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sábado, 23 de fevereiro de 2013

DA TERRA NASCEM OS HOMENS









Ao herói brasileiro Demétrio Toniolo 

A tarde escorregava. Lenta, saldo de ressaca, e comportada. Havia uma viagem pela frente e estrada requer concentração e juízo.

A figura observadora de conversas era um senhor, sentado a parte, quieto. Sentei do lado e falamos coisas à toa. Variamos pela temperatura, clima e a indefectível violência urbana. Mortes ocorrem a toda hora, de todas as formas e por quaisquer motivos. Nada satisfaz este bicho racional e incompreensível que não mata apenas para comer. Daí até a guerra entre nações nem precisou interface específico.

O pracinha Demétrio Toniolo tinha estado na Itália, em 1945, lutando pelos aliados contra o Eixo, na tomada de Monte Castelo. E lutara contra seus ancestrais italianos, mas isto pouco contava porque afinal, quem vai ao fronte vai para causas bem definidas, e no mais fundo do íntimo, vai com esperanças de poder voltar. Lá, mata ou morre. Com a cruel especificidade de que no campo de batalha só estarão inocentes guerreiros compulsórios.

Lembrava com detalhes seus meses de privações, onde a única saída para vencer o medo era não ter medo. Demorou uma vida inteira para limpar dos tímpanos os zumbidos de bala, matraquear de metralhadoras, canhões e minas. Por muito tempo viu sangue em lugar de poças d’água; ouvia gritos em vários idiomas. 

Saíram daqui meninos, e ficaram marcados para o resto da vida, física e moralmente, pelo convescote sangrento com os Quatro Cavaleiros do Apocalipse.

Entre tantos fatos impressionantes de suas lembranças, ele recordou um colega de farda, companheiro de primeira hora, que embarcara junto no Porto de Santos, com o qual permanecera irmanado a jornada inteira, e que junto retornou ouvindo os vivas da vitória. Não só pela amizade formada, mas por um detalhe peculiar: Enquanto a "cobra fumava", o amigo resolvera registrar em um diário todo o processo que passaram. E como era poeta, registrou em versos.

Na conjunção impensada entre a brutalidade da guerra e o lirismo, ficou o relato de um poeta; de um momento inesquecível para o bem e para o mal da humanidade.

É uma figura e tanto, seu Toniolo. Um veterano de guerra, que traz no espírito a paz que foi buscar. Um documento vivo da história; Um herói brasileiro, que só não é anônimo porque onde mora, a cada semana da pátria é reverenciado. Mas a república não o visita vez por outra para perguntar sobre eventuais sequelas, do tempo em que arriscou a vida para que pudéssemos continuar respirando os ares da liberdade.


(*)Dia 02 de maio, dia do Ex-combatente










quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

UM DIA VIERAM E LEVARAM MEU RISO




Um dia me pediram as armas que eu tinha guardado. Não seriam usadas; repugnava-me, e porque não dizer, me assustava ter de um dia usá-las. Mas estavam ali. De certa forma me sentia seguro com elas. Mas disseram que era por uma boa causa e eu as entreguei, mesmo antes de ser coagido a isto, ainda que sem convicção.

Em outra oportunidade me proibiram de beber. Nem um pequeno drinque poderia, caso fosse dirigir. Sempre me mantive dentro dos limites, uma e outra vez quem sabe tenha me excedido, não me lembro, nada que me tivesse tirado a consciência e o equilíbrio. Jamais provoquei ou sofri acidente de carro nestas condições, mas assustado com os números trágicos da mídia, e convencido que iria ajudar, ou muito mais que isto, me preservar física e economicamente, aquiesci. Diziam que o grande vilão das mortes do trânsito era o álcool, e enfim as boas causas estavam postas e eu não iria contrariá-las.

As noites ficaram mais longas e chatas; os amigos foram se recolhendo mais cedo e eu fui ficando mais em casa. Casa que sem as armas foi adquirindo cada dia mais grades, porque as mãos que acompanham os olhos da noite continuam armadas e cada vez mais violentas. E nos cérebros que gerenciam esses olhos, a vida ganha cada vez mais desimportância.   

Então criaram o sistema de cotas. Nossos irmãos afrodescendentes teriam privilégios em universidades em função de séculos de repressão, supressão e pobreza. Eu que já não podia chamar meus amigos negrões de negrões, ainda que isso demonstrasse carinho, não ousaria fazê-lo agora, que passaram de iguais a privilegiados. Corrigir a história com erros que um dia serão históricos cria injustiças imediatas; no caso oficializa a desigualdade racial; promove novos conflitos que só o tempo haverá de materializar, e talvez nunca mais recomponha. 

Mas também não perguntaram qual era a minha opinião a respeito e eu tive de concordar. Não sem antes pensar nos milhares de filhos pobres que não tiveram o privilégio de nascerem negros. Penso que haverá, mas não sei se chegarei a presenciar, hordas de brancos empobrecidos clamando por justiça racial.

AÍ resolveram que homossexuais seriam uma casta especial de pessoas; uma nova e moderna família, sobre as quais pouco poderia ser dito que não fosse do seu agrado. Além disso, talvez lhes providenciassem cotas de acesso aos serviços públicos. Meus amigos negros e meus amigos homossexuais perderam (não quero pensar que talvez tenham ganhado com a perda) a minha espontaneidade. Eu, que não consigo viver  de alegrias contidas ou patrulhadas, por certo perdi o jeito leve de interagir com eles.

Antigamente se dizia, e se brincava com isso, no quanto era terrível ser feio, pobre e morar longe. É? Experimente ser feio, pobre, branco, hétero,  morar longe e ter bom gosto? Por sorte eu cresci, e sem problemas de auto-estima. Mas viver a juventude nessas condições hoje teria sido uma teimosia imperdoável.

Vi, por fim, que talvez tirem o nome dos velhos Ramão e Ernestina da minha identidade; que meus netos possam não cantar e representar no Dia dos Pais, e que o Dia das Mães das escolinhas sequer seja lembrado.

Pensei em protestar, mas vejo olhos sinistros à espreita; canetas com tinta fresca e carimbos que sacramentam essas opções, e que embora não possam me tolher da liberdade, por certo tratarão de tisnar a minha alegria. Meu riso ainda não se foi, embora todo esforço legal para que ele me abandone; minha felicidade até poderá não ser completa, mas quem sabe possa acabar se e quando portugueses, loiras, gordos, magros, feios, brancos pobres, baixinhos e papagaios resolverem se  juntar e pressionar a OAB para o derradeiro golpe na alegria. 

Há espaço, clima sustentado pelo cinismo mórbido politicamente correto; gente com sede de fazer história a qualquer custo, intermediários de viseiras, e na ponta de tudo isso as maiorias inocentes que trocam seus novos privilégios por votos a cada dois anos.