Tributo a uma deusa
Do livro "Assim como era no princípio"
Todos anseiam em ficar ou manterem-se ricos. É um desejo justo, e caso
os meios utilizados estejam dentro de parâmetros socialmente aceitos e legais,
tanto melhor.
Com Holly não era diferente. Sonhava com uma vida
confortável: peles, jóias... Iguais as que não cansava de namorar na vitrine
da Tiffany’s. Mas Holly não olhava somente a
vitrine. Reparava atentamente em quem entrava e saia, principalmente homens,
afinal, era a matéria bruta em que utilizava suas ferramentas e lapidava o status
que buscava.
Na falta de outras valências competitivas para o mercado, Holly resolveu
usar o que Deus lhe dera em abundância: a beleza, e assim se foi à luta catando
novos horizontes, operando a profissão feminina mais antiga do mundo: a difícil
vida fácil de ganhar a vida deitada.
Holly era uma prostituta, mas se no seu lugar
estivesse uma Eckberg, Brigitte ou Marilyn seria moleza. Haveria de ser
“tiro dado e o bugio deitado” ou “a cada enxadada uma minhoca”,
por ser mais pertinente. Mas Holly era uma Audrey; um
delicadíssimo biscuit, quando muito parecia ser uma graciosa gueixa
cosmopolita, com jeitinho de aluna interna do colégio das Irmãs, recém chegada
do Plano Alto.
No filme Breakfastat Tiffany (o título, muito
mais adequado, chegou até nós como Bonequinha de Luxo), Audrey
Hepburn adota uma visão celestial, sublimada pelos Givenchy feitos com
exclusividade para ela. A trilha “Moon River”, composta por Henry Mancini e rabiscos de Johnny Mercer,
que leva o Oscar de melhor canção
original, também foi feita especialmente para Audrey, que numa cena
antológica do filme, ela que não cantava nada, canta para a posteridade sentada
na janela, arranhando um violão. É um momento épico, que me ocupava as tardes e
me tirava noites de sono. (“Aquilo” era namorada para casar e não ter filhos
para não ter jamais de dividi-la).
Audrey era uma atriz apaixonante, e em Bonequinha de luxo
potencializou-se de luz pela maternidade recente. Havia se tornado mãe três
meses antes do início das filmagens. Fez par com George Peppard, na
trama, ocupando o papel do frustrado escritor e bem sucedido gigolô Paul
Varjak. Aliás, este rapaz entra na história apenas para embatucar os sonhos de
Holly, cujos objetivos eram: fisgar um homem rico e depois tornar-se
atriz. Mas enfim, a mocinha (ou seria bandida?) acabou descobrindo que
“dentro de si também morava um coração”.
Antes de Audrey, a atriz desejada para o papel foi Marilyn Monroe,
que recusou porque a personagem era uma prostituta, imaginem. Depois convidaram
a outra platinada e linda Kim Novak, que pelas mesmas razões da Marilyn também
recusou o papel. Por fim, Audrey, que não tinha culpa no cartório aceitou,
imortalizando a personagem.
No início de uma época de grandes transformações nos costumes
(1961, ano do lançamento do filme), a Holly, da Audrey, estabeleceu um marco de
estilo, charme e elegância, virtudes válidas em qualquer situação. Como a de
sua fala na cena final, ao ler o bilhete em que leva um “pé” do noivo, que
desmarca o casamento: "Uma moça não pode ler esse tipo de coisa sem seu
batom”. Dizem que o tal noivo seria brasileiro, mas eu não me lembro
deste fato, portanto não fui eu.
Acho que vi Bonequinha de luxo pela primeira vez quando tinha treze
anos, mais espinhas na cara do que vergonha e pilhas de sonhos inviáveis na
cabeça. Tenho costume de rever clássicos, mas este há muito não revejo, porque
no momento ando perdendo o sono com a senhorita Maria Violante Placido. (Ah,
também não sabe quem é? Melhor).
Pensei na Audrey porque dia desses um dos seus vestidinhos
Givenchy foi arrematado pela bagatela de U$1,7 milhão! E por que quero apostar
o meu sonho mais caro como o lance vencedor não foi oferecido por alguém do
sexo feminino. Por certo alguém mais viúvo do que eu, e digamos que com
uma renda a prova de absurdos.
Que lhe dê como mortalha uma pinacoteca à altura do seu luxo, e que não
lhe ocorra jamais cair em tentação de profanar um dos templos do charme da
época de ouro do cinema, vestindo-o em desfile particular para algum “bofe”.
Audrey Kathleen Ruston não foi somente o rosto incrível das telas,
muito menos a bonequinha frágil que às vezes parecia ser. Foi uma grande
mulher. Quando menina, estudava balé na Inglaterra até iniciar a Segunda
Guerra. Com medo dos bombardeios, a família mudou-se para a Holanda, que era neutra,
mas o velho Adolf não deixaria por menos e invadiu também aquele país, levando
os horrores e as privações temidas. Mais tarde, Audrey, que chegou
a alimentar-se de folhas de tulipa para sobreviver, envolveu-se com a Resistência. Participava de espetáculos clandestinos de
balé para arrecadar fundos e levar mensagens secretas em suas sapatilhas. Em
função dos traumas, anos depois, recusaria o papel de protagonista no
filme sobre Anne Frank.
Poliglota (falava fluentemente francês, italiano, inglês, neerlandês e
espanhol) a partir de 1987 foi ser Embaixatriz da UNICEF em gratidão pelo
auxilio que recebeu nos tempos da guerra.
Minha querida, delicada, inesquecível e
singular estrela mudou de constelação em 20 de janeiro de 93, com
apenas 64 anos, deixando um vácuo chamado Singularidade, como ensina a Física,
que é o coração do buraco negro. Lá onde o tempo para e o espaço deixa de
existir. Entrou em colapso gravitacional, deformando o espaço-tempo
hollywoodiano, partindo cedo demais para o lugar conhecido como ponto de
não-retorno.
“Para ter lábios atraentes, diga palavras
doces; para ter olhos belos, procure ver o lado bom das pessoas; para ter um
corpo esguio, divida sua comida com os famintos; para ter cabelos bonitos,
deixe uma criança passar seus dedos por eles pelo menos uma vez por dia; para ter
boa postura, caminhe com a certeza de que nunca andará sozinho. Pessoas, muito
mais que coisas, devem ser restauradas, revividas, resgatadas e redimidas.
Lembre-se que, se alguma vez precisar de uma mão amiga, você a encontrará no
final do seu braço. Ao ficarmos mais velhos, descobrimos porque temos duas
mãos, uma para ajudar a nós mesmos, a outra para ajudar o próximo. A beleza de
uma mulher não está nas roupas que ela veste, nem no corpo que ela carrega, ou
na forma como penteia o cabelo. A beleza de uma mulher deve ser vista nos seus
olhos, porque esta é a porta para seu coração, o lugar onde o amor reside”. Audrey
Hepburn
Um comentário:
Boa análise do filme, com revelações que eu não conhecia. O texto elegante e bem-humorado destaca quem foi essa atriz inesquecível que minha geração adora até hoje. Audrey foi mesmo a bonequinha dos nossos sonhos.
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