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sexta-feira, 25 de maio de 2012

ESQUERDA, VOLVER!

VERSOS SATÂNICOS (50) – 
Grande chefe da tribo Tupiniquim, morubixaba Molusco que Voa estava muito a fim de andar por ai à toa, ele mais patroa, a índia galega Caturrita de Pirata. Com o fim da  mamata, não iria querer embrenhar-se na mata. Por que não ser diplomata? Ah, botar um biquíni à moda Gabeira, um maiozinho tomara-que-caia, muito coco na algibeira e um Panamá estilo Zelaya! Mas ele, por influente, precisou dar suporte à pretendente que é oriunda da tribo afluente Val Palmares. Morubixaba Molusco que Voa, ele mais patroa, queria novos ares, porém, não sem antes de eleger um sucessor. Queria alguém que lhe fizessem um favor singular: que lhe guardasse  faixa, cetro e cocar, e que depois lhe restituísse. Alguém da casa que o substituísse, usufruísse, mas que soubesse que no ano da Copa, dali a quatro luas, chave da oca seria de novo sua.

Deve ter pensado numa embaixada de além-mares, onde pudesse exercitar seus milhares de conhecimentos invulgares. Suaves formas de sugar jugulares e outras artérias auxiliares. Morubixaba Molusco que Voa, ele mais patroa, queria ficar numa boa, mas sabe que o oceano não se atravessa de canoa. Meio apedeuta pode ser, mas não é burro nem louco, portanto, todo cuidado seria pouco. Assim, aceitaria viver em outros lugares, de preferência onde não houvesse militares. Não que descarte, pois sabe que existem em toda parte, mas sabe que seria vigiado desde o desembarque, a menos que.... a menos que estivesse na jurisdição das FARC.

E assim, com uma oposição mequetrefe, nem precisou de blefe. Temos um novo comandante-em-chefe. Por sinal, acho que morubixaba Molusco que voa quase se deu mal. O marsupial não se bandeou do curral, e não que venha a ser rival, mas é poste de luz própria, etcétera e tal. Apesar da herança recebida do antigo patrão, roubalheira do primeiro ao quinto escalão, parcerias indigestas; a companheirada em festas; mensalão, ela se vira pelas Emendas. Óbvio, tem que contentar a legenda, ajeitar-se com os coligados, nem sempre do mesmo lado, mas sempre exigentes e quase sempre descontentes. A  nova morubixaba não está disposta a  governar a esmo. Não quer deixar nada “por isso mesmo” e pelo visto não quer nada que não seja seu. E por isso, de cara, indispôs-se com Palocci, Genoino e Zé Dirceu. Isto para “economia externa” creio eu.


O que vale, no entanto, é a tendência. Afinal, na vizinhança todo mundo está ficando igual. Uruguai, Colômbia e Venezuela, claro. O Uruguai elegeu um Tupamaro. E é certo que com eles nos comparo quando me deparo com esse tal fato raro. Tupamaro lá, Val Palmares, cá. Huguito (por que no te callas) acima, verdadeira obra-prima da neodemocracia latina, e morubixaba Evo Morales, a bombordo (todos a bombordo). E para completar o balaio tivemos um prolífero ex-padre paraguaio. Este com um modo peculiar de multiplicar seu rebanho, já que vinha produzindo o próprio desde antanho. No melhor estilo lacaio, vinha servindo hóstia às beatas, olhando de soslaio, examinando em que anca fincaria roseta e papagaio.

Morubixaba Molusco que Voa andava frouxo que nem calça de palhaço. Andou com muito companheiro devasso que lhe causou embaraço, mas incrivelmente não lhe tirou nenhum pedaço, pois nas pesquisas nunca dobrou o espinhaço (tipo: saiu da suruba sem perder o cabaço!). Ele sempre soube que não se transfere carisma, por isso usou e abusou do sofisma. Entretanto, com ele o povo não cisma, tampouco se abisma, e por isso seu apoio foi decisivo na conquista do objetivo, que nada mais é do que a continuidade do comando festivo rotativo.   

quarta-feira, 23 de maio de 2012

APRES MOI LE DELUGE



A Bíblia fala em retornarmos ao pó, mas não sei não. Segundo a classe competente somos ao redor de oitenta por cento compostos de água, o resto é matéria orgânica de qualidade duvidosa. Se bem que alguns seres vivos honram por demais a categoria. Dá gosto de vê-los nas telas, passarelas, praias, etc. Mas a menos que o Livrão esteja profetizando que iremos, no fim dos tempos, secar o planeta com nossos vícios e maus costumes, e nos matarmos desidratados, não vejo a menor possibilidade  de voltarmos ao tal pó, se é que de lá viemos. Acho que a coisa está mais para o lado da que consagrou o velho Noé.  

Fala-se tanto em aquecimento do globo, derretimento das camadas polares e outros cagaços metereológicos (vide os tsunamis), fora os não sei quantos desastres naturais com nomes mimosos ( El niño, La niña, imaginem!) que matam e destroem todos os anos, tudo regado a água guasqueada, que penso no nosso fim de caso com o vale de lágrimas na condição de afogados.

Dizem que vivemos vários ciclos desde os primórdios e a informação que fica é a que lá, bem no início, isto aqui era tudo água. Tudo o que é gelado na terra vira água e todo o vapor também. É o ciclo.  Tudo que sobe desce, tudo que nasce morre; quem cai para a segunda divisão sobe depois às estrelas, erguendo-se por Tóquio. O tamanho do ciclo define as grandezas, ora pois.

A metáfora religiosa fala sobre o Dilúvio e eu me ponho cá a pensar  se não é isso mesmo que acontecerá. A dúvida intrigante é saber quem seriam os escolhidos para subirem à arca. 

Quem seria o novo Noé, por exemplo? Haveria por certo algum deputado de já hoje , como se diz nas casas, fazendo lobby, acordos de lideranças, etc. Acontece que pelo tamanho da torta a disputa haveria de ser muito acirrada. Republicanos assexuados e democratas tarados; petistas e anti-petista, cada um com seu dogma de fé e uma quadrilha de aproveitadores por trás.  

Muçulmanos e judeus, católicos e protestantes,  Eta, Ira ; Ferro e Sá Vianna,... União contra Dom Hermeto e os dois enquadrilhados  contra Club Barracas, numa disputa a morrer. Jamais poderíamos admitir  um Noé nascido em Libres! Enquanto isso, a turma do Bin nem ai, largando bombinhas nas nuvens para fazer chover mais. 

Seria difícil encontrar um novo Noé que agradasse a todos, o Mano cansa de dizer  “nem eu consegui isso”. Por outro lado posso imaginar, se é que continua valendo a velha sentença  de que é mais fácil um camelo passar no buraco da agulha do que um rico entrar reino dos céus, alguns figurões sendo barrados na porta da arca pela sua condição social, todos prudentemente acompanhados de advogados com mandado de segurança na mão. E  Paulo Salim e Zé Ribamar? Quem haveria de segurar o Paulo Salim e Zé Ribamar? Não adianta.  Eles vão, vestidos não sei de que espécies, mas vão. Portanto, não vem ao caso. 

Como o Noé haveria de ser biônico, espera-se dele que seja justo e honesto . Que no exercício da função não faça conchavos, não edite MPs, não distribua cargos de confiança, não pratique nepotismo, nem seja fisiológico, e muito menos faça acordo com o anjo caído para livrar o seu, tipo duas almas por uma; que faça as licitações corretamente na aquisição da matéria prima para a construção da arca; que leve moças do sul, por que  lá  é que a gente deve casar quando a chuva parar, e os  rios  e os juízos voltarem ao leito normal;  que leve ovelha texel e gado  de sobre-ano,  e não repita a burrice histórica de juntar serpente com maçã.

Ah! E que verifique na entrada atentamente as mãos de quem entra. É fundamental que todos tenham todos os dedos. Não podemos arriscar. E desde já convido meu amigo Precioso para manipular a bomba e gelar a serpentina, por que ninguém é louco ou burro de ficar quarenta dias e quarenta noites de bico seco ou bebendo água da chuva.

terça-feira, 15 de maio de 2012

A MÃO QUE BALANÇA O BERÇO



O fato de lacrimejarmos quando ouvimos o hino não é o suficiente para que possamos nos definir como patriotas. Parece que somente aqueles povos que tiveram um dia, ou têm, suas casas e famílias mutiladas por guerras e outras hecatombes conseguem verdadeiramente experimentar este sentimento. Pena que assim seja. 

Temos um país digno de paixão. É muito fácil amar o Brasil. É multicolorido, clima tropical, gente bonita miscigenada para todos os gostos, sejam mulatófílos ou germanófilos, e outras tantas virtudes default, que um dia alguém chamou de florão da América.

Mas patriotismo é também educação e aí, com esses milhões de sub-letrados que grassam do Oiapoque para baixo pela ordem de importância; que elegem governos, mas sequer sabem os porquês, nos resta mesmo lacrimejar quando a bandeira sobe e quando o hino toca.  


Vivemos ainda em berço esplêndido e nessa condição, a mão que nos balança acha que as nossas únicas necessidades são as de sobrevivência. Andamos entregues a babás deprimidas que pensam em matar a nossa fome, mas não pensam que está mais que na hora de começarmos a andar, a crescer, a pensar num grande futuro. Babás que até desconfiam termos tudo em casa, mas como nada sabem e nada vêem não podem tirar proveito. E assim vamos nós, deixando-as que realizem suas tarefas básicas, ensinando-nos apenas a ser como elas, creditando seus equívocos à sua condição de origem. Não crescemos nada, aprendemos pouco e tudo ao nosso redor parece poder mais do que nós, mesmo que não possa. Daqui a pouco nem vamos mais entender por que disseram que um dia iluminaríamos o sol do novo mundo.

Aprendi com os sopros da juventude a odiar as ditaduras. Condição em que os comandos nos mantinham sob controle. Não nos deixavam reclamar, votar; sequer pensar em voz alta. Assim, nossa salvação somente viria pela via democrática. A ditadura que eu vivi, apesar dos olhos da espreita, pudemos fazer as revoluções sociais e de costumes que quisemos. Pudemos usar cabelos longos, pouco importando se os mais velhos considerassem inversamente ao tamanho das idéias; apertamos as calças e as meninas subiram as saias; as mulheres iniciaram a libertação dos grilhões domésticos; mudamos músicas, comportamentos, mesmo a contragosto dos pais. Poderíamos fazer de tudo desde que ordeiramente. 


Mas em nome da liberdade de podermos decidir nossos caminhos como nação, exageramos e a perdemos, e tivemos de suar sangue para recuperá-la.

Muito bem. Saímos daquela clausura e conquistamos todos os direitos reivindicados, e o que vejo: uma ditadura ainda mais forte e mais violenta; mais intransigente e o que é pior: cheia de tentáculos escondidos sob o disfarce da inclusão social. Ou não será repressão extrema o fato de vivermos enclausurados em residências de segurança máxima, ainda assim inócuas, com medo das ruas? Ou não será ditadura assistirmos impotentes sermos monitorados por Medidas Provisórias, ou firulas do politiquês equivalentes, ao bel prazer do gerente de plantão? Ou não será de exceção um governo que permite a formação de oligarquias fascistas ao seu redor? Que democracia é essa que permite a formação de milícias rurais impunes e soberanas do seu direito de apropriação do bem alheio, e cujos gerentes se dão ao desplante de se declararem despercebidos? 


E que regime é esse que nos deixa  aplastados no sofá da sala ouvindo diariamente que hoje,  mais uma vez, alguém em algum lugar sangrou os cofres públicos e deverá ser investigado? Talvez seja mesmo, talvez seja preso, talvez devolva algo do que roubou, mas certamente não dirá o quanto e mancomunado com quem. 


Ricos, sim. Somos muito ricos. Temos reservas que sustentam nosso mínimo conforto, reservas para emprestar aos vizinhos e grandes reservas para satisfazer o apetite dos nossos sócios majoritários que, vez por outra, limpam nossas gavetas sem deixar recibo. 


Um dia, tido como ato patriótico, uma parte da juventude letrada pintou a cara e fez com que se retirasse do poder um presidente alvo de suspeitas e de acompanhar-se mal. Aquela juventude amadureceu, assumiu poderes, mas parece ter perdido a capacidade de julgar e de se indignar. Deixou-se contaminar, necrosar, criar metástase daquelas feridas morais que espontaneamente antes quis ver extirpadas.

Sou contra todas as ditaduras, mas me tornei ainda mais inimigo dessas que são “escolhidas” por fantoches que se deixam induzir pela mídia conveniente, e por uma maioria que vota pelo trágico apelo da fome.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

SE TODOS FOSSEM IGUAIS A VOCÊ (Dia das Mães)





Uma moça chamada Ernestina, aos dezenove anos fazia o que hoje se reverbera como trabalho social. Não tinha grande preparo a não ser na delicada missão de ser mãe, mas o que a maturidade precoce e a escolaridade média lhe ensinaram distribuía graciosamente à vizinhança ainda menos favorecida. Assim, brincava de dar aulas alfabetizando crianças, e ensinava as meninas coisas práticas para as exigências vigentes, como costurar, cozinhar, aplicar injeções. Tarefas que a levavam a percorrer grandes distâncias vez por outra. Lembro que era muito querida e requisitada naquela periferia erma, distante do grande povo. Parte do contexto, ganhei com isso a alfabetização aos quatro anos e as honras mal percebidas de ser o filho da “santinha”. Ela morou pouco por aqui, viveu com urgência extrema, mas fez além da parte dela, um grande pedaço da minha.

Fez o que manda fazer aquele velho pescador da fábula, que ao amanhecer encontrou a orla repleta de estrelas do mar. Uma por uma ia gastando seu dia devolvendo-as à água, esquecendo de sua própria tarefa de sobrevivência. Alguém que observava teria lhe dito: “meu velho, nem que leves a vida inteira poderás devolver todas ao mar”.  Ao que ele teria respondido: “mesmo que conseguisse devolver apenas uma já teria feito a minha parte”. Piegas? Pode ser. Pessoas assim se multiplicam pouco, tornam-se fototrópicas negativas e vicejam apenas no substrato social, pela grandiosidade da sua modéstia. 

Minha mãe morreu numa idade de chorar perdas. Foi enterrada numa idade de enterrar seus mortos: vinte e oito anos. Não deve ter levado nada, pois tudo que teve e foi,  sepultou na enorme cova que deixou no peito dos que a amam, com um recado monossilábico, mas suficiente na  lápide: inesquecível. Foi um lapso de vida de desfecho incompreensível, resistente a curas. E se foi brilhar no nada, deixando um homem e meio tateando caminhos de penas, abrandadas pelas pegadas de luz que deixou cair.

Neste dia eu paro um tempo, não sei quanto. O tempo suficiente para desenhar seu jeito. Sei que existem ameixas pretas e até as vejo por ai, graúdas e lindas, mas nunca terão o brilho e a doçura que ela tinha no olhar. A grande floresta negra  que despencava em linha reta para muito além dos ombros, hoje talvez tivesse outra cor, ou outras cores, mas ai já não seria a grande floresta negra onde eu enroscava meus dedos infantis. Paro um tempo e paro no tempo. Lá longe, onde nem lembro mais, mas onde tenho certeza que vivi por que é o endereço da minha saudade.  Passados dezenas de anos, neste dia, ela bate na porta do meu coração trazendo seus biscoitos com sabor de mãe.

Feliz Dia das Mães, guria. E que estejas bem e feliz ai onde nossos queridos, contemplados por fé dizem que estás. 

terça-feira, 8 de maio de 2012

DO QUE AS MULHERES GOSTAM



Mulheres têm gostos estranhos, somente vindo a furo após a revolução feminista. Bundas, elas adoram bundas masculinas, o que nos obriga hoje a levantar da cadeira e, no mínimo, caminhar sobre uma esteira para que se mantenham. É cansativo agradar mulheres. Não é por nada, mas quando passamos por aquele grupinho sentado, tricotando, bem sabemos por onde seremos reconhecidos. Já vi e achei natural cabelos, barbas, bigodes, bíceps e outras protuberâncias mais lógicas serem admiradas, mas porque a fissura por glúteos?

Tenho um amigo diabético, zen, que adora olhar quindins. É doente por quindins. Fica longo tempo olhando-os nas vitrines salivando e desafiando o desejo de possuí-los. Acha-os incomparavelmente lindos. Mas o meu amigo não pode, não agora, na flor da idade, consumi-los, deixará para fazê-lo quando estiver quase desistindo do mundo cão, por que aí dependerá de um simples assumir riscos e conseqüências, e seja lá o que Deus quiser.  Quindins e glúteos, assim, me parecem casos quase análogos.

Uma amiga gosta de queixos. Um em especial. Não, não é o do  Brad Pitt ou do Fabio Assunção, é do Nick Nolte. Ele tem queixo. E como tem! Quadrado, enorme, um fetiche, segundo ela. Essa minha amiga, sonha com o queixo do Nick Nolte e por não encontrar similares disponíveis, fechou-se em copas para o mercado. Mas por que queixos? Queixos não são olhos que seduzem. Mal comparando, também não é aquele armador de pé esquerdo com grande visão de jogo que pode a qualquer momento decidir uma partida com o seu talento. Não, não. O queixo fica lá na ponta de baixo do rosto, sem autonomia e sem saber qual é a sua função no esquema tático, sangrando após a barba, batendo forte no inverno e despencando por qualquer coisinha. Biquínis, por exemplo. Tem mais: Noel Rosa fez sucesso sem ele.

Queixo, quando muito serve como anteparo de jab’s. Não decide jogo nenhum e não interfere nas relações humanas, a não ser quando se eleva. Aí está. Talvez seja isso. Queixos elevados podem querer dizer: Aí mulheres, venham, aceito o desafio!   Em tempos de fragilidade masculina talvez funcione. Estranho não haver notícias sobre implantes.

A última vez que vi o Nick foi no Príncipe das Marés e mais me chamou a atenção  o nariz da Barbra, embora o filme seja lindo. Meu queixo não é igual ao dele, não consigo conferir a retaguarda, bíceps, tríceps e outros que tais nunca foram o meu forte. Mas respirar, respiro e a vida se esgueira lentamente.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

HOUVE UMA VEZ UM VERÃO


Ao amigo Antonio Martins - um grande contador de histórias - Do livro Castelo de guardanapos
Meu nome é Antonio, sou casado há pouco tempo com a Lú. Um dia serei advogado, mas por enquanto dou um duro danado no banco. Colegas e amigos me conhecem pelo excelente senso de humor. Estou com a perna engessada. Quebrei a tíbia jogando futebol. Os colegas de departamento haviam me avisado que o pessoal da cobrança sempre dividia por cima da bola. Eu não acreditei.
Estamos em 1986, tempos difíceis estes, sem graça. Por exemplo: O que fazer neste feriadão de fevereiro em Porto Alegre, sem um pila no bolso?  Um colega, não sei se por simpatia ou culpa (foi o que entrou por cima da bola) me convidou para um final de semana na praia. Magistério. Não queria deixar transparecer minha mágoa, mas praia com este gesso? Pensei na Lú e resolvi aceitar. Meu colega tinha um fusca, mulher e filhos, não contei quantos. Agora, no entanto já estava combinado e não sou de voltar atrás. Tratei de acomodar a perna engessada da forma mais confortável possível, temendo pelo meu bom humor.

A viagem de ida foi relativamente calma. O amigo era calmo, ou melhor, lerdo. Sessenta por hora, curvas a trinta. Quatro horas depois, a praia. A praia e os pingos, pois começara a chover. Chegando a casa o primeiro grande susto: Caberíamos todos? Por certo daríamos um jeito, éramos jovens, fortes, dispostos e, mesmo apertados, certamente estaríamos melhores do que no bafo de Porto Alegre. Ademais, haveria de ser uma chuvinha de verão e a areia da praia estava logo ali nos esperando, iluminada pelo solaço de amanhã. Por enquanto era chuva e chuva. Na casa tratei de acomodar a perna de forma que ficasse longe dos bolaços, tropeções, almofadaços, lambidas do cachorro, que fora junto, imaginem. Chuva e chuva, percebida pelo suor das vidraças fechadas, barulho no zinco e uma ou outra goteira. E mosquitos, muitos, de todos os tamanhos e apetites. E choveu no outro dia, no outro, e até virmos embora de volta. Já não lembrava de um dia ter sido bem humorado.

Mesmo inchados por vários motivos, portanto ainda maiores, coubemos todos no fusca.  A estrada era estreita, ruim e por essas coisas da vida, todo mundo resolveu voltar ao mesmo tempo. Lá vínhamos nós. Dez, vinte km por hora era lucro. Eu naturalmente não ria. Apenas olhava fixo e incomunicável para a estrada sendo engolida pelas rodas do carro, quando este conseguia se mexer.  Súbito, enguiçou o limpador do pára-brisa, bem no meio. “Não falta mais nada” – pensei. “Agora mesmo que este corno não anda”. Tive a impressão de que ele ouvia o meu silêncio, por isso não parou. O cara, no entanto, usava lentes grau sete para enxergar mal, e enxergar nada para o jeito que estava dirigindo: com a cabeça para fora, limpando os óculos com a mão. Paramos para pensar. Chuva e chuva. E veio a idéia. Amarraríamos um barbante no limpador, cada um de nós ficaria com uma das pontas e estudaríamos um sincronismo perfeito para movimentarmos o instrumento. A alternativa que tínhamos era uma fita, dessas de pacote de presente. Talvez houvesse outra, mas como procurar no meio daquela multidão? Blasfemando em função da dificuldade para enxergar, meu colega foi até a frente do carro amarrar o barbante. Voltou pingando, mas satisfeito, afinal tinha solucionado o problema. Testamos a sincronia, deu certo e reiniciamos. “Vai” – dizia ele, feliz. “Vai”- repetia eu entre dentes. Pelo menos estávamos indo, janelas abertas inundando tudo. Sabe cheiro de cachorro molhado?  Até uns 100 metros adiante quando o laço desfiou e rebentou. E o limpador parou, de novo, bem no meio.  Não lembro o que pensei, nem o que resmunguei, mas era sobre a mãe de algum dos presentes. Andamos mais um pouco e paramos em um boteco, desses que vende tudo. Estava tão necessitado de liberdade e de algo que me tornasse a cabeça um pouco menor que mal chegando a frente do boteco  saltei de carro, não dando a mínima para a perna que há muito já doía, e fui saltando até a casa. O bom homem tratou de arranjar o que lhe pedira. Tirou um barbante que enrolava não sei o quê e gentilmente me entregou. Saltei de volta. Um pé só, ensopado, rindo. De raiva. Amarrei o cordão no limpador e retomamos a viagem, agora sem ensaio. “Vai” – dizia ele, feliz. “Vai” – dizia eu como uma vontade louca de completar a frase com todas as indelicadezas que conhecia. Chuva e chuva, a perna doendo, e eu ali, olhos fixos na estrada sendo engolida pelas rodas do fusca, quando este conseguia se movimentar.

Anoitecia ligeiro. Engraçado, olhando pela janela não parecia tão escuro, olhando para frente já não víamos nada. Estava ficando impossível de continuar quando passei a mão no pára-brisa. Graxa, graxa pura. Lembrei que o tal barbante gentilmente cedido pelo bolicheiro estava amarrando lingüiças e salames, e trazia consigo toda gordura que conseguira absorver com a convivência. Era o caos. Sem recordar em que dia e em que circunstâncias rira com gosto pela última vez, retirei do fusca meus 1,85m e fui lá esfregar a Zero Hora de domingo inteira para retirar a gordura. Chuva e chuva e eu ensopado, ainda assim, melhor na chuva do que lá dentro. Aquele pára-brisa nunca mais seria o mesmo. Mas em algum momento aquelas lesmas, carro e motorista haveriam de atingir o ponto em que a estrada alargaria e talvez pudéssemos retomar os saudosos 40 km por hora. E chegamos ao ponto. No exato momento em que pifaram as luzes do carro e a chuva parou. Quem estava na frente sumiu, quem estava atrás sumia na frente e todas as referências luminosas que indicavam o leito da estrada foram para o brejo. Dez, vinte... Meu amigo míope pisava leve, não podia arriscar. Oito horas de purgatório, um fio de cabelo branco e alguns dentes gastos depois chegamos em casa. Nunca um JK pareceu tão espaçoso. Nunca o bafo de fevereiro em Porto Alegre foi tão refrescante.

-II-

Hoje sou advogado, tenho ótimo senso de humor. Eu e a Lú vivemos bem, somos felizes e temos uma filha. Fiquei momentaneamente tenso revivendo uma história ao receber um convite para ir à praia. Magistério é logo ali, diz a Lú. Eu não lembro. Nunca mais fui lá.