Eu nasci onde o sol se põe. Na terra onde os
campos não tinham fim e o horizonte era logo ali; tudo é logo ali quando se
sonha. Alcançaríamos o horizonte quando quiséssemos. Quando eu cresci, lá
onde nasci, havia mais pedra que asfalto, mas muito mais pasto que pedra.
Não só lá, mas o mundo impermeabilizou suas ruas
de preto, e isto, na contrapartida de fazer com que cada uma vire um rio em
tempos de chuvarada, deixa a vida melhor para quem não anda mais de carro de
boi, carroça e cavalo. Como era, quando e onde eu nasci. Quando fui apanhado
pela vida.
Onde eu nasci, o calor queimava no verão, mas e
daí? Não haveria de faltar uma sanga, um olho d’água ou um rio onde pudéssemos
mergulhar nossa caixa de Pandora, esta com muitas coisas mais penduradas na aba
do que simples esperanças.
O inverno era frio. Mas um frio tão intenso que
os cabelos do campo, que na primavera nos enchiam os pés de rosetas,
envelheciam, ficavam grisalhos, duros e úmidos de geada. E quando os pais
sentenciavam especulantes “se essa
geada levantar com vento...”. Vermelhavam bochechas e narizes, cortavam
orelhas, e ai passavam a ter mais graça as brincadeiras a beira do fogão a
lenha. E como era terrível dobrar numa esquina de sentido norte-sul, ou
vice-versa.
Mas porque todos em algum momento precisam
apanhar a vida, fui correr atrás do nascente. Viajei um dia inteiro na
contramão do sol, até que fui viver onde ele nasce. Lá terminei o longo ciclo
de me fazer homem. Lá não encontrei mais campos nem pedras. Só ruas impermeabilizadas; já
não havia mais carro de boi; e campos e pedras já não me faziam tanta falta.
Cresci, multipliquei e iniciei o lerdo
caminho de quem desce a lomba da plenitude. Conformei-me para o meu sempre,
acordar com o sol, nos perdermos durante o dia, e no fim, ele me apanharia onde
eu estivesse e me deixaria em casa. Depois seguiria adiante para dormir
com aquela que apelidei de santa e no dia seguinte voltaria para me acordar.
Coisa de pai. Os guris da terra onde nasci se dizem filhos do sol. Talvez seja
por isso.
Mas um pouco sempre fica no
partidor. Lá, onde o sol se põe, um pouco de mim ainda assombra os campos,
mesmo que haja poucos; as ruas pedregosas, mesmo que não haja tantas, e as
velhas casas, arrastando correntes douradas inocentes, do bem, para trazer de
lá seus cheiros. Que importância tem se no lugar dos campos e casas haja hoje
prédios enormes e modernos? A terra é revirada para que se revigore e cumpra
sua missão de transformar, mesmo assim não sai do lugar. Pouco importa o que
fizeram sobre as nossas primeiras pegadas. Nada vai tirá-las de lá, porque elas
estão tatuadas no universo em seu conjunto, e na nossa memória mais afetiva.
É bom vez por outra andar no
sentido do sol. É como sair dos álbuns para as calçadas, a fim de corrigirmos
as fotos. Aí sim, com certo lamento pela brutalidade cronológica do “fotoshop”
natural.
Mas o “sempre”, como lugar é uma incógnita. Mais
ou menos como o horizonte dos campos sem fim de onde eu nasci. Chegar lá não
deve ser uma promessa, mas representar uma esperança. E assim, tendo um dia
acordado com ressaca de destino contrafeito, vi o sol nascer e decidi que era
hora de seguir de fato o seu rastro. Saímos separados, mas chegamos juntos onde
ele se põe, e de tanta paz encontrada devo ficar com sono por aqui mesmo.
A saudade de vê-lo nascer cheio de nervos
existe. Querer vê-lo meio sim, meio não, entre um copo e outro; entre um papo e
muitos outros; entre ruídos de carros, risos e sons de cordas, e de vê-lo
vermelho e com a água pela cintura no grande estuário, me enche os pés de asas.
São coisas para fazer
na contramão do dia, mas só quando a inquietude passar da conta. Lembrando que
saudade é um lugar incerto, onde todas as ruas se chamam Transformação
Nenhum comentário:
Postar um comentário