Texto do livro "Assim como era no princípio"
Ao amigo Orlando
Torres.
Havia uma janela grande de persianas verdes,
recatada. De um lado sonhos, do outro, tocadores de sonhos. Ambos os lados de
luz difusa, porque era noite e ninguém queria ser visto, por circunstâncias
proibitivas... E era sexta-feira.
Por ora bastava um violão, primeira voz e segundas
que não interferissem, uma ou outra rosa roubada para assinar os breves
momentos de poesia. E uma música, que fosse como Modinha, do Sérgio
Bittencourt, um soneto musicado.
Modinha é um paradigma. Quisera eu tê-la escrito,
se não, musicado, ou ao menos cantado em qualquer uma das nossas serenatas de
sextas-feiras. Porque talento não estava no meu pacote, não escrevi, e por
juízo não cantei, mas resmungava seus versos em sintonia com o momento, quase
como um lamento.
Modinha é suave, romântica, entregue, poeticamente
torturada em estrofes juvenis. Rosas e prosas à primeira namorada; um pouco,
quase nada para dizer do amor. É a serenata que Schubert não escreveu, em
versão “morena”.
O mundo que inventou Modinha não está mais por
aqui; mudou de rota, está grosseiro, bestificado; de cores esmaecidas onde
predomina um tom gris entristecido. Andamos por aí, mas quase nunca sem
um objetivo claro e urgente. Não passeamos tanto, seja por pressa ou medo.
Desconfio que não pertencemos mais ao grupo humano que um dia fez de Modinha um
pressuposto filosófico.
Mas não é por Modinha, ou só por ela. É pelo
tempo desconfigurado, de mandíbulas cerradas e cenho franzido, que hoje não se
traduz em versos iguais; não à partitura, mas ao sentimento que a criou. Um
tempo que apenas nos encaramuja em último refúgio, e vive de nos fazer enxergar
vultos medonhos que se realimentam dos espíritos que os produzem.
E porque serenata hoje estaria a embirrar com
códigos sociais, e porque as singelas persianas andam se abrindo em frestas
reprimidas por grades e muros intolerantes.
Mas e então, morremos? Muito, como gente. Mas
se é possível acreditar que três dias depois alguém voltou do plano misterioso,
e até festejamos isso, chegou a nossa vez de ressuscitar. Que olhemos além das
grades das janelas; que troquemos pesadelos por sonhos, ao menos um,
pequenino, que propicie uma terna regressão; que andemos por ai à
toa, quando o sol se finde lento soltando nossa voz, na voz do vento,
despedaçando versos em busca de um perdão... Qualquer perdão, dos tantos que
devemos, mas um em especial, por termos participado da construção desta versão
neo-humana incapaz de ser ingenuamente feliz. Fácil não é, mas tão-somente
estar vivo também não é.
Há vivos, mesmo que poucos ou quase nada, e muito
desconfiados sobre o nosso reativo pensamento sistêmico. Faço parte desta
fração intempestiva de queixosos pela ausência das subjetividades de ontem,
porque lá tínhamos o bom costume de sonhar. E se tínhamos, e porque sabemos do
gosto dos sonhos, também sabemos o bem que nos faria revivê-los
despercebidamente. Não agendados; jamais induzidos como parece ser a única
maneira.
Vez por outra consigo enxergar além das grades,
vejo rosas constrangidas e de perfume reprimido. Lembro-me de um violão e um
círculo de afetos que se deixava perder nos próprios passos para se encontrar
numa canção. E lembro também de um tocador de voz sussurrada incomparável.
“Play it again”, amigo Orlandinho.
Assim como era no princípio.
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