Do livro Castelo de guardanapos
O Tuca se aposentou do serviço público ainda jovem. Justo
reconhecimento do Estado para alguém que, ao longo da vida, jamais arrepiou o
pelo por medo de trabalho. Tão logo consolidou a aposentadoria, e antes de
sentir-se um peixe fora d’água por desocupado, juntou-se a mim num pequeno e
infrutífero escritório na Rua da Praia.
O Tuca era um daqueles gordinhos elétricos, ágeis física e
mentalmente. Comia como poucos e de tudo, principalmente gorduras nas suas
diversas formas. Por ele pensei a frase que eventualmente uso “mais ansioso que
gordo em buffet”. E fumava. Mas fumava tanto que se o cigarro acabasse no meio
de uma tragada acendia outro para concluí-la. Eram no mínimo três carteiras por
dia. Três, sem tirar! Ainda na ativa já era grupo de risco juramentado. Na
ociosidade da aposentadoria, então, pule de dez para o enfarte.
Normalmente almoçávamos juntos. O show começava lá pelas 12h30
indo até por volta da 14h00, preferencialmente espeto corrido, com picanhas
lacrimejando gorduras e galetinhos com peles crocantes. “Uma beleza”, segundo
ele. Um dia falei à sua esposa: “se continuar assim, dou um ano para o
enfarte...”
Em seis meses, porém, o meu querido amigo de tantas
jornadas, ele que sempre fora um homem de peito aberto e língua solta, lá estava,
de peito sim, totalmente aberto, cheio de pontes e pontos. E de língua presa. Escapou;
vibramos e renascemos todos com isso. Tão logo pode receber visitas fui vê-lo.
Mas, conhecendo-o como conhecia, comprei antes uma carteira de cigarros.
Estava no apartamento do hospital, entubado, constrangido,
quase imóvel, mas vivo e esperto como sempre. Pedi então que me deixassem um
pouco sozinho com ele; precisávamos conversar. Todos sabendo do afeto que nos
unia, atenderam. A sós lhe disse: “meu irmão, eu sei que o sofrimento é grande
e que a renúncia dói tanto ou mais que os pontos que te desconfortam, então te
trouxe isto (mostrei a carteira de cigarros), com a condição de que só a use em
último caso”. Ele me olhou enigmaticamente. Não disse nada, mas pensei ter
visto umidade em seus olhos, não sabendo dizer se de agradecimento ou decepção.
Depois disto chamei todos de volta ao quarto e fui embora. ´
Antes de sair pude ouvi-lo pedir à esposa uma caixa de
fósforos e uma vela. Queria fazer orações depois do almoço; reencontrar-se com
Deus, e gostaria de ficar só, e que não fosse interrompido. Pois sim. No momento
oportuno correu todo mundo do quarto, arrastou-se como pode até o banheiro,
chaveou-se e preparou-se para degustar o fumacento ágape. Levou o cigarro à
boca, acendeu o fósforo e puxou a melhor tragada, com o cuidado para não fazer
tanta força. Nada. Um pouco mais de força... Nada. De repente amoleceu o
cigarro. Tirou da boca e entre decepção e raiva percebeu: era de chocolate.
Conta ele que ficou sentado no vaso por muito tempo,
contemplativo, até voltar à cama já sem ódio. Chamou a mulher e pediu meio
amarelado, entre dentes: “Marlene, me chama o Jair”. Demorei em voltar a vê-lo.
E quando fui, guardei respeitável e prudente distância.
Um comentário:
Como sempre maravilhoso, sensível texto, nos permitindo ler palavras que gostaríamos de ter escrito. Aplausos (Nilo)
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