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terça-feira, 24 de julho de 2018

LEVANTA-TE E ANDA

quer nos confortar. 



Lá, se sentirmos a vida (eu chamo de vida a vontade imorredoura de viver) escorrendo preguiçosamente por entre os dedos, ainda não murchos, mas deliberadamente inertes, e essa letargia conseguir trazer um pouco de alivio ou prazer, por mórbido, significa que enfim, morremos. Apenas que por tanta preguiça esquecemo-nos de deitar, e por assim não nos decidirmos, nossos queridos ainda não choram por nós.  Mas como sofrem!

Digo isso por transeunte de uma idade crítica e por ver alguns pares entregando esse tesouro assim, à toa. Porque vejo alguém desistindo, e por querido, fragilizando também seus circundantes. Talvez haja mais alguém num cantinho da sala cuja bronquite tenha escarrado o próprio sorriso, ou que uma recém inaugurada artrite tenha entrevado a cintura, as juntas e o olhar, tirando de vez a vontade de dançar ou de apenas retribuir um afetuoso abraço.  Há por perto alguém cujas rugas, ainda em formação, tenham sulcado também a esperança, e o crítico olhar do espelho a tenha feito perder o bom costume de sonhar.

Por fim há por ai mais alguém, cuja visão tenha ficado curta e esteja impedindo de perceber que os olhos apenas retratam, mas as imagens ainda são reveladas no laboratório fino da alma e que a resolução depende de como essa interface, olhos/alma é trabalhada. 

A nossa vida não é “a nossa vida” e sim a resultante de uma convergência de afetos ou falta deles, mas nunca um conjunto vazio; é, pois, dos que um dia floresceram conosco e hoje meio murcham solidários; daqueles que vimos sair de nós, homens e mulheres paridos e formatados no melhor do nosso carinho, hoje parindo novas vidas que nos estimulam a continuar vivendo com o fôlego do carinho original. Se verdadeiramente pudermos sentir isso e acreditarmos que somos centro não apenas de dor, mas de geração de afetos, então há vida para viver e quem se foi, deliberadamente ou não, há de perder a melhor parte. 

Amanhã, quando o sol levantar para reinar sobre o universo, não pense duas vezes, apenas siga o exemplo dele. Levante-se e reine.

E que se quebrem os espelhos que não retribuam o seu sorriso, sem medo dos tais sete anos seguintes.      

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Olho a rosa na janela


Texto do livro "Assim como era no princípio"

Ao amigo Orlando Torres.
Havia uma janela grande de persianas verdes, recatada. De um lado sonhos, do outro, tocadores de sonhos. Ambos os lados de luz difusa, porque era noite e ninguém queria ser visto, por circunstâncias proibitivas... E era sexta-feira.  
Por ora bastava um violão, primeira voz e segundas que não interferissem, uma ou outra rosa roubada para assinar os breves momentos de poesia. E uma música, que fosse como Modinha, do Sérgio Bittencourt, um soneto musicado.
Modinha é um paradigma. Quisera eu tê-la escrito, se não, musicado, ou ao menos cantado em qualquer uma das nossas serenatas de sextas-feiras. Porque talento não estava no meu pacote, não escrevi, e por juízo não cantei, mas resmungava seus versos em sintonia com o momento, quase como um lamento.
Modinha é suave, romântica, entregue, poeticamente torturada em estrofes juvenis. Rosas e prosas à primeira namorada; um pouco, quase nada para dizer do amor.  É a serenata que Schubert não escreveu, em versão “morena”.  
O mundo que inventou Modinha não está mais por aqui; mudou de rota, está grosseiro, bestificado; de cores esmaecidas onde predomina um tom gris entristecido.  Andamos por aí, mas quase nunca sem um objetivo claro e urgente. Não passeamos tanto, seja por pressa ou medo. Desconfio que não pertencemos mais ao grupo humano que um dia fez de Modinha um pressuposto filosófico.
 Mas não é por Modinha, ou só por ela. É pelo tempo desconfigurado, de mandíbulas cerradas e cenho franzido, que hoje não se traduz em versos iguais; não à partitura, mas ao sentimento que a criou. Um tempo que apenas nos encaramuja em último refúgio, e vive de nos fazer enxergar vultos medonhos que se realimentam dos espíritos que os produzem.
E porque serenata hoje estaria a embirrar com códigos sociais, e porque as singelas persianas andam se abrindo em frestas reprimidas por grades e muros intolerantes.  
 Mas e então, morremos? Muito, como gente. Mas se é possível acreditar que três dias depois alguém voltou do plano misterioso, e até festejamos isso, chegou a nossa vez de ressuscitar. Que olhemos além das grades das janelas; que troquemos pesadelos por sonhos, ao menos um,  pequenino, que  propicie uma terna regressão; que andemos por ai à toa, quando o sol se finde lento soltando nossa voz, na voz do vento, despedaçando versos em busca de um perdão... Qualquer perdão, dos tantos que devemos, mas um em especial, por termos participado da construção desta versão neo-humana incapaz de ser ingenuamente feliz. Fácil não é, mas tão-somente estar vivo também não é.   
Há vivos, mesmo que poucos ou quase nada, e muito desconfiados sobre o nosso reativo pensamento sistêmico.  Faço parte desta fração intempestiva de queixosos pela ausência das subjetividades de ontem, porque lá tínhamos o bom costume de sonhar. E se tínhamos, e porque sabemos do gosto dos sonhos, também sabemos o bem que nos faria revivê-los despercebidamente. Não agendados; jamais induzidos como parece ser a única maneira.
Vez por outra consigo enxergar além das grades, vejo rosas constrangidas e de perfume reprimido. Lembro-me de um violão e um círculo de afetos que se deixava perder nos próprios passos para se encontrar numa canção. E lembro também de um tocador de voz sussurrada incomparável.
 “Play it again”, amigo Orlandinho. Assim como era no princípio.

domingo, 17 de junho de 2018

DAS PARTIDAS DOBRADAS

Do livro "Assim como era no princípio"

(Confissão de culpa... entre tangos e malbecs)
Devo ter concluído meu processo de nascimento depois de adulto. Não faz muito. E logo que terminei de nascer, fiz o pacto de vida que consagra as relações de amor.  Me prometi o que se promete na igreja em relação à  saúde e à doença; à alegria e à tristeza; à riqueza e à pobreza, até que a morte me divida nas duas partes conhecidas e me dê o destino final: uma ao pó, de onde dizem que eu vim, e outra ao éter, para onde dizem que eu vou. Um final de carreira, sem redundância, à altura de um dependente químico, mas não é o meu caso.
 Autoamado e respeitado, entendi que não haveria de ter problemas de estima, e desde então estaria pronto para viver e não ter a vergonha de ser feliz. Mas sabe, nesta pista de loucas baladas em que nos inseriram sem convite (sequer pediram a nossa opinião) não há moleza. Às vezes vacilamos e as vezes duvidamos daquilo que nos ensinaram a acreditar, contando que tenham ensinado. Dúvida sobre dúvida, até chegarmos à pergunta fatal, estimulada pelo Thomé que carregamos subjugado latente, que está sempre ali, cutucando nossos vacilos nos momentos de suspicácia: “mas se o Velho permitiu que botassem pregos nas mãos do ungido, o que não permitirá que façam comigo?
 Bueno, bueno. Já duvidei no mínimo três vezes e o galo nem precisou se manifestar. Fé é um dom, e eu não fui agraciado com ele (Anjos e demônios). Continuo, no entanto, cabo eleitoral do Mano, desejando que fique aqui onde alguns dizem que está; ou lá onde dizem outros; ou em todos os lugares onde dizem os mais otimistas. O importante é que não saia do anonimato, para sua própria segurança.   
Com ou sem fé; permitindo ou não que os pequenos vacilos criem corpo e me cubram de culpas e judiarias, sigo a trupe que não quer ser personagem de folhetins apócrifos. Que venham as histórias absurdas; os contos complexos ou meros espasmos biográficos. Se forem de doer, deixo que sangrem como letra de tango, porque as alegrias sempre serão de samba-enredo.  Faço parte do grupo que entende que o pior do baile não é não ter dançado, mas passar pelo salão sem ter sido percebido. Em algum copo ou canto devem ficar as digitais.
Como ficaram nos copos, cantos e campos da minha Uruguaiana antiga e nas quebradas da velha Porto “dos ventos uivantes”.  Não devem ser hoje as mesmas que tanto cansaram meus sapatos; que iluminaram fantasias em mil watts de neon. No vagar dos anos, as imagens se esmaecem, a luz vai apagando, o povo sumindo, a noite esfriando... (E agora, Jajá... E agora? Vai, Jajá, vai ser gauche na vida! Acabo de dar dois “pealos” no Drummond. Desculpe.)
 Mas vou sim... Fui de novo... Andar, assim como era no principio, agora e sempre (e por todos os séculos dos séculos, amém), curtindo a sensação de esvaziamento de gavetas, deixando estrelas acesas em pedaços do que pude realizar de mais precioso. Não haver deixado buracos negros sob tetos foi um desejo impossível de ser satisfeito. Mas é do enxadrismo da vida e circunstancialidades de almas inquietas, construtoras de distâncias como a que me deram.  Me deixei andar, por que se não andasse, velhas parceiras como a paz e a alegria poderiam cansar de esperar. E eu nunca transigi delas; não como busca permanente.
 Muitas vezes pisei no estribo e me fui olhando para trás, a la cria, desconfiado de perdas. Coisa de quem tem os bolsos do coração furados. Andar sempre porque tudo anda. Anda o trem, o rio; anda a fila; o tempo e o avião voam, e até o sol, que mesmo rei, não tem o direito de ficar parado. E em cada início de passo, uma certeza: a cabeça antes já se fora.  Tudo parte da sustentação do segundo processo do nascimento autodefinido, que me cobrava continuar sendo amado e respeitado por mim mesmo.
 O que eu soube depois, não muito depois, é que nem sempre as velhas parceiras, paz e alegria, andam juntas. Às vezes uma delas fica num canto de gaveta mal esvaziada ou no pó das estrelas deixadas acesas, e vem impiedosamente inundar de luz o pensamento e arrastar correntes na consciência. O sono se vai, as noites encompridam e o cansaço abate. Dos tempos insones descobri dois outros parceiros, que também nem sempre andam juntos: arrependimento e perdão. Entretanto, nada é mais virtual do que eles. Por acaso alguém se arrepende do que deu certo, mesmo que para isso tenha pisoteado sobre dores alheias? Arrependimento é uma espécie de cinismo consternado, infectado de penas frustradas. E perdão... Deixei por ai setenta vezes sete a serem pedidos! E quantos ainda irei dever?  Mas sempre soube que pedir não conserta estragos; há causas que são danos emergentes, não se curam. Só se confortam por ação do tempo e substituição do foco.  No mais das vezes, o perdoado faz de conta que se redime e o ofendido faz de conta que esquece. São placebos morais. E penso que nada pode ser pior que ouvir após um pedido de perdão “... mas agora?”. Agora sempre será tarde. 
 No metro longo deste andar, juntei os restos que pudessem sustentar os valores intrínsecos.  Percebo cada vez mais o quanto também a vida anda, e depois de um tempo, com mais pressa. Mas não me abate o fato de que seja finita.  Finais há muito não me perturbam. Tenho uma espécie de remorso prévio do dia em que isso acontecer. Neste caso, que se tenha cumprido naturalmente o ciclo das luas e, isto é um apelo: troco qualquer apoteose pelo olhar complacente dos meus filhos. Que possam perceber, apenas olhando nos meus olhos, que eles são os únicos e sagrados motivos que me levariam a reescrever a minha história, caso pudesse. Estão no centro das minhas consternações mais sentidas, cujos perdões não pedi por imerecidos, e porque acredito nas definições acima.   Mas saibam eles, os meus filhos, que os carrego sempre comigo, em ambos os lados do peito, dentro e fora. Vá que haja mesmo outras vidas e outras oportunidades.
Por fim, que o Velho me leve embora bem lá adiante mesmo, quando as pernas buscarem apoio sem encontrar e a cabeça tenha perdido todas as suas saudades. Não as perceba nem entre tangos e malbecs.
Não pense Ele, porém, que atendendo uma e outra reivindicação deste mutuário estará tudo dentro dos conformes.  Gente como eu só abandona o domicílio muito contrariada. Não sabemos morrer de bom humor.  

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Giant



Do livro “Assim como era no princípio!
O Criador estava em alfa (ou haveria de ter andado fumando coisas e “viajado”) lá pelo sexto dia, momento em que sublimou a espécie. Produziu linhas e tonalidades de formas a consagrar sua mania de perfeição, e simplesmente descartou a fórmula.  Por certo que naquelas horas de fastio e soberba, consolidada a magnífica obra, garganteou seu bordão à eternidade sobre imagem e semelhança.
 Da obra minimizada restaram céu e mar, em dias de incompreensível tom de azul encravados em lousa de alabastro, a fomentar e inquietar sonhos juvenis. Serenos, sombreados de cílios foram ter comigo, certa vez, durante três horas e meia. Flutuei à deriva sobre aquelas águas translúcidas, que simploriamente os mortais chamavam de olhos violeta. A época e a idade propiciavam navegar ao limite (que limite?) da fantasia e produzir roteiros imundos no sono adolescente.
 Sonhava com ela, e eu pergunto: quem não sonhava com Elizabeth Taylor? Ok. Tem gente que sonhava com o Rock Hudson, como a própria Liz, que soube depois e para sua decepção, tratar-se de alguém da “irmandade”. Pobre Rock, que anjos varões o tenham (*)
 Giant é o titulo original do longa metragem Assim Caminha a Humanidade. Sem redundância, gigantesca produção dos anos cinquenta estrelada pelos dois bonitões acima, e a terceira e última aparição em tela do meteórico James Dean, que nem chegou a ver o filme concluído. Morreu antes. (Sobre este, teria dito o feioso Humphrey Bogart, dolorido com o sucesso post morten do colega: ‘’a melhor coisa que aconteceu a ele foi ter morrido cedo’’).
 A história gira em torno de uma família texana tradicional comandada pelo Bick (Hudson), de um humilde empregado Jett (Dean), e uma esposa Leslie (Taylor) que foi ‘’achada’’ pelo futuro marido após uma viagem de negócios. Foi comprar cavalos, imaginem. A história é fantástica, recheada de sentimentos adversos: amor, ódio, preconceitos, com fotografia, figurino e música maravilhosos, tendo recebido dez indicações ao Oscar (levou um, secundário). Jett, além de mim e todos os homens que apreciam cerveja, apaixonou-se pela Leslie, mas não levou, e por isso foi para a porrada com o marido afortunado. O Inconformado Jett, entretanto, enriqueceu quando tratou de subverter a ordem da terra, vigente até então, (terra que estranhamente herdara da invejosa irmã do Bick, morta a coices de cavalo) passando a explorar petróleo.  E em se tornando rico, houve por bem novamente tentar furar os nossos olhos, e tomar na “mão grande” a nossa mulher - minha e do Bick. De novo não levou. Ele, que já “bebia todas, com o novo fracasso foi domiciliar-se em definitivo na garrafa.
 Nesse filme o olhar da Liz estava uma estupidez. Talvez porque o início da produção tenha ocorrido pouco depois dela ter se tornado mãe pela primeira vez e a maternidade tenha conseguido dar ainda mais luminosidade à luz; o céu tenha perdido para sempre as nuvens, e Atlântico e Pacífico tenham se dessalinizado.  E que me perdoe a finada pelas modestíssimas comparações.
 Elizabeth Taylor é dona de vários suspiros que todos demos. Não era, entretanto, de namorar no banheiro, lugar cativo da senhorita Brigitte Anne-Marie Bardot, além de outras trinta e cinco menos votadas. Liz não deveria ter as pernas da Marlene Dietrich; o corpo da Sophia Loren; certamente não tinha os seios da Uschi Digard (Ah, não sabe quem é Uschi Digard. Melhor, mais me sobra); E nem era cachorra como a senhorita Margarita Carmen Cansino, que quando se apresentou a nós já fumava muito e se chamava Rita Hayworth; Não era o "mais belo animal do mundo", como disse certa vez da piriguete-retrô Ava Gardner, o poeta Jean Cocteau, aquele animal. Não. Liz era um raio de luz, sequer deveria pertencer a este mundo. E duvido que alguém, além de seus vários maridos tenha contemplado seu corpo. Não deveria ser lá essas coisas, mas isso não importa.
 Liz gostava mesmo era de casar e isso fez bastante. “A felicidade está em colecionar amores”, repetia (mas também colecionava brilhantes). Com Richard Burton, no entanto, foi reincidente específica.
 Também casei bastante, nenhuma vez com ela. Mas sabe-se lá o que haveria de ter acontecido conosco caso ela frequentasse os bailes da Reitoria.
 (*) Rock Hudson e Liz Taylor tornaram-se muito amigos, depois da descoberta por ela da homossexualidade do galã, que morreu em decorrência de complicações com a Aids, em 1985. A partir de então, a musa mostrou que não basta ser bela nem boa atriz para ser musa. Passou a auxiliar a (American Foundation for AIDS Research). Mais tarde criou a sua própria fundação para o mesmo fim, a ETAF (Elizabeth Taylor Aids Foundation), a quem  doou um anel de diamantes e esmeraldas. A joia, com uma pedra de sete quilates e 12 diamantes lapidados em formato de pera, fazia parte da coleção particular da atriz.


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

À TERRA QUE EU CHAMEI DE SANTA



Eu nasci onde o sol se põe. Na terra onde os campos não tinham fim e o horizonte era logo ali; tudo é logo ali quando se sonha. Alcançaríamos o horizonte quando quiséssemos. Quando eu cresci, lá onde nasci, havia mais pedra que asfalto, mas muito mais pasto que pedra.
Não só lá, mas o mundo impermeabilizou suas ruas de preto, e isto, na contrapartida de fazer com que cada uma vire um rio em tempos de chuvarada, deixa a vida melhor para quem não anda mais de carro de boi, carroça e cavalo. Como era, quando e onde eu nasci. Quando fui apanhado pela vida.
Onde eu nasci, o calor queimava no verão, mas e daí? Não haveria de faltar uma sanga, um olho d’água ou um rio onde pudéssemos mergulhar nossa caixa de Pandora, esta com muitas coisas mais penduradas na aba do que simples esperanças.
O inverno era frio. Mas um frio tão intenso que os cabelos do campo, que na primavera nos enchiam os pés de rosetas, envelheciam, ficavam grisalhos, duros e úmidos de geada. E quando os pais sentenciavam especulantes “se essa geada levantar com vento...”. Vermelhavam bochechas e narizes, cortavam orelhas, e ai passavam a ter mais graça as brincadeiras a beira do fogão a lenha. E como era terrível dobrar numa esquina de sentido norte-sul, ou vice-versa.
Mas porque todos em algum momento precisam apanhar a vida, fui correr atrás do nascente. Viajei um dia inteiro na contramão do sol, até que fui viver onde ele nasce. Lá terminei o longo ciclo de me fazer homem. Lá não encontrei mais campos nem pedras. Só ruas impermeabilizadas; já não havia mais carro de boi; e campos e pedras já não me faziam tanta falta.
 Cresci, multipliquei e iniciei o lerdo caminho de quem desce a lomba da plenitude. Conformei-me para o meu sempre, acordar com o sol, nos perdermos durante o dia, e no fim, ele me apanharia onde eu estivesse e me deixaria em casa. Depois seguiria adiante para dormir com aquela que apelidei de santa e no dia seguinte voltaria para me acordar. Coisa de pai. Os guris da terra onde nasci se dizem filhos do sol. Talvez seja por isso.   
Mas um pouco sempre fica no partidor. Lá, onde o sol se põe, um pouco de mim ainda assombra os campos, mesmo que haja poucos; as ruas pedregosas, mesmo que não haja tantas, e as velhas casas, arrastando correntes douradas inocentes, do bem, para trazer de lá seus cheiros. Que importância tem se no lugar dos campos e casas haja hoje prédios enormes e modernos? A terra é revirada para que se revigore e cumpra sua missão de transformar, mesmo assim não sai do lugar. Pouco importa o que fizeram sobre as nossas primeiras pegadas. Nada vai tirá-las de lá, porque elas estão tatuadas no universo em seu conjunto, e na nossa memória mais afetiva.
É bom vez por outra andar no sentido do sol. É como sair dos álbuns para as calçadas, a fim de corrigirmos as fotos. Aí sim, com certo lamento pela brutalidade cronológica do “fotoshop” natural.
Mas o “sempre”, como lugar é uma incógnita. Mais ou menos como o horizonte dos campos sem fim de onde eu nasci. Chegar lá não deve ser uma promessa, mas representar uma esperança. E assim, tendo um dia acordado com ressaca de destino contrafeito, vi o sol nascer e decidi que era hora de seguir de fato o seu rastro. Saímos separados, mas chegamos juntos onde ele se põe, e de tanta paz encontrada devo ficar com sono por aqui mesmo.  
 A saudade de vê-lo nascer cheio de nervos existe. Querer vê-lo meio sim, meio não, entre um copo e outro; entre um papo e muitos outros; entre ruídos de carros, risos e sons de cordas, e de vê-lo vermelho e com a água pela cintura no grande estuário, me enche os pés de asas.
São coisas para fazer na contramão do dia, mas só quando a inquietude passar da conta. Lembrando que saudade é um lugar incerto, onde todas as ruas se chamam Transformação

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

UMA VEZ...

acarinhe 



Olhe fundo nos olhos, como se fosse a última vez;
Abrace forte, como se fosse a última vez;
Beije; beije como nunca, como se fosse a última vez;
Peça perdão e perdoe, como se fosse a última vez;
Ria largamente, à finitude, como se fosse a última vez;
Coma, beba o mais e o melhor como se fosse a última vez.
Arrisque tudo, como se fosse a última vez,
Ponha o melhor de si em tudo, como se fosse a última vez,
E, pela última vez encare-se, não se arrependa nada.
Assim, caso não seja a última vez,
Você terá vivido ao menos uma vez, da forma que sempre quis.

domingo, 28 de janeiro de 2018

CRUCIFICASHOW



Lula vive comparando-se ao Mano. Bueno, eu já me achei parecido com o Richard Gere, até que diminui a ingestão de álcool.

Tenho algumas fotos do Mano e não me parece que fisicamente, haja similaridade. O Mano era magro, quase subnutrido, em face da dieta rigorosa, de baixa caloria. Pão com peixe não alimenta ninguém, muito em especial para quem é dado a longas caminhadas, um pouco descansando sentado a beira do caminho, outro pouco montando  um ainda mais subnutrido burro.  Ok, vez por outra um pilequinho de vinho para desestressar, mas nada que o alcunhasse de cachaceiro vagabundo.  Depois, o Mano era firme em seus propósitos. Era pobre convicto, não ganhava nada e o que tinha dividia com todos. Talvez fosse socialista. Por outro lado, maledicentes dizem que pegava uma aqui, outra ali, mas não provam, e não consta que tenha  dado uns "pegas" em alguém, em troca de cargo na sua caravana de miséria.

Já Luiz Inacio não. É gordo e são de lombo, foi pobre, mas não se lembra, também não se lembra do quanto ganha, nem de onde vem o que ganha (ele não lembra porque não é obrigado a gerar provas contra si), e é socialista familiar, ou seja, divide tudo com a família. Vez por outra aparece pescando, mas de iate. Também bebe vinho, bacudo, mas não aquele que foi pisado por pés com frieira, fermentado no porão do barracão, gerando um garrafão tosco. O dele, se nem português fala, imagina hebraico. Romaneé-Conti tá bom pra vocês?  Viajar ele viaja. Percorre longos caminhos, mas de jatinho. Até lembra o que é um jegue. Quando criança tinha um, cujo nome era Militante. Ah o Militante... Como era bom de monta o Militante! E não “emburrava”.   

Mas Lula quer ser igual ao Mano. Ô se quer! Mesmo não sendo dado a sacrifícios. Invejosos dizem que o único sacrifício que fez  foi arrancar o mingo da mão esquerda, afinal é destro, e o mingo da canhota só faz falta para coçar o ouvido. No entanto, à época, isso dava lucro, e com o tempo virou marca.

Do lado de cá, como sempre fui beliscado pelo mercado, penso no acontecimento que seria o ápice da “Paixão do Lula”, quando por fim seria sua consagração. Um evento digno de Planeta Atlântida, Woodstock, sermão do Chico na Basílica, GreNal... Essas coisas.

A chamada: CRUCIFICASHOW, LULA É O MANO! Ou Je suis, que tá na moda. (Vai ver foi aí que se deu a confusão: Lula deve ter visto algum cartaz no ABC com essas palavras “JE SUIS LULA”. Je suis... Jesuis, manja?... Enfim).

Faço questão de cuidar do cenário. A coroa de espinhos poderia ser espinilho trançado com tuna, ou uma coisa mais clean, ou mais arrojada, como arame farpado inox da Concertina. O martelo Tramontina; pregos em aço inox da Gerdau (atenção patrocinadores!!). E as vestes, naturalmente vermelhas, essas sim poderiam ser de panos simples, mas que de certa forma lincassem o protagonista às suas origens. Um tafetá infestado das Casas Pernambucanas já estaria de bom tamanho (lembrando que Lula é pernambucano e tal).  A cruz, entretanto, seria de mogno. Um mimo confeccionado com carinho pela equipe de José Stédile, que não só fabricaria o monumento, como a carregaria com seu líder, abanando e molhando seus lábios com água Perrier, durante o percurso da São Silvestre. Depois eu passo o roteiro para eles discordarem.

Imagino a abertura com Pablo Vittar e Anitta cantando o hino do Corinthians, e no gran finale, uma miada chorosa com a dupla sertaneja Poncio & Pilatos, tendo ao fundo um telão mostrando flashes do filme “Squid the son of Brazil” (Lula o filho do Brasil). O local? Ah, sim. Poderia ser na Paulista, frente a Fiesp.


Mas o protagonista deveria estar só para que proferisse suas últimas palavras: “Pai, eles não fabem o favem...” Mesmo porque, no meio de dois ladrões seria formação de quadrilha. 

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

PÃO E CIRCO




Desde a formação do império romano existe a tática de servir ao povo o pão recheado com circo. Lá, o populista Imperador Otavio Augusto concentrava o poder e flertava com meia dúzia de puxa-sacos das elites, a fim de garantir e expandir apoio. E claro que com estes se comprometia, mas e daí? Quem peitasse o imperador seria escalado para um rola-rola sem regras na arena dos leões.

Por aqui, a demonização da família Marinho também é antiga. Vem desde os tempos do companheiro Leonel (ele que também vinha de longe). Mas, puxa vida, eu dei fim a minha teoria da conspiração quando decidi que não haveria de ser a telinha global, com meia dúzia de caras engravatados a fazer com que suas versões, eventualmente contrárias as minhas, redirecionassem meu cérebro. Não, não. Aprendi a pensar certo e errado; e agir por minha conta, certo e errado.

Vem aí mais um BBB, e com ele a pilha de comentários, justos é verdade, mas com o fito de garantir aos comentaristas seu próprio padrão cultural.  Que o BBB é um besteirol não se discute. Compatível a outros tantos de horário nobre, mas daí a transformá-lo no grande vilão dos costumes e da família brasileira, já acho forçação de barra. Aí, penso ser, a sublimação do politicamente correto. Ora, estamos falando de TV aberta. O controle remoto está na nossa casa, e me consta que por mais erma que seja a região; por piores serviços públicos e sociais que tenha, sempre haverá no mínimo dois canais a disposição do povo.

(Sei de lugares, no entanto cara-pálida, onde a TV exibe a programação estatal e no controle remoto (se é que já chegou por lá este artefato) só funciona o on e o off. Que tal assim? Tem um logo ali, acima da linha do Equador).

Ora, eu procuro canelas mais duras para bater. A corrupção descarada e impune, por exemplo; a classe politica “merdificada”; os três poderes da república instalados abaixo do fiofó do cachorro, etc...Também pouco tem adiantado espernear, mas vejo mais ato cidadão nesse grito contra a horda de hunos que nos comandam, do que esse de ficar puteando a TV, só porque ela é uma bosta e coisetal. Temos a opção de nos alienarmos pelas redes sociais, ou assistirmos um filme ou série, ler, ou apenas conversar em família (ops! Mas que coisa mais antiga!).

Por princípio, sou contra qualquer cerceamento de liberdade. O fato de há alguns anos termos começado a fiscalizar a imprensa considero saudável, apenas acho inconveniente a patrulha excessiva. Inconveniente e perigosa.

Enfim, algumas certezas me movem, e uma vem a calhar para o momento: se nos deixarmos escravizar por qualquer tipo de mídia, a culpa nunca será do algoz, e sim da inércia onde deitamos a nossa capacidade de raciocinar.

Como no sistema presidencialista o poder decisório continua na mão do Imperador, digo presidente, que continua flertando (e cooptando) com algumas oligarquias para ganhar apoio, azar o nosso que não sabemos escolher aqueles que irão decidir por nós. Na contrapartida, estes haverão de ficar mais ricos e o governo mais comprometido. Até já conseguiram transformar a inocente militância em torcida organizada! E sabemos que torcida é paixão, e paixão é cega.  

Quanto aos pobres... Dê-lhe bolsa família e dê-lhe BBB. Pão e circo, válido para o Império romano e para o Brasil. É o sistema “quero-quero”, canta longe do ninho para desviar o foco.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

BONEQUINHA DE LUXO



Tributo a uma deusa
Do livro "Assim como era no princípio" 
Todos anseiam em ficar ou manterem-se ricos. É um desejo justo, e caso os meios utilizados estejam dentro de parâmetros socialmente aceitos e legais, tanto melhor.
Com Holly não era diferente. Sonhava com uma vida confortável: peles, jóias... Iguais as que não cansava de namorar na vitrine da Tiffany’s. Mas Holly não olhava somente a vitrine. Reparava atentamente em quem entrava e saia, principalmente homens, afinal, era a matéria bruta em que utilizava suas ferramentas e lapidava o status que buscava.
Na falta de outras valências competitivas para o mercado, Holly resolveu usar o que Deus lhe dera em abundância: a beleza, e assim se foi à luta catando novos horizontes, operando a profissão feminina mais antiga do mundo: a difícil vida fácil de ganhar a vida deitada.
Holly era uma prostituta, mas se no seu lugar estivesse uma Eckberg, Brigitte ou Marilyn seria moleza. Haveria de ser “tiro dado e o bugio deitado” ou “a cada enxadada uma minhoca”, por ser mais pertinente.  Mas Holly era uma Audrey; um delicadíssimo biscuit, quando muito parecia ser uma graciosa gueixa cosmopolita, com jeitinho de aluna interna do colégio das Irmãs, recém chegada do Plano Alto.
 No filme Breakfastat Tiffany (o título, muito mais adequado, chegou até nós como Bonequinha de Luxo), Audrey Hepburn adota uma visão celestial, sublimada pelos Givenchy feitos com exclusividade para ela. A trilha “Moon River”, composta por Henry Mancini e rabiscos de Johnny Mercer, que leva o Oscar de melhor canção original, também foi feita especialmente para Audrey, que numa cena antológica do filme, ela que não cantava nada, canta para a posteridade sentada na janela, arranhando um violão. É um momento épico, que me ocupava as tardes e me tirava noites de sono. (“Aquilo” era namorada para casar e não ter filhos para não ter jamais de dividi-la).
Audrey era uma atriz apaixonante, e em Bonequinha de luxo potencializou-se de luz pela maternidade recente. Havia se tornado mãe três meses antes do início das filmagens. Fez par com  George Peppard, na trama, ocupando o papel do frustrado escritor e bem sucedido gigolô Paul Varjak. Aliás, este rapaz entra na história apenas para embatucar os sonhos de Holly, cujos objetivos eram: fisgar um homem rico e depois tornar-se atriz.  Mas enfim, a mocinha (ou seria bandida?) acabou descobrindo que “dentro de si também morava um coração”.
 Antes de Audrey, a atriz desejada para o papel foi Marilyn Monroe, que recusou porque a personagem era uma prostituta, imaginem. Depois convidaram a outra platinada e linda Kim Novak, que pelas mesmas razões da Marilyn também recusou o papel. Por fim, Audrey, que não tinha culpa no cartório aceitou, imortalizando a personagem. 
 No início de uma época de grandes transformações nos costumes (1961, ano do lançamento do filme), a Holly, da Audrey, estabeleceu um marco de estilo, charme e elegância, virtudes válidas em qualquer situação. Como a de sua fala na cena final, ao ler o bilhete em que leva um “pé” do noivo, que desmarca o casamento: "Uma moça não pode ler esse tipo de coisa sem seu batom”.  Dizem que o tal noivo seria brasileiro, mas eu não me lembro deste fato, portanto não fui eu.
Acho que vi Bonequinha de luxo pela primeira vez quando tinha treze anos, mais espinhas na cara do que vergonha e pilhas de sonhos inviáveis na cabeça. Tenho costume de rever clássicos, mas este há muito não revejo, porque no momento ando perdendo o sono com a senhorita Maria Violante Placido. (Ah, também não sabe quem é? Melhor).
 Pensei na Audrey porque dia desses um dos seus vestidinhos Givenchy foi arrematado pela bagatela de U$1,7 milhão! E por que quero apostar o meu sonho mais caro como o lance vencedor não foi oferecido por alguém do sexo feminino.  Por certo alguém mais viúvo do que eu, e digamos que com uma renda a prova de absurdos.
Que lhe dê como mortalha uma pinacoteca à altura do seu luxo, e que não lhe ocorra jamais cair em tentação de profanar um dos templos do charme da época de ouro do cinema, vestindo-o em desfile particular para algum “bofe”.
Audrey Kathleen Ruston não foi somente o rosto incrível das telas, muito menos a bonequinha frágil que às vezes parecia ser. Foi uma grande mulher. Quando menina, estudava balé na Inglaterra até iniciar a Segunda Guerra. Com medo dos bombardeios, a família mudou-se para a Holanda, que era neutra, mas o velho Adolf não deixaria por menos e invadiu também aquele país, levando os horrores e as privações temidas.   Mais tarde, Audrey, que chegou a alimentar-se de folhas de tulipa para sobreviver, envolveu-se com a Resistência. Participava de espetáculos clandestinos de balé para arrecadar fundos e levar mensagens secretas em suas sapatilhas. Em função dos traumas, anos depois, recusaria o papel de protagonista no filme sobre Anne Frank
Poliglota (falava fluentemente francês, italiano, inglês, neerlandês e espanhol) a partir de 1987 foi ser Embaixatriz da UNICEF em gratidão pelo auxilio que recebeu nos tempos da guerra.
 Minha querida, delicada, inesquecível e singular estrela mudou de constelação em 20 de janeiro de 93, com apenas 64 anos, deixando um vácuo chamado Singularidade, como ensina a Física, que é o coração do buraco negro.  Lá onde o tempo para e o espaço deixa de existir. Entrou em colapso gravitacional, deformando o espaço-tempo hollywoodiano, partindo cedo demais para o lugar conhecido como ponto de não-retorno.

  “Para ter lábios atraentes, diga palavras doces; para ter olhos belos, procure ver o lado bom das pessoas; para ter um corpo esguio, divida sua comida com os famintos; para ter cabelos bonitos, deixe uma criança passar seus dedos por eles pelo menos uma vez por dia; para ter boa postura, caminhe com a certeza de que nunca andará sozinho. Pessoas, muito mais que coisas, devem ser restauradas, revividas, resgatadas e redimidas. Lembre-se que, se alguma vez precisar de uma mão amiga, você a encontrará no final do seu braço. Ao ficarmos mais velhos, descobrimos porque temos duas mãos, uma para ajudar a nós mesmos, a outra para ajudar o próximo. A beleza de uma mulher não está nas roupas que ela veste, nem no corpo que ela carrega, ou na forma como penteia o cabelo. A beleza de uma mulher deve ser vista nos seus olhos, porque esta é a porta para seu coração, o lugar onde o amor reside”.  Audrey Hepburn