Elô. Oxalá não exista saudades para onde vou” .E prestava a atenção nos filhos. Pareciam crianças! Crianças mesmo, que foi o único estágio da vida em que pareceram pessoas normais, já que o caos instalou-se a partir da adolescência. Culpa, ah culpa! Minha máxima culpa...

Na noite de Natal, em função do problema de Roberto, só suco de frutas e água. O cardápio também tinha sido elaborado de forma que ficasse bem para todos e não necessitasse de fiscalizações.

Eloisa estava radiante. “Que noite é essa, meu Deus? Não quero dormir nunca mais”, resmungava. E assim trocaram presentes, abraços, beijos, promessas, e foram dormir leves como anjos sem culpa. Roberto avisou que ficaria um pouco mais. Iria para a varanda.

- Hoje quero ver o sol nascer de uma forma diferente.

Eloisa perguntou se ele queria companhia, mas Roberto lhe respondeu:

- Minha Elô! Minha fortaleza! Tu deves estar cansada. Feliz, mas cansada. Mereces o melhor dos sonos. Venha cá. Beije-me e vá dormir.

Assim fez. Eloisa retirou-se. Tomou uma ducha e desmaiou na cama.

Roberto ficou só. Tinha tido algumas arritmias durante o dia, mas não avisou ninguém. Durante a festa, sentiu várias vezes o coração pular fora pela boca, e por algumas vezes sua visão falhou. Não turva, como costumava acontecer, mas escura, tipo cegueira. Teve também seu corpo inteiro em estado de dormência. Estaria chegando a hora? Ele tinha uma única certeza: não viveria muito e a cada dia que passasse, ficaria mais pesado para Eloisa, a sua amada Elô.

“Então que seja enquanto estou quase feliz”. Tinha escondido uma garrafa de uísque tempos atrás e foi buscá-la. “Caso venham me buscar, que eu não sinta”.

Eloisa acordou tarde. O lado da cama de Roberto continuava intacto e ela teve um mau pressentimento. Correu para a varanda e o que viu foi a última imagem de Roberto com vida. Um restinho de vida. A seu lado, no chão, uma garrafa de uísque vazia. Gritou para os filhos. Chamaram a ambulância, levaram Roberto para o hospital, fizeram os primeiros procedimentos, mas foi inútil. Roberto se fora.

- Roberto... O meu Beto se foi e eu estou sem forças para aguentar até amanhã. Onde estão os meus filhos?


 

Uma perda nunca vem sozinha”  

 Eloisa imediatamente se deu conta do tamanho do peso que herdaria sozinha. Após a cerimônia e despedida de Roberto, sem perda de tempo e sem permitir que o luto jogasse um véu sobre a realidade, chamou seus dois filhos para conversar. Precisariam reorganizar a vida, agora a três, e eles, necessariamente precisariam contribuir, mais como homens solidários. Não contava com isso, e não precisaria, de auxílio financeiro, afinal, Roberto deixara uma pensão bem razoável, suficiente para que Eloisa, caso não extrapolasse, pudesse viver em paz.

 Os gêmeos viviam de trambiques e alguns pilas que o pai dava, sem o conhecimento de Eloisa, apesar da idade adulta. E eles sabiam que, apesar do carinho e dedicação da mãe, com ela a música tocava diferente.

 - Eu preciso de vocês, meus filhos. Não financeiramente. Não quero nada de vocês nesse sentido. Preciso de apoio, atenção e que me deem algumas alegrias. Trabalhando, constituindo família, essas coisas... E tanto quanto possível, não me deixem sozinha. Não nesses momentos iniciais em que a falta do meu Beto será terrível. A casa é nossa... É de vocês também e vocês podem fazer o que quiserem desde que a respeitem.

 - Mãe - falou Diogo - a casa é grande. Como disseste, também é nossa. Eu e Diego achamos que devemos vendê-la e repartir o dinheiro. Tu podes comprar uma menor, só para ti e nós vamos adiante. Temos coisas a fazer e precisamos de algum dinheiro. Que achas?

 Eloisa não falou nada. Apenas levantou-se e foi fazer coisas de casa. Por aqueles dias de dor já tinha o suficiente.  No entanto, jamais deixaria um assunto tão grave como aquele ficar pendente. Tão logo se recompôs chamou os gêmeos que continuavam sem fazer nada, trocando o dia pela noite. Fez um bom almoço, com pratos que eles gostavam e uma bela sobremesa. Depois de comerem foram para a varanda conversar.

- Vou perguntar uma coisa para vocês que, dependendo do que me responderem, se terão coragem de me responder com sinceridade, podemos dar um rumo diferente ao que está posto. Vocês seriam capazes de me matar para ficar com os bens que temos aqui?

Eloisa não economizava. Se fosse para jogar, jogaria duro e para ganhar. Roberto sempre lhe dizia que isso era uma característica única e especial como mulher. Os gêmeos mesmo conhecendo a mãe foram pegos de surpresa. Não deveria ter passado pela cabeça de ambos um exagero daqueles.

- Mãe, tu és louca? De onde tu tiraste uma barbaridade dessas?! Nos respeite!

- Filhos, perdão, mas estou respeitando a ideia que deixaram passar quando conversamos pela última vez, e mais: estou respeitando a história de vocês, onde só nós sabemos que há pelo menos duas mortes, e que me penitencio diariamente por saber disso e não ter feito nada por amor a vocês. O pai de vocês e eu, quando expiávamos as nossas culpas avaliando o tamanho das nossas cruzes, não pensem que isso não foi posto na balança.

Eloisa continuou falando:

- Eu já sofri muito por vocês; o pai igualmente. Se vou continuar sofrendo, depende de vocês. O que sei é que nunca, mas nunca mais mesmo poderão me arrancar uma lágrima de tristeza. Óbvio que vou continuar tendo o mesmo amor de mãe que conhecem. Apenas que ele não será mais incondicional. Agora é com vocês.

Foi a vez de Diego, falar:

- Mãe, eu não vou levar em consideração essa ofensa que nos fizeste. Vou entender que estás triste com a morte do pai e estamos conversados. Mas vamos ser práticos. A casa é grande, nós temos um negócio para fazer e vamos embora. Diogo e eu, portanto a maioria, estamos de acordo com a venda. Não se fala mais nisso. Amanhã mesmo vou colocar nas imobiliárias.

Eloisa não se abalou. Aquela conversa estava sendo também uma pequena morte para ela.

- Meus filhos, prestem a atenção: façam o que quiserem. Já são homens feitos, e mesmo quando eram pouco mais que meninos não tínhamos mais o controle sobre vocês. Seu pai, porém, era um homem inteligente e conhecedor dos filhos que tinha. Eu não vou falar nada, mas procurem se informar sobre uma coisa chamada usufruto. Nossa conversa termina aqui. Eu tenho algum dinheiro guardado. Não em casa, naturalmente, que posso dar a vocês. Acho que não chega para o tal negócio que querem fazer, espero que seja algo de bom, mas poderá ajuda-los. A casa não será vendida, e estará sempre de portas abertas para recebê-los. Caso queiram de fato ir embora, nada posso fazer para segurá-los. Não posso, não devo e não quero fazer isso.

- E sobre a “ofensa”, caso tenham mesmo se sentido ofendidos eu fico feliz e peço perdão. Até porque, não seria a minha morte que daria a vocês a liberdade para venderem a casa, segundo o documento deixado pelo Roberto.

- Então tá, mãe. Se pudermos contar com o dinheiro amanhã, essa semana mesmo vamos seguir o nosso caminho. Mas tenha certeza de que, apesar de sermos como somos, tu és a única referência de amor que conhecemos. Jamais levantaríamos um dedo para feri-la, e mataríamos quem o fizesse. Vida que segue.

E assim foi feito. Eloisa deu aos filhos quase tudo de suas economias e eles partiram deixando-a sozinha, acompanhada por todos os objetos da casa que representavam lembranças de uma família. Nesse dia, Eloisa foi à sala onde montara a paisagem de Natal, limpou e deixou exatamente como estava. E depois, a cada Natal, seguia o mesmo ritual, num primeiro momento sozinha, tempos depois junto com seu companheiro Hamlet, o gato. Vez por outra recebia notícia dos filhos. Mandavam bilhetes, recados por conhecidos, sem deixarem claro, no entanto, como andava a vida deles. A mesma incógnita de sempre, mas ela, como se prometera, já não sofria por isso. Alguns anos depois mais um baque. Era uma tragédia quase anunciada. Seus filhos tinham tido um confronto com a polícia e um deles, Diogo, morrera. O outro fugira. Segundo informações, eles eram traficantes. Muito do sofrimento de mãe que pudesse estar reservado para uma eventualidade improvável dessas, Eloisa gastara ao longo da vida. Estava sofrendo, claro, mas a alma tinha calos e muitos deles produzidos por um desses filhos que agora descansava. Descansava de si e do caminho ruim que escolhera. Coube à mãe a tarefa mórbida de reconhecer o próprio filho morto de uma forma tão bestial, e fazer os procedimentos de praxe. Diogo deixou algumas fotos de quando era criança. Esperto, inquieto, indomável...  “Mas meu Deus, como era lindo!”. Enfim, Eloisa abraçou a foto em que estavam todos em família, rezou para que Diego estivesse bem e que levasse aquele acontecimento como lição, a seguir deitou-se e chorou como chora uma mãe ao perder um filho, até desfalecer.

Eloisa ia regularmente ao cemitério visitar o seu Beto e agora o seu filho. Com o passar do tempo, ela foi se dando conta que a falta que sentia do marido, não era do Roberto do terço final da vida deles, mas dos dois terços em que cresceram juntos, se apaixonaram, casaram e tiveram uma vida familiar linda, enquanto os filhos eram crianças. O saldo final tinha sido trágico. “Pobre Roberto! Saiba que apesar de tudo vou te amar para sempre. Ninguém teve ou terá a vida que tivemos” 

Com o passar dos anos o luto foi arrefecendo e a vida lhe mostrava portas e janelas abertas. “Vamos falar a verdade, dona Eloisa, aquele Ramon que encontraste lá do cemitério mexeu contigo, admita!” disse para si mesmo, em alto e bom som, para o descaso de Hamlet. E como mulher é um ser que sabe tudo a respeito do que se passa na periferia, ela tinha certeza de que tinha mexido com ele também. Portanto, era bom facilitar as coisas. Caso ele não se desse conta, ela daria um jeito para que ele se desse. Não tinha mais idade de arriscar como arriscou com Roberto, lá na juventude. Não mesmo.  E assim começaram e levaram adiante a história da nova família, com mais um componente. Um não dois. Tinha Nonato e Meufilho.

Quando a gente é feliz o tempo passa rápido demais, parece louco que está para desmanchar aquela alegria. A tranquilidade de Ramon e Eloisa parecia inabalável. Nonato cresceu, ficou adulto, se formou e antes mesmo de se formar já trabalhava na área que escolhera.  Só dava alegrias.


Diamantes, são sempre diamantes, ainda que escondidos na pedra tosca. Indescritível é a luz de um diamante negro”.


As primeiras mulheres que chegavam para o trabalho notaram um pequeno pacote feito de jornais, à  porta do estabelecimento e um cachorro de rua cheirando e passando a pata, tentando abrir. Elas se aproximaram curiosas e, certamente, dispostas a jogar no lixo.

Ao pegarem o pacote, notaram o conteúdo trágico: era um recém-nascido, pelo visto prematuro, sem forças até para chorar. Estava muito fraco e talvez não resistisse. Levaram a criança à enfermaria da creche e imediatamente a transferiram para o hospital.

A situação era desesperadora. As esperanças eram mínimas, a criança receberia o que fosse possível na tentativa de salvá-la. Mas caso se salvasse, talvez restassem sequelas. Foram semanas de muita luta, até os primeiros sinais vitais chegarem perto da normalidade. A salvação daquela criança, pelas condições em que chegara e pelos recursos disponíveis fora considerado por todos um milagre. O menino, meses depois, voltou para a creche e entrou para a lista de adoções. Dele nada se sabia. Não tinha origem, mas precisava ao menos de um nome.

Alguém sugeriu que fosse chamado de Nonato, porque sua história poderia ser parecida com a do santo São Raimundo Nonato, e que segundo tinha lido na Barsa, Nonato significa “não nascido”. Feito. Nonato.

Aos poucos, à medida em que ganhava peso e tamanho, tornou- se bem evidente seu problema físico. A deficiência não tinha origem nas condições em fora encontrado. Era uma deformidade anterior, ainda do útero, os médicos não tinham condições de informar corretamente a origem. Sabe-se lá em que precárias condições havia sido gestado, que tipo de comportamento teria a mãe. 

Nonato demonstrava ser uma criança de comportamento especial e foi se tornando muito querido das pessoas da instituição, em todos os níveis. À medida que crescia, demonstrava inteligência, vontade de aprender coisas novas. E ao longo do tempo, foi vendo novos amiguinhos chegando e indo da creche sendo adotados. Ele... Nada. No entanto, a resignação, pela forma como fora resgatado da morte, o mantinha agradecido naquele lugar. Sem revolta, sem inveja, sem sentimento de menos valia. Mas isso eram apenas sensações. Por certo que esses seriam nomes que conheceria depois quando aprendesse seus significados.  Ele ainda não podia definir tudo isso. Era muito criança.

Quando começaram os estudos, tudo o que se desconfiava dele se concretizava.  Era mentalmente diferenciado. Finalmente, após nove anos veio a adoção. Tudo o que envolveu esse processo desde o inicio, com uma simples cartinha jogada a esmo, já mereceria um grande relato. Um casal de meia idade, viúvos, ambos com filhos adultos e andando pelo mundo, que não tinham sequer uma relação estável, resolveram sair de seus confortos, se unirem em uma família, a fim de abrigarem aquele menino, totalmente fora dos padrões buscados para adoção. Fossem fazer uma escala de preferências, Nonato certamente estaria entre os últimos e sua longa permanência na instituição demonstrava isso.

Ainda mais emocionante que isso era ver a felicidade dessa nova família, toda vez que ia visitar a creche. Era como se eles mesmos tivessem parido um  príncipe; Um príncipe etíope.   

E Nonato nunca decepcionava. Além da personalidade afetuosa, cumpria maravilhosamente todos os estágios curriculares na escola. Tinha como projeto de vida, logo que pode decidir-se, a Assistência Social e foi diplomar-se na área. Pai e mãe gostariam que fosse outra coisa, que remunerasse melhor etc. Mas já não era mais hora de interferir.  Logo a seguir foi cursar Pedagogia com licenciatura, todos eles concluídos com louvor. Nonato, antes dos vinte e cinco anos já tinha tudo isso, trabalhava para o município e fazia suas horas extras visitando famílias e comunidades.

A chegada do Ramon Filho, seu irmão emprestado, não cumpriu nenhum estágio probatório de afinidade. Foi imediata. Eram bem diferentes, formados em culturas diferentes. Ramon Filho era um prático, não muito de revelar suas paixões. Era duro, de palavras certeiras, mas justo, e nesses aspectos, muito parecido com o pai. E a esposa? Que mulher maravilhosa! Parecia o oposto de Ramon, mas ao mesmo tempo perfeitamente encaixados. Seria, portanto, muito fácil relacionar-se com eles.  Tina, a esposa, tinha como meta a medicina social, portanto seria de grande valia para suas ações e as necessidades da cidade..

Apesar de ser um homem conformado. Mais que isso, realizado com a vida que tinha ganhado e o que conquistara a seguir. Nonato tinha uma curiosidade. Curiosidade que já tinha sido uma angústia que o atormentara quando menino. Afinal, quem era e de onde viera? Quem seriam seus pais? E por que motivo fora rejeitado de uma forma tão covarde? Conseguira conviver  bem com esses sentimentos , em função do que veio depois, com a adoção e todo o carinho que recebera dos novos pais. Mas isso aplacava a angustia, a curiosidade jamais perdera.

Com as facilidade de acesso que tinha nas instituições e órgãos públicos, anos atrás começou a refazer sua história, investigando, entrevistando... Datas, horários, pessoas envolvidas. Descobriu que fora deixado à porta da creche em uma quarta-feira e que, pelas informações colhidas tinha menos de um dia de vida. Logo nascera na terça. Quem dera a luz naquela terça-feira de vinte e três anos atrás? Os registros eram precários, mas tinha um detalhe especial e que tornaria as coisas mais fáceis: a mãe tinha morrido. Quem morreu?  E qual a causa-mortis?

Alice era uma jovem negra e pobre. Fora deixada em semiconsciência à porta do hospital. Estava sozinha com um papel onde estava escrito um endereço e o nome de uma pessoa: Dolores. O quadro era de aborto. Consta que foram feitos os procedimentos e nem mãe nem o filho haviam sobrevivido. Os corpos teriam sido entregues a uma senhora, de nome Dolores, que seria a mãe da morta. Era uma terça-feira. A data e o dia da semana eram pertinentes. Mas a criança havia morrido também. Como tinha endereço, nome e sobrenome de uma das pessoas, não custava especular. Os dados pareciam muito confusos.

Nonato peregrinou algum tempo até que bateu à porta de um casebre e foi atendido por D. Dolores. Era um assunto de difícil introdução e não era coisa de se conversar no portão. Então resolveu tergiversar. Apresentou-se como Assistente Social e que tinha algumas perguntas a fazer, a fim de compor um cadastro de famílias para futuro benefício e tal e tal. D. Dolores aceitou responder. Chamou o marido para acompanhar, mas esse só deu uma espiada e saiu fora.

- A família é composta só de marido e mulher?

- Sim

- Não têm filhos?

- ....

- Não têm filhos, D. Dolores?

- Já tivemos, mas morreu.

- Homem ou mulher?

- Mulher.

- Sabe informar a causa- mortis? Ou de que morreu?

- ...

- Pode responder, D. Dolores?

- Moço, por hoje chega. Não quero responder mais nada. Esse assunto é doloroso para nós.

Nonato conhecia o medo das pessoas, estava acostumado com isso, portanto, não se abalou. Disse:

- Ok D. Dolores. Posso mudar o assunto e lhe perguntar se faz exames regulares. Sangue, urina, exames de senhora... Essas coisas. Pode responder?

- Vou uma vez por mês no posto de saúde. Pressão alta.

- Certo. Como a senhora pode ver, eu também dependo muito dos médicos.

- E tu? O que aconteceu contigo, “esse menino”?

- Nasci assim. Os médicos desconfiam que seja efeito de algum abortivo da época.

- Que horror! Tem que ter coragem e nenhum respeito a Deus.

Nonato tinha engrenado o assunto que queria, mas preferiu ganhar confiança. Não aproveitou a brecha naquele momento, conscientemente.

- Muito bem, D. Dolores. Vou deixar com a senhora o meu cartão. Nosso cadastro é um pouco mais extenso, mas por hoje quero agradecer pelo seu tempo e pela sua boa vontade. Caso não se incomode, e eu esteja pela região, gostaria de retomar para completar os dados. Ou caso a senhora tenha interesse de me prestar essas ou outras informações, por favor, não se constranja. Percebi que há um incômodo em relação a perda de sua filha e não quero abusar, mas posso, pelas informações internas que disponho, ajudá-la no que for preciso. Até logo, fique bem e conte comigo, caso precise.

Nonato foi embora com um sentimento: tinha algo de grave naqueles vacilos. Algo que sobrepunha a dor de uma mãe que perder uma filha e seu neto.  Agora era esperar por uma iniciativa dela em procurá-lo, ou ele criar mais alguma “coincidência” para aparecer.

Passaram-se os dias e nada, mas Nonato tinha tido o cuidado de saber o nome de alguns vizinhos, a fim de que em outra oportunidade pudesse voltar à região e dar continuidade às suas pesquisas. Elas, as pesquisas eram reais, faziam parte do trabalho junto a secretaria  que Nonato estava vinculado, mas não tinha contingente suficiente para cobrir todas as necessidades. E Nonato fazia isso por conta. Em seus dias de folga, portanto, era plus. Semanas depois voltou ao bairro e foi fazer a mesma entrevista com uma vizinha. Escolheu no escuro, aleatoriamente.

 - Boa tarde, D. Teresa. ...

 E levou adiante a conversa, tal igual tinha levado com D. Dolores. Em determinado momento, Nonato perguntou as quantos anos D. Teresa e família moravam no bairro.

 - Toda a vida, respondeu ela.

 - A senhora se lembra de algum caso de aborto onde a mãe também tenha morrido, aqui na vizinhança?

 D. Teresa pensou um pouco.

 - Mas faz muito tempo isso. A filha da Dolores, a Alice, pelo que fiquei sabendo fez aborto e morreu de parto. O nenê morreu também, mas isso já não tenho certeza. Andaram falando algumas coisas a respeito.

 - A senhora poderia me detalhar mais alguma coisa?

 - Não senhor. Isso o senhor deve perguntar para ela. 

 - Bem, agradeço suas informações. A Secretaria de Ação Social está à sua disposição. Procure por mim, caso precise.

 Um dia Nonato despachava alguns papeis quando bateram à sua porta.

 - Entra!

 Era D. Dolores.

 - Moço, não sei ao certo porque vim. Mas desde que o senhor esteve lá em casa fiquei com a sensação de que queria saber mesmo era a respeito a minha filha.  E sei que o senhor fez perguntas para a Teresa, minha vizinha. E eu quero saber por que.

 -É verdade. Isso é parte do meu trabalho, mas nesse caso especificamente é o seguinte D. Dolores, e vou ser bem direto, porque o quanto antes eu resolver isso melhor. Veja: não sou da polícia, não tenho a intenção de culpar ninguém sobre um fato qualquer. Acontece que me interessei muito pela história da sua filha. Eu fui criado nessa mesma creche, fui abandonado lá quando nasci e há muito busco informações que possam de me ajudar a descobrir a minha origem. As datas, a da morte de sua filha e o meu nascimento são próximas. A senhora entende isso? Gostaria que me ajudasse, caso fosse possível.   

- O que o senhor quer saber

 - Tudo. Como era Alice, quem era o namorado, e se a criança sobreviveu, por que foi deixada naquelas condições... Enfim...

 - É o seguinte, moço, é muito difícil falar sobre isso... Vou lhe falar o que sei. Minha Alice era meio cabeça fraca, muito namoradeira. Uma vez namorou o filhote do diabo. Sei disso porque ele judiava dela e era quadrilheiro. Não foi uma nem duas vezes em que pedimos; imploramos para que ela deixasse de encontrar aquele sujeito, mas não nos deu ouvidos. Meu marido ameaçava de bater nela e uma vez disse: se aparecer prenha mato os três, mãe, filho e o sem-vergonha! .

 - A gente não sabia da gravidez. Um dia ela saiu e não voltou mais. Mas tenho conhecidos no hospital, já trabalhei lá, e no dia da internação me avisaram que ela tinha baixado em estado grave. Tinha tomado algumas porcarias, acho que para abortar, mas a coisa complicou, porque a gravidez já estava adiantada. Quando tiraram a criança, prematura e mal formada me desesperei. Mas eu era mãe dela e estava lá, alguma providência tinha que tomar. Se fiz certo ou fiz errado, Deus é que vai julgar. Eu sabia mais ou menos o horário em que chegavam as pessoas da creche, enrolei a criança em um avental e alguns jornais e deixei na porta. Fiquei esperando e espantando os cachorros de rua para que não pegassem. Dez minutos depois, no máximo, calculo eu, chegaram as mulheres e depois daí tratei de esquecer o assunto e me preparar para contar uma grande história para o meu marido. Se por uma luz divina o senhor for  mesmo aquela pobre criança, filho dela e meu neto, sei que não é fácil, mas  imploro que me perdoe

 - É isso, moço. O nome do diabo que emprenhou minha filha e abandonou ela eu não sei. A gente só via ele de longe.

 - D. Dolores, não vou julgar a senhora. Minha vida, apesar das dificuldades que tenho para me movimentar é muito boa. Tive uma infância meio triste até os dez anos, apesar de bem cuidado, mas a partir daí, só felicidades. Isso é tão verdadeiro que em meu coração, nem hoje nem nunca, dou lugar para mágoas, revoltas e outros sentimentos ruins . Vivo bem e sou feliz. Caso eu venha a descobrir que sou o filho de Alice, não vamos recompor nossa vida como vó e neto, como se de repente nos descobríssemos em um jardim de fantasias. A senhora só saberá se continuar me visitando, mas nesse caso, temos o mesmo sangue e isso é inquestionável. E, independente disso, sempre estarei aqui para ajudá-la.

 Nonato levantou-se da cadeira, puxou D. Dolores para si e a abraçou carinhosamente. 

 - Obrigado por ter vindo e ter me contado tudo isso. Imagino o quanto deve ter sido difícil para a senhora.

 - Que Deus lhe abençoe. Se for o meu neto, vou achar que Deus me perdoou e mando rezar uma missa. Sempre rezo pedindo perdão pelo que fiz. Agora poderei agradecer.  

 A ponta principal da corda, a que realmente interessava a Nonato estava quase a descoberto. Sua mãe biológica deveria ser mesmo a pobre Alice, que deve ter morrido por causa do namorado diabo, e ele desconfiava que já sabia quem o era.   

 

“... Prantos convulsos. Meu Deus, salvai-o! Filhos são o demo. Melhor não tê-los... V. de Moraes 

Muito anos depois Eloisa teve noticias de Diego. E de uma forma quase tão ruim quanto a que tivera de Diogo, anos atrás. Diego era fugitivo da polícia, isso ela já sabia, mas era também buscado por gangues rivais e precisava de abrigo. Queria sair de circulação por um tempo e queria ficar em casa.

 Como negar abrigo a um filho? Mas e o tamanho do risco que a família teria abrigando-o? Eloisa falou com Ramon que rechaçou de pronto a ideia. “Não mesmo! Não vamos deixar de ajuda-lo, mas conosco ele não pode ficar. A casa vai virar alvo”

 -Eu proponho conversar com ele e sugerir que se entregue à policia. Na rua, ou aqui ele vai morrer e bom que não leve todos nós juntos. Lembra que o delegado foi meu colega e é muito meu amigo. Eloisa aceitou a sugestão de colocar o filho em contato com Ramon e marcou o encontro. Não em casa, mas em um lugar  seguro, onde pudessem conversar sem riscos.

Diego chegou com medo. Estava velho, magro, doente, assustado. Ao vê-los foi logo perguntando qual era a idéia que tinham para ajudá-lo. E Ramon começou a falar da forma reta, sem rodeios e convincente como de praxe.

- Diego, pelo que vejo tu estás precisando de tratamento. Eu sou amigo pessoal do delegado,  e a única saída que vejo para que ninguém morra ou se machuque, além do que já aconteceu é tu te entregares à polícia.

- NEM PENSAR!!

Ramon continuou sem dar bola para o grito:

- Posso intermediar isso e fazer as recomendações para que sejas tratado humanamente, tanto na enfermaria, como no presídio. Vai lá cumprir a tua pena. Ainda dá tempo para que tenhas uma velhice mais saudável.

- Não vou mesmo! Isso está fora de cogitação. Quero me esconder até a poeira baixar. Se não podem fazer isso por mim vão se foder!

- Bem, lá para casa não será possível. Somos três pessoas que vivem em paz, harmonia e sem dívidas com nada e ninguém. Estou te dando a chance de melhor tuas penas. Pensa bem.

Eloisa que estava quieta  se manifestou. Seu filho naquele estado! Parecia um bicho encurralado, o que poderia fazer para ajudá-lo. Sabia que Ramon estava certo e teria de apoiá-lo.

- Filho, ouça o Ramon. Ouça alguém ao menos uma vez na vida. Nem vou dizer que é para o teu bem. Vou te dizer que é para a tua salvação. Olha a tua idade... Quanto tempo achas que vais viver ficando por aí à toa?  Saiba que mesmo preso, enquanto eu puder, tratarei de cuidar de ti. Estamos todos velhos, filho, inclusive tu.

- Diego, me diga, estás doente do quê?

- Tenho úlcera, diabetes e outras coisas.

- Queres ir ao hospital?  Eu te levo. Acho que deves ir. Essas coisas doem demais e deves estar sofrendo muito.

- Mas se eu for, tu vais me entregar?

- Eu não. Tu vais te entregar. Chega de sofrer. Vais ficar um tempo hospitalizado. Vai ser esse tempo que terás para refletir. Mas é bom pensar que a prisão, pela tua idade e tempo que deverás ter de condenação, será tua última residência, porém segura.

Diego inesperadamente começou a chorar e Eloisa desmanchou-se. Naquele momento percebeu quão grave era a situação do filho.  Abraçou-o e choraram ambos compulsivamente. Ela pedia pelo amor de Deus que ele se tratasse. E ambos sabiam o quanto as palavras de Ramon eram verdadeiras. Vacilante, momentos longos depois, parecendo sofrer com muita dor, Diego aceitou. Ramon então colocou Diego no banco de trás do carro, Eloisa sentou-se ao seu lado e se foram abraçados durante todo o percurso. Em frente a casa do delegado Ramon parou, olhou para Diego e disse com firmeza.

- Vou falar com o meu amigo e fazer alguns pedidos em teu nome. Tenha certeza de que o que estiver ao alcance dele ele vai fazer. Antes disso eu quero ouvir da tua boca que concordas em te entregar.

- Sim. Pode chamar o homem. 

Ramon queria deixar tudo bem claro e limpo para que não houvesse barganhas depois. Tinha certeza de que a dor que Diego estava sentindo ainda era o melhor argumento. Uma vez tendo concordado, Ramon desceu e foi bater à porta do seu amigo delegado.

- Boa noite, meu amigo, podemos conversar? O delegado olhou o carro, viu duas pessoas lá dentro, mas concordou em conversar, convidando Ramon para entrar.

- Está comigo o filho de Eloisa, Diego, que é procurado pela polícia, irmão daquele outro que foi morto anos atrás, lembra?

- Claro que lembro. É ele que está no carro?

- Sim. Está no carro com a mãe e quer se entregar. Mas veja, eu o convenci para que fizesse isso, uma vez que está muito doente e precisa de tratamento. Não quero privilégios para ele, não é por isso que vim aqui, mas quero a tua consideração para que se trate adequadamente e que nos permitas acompanhar o tratamento, cure a doença, caso haja cura, que tenha o julgamento justo e que pague o que tiver que pagar.

- É um pedido humano, mas  difícil, meu amigo. Esse rapaz feriu gravemente um policial quando o seu irmão foi morto e a tropa, sabes como é, não só não esquece como não perdoa. Mas vamos lá. Te prometo que vou cuidar pessoalmente desse caso e indicar gente da minha confiança para guardá-lo. Entretanto, saiba que não terá tratamento longe dos padrões. Farei o possível.

- Espera que vou me aprontar para irmos juntos.

Ramon e o delegado saíram da casa. O delegado foi até o carro, olhou cumprimentou Eloisa e Diego e disse:

- Vamos lá, rapaz, que bom que criou juízo. Vamos daqui direto para o hospital. 

O delegado já havia acionado alguns policiais, que já os aguardavam na porta do hospital quando chegaram. E foram meticulosamente recomendados quanto aos cuidados que deveriam ter, a começar pelo sigilo daquela prisão. O delegado alegou aos policias que primeiro o quadro de saúde do preso deveria ser avaliado, fosse feito o tratamento necessário para que pudesse ser recolhido e que o mantivessem plenamente informado sobre o andamento. Eram dois policiais e eles se revezariam, até segunda ordem. Diego foi para a enfermaria algemado à cama, como era a praxe. Eloisa e Ramon precisavam contar a Nonato. Ele sabia que os gêmeos não eram boa gente, sendo que um tinha sido morto pela polícia e outro era traficante. Não haveria de ser problema. Assim foi feito e conforme o previsto ficou tudo bem. Mas Nonato perguntou se eles gostariam que ele visitasse Diego.

 - Mais tarde. Deixa ele se recuperar um pouco.

O quadro clínico de Diego era ruim. A úlcera avançara a níveis quase irreversíveis. Houve muita perda de sangue e mais, aquilo que sempre fora o orgulho dos gêmeos, RH O negativo, agora complicava, uma vez que só recebe de igual. E os estoques estavam baixos e desse, em especial quase zerado. Foram feitos os pedidos de praxe. Nonato tinha RH igual, mas uma pessoa só não seria suficiente. Eloisa se lembrou da falta que estavam fazendo nessa hora Roberto e Diogo.  Nonato foi lá fazer a sua doação. Passou pela enfermaria e ficou observando Diego, algemado, todo entubado. Parecia sereno. Voltaria depois para vê-lo assim que melhorasse. Usaria de sua função e relacionamentos para acompanha-lo desde o hospital e depois em seu novo destino. Faria isso muito em especial para agradar a mãe. Tinha certeza de que ela ficaria feliz com a sua proximidade. 

Diego conseguiu passar pelo pior. Sua saúde, porém, para sempre exigiria cuidados que, somados aos pedidos de vigilância de Ramon ao delegado, tornariam aquele um presidiário de certa forma especial.

O julgamento dele até poderia ser de rito sumário que não haveria questionamentos. Havia materialidade suficiente de crimes, provas e testemunhal convincentes. Foi condenado a uma longa pena em regime fechado. O fato é que todos já esperavam e Eloisa, seu único afeto, estava conformada. Trataria de acompanhá-lo em visitas regulares, saber dele através de Nonato, que dedicaria um pouco mais de tempo de seu trabalho social aos apenados e a vida que seguisse seu curso. O cantinho de Diego no coração dela estava como quase toda a vida estivera: machucado e cheio de calosidades, mas estava lá.

Tempos após a prisão definitiva de Diego, Nonato foi visita-lo. Estava bem, muito magro, mas já com um aspecto saudável.

- Acho que tu já sabes quem eu sou. Nonato, filho adotivo da Eloisa e do Ramon. Só seremos mais ou menos irmãos caso tu queiras. Também caso queiras, podemos ser amigos ou apenas um servidor público da área social atendendo a um apenado. Mas não precisas dizer nada, nem escolher a categoria de relação que iremos ter. O tempo se encarregará disso, ok?

- Ok. Então me diz por que vieste me ver. Se for pela mãe tem um sentido, se foi pelo trabalho tem outro. 

- Boa. Claro que em primeiro lugar foi pela mãe. Entre tantas coisas boas que me ensinaram, uma delas foi jamais esconder a verdade, fosse qual fosse. E isso é a melhor forma de ter bom sono, mas é óbvio, desde que a gente tenha um caminho reto. Ou não tenha consciência. Bem... Como estás? Como está o tratamento aqui dentro? Estás fazendo o tratamento corretamente?

- Estou te achando meio “metido”, mas vá lá. Está tudo bem. Quanto aos remédios, se deixassem por mim eu só me lembraria na dor, mas o pessoal me dá de tempos em tempos. Acho que nos horários marcados. Diz para o Ramon que o amigo dele, o delegado, anda sempre por aqui, rondando. Nem é lugar para ele. Acho que está esperando que eu me recupere bem para tomar “algumas providências”. Aqui não tenho como escapar.

- Diego, será que ele não anda por aqui para cuidar de ti, a pedido do Ramon?

- Duvido.

- Eu, se fosse tu, não duvidaria. Mas olha, percebo que temos algo mais em comum: somos metidos. Bom isso. Já temos os pais, o sangue e agora descobrimos que somos “metidos”.

- Como assim, o sangue?

- Ora, precisaste de sangue e entre alguns doadores, como o meu é O negativo igual ao teu, também doei.

- Que coisa! Misturaram vinho tinto na cerveja... E o incrível é que deu certo.

Ambos riram.

- Acho que não gostas de negrão. Mas sabe, isso é algo que não dou a mínima. Nunca dei. Nem por ser negrão, nem aleijado.  

- Desculpa, não é que não goste. É que tem diferenças. É óbvio que tem diferenças.

Nonato riu de novo, embora não fosse piada, e deu um beliscão de leve em Diego.

- Que bom que estás de bom humor. Mas não me vou aproveitar para te responder que uma das diferenças está aqui, como estamos sentados. Tu lá, eu cá, eu podendo ir embora e tu não. Não me incomodo mesmo com isso. Só não deixo nada sem respostas. Bem, acabou o meu tempo. Vou levar notícias tuas para a mãe. Tenho certeza de que ela vai gostar do que vou contar. Queres algum recado especial?

- Não. Só diz que está tudo bem.

Nonato saiu incomodado com a visita. Que criatura era aquela, criada pela melhor pessoa que conhecera?  Passou na casa dos pais filar um cafezinho e contar as novidades.

- Mãe querida! Que homem é aquele? - Disse rindo - É uma figura. Interessa que está bem, com bom aspecto e com um humor ácido, quase trágico. Deixou claro que não gosta de negrão, e debochou ao saber que misturaram cerveja com vinho tinto e deram para ele.

- Como assim? Deram bebida para ele?

- Contei para ele que tínhamos o mesmo tipo de sangue e que participei da coleta de doação de sangue para ele.

Todos riram muito.

- Ele é assim mesmo. Quando abre a boca, se não é para xingar, é para debochar. Não vai mudar nunca. Uma coisa, no entanto, me pareceu boa: ele se abriu contigo. Não é comum para um primeiro contato. A menos que nisso tenha mudado.

- Sim. Abriu as falas me chamando de metido. Mas ele viu que, se quiser debochar até pode, mas que vai ter troco, ah vai. E pai... Diego me disse que o delegado passa seguido por lá. Está desconfiado que ele aguardo suas melhoras para lhe aplicar alguns corretivos. Não acho ruim que continue pensando assim. Dessa forma se cuida.

- Isso, meu filho, deixa que pense.

Toda vez que Ramon chamava Nonato de meu filho ele e Eloisa diziam que Ramon estava com saudades do velho vira-latas que há muito morrera. Seu companheiro de velhice, Hamlet, o gato, também se fora, e eles optaram por não ter mais animais.

- Mas me diz uma coisa, mãe: Diogo também era racista?

- Eles eram iguais, meu filho. Gêmeos idênticos em absolutamente tudo. A única diferença é que um está morto e o outro preso. Que tristeza!

O rumo da conversa já não se encaminhava bem, quando Nonato levantou e convidou Eloisa para dançar. Tocava uma música no rádio. Ramon interveio.

- Vai procurar uma mulher para ti. Essa já tem do...

-Tem o quê? Interrompeu Eloisa

- Do...ente para cuidar.

Risos saudáveis e necessários.

- Amo vocês, mas tenho que trabalhar. Passo à noite para filar qualquer coisa. Se não tiver, roubo um beijo.

Nonato voltou, tempos depois, a visitar Diego

- Opa! Vejo que está tudo bem contigo. A mãe vai gostar de saber. A última vez que ela esteve aqui saiu preocupada.

- Bobagem dela. Tive uma indisposição. Normal para o monte de doenças que tenho. Está tudo sob controle. E tu, negrão, como estás?

- Estou bem. Mas acho que vou usar uma bengala.

- Ah, claro. Esse andarzinho de “deixa-que-chuto” já deve estar fazendo estragos.

- É por aí, mas a bengala vai me ajudar para outra coisa. Tem muito imbecil por aí merecendo um laço.

Ambos riram.

- Vou ter que me cuidar contigo. Acho que pelas dificuldades com as pernas desenvolveste muito os braços. Tem força por aí e eu posso ser bandido, mas bobo nem tanto.

Continuavam rindo

- Mas Diego, me diz uma coisa: tu és racista convicto mesmo ou estás na onda cultural em que fomos criados?

- Não sei bem. Tenho alguns amigos negros. Nunca fiz diferença, mas é uma coisa estranha... Talvez estética, sei lá. Ou cultural, como falaste.

- Vai dizer que uma negrinha não tem o seu valor?

- Negrão, não te passa! Não esquece que eu tenho idade para ser teu pai.

Nonato riu e desculpou-se.

- Ok, ok... Acabamos de descobrir um rastro ético nessa carcaça inviolável. Peço que me perdoe. De fato me passei. Mas sabe, em nenhum momento levei em consideração nossa diferença de idade. Estou gostando muito de conversar contigo. Tem um ser humano aí ainda não explorado, desconfio disso.

- Vai nessa... Te digo, no entanto, que também estou gostando de conversar contigo. É um bom passatempo. Nunca tive conversas desse tipo nem com meu irmão querido. E o que mais preciso por aqui é isso: passatempo. Pode te exibir, mas chego a lamentar quando nossa conversa termina.

Nonato riu. Levantou e simulou pegar uma bengala para bater em Diego, despediu-se e foi embora.

- Tchau. Até a próxima. Vou lá levar noticias para minha mimosa.

- Nossa mimosa! Disse Diego.

Nonato estava feliz com a relação que estabelecera com Diego. Essa última conversa havia sido promissora. Pareceu estar humanizando o irmão emprestado. Eloisa ficaria muito feliz, certamente. Ele tinha certeza de que em uma próxima visita da mãe, Diego estaria diferente. Com ou sem presunção, acreditava muito na sua capacidade de coerção. Mas Nonato deu um tempo estratégico.

Eloisa foi ver seu filho. Conversaram como há muito, desde que nem se lembrava mais. Alegremente, sem xingamentos ou queixas. Diego estava com a saúde estabilizada, tomando remédios sem precisar que fossem empurrados e com bom aspecto. Até um pouco mais gordo. Mas o que mais impressionou a mãe, foi o que aconteceu na sua despedida.

- Mãe, faz tempo que o negrão não aparece. Manda aquele sem-vergonha do teu filho vir visitar o irmão.

Eloisa riu. Disse que daria o recado. A vontade que tinha era de chorar. Chorar, gritar, agradecer a Deus e a todos os santos. Nada mudaria na vida prática deles, infelizmente, mas aquele rastro de luz significava a esperança de, pelo menos, um perdão Divino. E aquele rastro de luz tinha um nome: Nonato. Eis a sua compensação por tanta dor.

Ramon esperava Eloisa na saída. Preocupou-se ao vê-la, quase em surto e saiu do carro para ampará-la. Não era nada. Ou melhor: era tudo. Tudo o que ela nem esperava mais. E detalhou para Ramon. E ambos, ao invés de irem para casa, foram até o trabalho de Nonato. Este os recebeu com surpresa. Quando entraram, Nonato gritou para todos os que estavam por perto ouvirem, e até alguns que estavam mais longe:

- Sejam todos abençoados! Estamos sendo visitados por Jesus e Virgem Maria! Arrependei-vos hereges!

Gargalhadas de um lado, constrangimentos de outro. Eloisa beliscou Nonato e Ramon deu-lhe uns “cascudos”.

- Viemos te buscar. Hoje vamos almoçar fora. Chega de marmita. Mas não te apressa. Esperamos.

Nonato era perspicaz. Desde criança tinha um aguçado senso de observação e muita sensibilidade. Sabia que algo de novo tinha acontecido e, quase que certamente, se referia a Diego.

Nonato não quis esperar. Saiu mais cedo e avisou que talvez não retornasse a tarde. Saíram e foram a um restaurante. Como era cedo, ficaram lá sentados sem fazerem os pedidos, tomando uma água e jogando conversa fora.

- Mas me contem, quais são aas novas?

- Por onde começo? Já sei: começo dizendo que te amo muito, e acho que também falo por Ramon, e que tu és um anjo pleno de luz.  Por favor: fique quieto.

Nonato ameaçava levantar-se e comunicar aos poucos presentes o que ouvira, era o seu jeito. Mas não o fez. Obedeceu a mãe.

- Tenho para te dizer que estive com Diego e conversamos de uma forma que não me lembro de ter feito um dia. Não vou ao exagero de dizer que está mudado, nada disso, mas está humanizado. E agora presta a atenção: reclamou que não tens aparecido mais e perguntou quando “aquele negrão sem-vergonha” vai vir visitar o irmão. Meu Deus! Como conseguiste isso, meu filho? Eu agradeço a Deus todos os dias por Ele ter te colocado em nossas vidas. A quem mais posso agradecer agora?

- A mim, lógico. Eu sempre achei que diamante negro não era só marca de chocolate – disse Ramon..

- Bobo! Disse Eloisa. No entanto era verdade, tudo começara com ele.

Nonato ria.

- Não sejam bobos. Ora, quem, nascido como eu nasci, tendo sido adotado quase no finalzinho das esperanças e sendo criado como eu fui, por uma mulher forte e amorosa, e por um teimoso maravilhoso que me ensinou a ser homem, não haveria de ser feliz e grato à vida? Se algo de bom eu sou ou faço, os méritos são minimamente meus. Agora vamos deixar de confete, não é seu Ramon? Fale-me a respeito do meu irmão Diego. Eu tinha deixado para ele decidir  como nos trataríamos, se amigos, irmãos, ou só entrevistado e entrevistador. Pelo visto já decidiu, verdade?

- Não sei ao certo ainda, meu filho. Vai lá e descobre. Ah, o Ramon também tem novidades.

- Sim, hoje é dia de notícias boas. Ramon, o meu outro filho, vai voltar para o Brasil, e virá para cá. Vou conhecer a minha nora, mas é outro que não quis ter filhos. Enfim, a menos que tu deixes de enganar aquela moça que vive procurando por ti, mas já nem sei se ele é a da vez, não seremos avós.

Nonato riu. Almoçaram, despediram-se e disse que passaria à noite para receber o seu beijo. Não voltou ao trabalho. Tampouco foi à penitenciária visitar Diego. Decidiu dar um tempo para si, reflexionar. Talvez fosse visitar “aquela moça”.

Como seria seu novo irmão? O pai havia dito que era introspectivo, de pouca conversa, mas que tinha ganhado um pouco mais de traquejo com a esposa. Falava maravilhas dela. Sabia também que era um casal de médicos. Bem, será mais um, e esse com autoridade técnica, para enquadrar aquele velho teimoso que não gostava de tomar os remédios, e só fazia os exames regulares sob forte tortura verbal da esposa.

Nonato deixou passar mais alguns dias para voltar a visitar Diego.

- Ah! Finalmente apareceu! Como vai, negrão sumido?

- Tudo tranquilo. Andei meio ocupado... Mentira, não andei meio ocupado nada. Só dei um tempinho para saber se tu sentirias falta das nossas conversas. E cá estou, porque quem sentiu falta fui eu.

- Então... Reclamei para a mãe que tinhas me abandonado. Ora, onde é que já se viu abandonar um irmão recluso?

- Ahhh... Então pronto. Já sabemos o que somos. Quero te dizer que  dá alegria saber como sou considerado por ti. Não há de mudar nada, mas é bom saber que tenho dois irmãos.

- Como assim “dois”?

- Ramon, filho do Ramon, que é médico, está voltando para o Brasil e parece que veio para ficar perto do pai.

- É mesmo? Bem, isso não tem nada a ver comigo. Família estranha essa, não? Tem de tudo.  Presidiário, médico, negro manco... Desculpa. Tenho que aprender a controlar a língua.

- Seria bom. Não por mim, mas por ti. Vai te fazer muito bem vencer o preconceito. Até acho que já venceste, apenas não sabes como te comportar, e talvez nem dê tempo em função da raiz funda desse mal. Tudo bem. Como andam as coisas contigo? Vejo que estás cada vez mais gordo. Cuidado.

- Dentro do possível estou me sentindo bem. Não falei para a mãe e te peço que não fale, mesmo porque não adiantaria nada, mas estou com um problema sério no fígado. Não sei como vai ser. Só não quero preocupar a velha. Já dei problemas demais para ela. Por favor, não diz nada.

- Certo. Vou respeitar, mas vamos buscar soluções. Não podemos deixar acontecer por acontecer.

- Nessas horas é que eu vejo o quanto de errada foi a minha vida. Passei o tempo inteiro me matando aos poucos e o que é pior: judiando da única pessoa que me dava provas de que o amor existia. Eu sou um erro da natureza, Nonato. Eu e meu irmão falecido. Filhos de pais cheios de princípios morais, maravilhosos, honestos, que fizeram de tudo para nos darem uma vida decente e veja no que deu. Não acredito em reabilitação, não acredito em perdão, sei lá se acredito em Deus. Nem sei em que acredito. Vejo seres humanos quando olho nos olhos da minha mãe e agora, quando olho para ti. Estamos tão próximos, mas como podemos ser tão diferentes? O que sinto, negrão, meu irmão novinho, é que não vou durar muito. Esse novo problema, ou velho recém descoberto, somado aos outros é uma bomba que eu penso que me fará querer morrer antes da morte. Seria hora de se arrepender por tudo, mas para isso, de tanto o que teria de arrependimento, seria mais fácil pedir perdão por ter nascido. Acho que nem vivendo outras vidas vou conseguir zerar a contabilidade. 

Nonato ouvia pacientemente, sem interromper. Diego precisava daquilo.

- Mas se tem perdão a ser pedido, além dos meus pais, Roberto e Eloisa, tem um que jamais vou poder pedir. Nem eu, mesmo que me ajoelhasse nas brasas, me perdoaria. Foi a coisa mais terrível que fiz. Talvez um dia te conte. Pode acreditar, nunca dei bola, mas hoje tenho vergonha até de me lembrar daquilo. Acho que isso é um sinal mais que evidente de que estou chegando ao fim.   

- Diego. Vou ver com os médicos o que pode ser feito. Mas não te entrega. Segue tomando os remédios e te cuidando. Há alguns recursos. Não te esquece que daqui a pouco teremos um médico também na família. E olha... Acho que hoje começamos um outro tipo de conversa. Temos coisas a falar.

Nonato estava intrigado. Que coisa seria aquela que estaria mexendo com os sentimentos de uma pessoa como Diego? Respeitou o silêncio e aguardaria que ele, se quisesse, falasse a respeito. No entanto não se conteve.

Passou na casa dos pais.

- Mãe, Diego está muito sensível, estranhamente sensível. Acho que está se sentindo velho e tal, e isso está mexendo com alguns sentimentos. Disse que se tivesse que pedir perdão, o faria para ti, já que não pode fazer ao Roberto, e mais um perdão que não identificou, mas que disse que nem ele se perdoaria. É grave? Sabes de algo que possa falar?

Nonato sempre fazia as perguntas certas, de uma forma tão assertiva, que a interlocução ficava sem saída. Ramon foi uma para linda escola para ele.

- Sim, meu filho, sei. Se tu não tivesse me perguntado eu não te diria nunca. Mas por favor, espera ele te contar, caso queira contar. E só vou te falar porque sei da capacidade que tens de absorver coisas graves e de saber trata-las .

- Diego teve uma namorada, de quem só tomamos conhecimento da forma mais trágica possível. Ela engravidou e Diego, junto com Diogo, obrigaram-na a abortar. Como a moça passou mal, largaram no hospital e fugiram. Ambos morreram, mãe e filho. Eu e seu pai, mesmo sabendo disso, nos calamos. E não há um dia em que reze que não peço perdão pela minha covardia. Roberto já estava muito doente e acho que aquilo foi uma espécie de pá de cal na vida dele. É isso.

- Que coisa horrorosa! Sabes da família dessa moça?

- Não. Minha covardia se aprofundou com a morte de Roberto e com a perda dos filhos. Primeiro para o mundo e depois, um deles para morte.

 - Mãe. O pai sabe dessa história?

- Sabe. Sabes como somos nessas questões que envolvem segredos. Eles não existem.

- Posso falar com ele a respeito?

- Claro.

- Ok. Vou conversar com ele fora daqui, se não te incomodas.

No dia seguinte Ramon perguntou para Eloisa se ela sabia o que Nonato queria falar com ele, no trabalho.

- Sei, meu velho, mas prefiro que ele mesmo te diga, pode ser?

Ramon concordou, beijou a mulher e saiu.

- Oi filho, queres falar comigo sobre meu neto?

Nonato riu.

- Ainda não, velho, mas estou treinando. Vamos sair e tomar um cafezinho?

Ramon, que era inabalável, começou a ter alguns pressentimentos.

- Pai, a mãe me autorizou a perguntar para ti sobre a moça que Diego engravidou e que, ao provocar o aborto dela, mãe e filho morreram. Sabes o que mais a respeito?

- Puta que pariu! Tenho que responder a isso?

- Acho que sim, pai.

- É um assunto chato. Eu sou ex-policial e sempre primei por uma linha de conduta.

- Sei disso, pai.

Ramon então contou a Nonato tudo o que sabia a respeito do caso que envolvia a fatalidade de uma moça e seu filho,cujas mortes foram provocadas pelos gêmeos filhos de Eloisa. Penitenciava-se pela dívida com a justiça por ter ficado sabendo daquilo e mantido silêncio. Omitiu-se do caso em nome do sofrimento extremo que os filhos já haviam causado à Eloisa.

- Que assunto! Alguém tem informações dos familiares deles? Diego também nunca deve ter dado bola para o isso.

- Que eu saiba não, meu filho. Se tivesse, Eloisa teria me contado.    

- Bem, pai. Vou dar uma olhada em alguns registros. Pode ser que encontre alguma coisa. Isso também faz parte do meu trabalho.

Nonato não estava falando toda a verdade para seu pai, pois as informações que tinha eram muito mais consistentes. Achou que naquele momento seria poupá-lo, mesmo porque não havia nada ainda de concreto.   


“O filho pródigo revalidando as Escrituras”

 Ramonzinho, depois de longo tempo na Austrália resolveu voltar para casa. Para a cidade de sua infância e ficar mais perto do velho Ramon. É médico, sua esposa, que conheceu por lá também é médica e brasileira, nascida no interior de São Paulo. Portanto, a vida pacata do interior não haveria de ser novidade para ela, caso se importasse com essas coisas. A medicina parecia ser profissão de fé para o casal. Os ambientes cosmopolitas, não despertavam encanto algum em ambos, mais para a esposa, porque  Ramon nunca fora muito afeito a essas luzes.  Em face disso, viveram mais em ações da Cruz Vermelha pelo mundo. Até por isso a opção de não terem filhos.

Ramon Filho foi para o outro lado do mundo, aproveitar uma oportunidade e buscar um sonho. O que encontraria?  Bem, sonhos, aprendera isso, são coisas distantes e se são sonhos é porque são difíceis de serem conquistados. Por conta e por conversas frequentes, às vezes cansativas, com seu pai, entendeu que quando  se vai buscá-los há de esperar os obstáculos, que são proporcionais ao tamanho do que se quer conquistar. Eu suma, ele não esperava moleza, muito pelo contrário.

Os primeiros tempos foram do tipo “pai, me manda dinheiro que eu quero voltar para casa”. Nunca chegou a dizer isso a ele. Caso dissesse, provavelmente ouviria dele: “saiu muito cara essa tua viagem. Vou te mandar um pouco mais de dinheiro para que te sossegue por aí e trate de cumprir com o teu destino”. Provavelmente não, tinha certeza de ele que diria isso. Conhecia bem o “seu” Ramon.

Em função do amplo envolvimento com a faculdade de medicina, Ramon dispunha de pouco tempo livre para que pudesse buscar um trabalho regular, a fim de reforçar sua renda. Em vista disso, fazia pequenos bicos, quase sempre como auxiliar de cozinha, preferencialmente aos finais de semana. Também aprendeu a fazer drinks e quando chamado, trabalhava a noite, em um bar próximo da Universidade. Assim, divertir-se só quando deitava a cabeça no travesseiro e sonhava sonhos bons.

Mas não haveria de ser toda a vida daquele jeito. Tinha esperanças de que pudesse ter uma ocupação, se possível dentro de alguma área de interesse correlato ao curso e, que diabos, cruzara o mundo para estudar e ter a profissão de seus sonhos .

Num desses sábados, ele se virava para atender a tantos pedidos de drink: 

- Bloody Mary, please!

 "Eca! Que seja. Bloody Mary para o Zorro, ou seria a mulher do Zorro?", divertiu-se em silêncio. A moça se vestia toda e preto, de forma extravagante e uma maquiagem com rodas pretas ao redor dos olhos.  

 Serviu.  Depois de algum tempo, novamente:

 - Bloody Mary, please!

 "Não é a mulher do Zorro é uma vampira! Blood Mary, portanto,  faz sentido". Serviu.

 O horário combinado com Ramon estava acabando e ele entregou o posto. Recebeu seu dinheiro e saiu, passando pelo meio das mesas  Lá estava a vampira, cercada de "vítimas". Ao vê-lo, a moça gritou em português enrolado. Pelo adiantado estado etílico, talvez não tivesse se dado conta do idioma.

- Ei, você! Traz mais um Bloody Mary.

- Estou de saída, respondeu surpreso, com pena, e em português.

Ela levantou-se. Ao menos tentou levantar, mas acabou sentando involuntariamente. Estava pra lá de Bagdá, no mínimo duas quadras

O caminho de casa Ramon percorreu pensativo "Ora, mas veja só! A mulher do Zorro, ou a vampira é brasileira! Era a primeira pessoa conterrânea que vira por lá. Pena que não haveria forma de engatarem uma amizade. Ramon, filho único quase mimado pela mãe e de um policial linha dura, sequer costumava beber. Ou seja: nada a ver com a criatura. E se tinha negócio chato era conversar com bêbado.

Dias a seguir, em uma aula comum a todas as turmas, viu uma menina parecida com a Zorro. Ao menos pintada e vestida de preto estava. Tinha quase certeza de que era a bebum do Bloody Mary. Meio punk. “Bem, devem ter várias assim por aqui”.

Em outra oportunidade, viu a mesma menina no pátio, no meio de uns dez barbados e algumas outras meninas. Ramon viu então que era a mesma. Parecia popular. Comandava as conversas naquele meio. Ramon passou e foi embora.

Um pouco já distante do grupo ouviu um grito:

- Cadê o meu Bloody Mary?

Ramon olhou pra traz, sorriu e fez um sinal com a mão, informando que ela esperasse, e seu foi sem olhar mais para traz. Interessante: ela o reconhecera!  Enfim, deve ter sido bom ela ter descoberto que ele também era brasileiro.

Há sempre festas no ambiente universitário. E em havendo festas, rola de tudo.

Em uma delas, Ramon, sem serviço, foi dar uma volta, olhou a farra, riu um pouco. Não era a sua praia, e se foi em direção à saída. Quase foi embora. A “Zorro”, apareceu do nada e o interpelou:

- Cara, você já vai embora? Sabe quantos brasileiros tem aqui?

- Desconfio que dois. Tu e eu.

- Tu? Você é gaúcho?

- Sou.

- Putzgrila, mais um empecilho. Ele é gaúcho macho, tchê! Mas já está querendo ir embora por quê? Medinho de perder as botas, ou está na hora de tomar leitinho?

 Ramon riu,

 - Não. Isso aqui não é muito a minha praia. Até gosto da música, mas como não bebo e não fumo, nem cigarro de papel, muito menos alguns artesanais que estou vendo por aí. Acho que não vou conseguir entrar no clima.

- Hummm... Não bebe, não fuma...Tem algo mais que você não faça?

- Tem sim. Não jogo.

- Sexo você já aprendeu a fazer?

- Ainda não

Ramon entrou na onda do deboche.

- Então tá. Você vá para a zona, treine bastante e depois se apresente. Estava achando você até que jeitosinho, mas é meio fora da casa.

Ela estava chapada, certamente. Não podia ser só bebida.

- Ok. Como não tenho dinheiro vou treinar com as mãos. Vou aproveitar a minha experiência em descascar batatas para descascar mandioca. A gente se vê pelas aulas.

Ramon foi embora satisfeito por ter ficado com a última palavra e ter desconcertado a colega bebum. Na verdade, achou que até dava para dar uns pegas nela. Não era de se jogar fora, embora não desse para ver direito. Pena que nunca a visse sem máscaras.

“Sossega Ramon, não é para o teu bico”. Só não escreveu isso na porta do quarto porque o dividia com mais dois companheiros. Mas de alguma forma   ela começava a incomodá-lo.

Dias depois se encontraram em outra aula comum às turmas. Ramon fez de contas que não a viu, mas percebeu que ela o olhava com insistência. Sabe-se lá o que queria. Ele não jogara isca nenhuma, mas ela tinha achado uma e mordera. Na saída, tocou no braço de Ramon e pediu para conversar.

- Cara, quero falar com você, mas se você não quiser ouvir tudo bem. É só dizer.

- Pode falar. Ouço sim. Vamos andando.

- Não sei exatamente qual a impressão que você ficou de mim. Talvez pense que eu seja só uma piranha. Tudo bem. Se você pensa assim, decerto é pela  minha maneira de agir e eu não faço muita questão mudar. Mas não é bem assim. Sou festeira sim, amo rock, bebo, fumo e o escambau. Meu pai tem uma boa condição financeira, mas não liga muito para o que eu faço ou deixo de fazer. Apenas me manda o dinheiro que eu peço e estamos conversados. No fundo no fundo, às vezes tenho a impressão de que me paga para que eu fique longe.  O papo está ficando chato para você?

- Não não... Pode continuar.

 - Estou há mais de ano por aqui. Você chegou faz pouco, não é mesmo?

 - Sim. Há seis meses mais ou menos.

 - Pois bem. Sempre vejo você quieto, compenetrado. Estudando e fazendo bico no bar. Acho legal isso, deve ter vocação para a coisa. Na noite da festa, em que abordei você daquela forma ridícula, eu tinha tomado todas. Só não vou pedir desculpas porque você se vingou na hora. Mas abordei porque você é brasileiro e somos únicos por aqui, e só estou falando todas essas coisas porque quero me aproximar de você. Talvez fosse legal sermos amigos. O que acha?

 -  Tu tinhas tomado todas e fumado “alguns”, não é mesmo? - Divertiu-se Ramon.

É verdade. Mas espere aí. Você não está pensando como aqueles que me veem fazendo zoeira, e acham que eu abro as pernas com a mesma frequência com que respiro, está? Nada é nada disso. É muito jogo de cena. Desafio você entrevistar qualquer bobão desses por aqui que diga que me levou para a cama. Não mesmo.

- Hei, calma aí... Não sou fiscal de comportamento. Desculpa, tu não precisas te explicar. Desculpa de novo.   

- Ok...  Também nunca fiz voto de castidade. Quero ser sua amiga. Pode ser que sendo amiga de alguém que fale a minha língua, que seja um careta convicto e que esteja comprometido com o curso, possa me ajudar. Eu quero quebrar o bico de alguns familiares que duvidam que eu consiga ser médica. Por enquanto estou dando razão a eles e isso me incomoda. Então pronto. Estou pedindo ajuda a você.

- Tina, é esse o seu nome não é?

- É pior que isso. Por sorte não fazem chamada no curso. Sim, me chame de Tina.

- Ok. Claro, sejamos amigos. De minha parte vou ficar feliz, e se puder ajudar...  Puxa... Mais feliz ainda. Tem algumas coisas, no entanto, que tu precisas saber, além das que sabes e foram devidamente qualificadas por ti. Nada do que disseste me ofendeu. É natural que no estado em que estavas, as bobagens se soltassem boca à fora.. Complementando: eu sou um “duro”, portanto festas caras não posso participar contigo. O meu velho, diferente do teu, faz uma força danada para me mandar o suficiente para que eu não morra de fome e tenha algum conforto, mas tem muita confiança em mim e não quero decepcioná-lo. De quebra faço alguns bicos servindo drinks quando me chamam, ou como auxiliar de cozinha. E guardo tudo o que posso. Quanto ao curso... Olha a minha vida está nele e eu quero viver cada aula com o melhor aproveitamento possível. Se quiseres, podemos estudar juntos, rever matérias... Essas coisas... Se está bom pra ti assim, beleza.

- Beleza. Prometo nunca mais tentar seduzir você.

Despediram-se.  Pratos limpos colocados à mesa, que fosse servida a nova amizade,

Tina e Ramon passaram a conversar com frequência em alguns intervalos. Quase sempre eram interrompidos por outros colegas que a arrastavam sabe-se lá para onde. No princípio, Tina simplesmente abandonava a conversa e saia com a sua turma. Depois passou a despedir-se de Ramon com um “até mais... a gente se fala”.    Parecia bem possível que ali estivesse nascendo uma amizade duradoura.

Um dia daqueles, ao cruzarem pelo pátio, viu Tina sorrindo meio sem graça para ele. Tinha algo diferente nela. Primeiro porque não estava rodeada de pessoas como de costume, segundo porque seu rosto estava mais claro. Sim. Sem aquele excesso de sombras ao redor dos olhos e os cabelos castanhos quase loiros, amarrados em um rabo de cavalo. “Amigos? Acho eu não vai dar”. Ramon a cumprimentou, deu um beijo na bochecha e falou: 

- Opa! Que linda está essa guria hoje! Finalmente saiu do esconderijo.

- Engraçadinho! Apenas perdi a hora, não arrumei o cabelo e não me maquiei.

- Entendi e agradeço a Deus por este dia. Tu te maquias para afastar os malandros que queiram se engraçar contigo. É uma tática inteligente. O risco que estás correndo, agindo como hoje, é que podes não morrer solteira como parece que pretendes. 

 - Você está debochando de mim, é isso?

 - Não. Não mesmo. Vou te dizer uma coisa: quando conversamos naquela festa, mal dava para ver o quanto tu és bonita. Dá para ver agora. Só não me entenda mal, por favor, isso não é uma cantada. É uma constatação. Sinceridade pura e incrivelmente inocente. 

 - Beleza. Vou levar em consideração. Mas olha só, tenho uma festa para ir na sexta-feira, você quer ir comigo? É tudo grátis e é uma turma do bem..

  - Ah bom. Claro, vou sim.  Caso precise te carregar estarás em mãos confiáveis

 - Bobalhão.

 Na sexta-feira, no horário combinado, Ramon se aprontou e foi pegar sua nova amiga. Tina era privilegiada em função da condição econômica do pai. Diferente dele que dividia o quarto com múltiplos odores em uma república, ela morava em um pequeno apartamento sozinha. Apertou a campanhia e aguardou. Ela me pediu para subir, porque estava terminando de se arrumar. Ao ver a porta entreaberta, entrou e a ouviu gritar do quarto: “senta aí! Já estou indo!”  Minutos depois, Tina apareceu na sala perguntando:

- Estou vestida adequada para sair com um caipira careta?

Naquele momento, Ramon teve a sensação de que amigos, amigos mesmo não haveriam de ser. Ele não conseguiria. Ela estava linda! Usava um vestido curto vermelho, maquiagem leve, sem aquelas sombras pretas ao redor dos olhos, cabelos soltos cheios de brilho e um batom que não era preto, sequer escuro, apenas rosado. Pensou, mas não disse: “que vontade de limpar essa boca com a minha!”. Entre outros pensamentos imundos.

- Cruzes! Simplesmente linda. Nem parece aquela guria malcriada. Não entendo porque tu vives te escondendo. 

- Então vamos embora. Faz de conta que você me elogiou. 

Foram caminhando de braços dados até o local. Durante o percurso ele lhe disse para que ficasse bem à vontade para fazer as suas coisas, que estaria em algum canto curtindo o que desse para curtir. Que ela não se prendesse por ele. E prometeu que ficaria até o momento em que ela decidisse ir embora.

Logo na chegada deu para ver quem era Tina. Foi cercada e bajulada tanto por rapazes quanto por meninas. Deveria ser a estrela da festa e deveria ter um motivo a mais que justificasse a popularidade. Ramon afastou-se para que ela ficasse à vontade. Instalou-se em um canto para tomar uma cerveja. Uma ou outra ele bebia de vez em quando. De repente viu Tina subir ao palco e começar a cantar. Estava explicado. Como num espasmo, lembrou-se daquilo que só não escreveu na porta do seu quarto porque não dormia sozinho: ““Sossega Ramon, não é para teu bico ”. Definitivamente não. E tratou de passar o olho no mulherio da festa, a fim de afastar qualquer sentimento inconveniente.

A noite foi longa. Alguns flertes à distância ajudaram a passar as horas. De tempos em tempos Tina aparecia para me dar um “oi”, perguntar se estava tudo bem e sumia de novo. Ramon se perguntava, meio incomodado: “por onde andará metida?”. O lado bom é que parecia sóbria. Vez por outra subia ao palco e dava uma “palhinha”.  Tina era uma estrela e talvez tivesse certa razão em desenvolver a ideia de ter uma banda de rock.. Talento tinha de sobra.

Pela programação prevista, a festa iria até o amanhecer. Ainda estaria longe de acabar quando Tina apareceu, dessa vez sentou-se ao lado do amigo e perguntou:

 - Você está gostando?

 - Muito! Em especial de te ver cantando. Tu és uma estrela. Agora sei por que queres ter a tua própria banda. 

 - Que querido! Mas eu estou um pouco cansada. Acho que é porque não bebi nada – disse rindo - Realmente gosto muito de cantar. Adoro rock e sonho em ter uma banda. Mas é complicado. Uma banda é uma sociedade, e aí, confiar em quem? Bem, acho que para você deve estar sendo chato ficar sentado, só flertando com as menininhas, que eu sei por que vi. Se você quiser ir embora, podemos ir.

 - Pois então... Se tu quiseres podemos ir. Por mim não tem problemas. Estou curtindo à minha maneira. Estou gostando do ambiente.

 - Tá. Apenas vou ficar um pouco aqui do seu lado. Quero marcar território um pouco. Vi que você está sendo olhado como carne nova pelas piranhas. Mas hoje você é meu.

Havia um sentimento novo nascendo em Ramon, ainda não bem definido. Tinha a impressão, no entanto, de que aquilo não acabaria bem e, claro, se alguém saísse perdendo ele já sabia quem era.  Mas a vida que seguisse seu curso. Já entrara no jogo e não iria sair por medo..

- Fique aqui, se quiser abuse de mim. Não tenho condições de reagir, uma vez que já tomei duas cervejas. Depois eu peço desculpas por  alguma eventual fraqueza.

Tina não disse nada. Apenas riu e chutou levemente a canela de Ramon. .

Amanhecia quando a festa terminou. Tina estava caindo de sono e Ramon aceso como brasa com gordura pingando. Foram embora de braços dados como vieram, conversando sobre amenidades. Ela disse que invejava a relação de compromisso e carinho que ele tinha com o pai, muito diferente dela. Chegaram à porta do edifício e se despediram prometendo-se outras noitadas. Ramon andou alguns passos e ela o chamou. Sentiu então quantas coisas podem caber em um lapso de tempo que dura apenas alguns passos. Ele pode imaginar o paraíso e se sentiu indo morar nele. 

- Olha só, eu gostaria de continuar conversando com você hoje. Se tivéssemos vindo embora quando convidei a primeira vez, talvez pudéssemos subir e conversar mais no apartamento. Agora é tarde e o sono pegou.  Mas se você quiser, podemos marcar uma noite ou no outro final de semana. Que você acha?

 - Acho ótimo. Vamos marcar para mais tarde, pode ser? Hoje é sábado -    Quase uma sentença.

 - Já? Ok. Vou dormir até às duas horas da tarde. Venha depois disso. Podemos comer umas pipocas e ver umas fitas, ou sair.

 Estavam combinados e Ramon foi embora um pouco chateado pela bola fora. Ora, como não aceitou ter voltado cedo para a casa dela. “Mil vezes burro!”. Acordou perto do meio dia. Saiu para comer alguma coisa e foi contar tempo até passar das duas horas, sentando na praça em frente ao apartamento de Tina. Duas horas e um minuto, levantou e foi até a porta do edifício. Quando levou o dedo para apertar a campanhia a porta abriu. Era Tina.

 - Oi, Ramon. Vamos dar uma voltinha enquanto não chove.

 “Mas será o diabo? Essa guria está fugindo de mim”. Tratou de esconder a frustração. Não era exatamente o convite que esperava. Ela até poderia vê-lo como um amigo com quem poderia contar a todo o momento e tal e tal. Ele a via como uma mulher linda, frágil metida a durona e extremamente desejável.

- Claro. Me guia porque não conheço grande coisa por aqui.

Foram tomar um café. Depois caminhar à toa. Tina disse que gostava de andar por aquela região, porque achava parecida com a cidade de onde vinha. Sempre se sentia meio down andava por ali, à toa.

- Isso aqui me leva para a infância e me humaniza um pouco – disse rindo

- Ramon, nos conhecemos a um mês, um mês e pouco, não é mesmo? Conversamos algumas vezes. Umas mais outras menos e toda vez que isso acontece eu mudo alguma coisa em mim. Não sei por quê. Acho que gosto de você, do seu jeito meio caipira, meio brega, meio turrão, meio careta... Totalmente diferente das pessoas com quem eu convivi a vida inteira. Você é o oposto de mim... É estranho e me incomoda. Mais me incomoda porque eu acabo gostando. Um dia você, do nada me chamou de linda e aquilo mexeu comigo e sabe por quê? Porque eu estava me achando um lixo. Onde é que já se viu sair à rua arrumada ou desarrumada daquele jeito? Não era eu. Não era a roqueira que Adelaide conhecia. Anda me ocorrendo achar que aquela Tina mais antiga talvez fosse de mentira. Que a real é esta e sabe o que mais? Estou muito confortável e me sentindo limpa.. Eu queria ter dito isso a você ontem, mas o sono não deixou.

 - Olha Tina, apesar da quantidade de adjetivos “mimosos” que ganhei, e te dou razão em todos, acho que gostei do final. Se de alguma forma te sentes ajudada por mim ou pelo meu jeito, ótimo. Quero que saibas que, se tem algo meu com o que tu podes contar sempre é com a minha franqueza, sinceridade e verdade. Segundo o velho Ramon, meu pai, essas são coisas que nos dão paz e sono bom. Tu és uma pessoa linda. Não sei se por receio de sair do teu conforto, que é um padrão de escudo que definiste para te proteger, ainda não descobriste o quanto és especial. Tens alguns medos aí que provocam essa blindagem.

 - Como assim?

 - Ora... Estás autorizada a chutar a minha canela... Quando te vi a primeira vez, praticamente te escondias atrás daquela máscara escura. "Mulher do Zorro" foi o apelido que te dei enquanto bebias Bloody Mary naquele bar. Depois, quando te vi de cara limpa, daquela forma que odiaste e que me pareceu um anjo, e pelas conversas posteriores que tivemos, cheguei a pensar que tinhas medo de encarar a mulher que mora aí dentro.   

- Sei lá, meu querido... Zorro? Nojento! 

- E mais, eu não me incomodo em andar na chuva e tu? Tem algum cinema por aqui?

 - Tem. Tenho umas fitas cassete lá em casa. Vamos lá terminar a nossa conversa, escolher um filme e acabar com meu estoque de pipoca.

Chegaram ao apartamento da Tina molhados e tiveram de se revezar no banheiro para se secarem. Ramon ficou descalço e Tina lhe arranjou uma super camiseta, a maior, a fim de que Ramon não ficasse tão espremido dentro. Quanto a calça, não teve saída. Ficou com ela, não tinha molhado tanto, apenas sentou-se em uma toalha. Tina entrou em um camisão esvoaçante, que o fez retornar àqueles  pensamentos imundos que vinha tendo ultimamente. Ele estava perdido.

O apartamento de Tina era pequeno, funcional, arrumado à moda universitária, ou seja, nada no lugar. Na sala uma TV 20’,um vídeo cassete, um sofá e alguns pufes espalhados. Uma cozinha pequena e uma pia. Cheia. Seu Ramon surtaria com aquilo. 

- Então... Estou pensando sobre o que você me disse. Olha, já recebi todo o tipo de cantada... Sei identificar a maioria e sei que você não quis avançar o sinal. Se quis foi muito sutil e isso me encanta. Vejo sinceridade em tudo o que você diz. Acho que você tem razão sobre essa zona de conforto. Nunca me explorei como gente, como mulher... Você está me pondo para pensar, seu moço. O que você quer fazer comigo?

Ramon, que herdara o reflexo verbal do pai, abriu a boca para responder, mas não deu tempo.

- Olhe lá o que você vai dizer.

- Sim, nesse caso peço perdão e retiro tudo o que pensei, devidamente envergonhado. Tina, querida Tina... Eu pergunto: e tu, o que queres fazer comigo? Diferentemente de ti sou um democrata, portanto não se constranja, podes ficar à vontade, faça o que quiser que eu não me incomodo - disse rindo.

- Sei. Por enquanto quero que você esteja sempre por perto. Você me faz muito bem. Vamos ver um filme?

- Vamos, mas primeiro vamos ali lavar a louça. Eu lavo, tu enxugas e guarda. Depois fazemos a pipoca.

- Olha só... O cara já chegou dando ordens. Ok vamos.

Pipoca feita, foram ao filme.

- Aqui está “Flash dance Em ritmo de embalo”

Era um filme levinho, romântico de muita música. Tina estava gostando muito, se divertindo, comendo pipoca e cantando esparramada ao lado de Ramon. De repente levantou e perguntou

 - Vem. Vem dançar

 - Eu danço como um João-bobo

 - Venha

 Ramon era muito desajeitado, sempre fora. E como um João-bobo tentou acompanhar Tina. Porém tropeçava no tapete, agarrava-se nela para não pisá-la, caia sobre os pufes... Definitivamente ali estava algo que ele deveria aprender.  Estavam muito próximos de pé, olhando-se e rindo, tentando harmonizar a dança. 

Em dado momento Ramon simulou uma queda, ela o abraçou para ajudá-lo, mesmo assim caíram abraçados sobre tapete e assim ficaram, imóveis, deitados lado a lado, mirando-se fixamente nos olhos e Ramon passou a acarinhar levemente o rosto de Tina.  Ela não desviou o olhar, apenas retirou o sorriso dos lábios e falou com aquela voz de timbre único, sussurrada:

- O que mais você está esperando, João-bobo?

 E se beijaram. Primeiro um leve “selinho”, depois com tanta força e fome que só pararam de se beijar mortos de cansaço, não se sabe quanto tempo depois.  Deveria ser perto das seis horas da tarde daquele sábado frio e chuvoso, e o resto foi uma noite de “amar como se não houvesse amanhã”. Separaram seus  corpos na manhã de domingo, perto do meio-dia, quando ele saiu para buscar algo para comer.

E por ter havido um amanhã, era momento de conversarem sobre o que houve. Explicações? Não. Aconteceu o que estava programado para acontecer; que eles queriam que tivesse acontecido. Ambos pisavam o mesmo campo magnético e se juntaram para confirmar a tese: corpos com cargas de natureza contrária se atraem. Mas não era só física a atração deles. Havia muita química. 

Nunca mais se separaram. Foram adequando diferenças e costumes, formas de pensar e agir que não interferissem em uma relação que cheirava a longevidade. Pequenas rusgas iniciais pelas extravagâncias dela versus excesso de caretice dele.  O primeiro passo seria a aceitação dessas diferenças. E também é óbvio que alguma mudança haveriam de promover, caso quisessem viver bem.  Ramon titubeou, levou mais de ano para aceitar morar no apartamento de Tina, embora passasse maior parte do tempo e tivesse a sua maior quantidade de pertences por lá. Era só uma questão de domicílio. Juntos começaram a idealizar trabalhos na Cruz Vermelha, nas missões da África, tão logo concluíssem o curso.   

Tina tornou Ramon um homem mais sociável e ele a ajudou a curar-se de si e enxergar-se como mulher e  fez com que Tina se jogasse com muita energia aos estudos. Algumas renúncias foram necessárias, como aqueles fuminhos mais nocivos e moderação na ingestão alcoólica.   Deixar de fumar foi uma tarefa mais difícil. Levou alguns anos. Quanto a bebida, hoje bebem o suficiente para o primeiro riso ou bocejo.

 Da roqueira com a máscara do Zorro, fumada e bebida, só restou uma roqueira eventual, sem mais sonhos de ter uma banda e sem máscara. Vez por outra dava uma palhinha aqui outra ali em algum evento ou bar. A popularidade continuava igual, mesmo com a pausa que dera às festas. Ramon também fazia um bico aqui outro ali para complementar a renda. E ia mantendo seu pai informado sobre as mudanças acontecidas em sua vida.  

Estavam completamente apaixonados. Um dia Tina chegou ao apartamento com uma decisão tomada.  

 - Pelo visto você não vai me pedir em casamento. Então vá lá, sempre fui eu que tomei as iniciativas por aqui. Ramon, você quer se casar comigo?

 - Atrás de ti tem o espelho, no qual ficas meia hora te olhando antes de sair. Por que não olhas agora na chegada, só para variar?

 “Tina, meu amor, casa comigo?” – Estava escrito com um antigo batom preto.

 Casaram um pouco antes da formatura, com algumas testemunhas arranjadas de última hora. Ramon continuava achando que Tina não era para o seu bico, mas essas coisas acontecem e ele não era louco de contrariar os desígnios do destino.

 O sogro ligou no dia do casamento, quando cumprimentou Ramon, com uma recomendação meio enigmática: “você faça o impossível para cuidar dela. O possível eu já fiz”. Não conhecia a filha. Quem disse que ela precisava de alguém para cuidá-la?  Tina precisava de amor e nesse quesito, Ramon era mais rico do que ele. Muito mais! E precisava também de alguém com fôlego ao seu lado, porque ela não conhecia a estática. 

Papai  quis dar à filhinha um apartamento na Austrália, já que não dera quando ela se mudou. ou onde ela quisesse. Pelo visto, desde que não fosse em sua cidade. Mas como aceitar, se o objetivo deles era exercer inicialmente a medicina em missões sociais pelo mundo? Como ter assim um lugar fixo para morar? Tina, no entanto, aceitou o depósito feito pelo pai, que Ramon ficou sabendo muito tempo depois, e que enfim seria o último. A partir dali seria tudo com ela e as boas economias que tinha guardado, isso por insistência do namorado.

Pelo mundo, em especial nas comunidades africanas, assistiram o que as Escrituras querem dizer sobre os quatro cavaleiros do Apocalipse. Eles existem sim. Vivem lá e andam de um lado para o outro exercendo seus poderes, e em alguns locais, os quatro juntos todos os dias. .Ramon e Tina viveram todas as aventuras, e algumas loucuras, que jovens médicos fazem para terem coisas a contar, valorizado por uma carga bem grande de solidariedade

Quando o namoro dos dois se firmou, lá pelo começo, Ramon havia dito para Tina que  seu sonho era retornar à sua cidade, fixar residência e clinicar. Não de imediato. Faria isso por si e pelo pai, cuja idade já estaria em estágio de riscos, e porque era a sua vez de retribuir tudo o que o velho fizera por ele. Após a morte da mãe, passaram poucos anos juntos até que Ramon fosse embora o deixando só e com o “pepino” de sustentá-lo. Mas não queria fazer isso de imediato. Em primeiro lugar estaria as experiências que gostaria de adquirir em missões pela Cruz Vermelha.

Tina não simpatizava com a ideia de voltar. Compactuava com  Ramon sobre as missões da Cruz Vermelha e queria seguir adiante por esse caminho: a medicina solidária pelo mundo. Essa era uma barreira que deveria ser quebrada. Convencê-la foi um trabalho de anos, que Ramon desenvolveu com todo o respeito e cuidados. Perdê-la? Jamais, bem como jamais deixaria de estar com o seu pai na velhice dele. Assim, cada vez que Ramon falava com o pai, com Eloisa ou com seu irmão Nonato, Tina participava da conversa.

 O tempo passou. Um dia Ramon perguntou a Tina:

 - Sabes a quantos anos estamos à disposição da Cruz Vermelha?.

 - Sei. Você está cansado?  - respondeu Tina com outra pergunta, e já preparando o espírito para o assunto que menos gostava. .

- Não, não estou, mas meu pai já ficou velho, e sabes o que penso a respeito. É chegado o momento de ir. Não precisamos morar a vida inteira por lá, mas o certo é que quero retribuir a ele um pouco do que me deu. Estou em sofrimento, Tina. Há duas coisas de que não abro mão, e elas não são  convergentes: tu e essa promessa que me fiz, e que tu conheces desde sempre.

- Sei. Também estou em sofrimento e sei que você entende isso. Estamos juntos há mais de dez anos. Nunca pensei que pudesse ser feliz e casada. Devo a você cada melhoria que tive, seja como gente, mulher e hoje médica. Eu já tinha decidido, apenas esperava a oportunidade de dizer. Irei junto com você. É também a minha vez de lhe retribuir. Fique tranquilo, já elaborei a situação.  Saberei lidar muito bem com uma eventual frustração. Deve haver algo que eu possa fazer por lá, e que tenha a ver comigo. 

- Tem. Nonato é Assistente Social e o que não falta é pobreza para lidar. 

- Ah sim. Lembro-me que quando soube da minha paixão pelo trabalho na África, ele me disse: “Venha para cá, cunhada, eu serei a tua  África em todos os sentidos” . 


“Há um lugar onde se bifurcam as vidas dos órfãos de pais vivos. É onde brigam os fantasmas do bem e os do mal”

Doutor Ernesto é um homem de posses, muitas posses. Médico por profissão, nascido em berço dourado, usava a saúde para expandir seus negócios e ampliar patrimônio. Assim, hospital, laboratórios, farmácias e, diziam, até funerárias tinham participação dele. 

A banda, naquela cidadezinha do oeste paulista, tocava de acordo com os humores do Dr. Ernesto, que era um homem vaidoso, egocêntrico, narcisista, megalomaníaco...  Se existe outros adjetivos correlatos ele tinha também.

Sua primeira esposa chamava-se Grace Kelly, homônima da princesa, que pensava ser um pouco mais que a de Mônaco. Era da mesma linhagem de caráter do marido. Grace era uma mulher muito e bonita. Loira platinada, permanentemente adornada de jóias e um poço sem fundo de futilidades. Mas vivia a expensas do marido. Seu papel na família era a representatividade social, a fim de que o doutor fosse ainda mais invejado e admirado, e gastar no que lhe desse na telha. Até os afetos de Dr. Ernesto eram posses.

Grace engravidou e deu a luz a uma menina, ainda muito jovem. Não era o sonho do marido que queria um menino. Dr. Ernesto, que colocava seu nome até nos objetos, escolheu o nome da menina: Ernestina. Grace odiou, mas quem era ela para contrariar o marido?

O pai rejeitava a criança, mal olhava para ela, e com o tempo passou a rejeitar também a mãe. E Grace, que não aceitava a grande modificação física produzida pelo parto, também se demonstrava contrariada com a filha. Teve depressão pós parto, passou a beber, entupir-se de remédios, enquanto que a pequena Tina, como as babás a chamavam, vivia dos esforços da criadagem.

Tina crescia sempre se relacionando melhor com os empregados do que com a família. Tinha mais amigos que amigas; sempre dava um jeito de conviver com os filhos dos empregados. Da mesma forma na escola, fugia da comunidade “cocota”.

Quando fez quinze anos sua mãe quis dar-lhe uma festa reunindo a fina flor da sociedade local. Contrataria músicos da moda, gente chique da TV etc. Mas Tina já sabia que aquela pompa toda não seria para ela e sim para a mãe.

- Mãe, se você fizer qualquer coisa dessas que está me dizendo, vou fazer você passar a maior vergonha que nunca imaginou. Eu não quero festa nenhuma!

Grace ao menos conhecia a capacidade da filha em fazer o que prometia e assim abortou a ideia. Mas aquilo serviu para que sucumbisse ainda mais na bebida e nas drogas.

Dias  depois,  Grace sofreu uma overdose de remédios misturados com álcool, foi internada no hospital da família, mas não resistiu e morreu. Boatos da época contam que, na verdade, o que provocou a morte de Grace foi a negligência  com que foi atendida, pelo próprio marido.

O corpo de Grace mal começava a decompor-se e Dr. Ernesto foi ao mercado. Importou uma nova esposa. Importou sim. Casou com uma americana, talvez ainda pior que Grace, com o agravante de que não bebia, não fumava e, por óbvio, não usava drogas. Era médica como Dr. Ernesto e tinha já duas filhas pequenas. E fazia o perfil sargento: ditava as regras, dava ordens, inclusive na casa dos outros. As primeiras observações que fez à Tina foram como se um passaporte fosse colocado à sua frente.

A madrasta falando em um português sofrível, o que era aceitável, sentenciou: 

- Tina, você anda muito mal vestida. Que horror! Vamos imediatamente verificar o seu guarda-roupas. Comigo você não vai se vestir desse jeito. E essa maquiagem? Você é uma moça, pouco mais que uma menina e não uma prostituta.

- E vamos providenciar para que você melhore o seu inglês.

Tina sentiu que seria visita em sua própria casa, e ainda assim, não bem recebida. Tratou de estreitar ainda mais a relação com os empregados. Tentou aproximar-se do pai, e assim o tempo começou a passar de forma ainda mais lenta e ruim. Desgostosa com os rumos que a vida doméstica estava tomando, Tina saiu algumas vezes de casa, sempre buscada pelo. Da última vez, disse que só aceitaria ficar caso seus aposentos fossem colocados perto do de Olivia, sua ama de leite. Apesar dos apelos de Olivia, Tina envolveu-se com drogas e passava as noites nos bares bebendo, fumando, cheirando e cantando. Era um talento, diziam, mas que estava no caminho da mãe.  

Até que papai Dr. Ernesto encheu o saco. Sua filha estava denegrindo o nome da família. Então fez uma proposta para Tina:

- Ernestina – Ela odiava e já nem ia ouvir mais nada – Tem a filha de um conhecido que mora de aluguel na cidade aqui do lado. Parece que faz cursinho para o vestibular. Eu proponho a você o seguinte: compro um apartamento para você, a menina mora junto sem custos e eu lhe deposito uma mesada razoável para que  se mantenha. O que acha?  Não vou condicionar nada, apenas que você consiga concluir essa etapa e tente ser alguma coisa na vida.

- Eu conheço essa menina?

- Acho que não. O conhecido é funcionário meu do hospital. Sei disso porque pediu um adiantamento de salário para bancar a filha.

- Topo!

- Então estamos combinados. Vamos deixar passar este ano, ainda temos alguns meses e no início do ano que vem vocês se muda.

- Tenho uma condição, Dr. Ernesto.

- Diga

- Quero me mudar agora.

- Mas eu nem procurei apartamento. Não falei com o pai da menina... Me dê mais tempo.

- Nada disso. Deixa que eu faço tudo. Eu falo diretamente com a menina e você acerta depois com o pai dela. Ou melhor: você me dá o nome dele que eu o procuro e falo com ele. Esse cidadão deve ter ouvido falar de mim e por não ter boas referências, talvez tenha medo de deixar a filha comigo. Vou tranquilizá-lo.

Dr. Ernesto estava surpreso. Deu-se conta de que não conhecia a filha. E assim foi feito. Tina foi falar com o pai da moça, que em um primeiro momento pareceu aflito. Depois de conversarem ficou mais calmo. Sua filha era mais velha e mais ajuizada, e também haveria de medir os custos. 

Tina foi embora sem se despedir do pai e da madrasta, mas deixou uma cartinha de despedida a ambos. Carta formal. Porém ficou longamente abraçada a Olivia, que estava inconsolável. “O que será dessa menina?”, pensava.  

No primeiro momento, Tina que já havia conversado com a companheira de apartamento e combinado alguma coisa, se mudaria imediatamente, moraria um tempo de aluguel, até que achasse e finalizasse a compra da casa nova, cujos valores estavam previamente acertados com o pai. Daria para comprar algo pequeno, mas confortável para ambas.

- Seu nome não deve ser Tina, como você se chama mesmo? Perguntou Dina, sua companheira.

- O meu nome eu não pronuncio nem sob tortura. Me chame de Tina e ficaremos de bem. – disse rindo.

- Fique tranqüila. Se serve como consolo, eu também não sou só Dina. Sou Leopoldina, filha do seu Leopoldo.

“Essas afinidades...”. À primeira vista, se dariam bem. Dina era um pouco mais velha e fazia cursinho pré-vestibular.

Finalizado os procedimentos de compra da nova casa, finalmente puderam ter cada uma o seu cantinho. Dina era uma dona de casa perfeita, o que talvez facilitasse as coisas. Já Tina...

- É o seguinte, Dina: eu sou uma menina malcriada. Não me ensinaram a fazer nada, mas eu desconfio que isso você já saiba. Certamente ajudarei muito pouco aqui em casa. Quero que saiba, no entanto, que se considere também dona do apartamento. Haja como se seu pai também tivesse participado da compra. Eu não ligo para nada. Eventualmente vou fazer barulho. Gosto de rock e gosto de cantar. De resto, não tenho regras nenhumas e você esteja à vontade para criar as suas.

- Tina, sei de você mais do que você pensa. Era impossível não saber nada a respeito da família do Dr. Ernesto lá na nossa cidade. E eu sei um pouco mais porque, além de meu pai ser funcionário do seu, minha mãe fazia as unhas da Dona Grace Kelly. E você sabe... Poucas pessoas sabem mais a respeito da vida de seus clientes do que uma manicure. Infelizmente, e vou ser franca, sei mais do lado pior. Sei das coisinhas que você aprontava e sei da pena que minha mãe sentia de você, quando menininha. Mas relaxe. Meu pai ficou muito impressionado com você, quando tomou a frente e foi falar com ele. Acho que nos daremos bem. E mais uma coisinha: a minha participação nesta nossa sociedade será mantê-lo apresentável. Fique tranquila, eu serei a mão de obra.. Eu faço tudo aqui por dentro. Não quero morar de graça.

As meninas abraçaram-se, riram  e foram, primeiro cuidar de seus cantos. A coisa começara bem.

Dina, com algum jeito, estimulava Tina a estudar. E pegou a coisa pelo lado certo.

- Dá a impressão de que seu pai quis livrar-se de você, talvez em função de alguma ação de sua madrasta. Afinal, uma filha quase punk junto com menininhas criadas para serem princesas talvez não desse certo. Você se dá conta de que está desafiada? De que eles não acreditam que você possa ser alguém na vida? Isso não incomoda você?

- Um pouco, Dina. Incomoda sim. Vou fazer alguma coisa daqui a pouco. Ainda convalesço de uma família horrorosa, de uma casa que era um palácio, cuja alma era a dos empregados. Tenho saudades da Olivia, minha mãe de verdade, a que de fato me criou, mas não pode fazer muito por mim. Não dava. Sei que estou desafiada, e que terei o que eu quiser ter, que pode ser dado pelo meu pai. Basta que eu diga que vou voltar para lá. Mas não quero nada. Quero que me sustente por enquanto e depois eu meto o pé na bunda de todo mundo, para a alegria deles.

Tina conseguiu, a duras penas, entre um porre e outro, concluir seu curso. Falava com o pai muito de vez em quando, principalmente quando queria um suplemento de verba. E houve vários. Seu pai, que nunca reclamava porque tinha fontes inesgotáveis, um dia reclamou:

- Onde você anda enfiando tanto dinheiro, menina?

- Tenho tido alguns gastos a mais. É tudo muito caro.  Ando pensando, inclusive em voltar para casa. Está ficando complicado por aqui.

- Ok. Ao menos me diga como foi o seu ano. Conseguiu concluir a etapa?

- Sim. Terminei o curso, mas aqui não tem o que eu quero fazer.

- O que você pretende fazer?

- Por enquanto não vou dizer, mas fique tranquilo. Se não conseguir nada aqui, volto para casa.. 

O pai mandou uma bela suplementação de verba. Segundo disse, também serviria como presente de Natal. Ou seja: não venha. A verdade é que toda a suplementação de verba que Tina pedia era guardada. Tinha já uma bela poupança para fazer outras loucuras, ou para dar um rumo definitivo em sua vida. O certo é que ela queria ir para longe. O mais longe possível. Foi quando descobriu o intercâmbio, e as facilidades que a Austrália oferecia para jovens, profissionais ou estudantes. Era o caminho. Austrália, cultura inglesa... Rock e faculdade. Era o caminho.

 Tempos depois, Tina arrumou algumas coisas, carregou na maquiagem punk e foi visitar seu pai e sua madrasta, que a receberam horrorizados. Não mudara nada. Mais que isso: mudara para pior. E Tina foi logo avisando:

 - Vou fazer medicina. Lá não tem, mas aqui tem, portanto, arranjem um cantinho para mim.

 Ante o constrangimento do casal, e antes que se manifestassem, Tina concluiu.

 - Porém, a Austrália está com um programa bem legal de intercâmbio, mas eu tenho a impressão de que pode ser muito caro, não a faculdade que é subsidiada, mas a estadia por lá.

 - Bem, papaizinho querido, vou ver a Olivia e pedir que arrume o meu quarto, lá perto do dela.  

 Antes de receber a resposta do atônito Dr. Ernesto, levantou-se e foi procurar por Olivia. Pediu que a sua querida ama de leite arranjasse um quarto que ficaria por ali, entre os empregados. E assim foi feito. 

O clima da casa andava irrespirável, para a alegria de Tina, que jogara uma cartada forte.

 - Ernestina, minha filha, venha cá vamos conversar.

 Tina tinha certeza absoluta que a chamava pelo nome só para provocar. Não cairia na dele. Não agora.

 - Fui me informar sobre o intercâmbio da Austrália. É Adelaide, não é?

 - Sim.

 - Pois bem. Tem tudo para dar certo, caso você efetivamente encare as coisas como deve encarar. Você é voluntariosa e eu já sei que sabe fazer acontecer o que quer. Eu banco, mas sem exageros.

- Não sei, Dr. Ernesto. Fale um pouco mais sobre esse seu “sem exageros”? Caso eu opte por ir, o que ainda não está decidido, quero as coisas bem claras.

- Entendo. Você pode vender o seu apartamento e comprar algo por lá. Posso complementar uma eventual diferença. Quando a mesada, deixa eu ver... O ideal seria mandar em dólares, mas aí teria algumas implicações.

- Vamos imaginar algo assim: você compra um apartamento por lá, posso até agenciar por aqui, sabe que tenho algumas influências, e eu dobro a mesada que lhe dou atualmente.

- Duas coisas: não quero vender o apartamento daqui. Dina precisa dele. Se eu tiver que vender será para ela, quando ela puder pagar. E outra: você me manda o valor da minha mesada multiplicado por três, já que tudo por lá é na base do dólar. Não fará falta e o seu lucro, eu sei e nós sabemos querido Dr. Ernesto, será compensador.

- Ernestina! Eu não sou banco, nem imobiliária, muito menos tenho vocação para filantropia. Você já está abusando da minha paciência. Foi um erro permitir que você interagisse tanto com a criadagem. Agora quer fazer caridade  com o meu dinheiro?

- Está certo. Você tem toda razão, Doutor Ernesto. Talvez sejam demasiadas as minhas condições. Estamos então conversados. Já pedi para a Olivia abrir mais alguns espaços lá por baixo. Tenho coisas para trazer. Amanhã mesmo vou tratar da minha mudança para cá. Aí você pode vender, se quiser, o apartamento.  A menos que você me proíba de voltar para casa.

Doutor Ernesto estava embretado. Sua esposa não aceitaria aquilo e a presença de Tina naquela casa quebraria a harmonia.  Tina ainda estava dando instruções à Olivia sobre o espaço que precisava, quando foi chamada ao escritório do pai.

“Bingo!” – Pensou.

- Ok, Ernestina. Vou fazer as suas vontades. Você vai para Adelaide e eu alugo um apartamento perto da sua faculdade. Farei os depósitos de acordo com a sua exigência. Mas, por favor: faça tudo isso valera pena.

 - Ok, papaizinho querido, e eu vou confiar em você. Vou providenciar o passaporte e demais coisas  Preocupe-se apenas em fazer os depósitos que eu tomo conta do resto.

Tina voltou para casa com sabores diferentes na garganta. Sim, conseguira o seu objetivo, exatamente como tinha planejado. Em que tipo de família a tinham colocado? Não tinha uma família. Tinha Olivia de quem sentiria saudade e que sabia que não viveria por muito tempo. Era velha e doente.

- Dina, minha parceira querida. Tenho notícias para você. Começo pelas ruins ou pelas boas?

 - Comece pelas boas.

 - Você herdará um apartamento. Pequeno, esmirrado, mas será todo seu. Todo, todo ainda não. Só depois de pagá-lo. E como você vai pagar? Quando puder. Eu vou embora.

 - Mas Tina, meu anjo! Eu não tenho condições de pagar. Nem meu pai.

 - Que parte do que eu disse que você só pagaria quando pudesse, que você não entendeu?

 - Mas querida, eu não posso aceitar isso. Então pago um aluguel, algo assim.

 - Ok. Vamos fazer o seguinte: sabemos quanto custa esse apartamento. Sabemos mais ou menos quanto se paga de aluguel por ele. Você estabelece um valor que seja confortável, que não interfira nas suas finanças e me paga por mês. Mas tem um detalhe: fazemos um contrato de compra e venda e todo o valor que você me pagar será abatido. Fica bom assim?

 - Que anjo é você, Tina? Quero que me perdoe, mas como alguém saído daquela família pode ser como você? Meu Deus! Mas que falta você vai me fazer.

Estava pronto, tudo encaminhado e Tina foi embora. Chegando lá tratou de estabelecer-se. Perderia o restante do ano, mas aproveitaria para conhecer e acostumar-se com a cidade. Ao menos uma coisa de bom tinha tirado da madrasta: melhorara e muito o seu inglês  e isso facilitaria  as coisas.

Conseguir apartamento foi muito fácil. Passo seguinte foi juntar-se a comunidade do rock e suas intercorrências. Aquele não era um bom caminho, mas enfim, não tinha nada para fazer até começar o novo ano e precisava ocupar seu tempo. Que passou, tão rápido que nem percebeu. Talvez porque maior parte dele permanecesse bêbada ou fumada.

Enfim, hora de voltar a estudar. Em lugar nenhum estava escrito que uma coisa invalidava a outra: rock e estudo. E ela tinha fôlego o suficiente para dar conta de tudo isso.

Aos poucos foi se tornando uma líder, além da personalidade dominante, tinha um talento enorme para o palco. Tinha uma linda voz e fazia grandes performances. Foi se consolidando rapidamente.

- Bloody Mary, please...

“Esse carinha do bar é novo no pedaço. Jeitinho de caipira, todo certinho, cara limpa. Aposto que em um mês estará barbudo, cabeludo e de roupa preta. Acho que já vi na faculdade... Sei lá”.

- Bloody Mary, please.

“ahahahah... A cara que ele fez. Acha que eu deveria pedir Martini... Gostei dele”.

- Ei você! Traz mais um Bloody Mary!

- Estou de saída...

“Putz, estou bêbada falei em português. Mas ele também respondeu em português... É brasileiro!”

Tina encontrou o rapaz em uma festa. Foi abordá-lo e o fez de forma irônica, mas parece que não deu certo. Ela já dominava de tal forma aquele ambiente que estranhou a reação do caipira.  Não estava mais acostumada a ser rejeitada”

“Ah, mas vou domá-lo. Ah vou! Vou tentar de outro jeito, talvez do jeito dele, afinal é brasileiro, seria legal se fôssemos amigos. Mas ele teria que mudar um pouco. Ô...”

Assim começou a nova batalha de Tina, primeiro para aproximar-se e depois para dominar a nova situação representada pelo tal  caipira. Só foi se dar conta que estava caída por ele algum tempo depois. E talvez tenha começado quando, depois de uma ressaca, saiu às pressas de casa, atrasada, com o cabelo preso, sem maquiagem e ele, quando se deparou com ela, mostrou o sorriso mais bonito que ela já tinha visto. Dali para o resto da vida, seria só a questão de contar os tempos.              

 

“O lugar de ressarcir afetos é na sua origem

A mãe de Ramon morrera relativamente jovem, depois de longa enfermidade. Seu pai aposentou-se para poder cuidar dela, porque sabia que o quadro era irreversível. Lembra-se muito bem daqueles dias de angústia. Era pouco mais que adolescente e viveu com muita intensidade aquela dor. Quando surgiu a oportunidade do intercâmbio, os dois, pai e filho, colocaram na balança todos os custos, não só financeiros. Não poderia ser apenas uma aventura. Ramon pai, embora não vivesse com recursos contados, não dispunha de extras para esbanjar. Ganhava o suficiente para ter uma velhice tranquila e ajudar o filho a encaminhar-se na vida. Mas havia um outro custo, esse intangível, para o pai. 

Que essa oportunidade de ir para longe não fosse só um sonho, mas um objetivo a ser buscado intransigentemente, deixou bem claro ao filho.   

Ramon Filho comprometeu-se em fazer com que o custo mais pesado fosse a solidão do pai. Conformismo às vezes é necessário para que não se alimente o sofrimento. A equação seria simples, resultando na confiança de que o filho faria de tudo para honrar cada centavo gasto. E para quem fica, nenhuma dor haveria de ser maior do que a vivida com a perda da mulher comum de dois.

No dia da viagem o pai Ramon estava engasgado. Quando a esposa morreu, obviamente que a vida tinha mudado. Não comemoravam nada. Nem Natal, nem aniversários. Apenas cumprimentos e abraços de praxe e breve para que não acabasse em choro, que seriam derramados em algum outro lugar da casa ou fora dela. Ramon pai era do tipo “homem não chora”. Imagina homem e policial!  Mas nesse dia, o da viagem, desmanchou-se. Desmancharam-se  abraçados. Encharcando seus ombros de água salgada e sentida. E pela primeira vez o filho beijou aquelas bochechas espinhentas, de barba mal feita do pai.

Nesses quase vinte anos de afastamento,  Ramon estivera uma única vez em casa. Havia duas razões muito grandes para se mantivesse pela Austrália: a distância e o custo de percorrê-la.

Fim  de um longo ciclo. Hora de resgatar coisas e ressarcir afetos. 

Ramon encontrou o pai com a vida refeita. Estava jovial, feliz, casado com Eloisa, uma linda mulher, que parecia saber como domar a “fera”. Trata de conduzí-lo como quem conduz o gado rebelde para a mangueira: vagarosamente e sem alarde. Só assim para controlar aquele velho e rabugento coração. Vivem em função um do outro, cheios de cuidados e atenções mútuas e nada poderia ser mais reconfortante que isso. E finalmente conheceu esse irmão, o carismático Nonato. Por tudo que soube  dele, já de início, percebeu que estava diante de um protagonista. O que faz, como se entrega às ações que se dedica, Ramon Filho deu razão ao pai. Nonato está no patamar das criaturas mais generosas que existem. É “o cara”. Ele poderia ser o que quisesse. É Inteligente, culto e com uma energia inesgotável, a despeito de suas dificuldades de locomoção. A preferência pela carreira que abraçou e como se entrega a ela diz muito sobre ele. Nonato saiu de casa, porém, não foi para longe. Construiu a sua ao lado da dos pais, e assim, diariamente, ao menos um beijo passa para dar. Nonato nem pensa em casar. Disse que só não vai ficar para titio porque ninguém se prontificou a lhe dar sobrinhos (é um debochado, como seu Ramon). Mas desconfiava-se que não queira casar também para não descuidar dos pais.  Segundo Eloisa, houve uma época em que ele lhe apresentava uma namorada ´”essa-é-pra-casar-mãe” por mês. Eloisa chegou a conclusão que essa era uma forma de tratamento dele com as namoradas. 

Pela ordem natural da vida, cada ano que passava era um ano de risco para os velhos. Daqui a pouco seria cada mês, semana e dia. É para o que todos  deveriam estar preparados. O tempo não perdoa. E para isso estava de volta. Um suporte técnico, em função de sua profissão e afetivo. Nonato não estaria sozinho.

Com o tempo, a acomodação das estruturas e o ajuste dos temperamentos, a família recém ampliada não se perdia de vista.  Ao menos uma vez por semana sentavam para conversar, Nonato, Ramon e Tina. Criaram esse hábito primeiro em função dos pais e depois pela grande afinidade que desenvolveram. Nonato arranhavam um violão e Tina, embora continuasse gostando de rock, já entoava baladas mais suaves. De vez em quando, entre uma conversa e outra vinha um violão, e a noite, que deveria consumir perto de oito horas de sono, se satisfazia com quatro, cinco, quando muito. Também porque, cada vez que ela abria a boca para cantar, Ramon desejava ter filhos. Ao menos tentar.

Nonato apresentou a Tina algumas obras sociais que a deixaram muito satisfeita, e facilitaram seu entrosamento na cidade.    

Nonato tinha coisas guardadas que geravam desconforto, sobre o que um dia iria falar. Deixa claro isso, mas o casal respeitava o seu tempo. Disse que talvez escreva a respeito porque são histórias ricas, de variados e extremos sentimentos. Não só em relação a atividade que se dedica nas comunidades mais pobres, creches, presidiários e famílias. Coisas suas, com reflexos em terceiros.  Mas em primeiríssimo lugar, sempre deixou muito claro isso, estão Ramon e Eloisa. Repete a todo momento que não sabe se seria alguma coisa na vida, não fosse por eles

- Ramon e Tina, meus amores: precisamos ter uma longa conversa

O casal percebeu que era chegado o momento de revelações.

- Café ou uísque, minha África? – perguntou Tina rindo, querendo dizer que compreendia que não seria um assunto de fácil abordagem.

Para a surpresa do casal, Nonato falou.

- Se tem uísque em casa eu quero uma dose.

Era grave. Nonato não bebia nem Sidra. E começou:     

- Vocês sabem que Diego, o filho da Eloisa que está preso, teve uma namorada, que teve um filho, que morreu durante o parto e a criança também morreu, certo?   Pois então. A mãe de fato morreu, a criança não. Essa criança foi deixada à porta da creche, enrolada em jornais semimorta, a mercê dos cachorros de rua. Na mesma creche que eu. E em função da alta carga de drogas abortivas que a mãe foi obrigada a ingerir, e que a sua morte, a criança nasceu deficiente. Agora... Vocês sabem qual deficiência que a criança tem? A mesma que eu. 

- Quando foi isso, Nonato?

- No dia em que eu nasci. 

- Pelo amor de Deus, Nonato! – Exclamou Tina – O que você está querendo nos dizer? Que essa criança é você?

- É isso aí. Eu sou o filho do Diego, que eles achavam que tinha morrido. Portanto, também neto da Eloisa. Caso o assunto fosse de fazer graça, vejam só a quantidade que daria para fazer em função do meu próprio parentesco. Sou meu tio!

Ramon, que custava um pouco a reagir a sentimentos tremia os lábios. Tina estava agarrada ao braço de Nonato e Ramon sentou-se do outro lado para também abraçá-lo. Assim ficaram por um tempo, apenas em silêncio.

- A Eloisa precisa saber disso. Quando vamos falar? – Perguntou Tina.

- Aí é que está o problema. Eu sei disso há algum tempo. Graças a Deus vocês estão aqui para podermos dividir essa bronca. Não sei. Não tenho ficado muito por lá desde que descobri. Essa língua solta que herdamos do seu Ramon, popular franqueza, vai acabar me traindo. A última coisa que quero é causar algum tipo de impacto que possa gerar sofrimento a eles.

- Diego sabe?

- Não, não contei também. Ele, nesse caso, é o que menos me preocupa. Talvez sirva apenas para aliviar uma de suas culpas. Mas não tenho certeza nem disso, apesar de estar, muito em função do seu estado crítico de saúde, um pouco mais humano.  Pelo menos dessa vez, que eu me lembre, não sei como proceder. Claro que devo contar, mas não sei como nem quando. Aceito sugestões.

Ramon e Nonato costumavam encarar situações, em especial as de risco, da forma que aprenderam com o pai. Diretos, sem meias palavras ou muitas firulas. Nonato até romanceia um pouco para amaciar. Mas essa situação era atípica. Tina, no entanto entendeu que a situação, mesmo sendo grave, não era para tudo aquilo. Muito pelo contrário.

- Nonato, você disse que caso contasse para Diego serviria para aliviar uma de suas culpas, não foi? Pois bem. Imagina o alívio que isso representaria para Eloisa, que junto com o marido, foi obrigada a guardar isso para o túmulo? Claro que devemos ter tato e nem pensar em contar primeiro para o Ramon pai. Nem que implorássemos ele esperaria mais de um minuto para contar a ela e da forma com que conta, tipo ”Eloisa, tu és avó do Nonato. Ele é o filho do Diego que achávamos que estava morto”. Ele é um fofo. Bem igual aos filhos. Vamos reuni-los e contar para o grupo, bem felizes. Temos de tornar essa revelação o mais leve possível.   

- Assim sabes um pouco mais do porquê me apaixonei por essa mulher, Nonato

- Eu teria me apaixonado por ela porque é linda.

- Sai fora!     

Não era tão simples, mas o caminho era esse. Minimizar as coisas de forma que colocasse nuvens no drama.

- Outra coisa, meninos... Aguardar até o Natal é muito? Falta um mês.

- Ah, não! Não vou esperar tudo isso. Estou já engasgado há algum tempo e não vou aguentar até lá.

- Certo. Tu és o protagonista e nós teus coadjuvantes, meu irmão. Ajudamos no processo, mas tu só nos prepara um pouco antes de quando resolveres contar. Estamos acertados.

Dias depois, Nonato foi até o consultório do casal e esperou por Ramon. Quando pode ser atendido, entrou.

- Ramon, amanhã é sábado. Vocês têm algo para fazer à tarde? Pergunto por que ando sufocado com aquele assunto. Não quero mais esperar.

- Certo. Espera pela nossa chegada. Vou combinar com a Tina ou queres ir lá em casa hoje para acertamos as “falas”?

- Ok. Vou lá para filar a janta.

- Não foi isso que eu quis dizer.

A noitinha do sábado chegou o casal e Nonato, que espiava pela janela saiu e foi ao encontro deles. Chegaram juntos à casa. Eloisa, avisada por Nonato já os esperava com alguns quitutes para “beliscarem”. Não fez janta. À tarde, Nonato deixara uma garrafa de vinho branco na geladeira, que Ramon foi logo abrindo. “Tudo muito estranho” pensou Eloisa. 

- Crianças,  o que é que vocês estão querendo nos contar ? Por que toda essa pompa? Morreu alguém? Vou ser avó?

Nonato sentou-se em frente a mãe e ao pai segurou suas mãos.  No outro sofá, Tina sentada na perna do marido. Ele quase sempre falava sorrindo. Quando falava com Eloisa, além do sorriso, destilava doçura. Mas tinha um jeito próprio de dar informações. 

- É o seguinte, meus velhos queridos e, por favor, não se aflijam porque o que eu vou contar a vocês é algo que não vai mudar em nada nossas vidas. Pode até melhorar algo. Ramon e Tina já sabem. Desde que comecei a conversar com Diego tenho tido curiosidades sobre a vida dele. Quis saber, entre outras coisas, sobre a namorada que morreu...

- Esse assunto me machuca muito meu filho. É necessário?

- Calma Eloisa, o final você vai gostar – disse Tina

- Pois bem. O nome da moça era Alice, que faleceu no parto. Eu descobri que a criança, que todos achavam que tinha morrido não morreu. Quando nasceu, a mãe da Alice, com medo das reações do marido que havia prometido matar a todos, caso  Alice aparecesse grávida, tratou de retirar a criança do hospital no mesmo dia. Como ela conseguiu convencer ou combinar com alguém de que registrasse também o óbito da criança eu não sei. O que sei é que a avó, D. Dolores, enrolou a criança em um avental, depois em alguns jornais e a colocou no chão, na porta da creche. Diz que não foi embora em seguida. Diz que ficou ali a espera que as primeiras pessoas da creche chegassem para o expediente.

- Que horror, meu Deus! Que falta de humanidade! Mas não posso nem julgar. Sou cúmplice dessa barbaridade – lamentava Eloisa.

- Calma, mãe.  A creche é a mesma em que eu morei. A criança, na verdade ficou anos na instituição. Por ser negra e ser deficiente física, sempre sobrava na fila de adoções. Estava fadada a ficar lá para sempre. Um dia, no entanto, como tantos, porém perto do Natal, essa criança resolveu escrever uma cartinha, dessas que se colocam no Correio pedindo presentes.  De diferente, só que ela não pedia presentes comuns. Era algo muito especial e que não se comprava em lugar nenhum. Ela queria passar um Natal em família. Queria sentir como era uma noite de Natal com todos reunidos

Ramon pai, que já levantara e andava em círculos, de braços com a nora, parou e começou a olhar fixamente para Nonato, tentando ler os pensamentos e antecipar as falas. Eloisa ainda estava serena e apenas ouvia.

- Mas esse menino não teve a sorte de ser atendido e sabem por quê? Sua cartinha caiu nos bolsos de um senhor viúvo e sozinho, portanto sem família. Puro azar do negrinho, vocês podem estar pensando.

- Tu achas mesmo isso, pai?

Ramon já estava sentado de novo, com um braço sobre os ombros da esposa , tremendo os lábios. Eloisa olhava suavemente para Nonato e seus olhos começaram a molhar. Ramon Filho e Tina se juntavam aos dois, e Nonato concluiu.

- Pois enfim, esse senhor, cheio de culpas por ter pegado uma cartinha que não tinha condições de atender, acabou casando com uma viúva que encontrava seguido no cemitério, com a desculpa de que seria para adotar o negrinho das pernas bambas. A verdade é que eram apaixonados um pelo outro, mas não queriam comprometer suas liberdades. Temiam, de certo, que o gato dela não se desse bem com o cachorro dele, cujo cusco tinha um nome curioso: Meufilho.

O velhos pais e agora novos avós, derramavam-se em lágrimas, sem poderem definir que tipo de emoção sentiam.

- Pai e mãe, para finalizar, peço que leiam esse bilhetinho.

Ramon pegou e abriu para que ele e a esposa lessem juntos: “Ramon e Eloisa, posso chamar vocês também de vó e vô?”

Eloisa, com o rosto encharcado de lágrimas desmaiou nos braços de Ramonzinho e Tina foi buscar sua maleta. Ramon pai levantou-se trêmulo e foi abraçar Nonato. O velho e sisudo Ramon, ex-policial acostumado a enfrentar as piores coisas da vida, chorava de sacudir. Não conseguia articular uma palavra sequer. Alguém, com um “pouco” de exagero poderia filosofar: “... e assim Deus criou os oceanos!”. Três chorando e dois médicos aflitos, também chorosos, em atendimento em uma fonte inesgotável de água salgada.

- Você não tinha me prometido tanta emoção, quando me convenceu a voltar para o Brasil, meu amor. – Disse Tina a Ramonzinho, assuando o nariz. 

Ramon Filho tinha levado Eloisa no colo para o quarto e tratava de recuperá-la. O pai, buscando-a com o olhar e não a encontrando onde estava, começou a entrar em desespero. Quando chegou ao quarto, vendo-a deitada, recobrando os sentidos, deitou-se ao lado dela, já mais calmo.  

Aos poucos o trem da emoção retornava aos trilhos. Trem? Um comboio. Emoções como essas, no mais das vezes são sucedidas por um profundo estado de paz, ou não exatamente de paz, mas um torpor. Alguém precisaria quebrar aquele silêncio.

- Não sei vocês, mas se ainda tem vinho aí eu vou beber. Médicos não podem ter as mãos trêmulas. Nonato, sirva aquele restinho de vinho para a sua tia - brincou. E agora voltemos todos para a sala e vamos encarar os novos fatos. - - Venha, Eloisa, eu acompanho você. E Eloisa levantou-se ainda aturdida, e deu o braço para Tina.  

Todos recuperados, a exceção de Nonato, que ainda parecia atônito, com o olhar perdido, ou como um balão que acaba de ser esvaziado. Levantou-se e foi servir o resto de vinho para Tina.    

- Eu sabia que seria difícil, mas não dimensionava o quanto. Mãe, tu estás bem? Por favor, não faça com que eu me sinta culpado por ter falado.

- Estou bem, filho. Não sei o que dizer. Sinto tanto...E tenho tanto a agradecer...  

- Meu bem, mesmo em silêncio, eu sempre soube o quanto te culpavas pela morte daquela criança, pela cumplicidade com Diego, por omissão. Este não pode ser um momento de tristeza, muito pelo contrário. Olha só a bênção que recebemos! Criamos o teu neto como nosso filho, e o amamos como se ele fosse tudo isso, e é só nosso. Venha cá, Nonato, abraça a tua mãe. Ela será sempre isso, ou melhor, agora um pouco mais que isso.

Havia o risco de que os choros retomassem e com as mesmas conseqüências anteriores. Assim, Tina, a maravilhosa Tina interpôs-se dentre Nonato e Eloisa, dizendo com firmeza:

- Você trate de não fazer a sua vó chorar de novo. Se não eu vou achar que você foi mal ensinado pela sua mãe!

Todos riram. Ramon Filho passou o braço sobre os ombros do pai e perguntou:

- Como não amar essas mulheres? – referindo-se a Tina e Eloisa, e foram sentar-se na varanda da casa sendo seguidos pelos demais.

- Nonato, meu filho que coisa mais absurda tudo isso! Há quanto tempo sabes disso? – era Eloisa falando.

- Como disse, sei há algum tempo. A primeira desconfiança que tive, pode parecer banal, ou um simples estalo, mas foi quando meu tipo sanguíneo bateu com o de Diego, quando fui doar. E a partir daí comecei a ligar os tempos, os fatos, juntar histórias, ouvir pessoas. Mas se no primeiro momento soubesse que esta criança aqui tivesse a mínina chance de estar viva, eu teria ido direto à creche. Lá estavam algumas informações sobre o casal que  a adotou. Era tão simples. Não fiz isso porque, em principio, e o hospital tem esse erro por lá, mãe e filho teriam morrido.

 - E mais uma coisa: agora parem de me cobrar neto. Acabo de dar um para vocês.

- Palhaço!  

 Nonato disse que o passo seguinte seria contar para o Diego. Bem ou mal teria sido o pai da criança. A mãe concordou, fazendo uma pequena careta de pouco caso.

- Infelizmente não vejo que isso possa sensibilizar aquela criatura. Mudou  desde que começou a conversar contigo, mas ainda acredito que a mudança maior esteja na razão direta em que se aproxima do último juízo. As coisas estão tortas mesmo. Imagina que ele foi capaz de produzir alguém como tu! Mas sabe... Eu até que gostaria de ver a cara dele quando tu fosses contar...

- Queres ir junto?

- Não, não tenho coragem. 

A noite corria, mas os filhos não arredavam o pé da casa dos pais. Estavam, por certo, receosos de irem embora. Nonato deixou passar alguns dias e foi até Diego.

- Então, Diego, como estás?

- Morrendo. 

- Seguinte: vamos ter um assunto bem longo e eu pedi um espaço maior de tempo para a administração. Temos de falar sobre algumas coisas do teu passado.

- Não estou gostando nada disso. Mas vai ver chegou a hora do juízo final.

- Pois é. Ainda não é o juízo final. Não sei se não vais ficar ainda pior, mas é necessário que falemos.

- O nome da tua namorada, a que morreu era Alice, certo?

- Para aí! Que história é essa? O que sabes disso? A mãe te falou alguma coisa?.

- Relaxa. Ninguém me falou nada, eu fui descobrir por conta.

- E o que te interessa isso? É uma coisa minha. Nem tu nem ninguém tem alguma coisa a ver com isso. Nem sei exatamente do que se trata.

- Sabe sim, Diego. Alice, filha da Dona Dolores, que teve um filho, mas morreu no parto. Nós vamos falar sobre isso sim, porque não diz respeito somente a ti. Mesmo porque, o filho que achavas que tinha morrido está vivo. .

- O que? Para com isso! Impossível! Nossa conversa termina aqui. Pode ir embora, e se quiser, pode esquecer que eu existo.

- Diego isso não é um inquérito, não vais responder criminalmente sobre mais nada, e mesmo que fosse, que diferença faria agora? Tu talvez nem saia daqui mesmo. Vamos conversar até que eu te diga que terminamos. Hoje a regra é minha. Teu filho nasceu, foi largado na porta da creche pela mãe da Alice, enrolado em alguns jornais. Lá ficou até os nove anos, até ser adotado.. Ninguém o queria dele por ser negro e mais, pela carga de abortivo que a mãe tinha ingerido, ele nasceu deficiente.

- Ok. Bem... Sim. Alice e Dona Dolores. Dei alguns remédios para ela tomar sim, mas não sabia com quantos meses ela estava. Ela também me disse que não sabia.

- Pois bem. Vamos resumir. Sabes qual a creche em que essa criança ficou? A mesma minha. Sabes que deficiência ela tem? A mesma minha.  E concluindo, seu Diego: tu sabes qual foi a mãe que criou essa criança como se fosse filho dela? A mesma tua.

Nonato não facilitava nada. 

- Puta que pariu, negrão para de brincar comigo! Isso é sério? Não posso acreditar em uma coisa dessas! 

- Pois olha, pra mim tanto faz quem seja o dono do sêmen. Tenho os melhores pai e mãe que alguém poderia querer. A nossa conversa não tem o intuito de resgatar nada, ou estabelecer uma nova relação. As pessoas que eu gostaria que soubessem já sabem. E não estou te contando para que tenhas um pequeno alívio de consciência. Sabemos tu e eu, que isso está em falta por aí. Conto porque eu sei que a mãe gostaria que tu soubesses e porque, enfim, algo de bom deixaste neste mundo:  no caso eu – Concluiu Nonato rindo.    

Diego ficou distraído, custou a quebrar o próprio silêncio. Não sabia o que dizer.

- Como a mãe reagiu a isso?

- Desmaiou, mas ficou bem. Agora temos dois médicos na família, que estavam juntos. Pai e mãe receberam todos os cuidados. Mas não foi nada fácil passar por aquele processo. Nem para eles, nem para mim

- Imagino.

Diego perguntou se Nonato tinha terminado e se ele poderia ser recolhido. Com o consentimento, despediu-se e foi para sua cela. Não demonstrava sinal de emoção nenhuma.   .

 

“A gente não perde o que não tem”

Quanto terminou a conversa com Nonato, Diego não conseguia ordenar os pensamentos. “O negrão é meu filho! Mas que diabos de peça o destino armou para mim? E eu estava gostando do negrão! Que coisa!”

Diego estava muito debilitado. Sentia que seus dias estavam contados. Tinha a opinião dos médicos do hospital e mais a  opinião de Ramon Filho, que Nonato tinha pedido que fosse vê-lo. E as opiniões convergiam. 

Arrepender-se? Pedir perdão? Nem forças tinha para isso. Ademais, o único perdão que gostaria de pedir seria para a mãe, mas nem ele, com o flash de consciência que adquiriu nas conversas com Nonato, se achava merecedor. Diego nunca acreditou nessa coisa de arrependimento. ”Ora, arrependimento... Quem se arrepende das coisas ruins que fez e que deram certo? Então isso não existe”.

Na semana seguinte, Diego foi levado às pressas ao hospital, com uma aguda crise renal e outras complicações. A família foi avisada e passaram estar com mais frequência na sala de espera. Queriam poupar Eloisa, mas quem haveria de convencê-la a aceitar? Tina cancelou sua agenda, com muito mais trabalho voluntário do que a serviço da clínica que dividia com o marido para acompanhar a sogra. Diego não reagia. E nada mais poderia ser feito. Foi para o quarto com a sentença final prestes a ser executada. A família reuniu-se ao redor dele e assim ficaram até o último momento.  

Há aquele lapso de tempo curto de consciência e lucidez em que os moribundos interagem com os circundantes. Dizem que é o momento que Deus concede para que diga suas últimas palavras, peça seus perdões e deixe uma mensagem boa de despedida.  Com Diego não foi diferente. Com a voz que lhe restava disse:

- Negrão, graças a ti, descobri que fiz uma coisa boa neste mundo. Tentei te matar e não consegui. Sobreviveste para me jogar na cara que o bem acaba vencendo. Não sei o que é orgulho, mas acho que é um pouco do que senti quando disseste que eras meu filho... Amor eu só sei o que é porque via nos olhos da mãe, mas não sei exatamente que sentimento é esse.  

- Mãe querida, não me perdoe, porque eu não mereço. Diga apenas que nunca deixou de me amar. Vou partir em paz sabendo disso. Finalmente tens uma família boa e bonita, como tu e o pai queriam. Mereces. Aqui se vai a única coisa ruim que restava na tua vida. E foram suas últimas palavras.

 Eloisa não chorou. Com uma mão segurava a do filho e com a outra acarinhava sua cabeça. O marido foi ampará-la e a retirou para que os procedimentos finais começassem a serem feitos.

 - Venha, meu bem, vamos aguardar em outro lugar.

 Ramon filho e Nonato encarregaram-se dos preparativos fúnebres.

  

“A paz é o melhor caminho para a vida eterna”

 Ramon estava com 90 anos e Eloisa com 85. Ambos lúcidos e com saúde razoável, adequada à idade. O pai se rebelava um pouco para seguir as recomendações do filho médico, nunca da nora. Tina não negociava, sequer precisava argumentar. Ambos, no entanto, vieram para assumir essa bronca no lugar de Nonato. Eram autoridades em saúde.

 - Hora dos presentes!

 Os tais presentes ditos por Nonato não significavam trocas de mimos natalinos. Desde que crescera, e na ausência de crianças na família, optaram em fazer uma reunião de confraternização, uma ceia e por algumas horas conviverem conjuntamente na paz que conquistaram. E uma característica muito especial nessas reuniões de Natal: todos haveriam de falar e contar, nem que fosse as mesmas histórias de sempre. O papo sempre ia ao amanhecer.

 - Quero falar um pouco, meus filhos; quero que todos falem. Essa família é um organismo tão vivo, tão intenso. Ramon e eu andamos nos sentindo meio saudosistas. Quero relembrar um pouco da nossa história. Sem crianças na família, palavras são o melhor presente. Até o neto que eu ganhei já veio com  trinta anos, imaginem!

 - Ouçam: por mais que nós valorizemos a verdade, uma boa parte disso tudo aqui começou com uma grande e deslavada mentira.

 Eloisa fez uma pausa ensaiada e os rostos ficaram tensos, com ar de surpresa.

 - Sim. Hoje vou confessar ao Ramon e espero que ele me perdoe, que lá, naquele distante dia de finados, eu não tinha esquecido os fósforos coisa nenhuma.  

 - UFA! - Em coro, antes dos risos.

 - Acontece que nós éramos dois mortos-vivos plenos de vida, a espera de um encontro com o nosso passado em um futuro não marcado, e à mercê da vontade de Deus. Eu estava viúva há mais tempo, por isso já não conversava mais com o Roberto. E aquele homem sentado naquele banquinho, conversando com a esposa me tocava profundamente. E eu o via, mas ele não me via, sequer me olhava. Naquele dia de finados, quando o vi cobrir o túmulo da esposa de dálias, eu me toquei profundamente. Pedi perdão ao Roberto e fui à luta.  Ora... Alguém precisava dizer a ele que ele não estava morto.   

 - Tive perdas horríveis. Perdi a família que construiu. Meu finado marido praticamente se matou de desgosto e meus filhos fui perdendo aos poucos, a partir da adolescência, mas que fiquem na paz de Deus. Sobre eles só falo quando rezo. Mas por tudo isso, eu sabia, ou desconfiava que Deus não iria permitir que eu passasse pelo mundo sem ser plenamente feliz. Quando veio o Nonato, aquele menininho de aspecto frágil e de olhos tristes eu tomei a sua vida como missão para a minha. Mas foi só ele começar a abrir a boca e soltar-se que percebi o real tamanho daquela criaturinha. Era um gigante aprisionado em uma pequena carcaça. Perceber isso facilitou muito as coisas para nós, Ramon e eu. Foi só fazê-lo saber que era livre para crescer e voar, se quisesse. Vocês, Ramonzinho e Tina, vieram complementar essa minha felicidade. Os olhos do Ramon, enquanto ele me contou que o filho ia voltar estavam repletos de luz... Era tanta felicidade que sobrava pelos lados, e eu tratei imediatamente de roubar um pouco.para mim. Roubei e guardei bem guardadinha para que nunca escapasse. Querem ver? Olhem bem para mim. E Tina, quando casei eu sonhava em ter uma filha. Pelas minhas contas não seria como tu, no entanto, se eu olhasse daqui para trás, me puniria se caso tivesse tido uma e não conseguisse fazer com que ela fosse minimamente  parecida contigo. Tu estás acima da expectativa de qualquer mãe, e veja: caiu de graça aqui no meu colo! 

 - Vocês devem estar pensando: mas afinal, o que deu nessa velha? Já está se despedindo, acha que já vai morrer e não quer sair de cena sem fazer discurso?  Pode ser, pode não ser, quem vai saber? Na idade em que estamos qualquer hora pode ser hora e, de fato, não quero ir embora sem dizer para vocês o quanto os amo e o quanto me fazem bem. Eu não reclamaria ter de partir em um momento como este. Ah, não mesmo.

 - Bem... Quero ouvir... O meu velho, eu tenho certeza de que também tem coisas para dizer.

 - Pois é. Que barbaridade! A gente não escapa do assédio nem no cemitério. Mas é verdade. Eu só não me mudava para o túmulo da Mirian porque tinha o  Ramonzinho. Custei a ver essa senhora, mas quando vi... Bem... Se quando jovem já era tímido, depois de velho só entraria na dança se me tirassem para dançar. Depois disso fiz a minha parte, claro.  Abençoada mentira, minha querida Eloisa. Veja o tamanho da luz que tinha naquele pauzinho de fósforo! Acabou me acendendo não só como homem, como também iluminou os nossos caminhos. Não tive tantas tragédias na vida como tu. Tive uma perda absurda, da qual custei a me recuperar. Mirian era uma mulher tão generosa que acho ter sido ela que me fez observar a Eloisa.  Tenho desconfianças também, porque ao ser impedida por razões médicas de ser mãe novamente, ela gostaria de adotar uma criança, que foi quem colocou Nonato no meu caminho. E eu não o teria não fosse Eloisa. Aos dois devo a recuperação da minha qualidade de vida. Um anjo abençoado atirou uma cartinha no meu colo e que me fez ver o tamanho da vida que eu tinha para viver. Não sem antes eu ficar como ficava o Meufilho, meu saudoso companheiro, rodando em circulo atrás do próprio rabo. Aquela cartinha me tirou do prumo. Por sorte eu já tinha quem me aprumasse. 

 - Ramon, meu filho, quanto tu me disseste “pai conheci a mulher do Zorro. Ela ainda não sabe, mas eu vou casar com ela” eu tremi – Tina beliscava Ramon - Nunca entendi porque mulher do Zorro, mas tudo bem. O que sei, Tina, é que depois que te conheci, entendi porque Ramonzinho caiu de quatro. Quero dizer que meu coração transborda de amor por todos vocês.

 - Olha eu sou ruim de discurso, mas se tem algo que quero dizer é obrigado. “Gracias a la vida!” Pai, tu estavas certo: era uma loucura, mas eu tinha convicção plena de que ir atrás dela era como se fosse mergulhar no oásis  depois do deserto. E convicção a gente não discute, isso também me ensinaste. Eloisa, minha mãe emprestada. Obrigado por ter sabido domar a fera. Quando meu pai me disse que tinha alguém... Que talvez...  E não sei o que mais, eu já dei graças a Deus. Porque se tinha alguém por quem um velho investigador pudesse se interessar é porque valeria a pena e seria bom para ele. Só Meufilho, concordando com tudo, não seria nada legal. Os homens desta família precisam ser desafiados.

 - Acho que desde que conheci eu me derrubei pela mulher do Zorro, essa é a verdade, e não admitia. Mas me apaixonei de fato por ti no mesmo dia em que te odiaste por teres perdido, ainda que momentaneamente a tua identidade. Lembra? Cara limpa, rabo de cavalo, jeitinho de menina bem criada. Tínhamos combinado ser amigos e ali, naquele momento, eu tive certeza de que amigos jamais seríamos. Seria nobre, mas para mim muito pouco. Isso tudo já sabes, porque te falei inúmeras vezes, mas a família só agora sabe. Éramos o oposto um do outro e acabamos escrevendo a história de amor mais linda que alguém pode contar. Hoje, um pouco mais acomodado, eu lamento não ter dado a alegria de um neto de verdade para esses dois.     

 - Nonato, meu irmão. Tu construíste essa nova família. És a razão de ser de quase tudo isso. Dono de todas as ações e emoções que pairam nessa atmosfera que nos cobre. Não és só a África que prometeste ser para a Tina, a fim de que ela se sentisse em casa. Tu és uma espécie de sol por aqui. Se prestares bem a atenção, tudo que gira ao teu redor acaba bem.

 - Bem, sou a novidade dessa casa. Tenho coisas para contar. Vocês me interrompam quando estiverem cansados de ouvir.

 - Meu sogro, você me deserdaria  caso soubesse o por que esse individuo me chamava de mulher do Zorro. Mas se não fosse a mulher do Zorro, acho que não estaríamos todos aqui, neste momento. Pelo menos eu  é certo de que não estaria. Eu tentei  ser  amiga do Ramon, quase implorei isso como um pedido de socorro, mas não rolou. Primeiro veio o desafio de quebrar aquele queixo duro e depois veio a paixão, Graças a Deus. Quando vi que não podia com ele me entreguei. Entreguei a minha vida para o João-bobo.  

 - Pois então, minha nova família. Dias atrás eu disse ao Ramonzinho “Você não tinha me prometido tanta emoção, quando me convenceu a voltar para o Brasil...”. Não tinha mesmo, mas acho que era impossível prever. Ser uma menina rica me incomodava muito. A futilidade orientou a minha infância e adolescência. Bonequinha, princesinha, fadinha não me caia bem, mas só eu percebia. Minha mãe era um poço de futilidades. Até seu caixão foi importado, e minha madrasta é ainda pior. Enfim, ambas quase à altura do meu pai, o homem que inventou o ego.

 - Tive tudo o que quis e até o que não queria. Não valorizava nada porque era de mão beijada e eles não entenderam isso. Passei a contrariar tudo o que girava ao redor de poder e dinheiro. Então descambei. Aprontei de tudo naquela cidadezinha. Troquei o dia pela noite, abandonei a escola, fui às drogas, amanhecia cantando em bandas de rock... Aí começaram a me olhar um pouco diferente. Diferente no sentido de me afastar do convívio e, certo, me darem um futuro, desde que longe, afinal, minha madrasta tem duas filhas. Ganhei um apartamento para estudar em uma cidade próxima, consegui terminar a fase secundária e me preparar para a universidade. Então surgiu o intercâmbio. 

 - Fui para Adelaide e me tornei “a mulher do Zorro”, segundo o Ramonzinho, porque me vestia sempre de preto e usava uma maquiagem carregada de sombra preta ao redor dos olhos. Queria ter a minha própria banda de rock e levava uma vida similar a que tinha no Brasil. Até me apaixonar pelo João-bobo, o cara que mudou a minha vida e que eu vou amar até não sei quantas encarnações vindouras, caso haja.

 - Nonato, amo você, meu cunhado, meu irmão. Obrigado por você ter entendido a forma que eu quero ajudar aos outros praticando o que aprendi, e por me dar condições de fazer disso.  Você é um diamante negro.  

 - Agora tenho duas notícias:

 Tina Abriu sua bolsa  e retirou dela uma enorme pasta e foi abrindo.

 - Meu marido me impediu de fazer uma loucura e eu acabei fazendo outra. Dr. Ernesto, meu pai, faleceu há alguns anos e a herança que eu estava renegando, era a tal loucura. Resolvi aceitar e de posse dos recursos, que certamente tem manipulação da minha madrasta, mas isso eu vou ver  depois, acabei fazendo outra.

 Na pasta tinha uma maquete. Era de um prédio, montado sobre uma grande área de terra.

 - Isso aqui será o Abrigo Santa Adelaide, que está sendo construído à entrada da cidade. Apesar de não ser uma obra de grande porte, não será um abrigo comum. Será destinado a crianças de extrema vulnerabilidade social e eu gostaria que tivesse, além de leitos, enfermaria, escolinha e iniciação em cursos profissionalizantes e hortas para produção de alimentos. Terá também espaço para lazer e esportes. Haverá espaço para mais, mas vamos começar com 50 leitos, a Prefeitura já está a par e vai destinar recursos. O terreno é bem espaçoso e dá para fazer tudo isso.

 - Bem, meu marido eu temos a clínica e haveremos de nos revezar também por lá, além de contarmos com outros profissionais que se juntarão a nós. Haverá muito trabalho para a captação de recursos, além do que pudermos receber do governo e de alguns organismos internacionais. E aqui está o contrato  dessa nova entidade. A responsabilidade será dividida em 50% do casal Ramon e Tina e 50% para Nonato. Você, minha pequena África, como detentor da maior parte, será o gestor da casa.

 - Ramonzinho e eu escolhemos o  nome da instituição. Além de ser o nome da cidade que é berço da nossa história, essa moça, a Adelaide, tem um pouquinho a ver comigo, em face de sua origem, que renegou para se tornar padroeira de vitimas de abuso, exilados, madrastas, viúvas entre outros. É uma história sofrida, mas linda. 

 Nonato estava paralisado e não sabia se ria ou chorava. Enfim, falou:

 - Queridos! Amores da minha vida... Eu não estava preparado para tanto na noite de hoje. Eu tinha tanta coisa para falar... Mas onde raios vocês enfiaram o fio da meada? Quando escrevi uma cartinha, lá longe, eu era uma criança sem futuro. Tinha a piedade das pessoas que se transformava em cuidados. Fui bem cuidado, é verdade. Era um negrinho frágil, sobrevivente de uma brutalidade e todos tinham pena. Quando me perguntaram se eu gostaria e escrever uma cartinha de Natal para pedir um presentinho, eu escrevi, porém não deixaram a carta sair. Não estava no padrão. Qual não foi a minha surpresa quando descobri que a carta tinha ido adiante. Alguém deve te-la misturado às outras ou... Estamos diante do quarto segredo de Fátima. Ou o primeiro de Mirian.   Para meu “azar” apareceu seu Ramon, um viúvo, cuja família, ocasionalmente, era só um cachorro que ele chamava de Meufilho. Hoje é engraçado, mas na época...

 - Entretanto, quando seu Ramon apareceu lá com Dona Eloisa, então pareceu que uma porta enorme, cheia de luz se abriu à minha frente. Meu Deus! E as palavras que me disseram! Era como se um coral de anjos estivessem cantando para que eu, mesmo com as pernas que tinha e tenho, dançasse com a Brooke Shields

 - Se quando criança eu só tinha motivos para agradecer por estar vivo e sendo bem cuidado, quando essas duas criaturas divinas resolveram formar essa família invertida, não há um dia em que eu não me ajoelhe de manhã, reze por suas saúdes e agradeça a sorte por tê-los colocado na minha vida. Eu estou feliz e realizado com tudo o que me aconteceu. Mais feliz ainda em conhecer esse irmão e essa irmã. O que dizer de vocês, Ramonzinho e Tina? Eu te amo, meu irmão, e Tina, você é a mulher com quem eu me casaria, mesmo vestida de Zorro – Ramon jogou uma maçã em Nonato.

- Pensando bem, Tina, vejo as nossas histórias muito semelhantes, porque ambos tivemos uma infância carente de afeto e colo de pai e mãe. A tua rejeição dourada não é muito diferente da minha. A diferença é que os teus lençóis eram importados e os meus feitos a mão com saco de farinha. Isso, minha querida, te torna um ser humano inigualável.

- Com relação a esse presente que estás me dando hoje eu não sei o que dizer, e não vou dizer nada.  Qualquer coisa que eu dissesse, além de dizer que Nonato é um santo padroeira das parteiras e obstetras,  não estaria à altura desse gesto. Essa será uma obra que há de distinguir a nossa cidade. Vou entregar o resto da minha vida e, por favor, me cuidem para que eu continue com saúde plena para que seja um sucesso permanente. Vocês, meus queridos hão de se orgulhar muito do que estão fazendo.

- Vou até mandar gravar uma placa de bronze com o teu nome logo na entrada.

- Você não se atreva!

- Bem, bem... Agora chega. O que era para ser aquele tradicional e aconchegante bate-papo conduzido pela mãe virou um festival de confete e serpentina. Eu gostaria que esta noite jamais terminasse.  É isso. Que bom saber que pensamos tudo isso uns dos outros. Vocês quase matam Nonatinho de emoção. Agora quero sossego. Vamos todos para a varanda. Lá é o nosso lugar sagrado.

- Tina você disse que tinha duas notícias. Ou a que deste foi tão grande que vale por duas?

- Ah sim, é verdade... Meu amor, abra aquele envelope ali, que está no pé da árvore.

Ramonzinho abriu, ficou pálido e sentou-se ao lado de Tina com uma embasbacada cara de pai. Parece que os novos ares familiares estimularam algo adormecido Tina estava grávida. Ramonzinho ficou um longo tempo abraçado a esposa, beijando-a e acariciando-a.    

Eloisa e Ramon já estavam relaxados há algum tempo. Ao ouvirem a noticia da gravidez de Tina, trocaram um beijinho carinhoso e fecharam os olhos para introjetarem aquele momento. Ele com o braço sobre os ombros dela e ela recostada com a cabeça no peito dele, ambos com um leve sorriso nos lábios. Picasso era um cubista e o cubismo parece meio frio, mas seria a sua chance de arredondar as formas e retratar uma anti-Guernica. Aquilo sim era o retrato da paz.

- Ramonzinho... Acho que o pai e a mãe dormiram. Acorda eles - pediu Nonato.

Ante o silêncio consternado do irmão, Nonato suplicou, já soluçando:

- Por favor, acordem eles