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quinta-feira, 15 de março de 2012

A CRIAÇÃO



Estava tudo certo. Fora criado o reino animal, mas o Criador estava num impasse: já tinha decidido que voariam os pássaros, nadariam os peixes e andariam outros bípedes e os quadrúpedes. Precisava então distribuir alguns atributos especiais. Tinha destinado ao homem a inteligência absoluta, mas só descobria depois, isso lhe traria alguns aborrecimentos.

Considerou que a fidelidade deveria ser canina e a deu ao cão, lógico, além de bom faro para que pudesse se achar em dia de mudança. Na onda da mesma fidelidade entraram os peixes que, orgulhosos, sairiam mar a dentro proclamando que filhinho de peixe, peixinho é. Deu olhos de lince ao lince, sem esquecer de produzir especialíssimos olhos de águia para a própria. Dotou o gato de acrobacia diferenciada para que mais tarde pudesse mostrar ao mundo o que haveria de ser o pulo do gato. A porca teria o rabo bastante flexível, uma vez que alguém haveria de vir torcê-lo em caso de apuros. Já o seu marido teria duas virtudes indiscutíveis: o lombinho e o pernil. Deu à vaca muita paciência  e anticorpos, pois haveria de passar a vida inteira indo para o brejo. A propósito de bovinos e paciência enquadrou o boi, a fim de que ostentasse sem queixas os chifres e que pudesse elaborar bem suas perdas. Ele passaria a ser o símbolo de doação e desprendimento. Nasceria como qualquer mamífero. Ainda jovem lhe arrancariam a masculinidade barbaramente, sem anestesia; passaria sua curta vida como corno manso, para logo a seguir ser morto, retalhado, queimado no calor das brasas e servido como pasto. E alguém ainda haveria de gritar: “o meu, mal passado!”.  Pobre boi. Mas ainda assim haveria de ter bom sono, pois dormiria com qualquer conversa mole.

O Criador teve dúvidas quanto ao burro. Burro ele seria, claro, por isso viveria emburrado e empacando, no entanto seria dócil o suficiente para ser amarrado à vontade do dono e humilde para que baixasse sempre as orelhas quando outro burro falasse. Ou quando alguém, despercebido, desse com ele n’água.  A produtividade ficaria com coelhos e galinhas. Os primeiros viveriam focados num dos mandamentos para preservar a espécie. Cresceriam e se multiplicariam rapidamente, pois mais dia, menos dia apareceria alguém com vontade de matar dois com uma única cajadada. As galinhas, que de grão em grão encheriam o papo, deveriam ser rápidas e abundantes na postura, evitando que algum apressadinho viesse a contar com o ovo no... Digo, em trânsito. O marido desta, polígamo assumido, além de cantor e ancestral do relógio-ponto teria grande virilidade, mas não haveria de ser lá essas coisas como amante.

Deus olhou com tristeza para o peru. Achou que não conseguiria retira-lo da depressão. Haveria de ser uma dessas criaturas que nunca participam de festas, pois enchem a cara antes e morrem na véspera. Quando procurou a serpente, o Criador não encontrou. Não estava confortável e queria livrar-se dela. Assim, resolveu premiar aquele que a matasse desde que mostrasse o pau. Mas que não houvesse mal entendido.

Por descuido nasceram insetos. O que fazer com eles? Bem o Criador era criativo. Grilos habitariam a cabeça do homem para faze-lo refletir  e pulgas, vez por outra, colocar-se-iam atrás de orelhas para após as reflexões.  Estes, então, participariam de momentos chatos. Chatos? E estes?

No fim do expediente restavam poucos atributos para serem distribuídos. A quem o Criador contemplaria com a moral e os bons costumes? O homem, pela capacidade de discernimento e para justificar a imagem e semelhança seria o mais indicado. E Deus perguntou ao homem se seria capaz de arcar com essas duas virtudes, e este vacilou. Desconversou dizendo que estava bom demais o que ganhara. Além disso, tinha um projeto futuro já desenhado que seria irrelevante tê-las ou não.  Dependeria sim da sua inteligência, capacidade de liderança e observação.

Disse-lhe o homem que dispensaria virtudes como as do cão e iria direto ao gato para testar seus pulos. De linces e águias, imaginariam como ficaria com os olhos destes; aproveitaria a paciência do boi, mas só para treinar metáforas flácidas, tendo o cuidado para não seguir o caminho da vaca. Iria, por fim, até a serpente negociar. Mas iria de pau na mão para matá-la, depois de comer a maçã e a Eva.

Estava ali o primeiro projeto político. Era sexto dia, seis da tarde, não dava tempo para mais nada e o Arquiteto pensou que talvez não tivesse sido tão justo na distribuição de atributos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Criatividade é isto, Jair. O texto está muito bem 'amarrado', a partir de tudo o que se diz a respeito dos personagens de tua fábula. A propósito, quando sai uma coletânea (se ainda não saiu...)? Grande abraço.