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domingo, 27 de dezembro de 2020

MARGANI

 








Margani era um pedaço de mau caminho! Colega do banco onde eu trabalhava, despertava paixões em todo quadro funcional, incluindo gerentes, diretores e alguns clientes mais assanhados.

Morena meio cor de cuia, com um cabelo que se derramava dorso abaixo como uma cachoeira de piche. Os olhos, duas bolitas rasgadas de cor incerta. Um tom exótico de mel, com expressões que iam do mormaço à selvageria, mercê do momento. Era por onde começavam a sucumbir suas vítimas. E a boca... Lábios de pedir beijo, daqueles que permanentemente ensaiam a última vogal. Um bico de selfie, mesmo dormindo. Eu falaria sobre seu corpo, mas temo exagerar. Só não posso deixar de referir, que aquilo tudo se distribuía em pouco mais de 1,60m. Margani crescia na frente dos homens. Na frente, por baixo, por cima... Mas isso só fui saber depois.

Dos babões que a cercavam, poucos tinham liberdades com ela. Eu era um ungido. Por quê? Ora, porque não insistia, explícita ou veladamente, em levá-la para a cama. Era o que ela pensava e por mim estava tudo bem. Até que uma borracheira em uma festa do banco resolveu as coisas entre nós.

Naquela noite, bebíamos e dançávamos todos juntos, comemorando os resultados. Aos poucos se apartaram os grupos, juntando-se os mais próximos, apenas para conversar e rir, sem envolvimentos íntimos, uma vez que a regra tácita do banco era a não formação de casais. Como a minha atividade na agência era solitária, busquei a sacada para oxigenar um pouco o sangue. Tinha bebido um pouco além da conta. Sentei e cochilei. Acordei com a boca de Margani sussurrando e roçando no meu ouvido. “Acorda, belo adormecido, sua princesa está bêbada e precisa de ajuda”. Ela estava pior do que eu e então demos um jeito de sair à francesa. Levei-a para meu apartamento. Era ao lado do banco e não tinha que dar satisfações a ninguém. Tirei a roupa dela tendo o cuidado para não me fixar muito na obra divina e a coloquei no banho. “Hei... Você não vai vir?”. Fui. Fui alcançar uma toalha e me recolher ao lugar dos mortais. Era tentação demais! “Margani, vou fazer um chá. Tome seu banho. Depois falamos”. Como estava demorando muito voltei ao banheiro para conferir. Ela dormia encostada no box. Enrolei-a na toalha, peguei no colo e levei para a cama. Eu dormi no sofá. Fui acordado já de manhã pelo cheirinho de café. Margani estava de pé, ainda enrolada na toalha, curada e bem disposta. Eu quebrado. “Você é um anjo, João, obrigado por me aturar. Vá ao banho e depois venha tomar café”. Entrei no chuveiro e deixei que a água terminasse de me acordar. No entanto, aos agradáveis golpes d’água pelo corpo, juntaram-se duas mãos delicadas a me explorarem por inteiro. Mãos, lábios... Era uma manhã de sábado, inicio de um feriadão, que eu passei a desejar que fosse a vida eterna.

Ficamos três dias inteiros confinados resolvendo nossas coisas, à exaustão.

Na semana seguinte, porém, ela sumiu. Sumiu total, como por encanto. Demitiu-se do banco e abandonou a república onde morava.

 As coisas custaram um pouco a se ajustar. Fiquei com um sentimento amargo de perda, e com a certeza de que aquele feriadão de torrar colchões fora um prêmio de consolação pelo amigo leal que eu tinha sido. Sofri. A extensão das minhas dores, via de regra, tem seu limiar nas sextas-feiras, mas daquela vez talvez fosse diferente.

II

Dois anos se passaram. Eu vinha me arranjando aqui e ali com Alice, Verônica e nem me lembro com quem mais, mas não esquecia Margani.

Uma noite, uma sexta-feira que é quando as coisas começam ou terminam, sentado em um piano-bar, jogando pensamentos fora me deparei com ela. Estava acompanhada pelo papai. Papai com açúcar, e era uma versão especial repaginada de Margani.

Cruzamos os olhos despercebidamente como estranhos. Alguns minutos depois ela levantou-se para ir ao toalete a passo lerdo, como quisesse me jogar na cara o tamanho da minha perda. E alguns minutos depois o garçom chegou com um cartãozinho e um recado: “me liga”. Dei-me por satisfeito e fui embora. Por certo ligaria.

Margani?

- Oi querido. Preciso vê-lo, você pode? Caso possa, anote o endereço.

Era perto, mas parece ter demorado dois dias até chegar. E ser recebido pela nudez dela. Sim, é certo que havia uma toalha por cima, mas isso eu só notei depois.

- Sente. Vou me vestir.

 Quase retruquei por impulso...

 - João, eu sei que devo explicações, mas as coisas se precipitaram e tive de tomar decisões com urgência. Precisei escolher entre ser bancária ou rica. Tinha que seguir o plano que traçado desde quando morava no interior. Não podia vacilar.

 - Saí com um diretor do banco algumas vezes. Fizemos uma viagem juntos, quando ele me pediu exclusividade. Fez ofertas muito atrativas... Eu também fiz algumas exigências... Resumindo, passei de bancária moradora de cortiço a teúda e manteúda, conta com saldo rechonchudo e este apartamento.

 - Explorei a ficha médica dele e comecei a cozinhá-lo em fogo brando. Pelo que vi, tinha seus dias contados. No entanto, sequer dava sinal de fraqueza e deveria custar  “nos deixar”. Então dei um jeito de sermos surpreendidos por sua filha. Um escândalo sufocado, e ele teve de ancorar seu barco. Fiquei livre, com este apartamento e uma grana indenizatória que a filha fez questão de me dar, com medo de escândalos. Eu não faria nada, mas também não iria recusar o dinheiro.

 - É sujo, indigno, mas é o que escolhi. Agora tenho dois “namorados”. Todos “exclusivos”, com mais de 60 anos, casados, ricos e cardiopatas. Mas eu os faço felizes em seus últimos tempos. É assim que vou juntar o suficiente para viver bem e sair de cena, o que não deve tardar. Percebe?

Sim, eu percebia. Em relação aos pré-requisitos, eu não era rico nem tinha 60 anos. E talvez por causa dela também não era casado, mas provavelmente tenha contraído uma cardiopatia.

- Você foi o melhor, talvez o meu único amigo e o sentimento mais limpo e puro que eu tive. Que eu tive não, que eu tenho, meu querido. Não me restam mais lembranças boas além das nossas. Esteja certo disso e é como eu quero lembrar de você quando as coisas se acalmarem para mim. Você merece uma vida melhor do que eventualmente uma imaginada comigo. Mas fale-me um pouco de você.

Pois então, Margani... Margani... Como seu nome me faz bem! Mesmo antes daquele feriado inesquecível eu não a via como uma coisa só. Uma amiga não. Muito além disso. Era algo adormecido, entre outras coisas, uma espécie de veneração, com o que você já estava acostumada, bastava que olhasse ao redor prestando a mínima atenção. Mas se tem algo de que me orgulho é a minha percepção, em especial quando se trata de pessoas e seus lugares. O meu, definitivamente, não era ao seu lado e eu me conformava.

- Aqueles três dias, no entanto, acenderam uma pequena luz. Nem chegou a ser uma esperança, uma vez que você sempre me parecia impenetrável. Vou rir porque “impenetrável” não tem nada a ver com o que aconteceu naqueles dias. Mas me refiro a intransigência do seu foco. Você olhava longe, muito acima das nossas cabeças e era fácil adivinhar que, mais cedo ou mais tarde, o destino a levaria para longe.

- Não vou falar de amor porque as trocas que houve entre nós não tiveram esse viés, mas eu custei a esquecer você. Esquecer? Não, não é bem isso, porque eu não esqueci, e não houve um dia ou uma noite em que eu não a procurasse, das formas mais diversas. Ficou me faltando mais Margani, muito mais.

Eu sei. Acho que sei. Também sei que não vai adiantar falar para você o que vou falar agora, mas já que sempre fomos francos, ou quase sempre da minha parte. Todo aquele cuidado que você tinha comigo, carinho, atenção; sempre disponível, inclusive para me dar broncas, quase me tiraram do prumo. Eu estava caidinha por você e era uma questão vital que eu me afastasse imediatamente. Você falou em foco? Pois é. A pobreza com que fui criada, a violência e a promiscuidade familiar que presenciei merecia uma resposta, e das mulheres da minha família a única que poderia fazer alguma coisa era eu. E fiz. Jamais faria se tivesse me deixado levar pelo que estava começando a sentir por você.

- Uma pena, meu querido João, João Victor, mas amor não estava nos meus planos. Eu tinha para mim que qualquer paixão, e pode acreditar, apesar da vida que levo eu sou muito suscetível a isso, colocaria todo o meu planejamento por terra. Resisto com toda força do meu ser contra esse sentimento.

- Agora olhando para você sabe o que eu sinto? Pena. Uma pena enorme de ter objetivos tão distantes dos comuns. Acho que como parceiros tínhamos tudo para dar certo. Enfim...

Conversamos muito; rimos, mas era chegada a hora de sepultar em definitivo a saudade. E quanto menos apoteótico o fim, mais fácil haveria de ser o inevitável luto. Peguei Margani pelas mãos, nos levantamos, nos olhamos fundamente para além de nossas pupilas e nos perdemos no tempo abraçados. Levemente nos separamos para nos olharmos, e eu me dei conta de que aquela boca vivia pedindo beijo, mesmo dormindo. Quando sussurrava então era fatal...

 -Você acha que devemos, João?

 Eu não achava que quanto menos apoteótico o fim, mais fácil se tornaria o luto?

 - Você está certa. Vou embora.

Abraçamo-nos novamente para que eu levasse no corpo aquele cheiro de xampu e água de colônia caros; no peito a pressão do volume diferente do peito dela, que tinha uma firmeza acima do natural, sinal que havia sido trabalhado. Despedimos-nos sem promessas, nem de voltarmos a nos ver, sequer nos ligarmos. Seguiríamos os destinos que ela escolhera.

Saí carregando no coração aquela cova que viera rasa, e agora estava um pouco mais funda e escura, uma voçoroca onde seria sepultada a nossa história. A saudade até então fora engraçada porque não doía. Era um desconforto fisiológico tipo uma fome ou uma sede eventual. Porém permanente. Mas tive a impressão que nessa nova fase ela seria chorada, ao menos até a próxima sexta-feira ou duas sextas-feiras. Ficou faltando mais Margani, muito mais!

E... Prestes a completar 30 anos, achei que era hora de dar um rumo diferente à minha vida. Era sábado, perto do meio dia. Mesmo assim fui ao banco. Sempre havia alguém trabalhando por lá, além do que, a minha condição funcional me dava algumas prerrogativas.

Sentei na minha cadeira, para elaborar a situação e ajustar os neurônios. Abri uma gaveta e retirei de lá uma caixinha. Originalmente era uma caixinha de relógio, mas eu tinha ali guardado uma pequena semi jóia. Era um brinco solteiro. Seu par deve ter permanecido na orelha de Margani, dois anos antes, e como não tinha um grande valor material, provavelmente tenha sido descartado. Eu o guardava com se guarda um tesouro ou algo mais. Era o meu pico do Everest. Eu achava isso mesmo: era o meu Everest, pois se tratava de uma grande conquista, porém inútil.

Escrevi a minha carta de demissão e a enviei para a matriz. Só seria lida na segunda- feira, certamente. Mercado de trabalho não me faltaria e, anos a fio sem férias, talvez estivesse merecendo alguns meses de folga.

III

Se a vida, na velocidade dos dias atuais muda em um mês, em doze anos passa a ser outra vida; o mundo é outro habitat com personagens novos e situações muito diversas.

 Eu tenho por hábito, salvo exceções, acordar cedo no domingo. Ler notícias, tomar chimarrão, depois sair por aí, ou fazer uma comidinha.

 - Papai, você prometeu me levar ao parque

 - Sim, filhota. Vamos, venha tomar seu lanche e depois vamos arranjar alguma coisa para o almoço.

Margani tinha cinco anos e éramos só nós dois. Sua mãe tivera muitas complicações durante a gestação e não resistiu ao parto. Não éramos casados, sequer tínhamos uma relação sólida, mas quando soube de sua gravidez, trouxe-a para morar comigo.

O nome de minha filha, por óbvio, foi escolha minha, com a concordância da mãe que se limitou a dizer “Que estranho! Meio exótico, mas gostei. Diferente de tudo o que ouço”. Mas estão mais que evidentes os motivos da escolha

Os finais de semana eram todos integralmente de minha filha, já que a semana inteira eu vivia sob o fogo cruzado da atividade comercial, com o agravante de algumas viagens Margani tinha uma babá que a criava como filha e era chamada por ela de mamãe preta. Justina era uma senhora enorme e tinha de ser mesmo, porque não fosse aquele tamanho, talvez não houvesse espaço para caber um coração tão grande.

Quando eu precisava viajar, Justina se mudava para minha casa. E tanto aconteceu isso que acabei trocando o apartamento por outro um pouco maior, com um anexo, na periferia da cidade onde ela passou a morar. Para a minha felicidade e de minha filha. Tendo Margani e Justina ao meu lado eu não tinha a menor intenção de formar uma nova família. Aliás, eu já tinha uma família. Era aquela.

IV

Eu estava em São Paulo, era uma convenção em Atibaia, em um hotel praticamente entregue à companhia para a qual trabalhava. Apenas alguns hóspedes eventuais e estranhos circulavam e que víamos esporadicamente em uma e outra saída pelo saguão, uma vez que o tempo era escasso e o trabalho muito intenso.

Apenas à noite tínhamos folga para relaxar, beber alguma coisa e jogar conversa fora. No entanto, não nos estendíamos muito porque na manhã seguinte o pau pegava e era preciso estar esperto.

- João, amanhã encerra a convenção e ninguém é de ninguém. Nossa coleguinha pernambucana faca na bota não me escapa. Você já sabe onde vai largar sua rede?

Sei. Estou de olho em uma gatinha maravilhosa. Ela não perde por esperar.

 - Ah, deixa de brincadeira... Maravilhosa, maravilhosa não tem nenhuma. Onde conseguiste isso? É a gerente do hotel?

 - Nada disso é uma gatinha chamada Margani.

 - Você é um camisoludo mesmo... Quero ver quando ela chegar para você e disser: “papai, esse é o Ricardo...”

 - Cachorro! Nem me diga. Não me faça sofrer por antecedência.

 Na sexta-feira as cordas afrouxaram. Era encerramento de convenção e as coisas tendiam a ser festivas como sempre. Receberíamos algumas pessoas, fariam alguns discursos e a tarefa de finalizar o evento era minha. E eu falaria no máximo cinco minutos, distribuídos entre alguns vídeos.

Tivemos uma apresentação teatral que dramatizava a nossa atividade. Genial! E o agradecimento do hotel, com a palavra de sua gerente. Então eu fui ver o que quis dizer o meu colega sobre a tal moça. Uma mulher classuda, que  quando falava soltava borboletas coloridas e sensuais no ar. “Nossa! Tem razão aquele cachorro”

Mas não via a hora de chegar em casa, abraçar e beijar a minha gatinha. E faltava muito pouco.

 - Oi Justina, tudo em ordem por aqui?

 - E não vai estar, seu Joãozinho? O senhor tem um anjo em casa.

- Tenho dois, Justina. Dois, um de cada cor. A minha mala é com você, eu quero a minha filha.

E me fui ao quarto dela que me esperava escondida dentro do roupeiro. Nada, mas nada mesmo pode ser melhor do que um abraço de criança.

- Seu Joãozinho, tem uma carta aqui para o senhor. Estava dentro da mala.

- Ué...

“Meu querido... Faz tanto tempo! Você não me viu, mas eu vi você e vi durante cinco dias, mordendo os lábios para não procurá-lo. Aliás, você me viu, mas não me reconheceu. Acho que até achou interessante a gerente do hotel. Só que mais de dez anos depois, luz difusa, cabelos curtos e de outra cor, além dos óculos eu o perdôo por não ter me reconhecido. Agora, porém, você sabe onde eu estou. Sei que é um risco, mas espero que esta cartinha não seja aberta por mãos indevidas. Saudades. Margani”

 - Caralho!

- O que é isso papai!

 - É isso mesmo, seu Joãozinho. O senhor tenha modos!

 - Desculpem.

 - Filha, traga a chave de casa do papai.

 Eu queria era o chaveiro, que nada mais era do que o brinco solteiro de Margani, prensado entre duas lâminas acrílicas.

O que terá havido nos planos dela para acabar gerenciando um hotel? Era um cinco estrelas e ela deveria estar bem, mas seus planos eram de ser cliente desses espaços e não trabalhadora deles. Isso não poderia ficar assim. Eu precisava vê-la e com urgência. Tinha tantas coisas para falar. Estaria casada? Ou com um ou dois namorados velhos, ricos e cardiopatas? Ela não estava prestes a se aposentar, doze anos atrás?

 “Preciso voltar ao centro. Ao meu centro”.

 - Justina, vamos almoçar fora hoje, depois vamos ao shopping e depois vamos conversar um pouco. Preciso de socorro e muitas atenções.

 - Mas o que houve, seu Joãozinho? Notícias ruins?

 - Não sei, Justina... Não sei. Justina, há quanto tempo você trabalha aqui? Três anos? E nunca tirou férias?

 - Cruz credo, seu Joãozinho! Eu lá preciso de férias? Moro no paraíso, cercado por anjos e o senhor quer me dar férias? Está de mal comigo?

 - Não, querida. Bem, é o seguinte: semana que vem a Margani entra nas férias de julho, então nós três vamos fazer uma pequena viagem. Será a nossa viagem de férias. Avise os seus parentes.

 - Mas aonde nós vamos, homem?

 - Você vai gostar e eu tenho certeza de que a Margani também.

 - Margani, venha cá. Minha filhinha, quantas coleguinhas você conhece com o seu nome?

 -  Nenhuma, papai.

 - O que você acha de conhecer alguém com o nome igual ao seu?

 - Só se ela for bonita e legal como eu.

 Combinados e de malas prontas seguimos viagem alguns dias depois.

 V

- Bom dia, tenho uma reserva de dois quartos.

 - Sim. Senhor João Victor? Preciso do nome das outras pessoas.

 - Essa é Justina da Silva e essa é minha filha Margani.

 - Margani? Nossa! É o nome da nossa gerente. Nunca tinha visto um nome igual. Linda a sua filha, parabéns, senhor.

 - Eu sei e ela também sabe. Obrigado. Sua gerente está?

 - Não. Ela está em tratamento. Acho que não vai aparecer por aqui hoje.

 - Tratamento? De que?

- É complicado, senhor, não tenho autorização para revelar. Mas fique à vontade o rapaz vai levá-los aos apartamentos.

 “Meu Deus! Preciso saber disso”

 - Meu jovem, quem está respondendo pela gerência?

 - Faltou alguma coisa, senhor? Posso ajudá-lo?

 - Pode. Apenas me diga quem responde pela gerência na ausência da gerente e onde posso encontrar?

 - Bom dia, senhor, às suas ordens.

 Convidei o rapaz que se apresentou como responsável para conversarmos em um lugar reservado, e comecei explicando o que me trazia ali.

 - Eu sou amigo de sua gerente. Fomos colegas há muitos anos e ela me mandou uma carta dizendo que estava aqui. Trouxe comigo a minha filha, que também se chama Margani, e sua babá para conhecê-la. Diga-me como faço para encontrá-la?

 - Bem... Dona Margani é sócia do hotel e muito reservada. Ela é viúva e mora aqui mesmo, mas está em tratamento e não temos autorização para falar a respeito. No entanto, posso avisá-lo quando ela retornar.

 - Diga-me, por favor, que tipo de tratamento ela faz?

 - Senhor... Eu acho que é leucemia. Por favor, preserve o meu nome.

 - Fique tranqüilo. Só quero vê-la e quero que conheça minha filha. Fará muito bem a ela.

 As horas passavam cheias de angústia. Não para Margani e Justina que se perdiam entre brinquedos e outras atrações do hotel. Como não se cansavam? E Justina, com todo aquele peso...

 - Senhor. Dona Margani chegou, mas acho que o senhor deve dar algum tempo para ela. Deixe passar um pouco e ligue para esse número.

 - Certo. Muito obrigado. Isso é segredo nosso. Vou lhe fazer mais um pedido. Quando ela pedir serviço de quarto, mande entregar este chaveiro junto com uma rosa. Tem rosa por aqui?

 - Sim. Pode deixar que providencio.

 Passei a aguardar ainda mais ansioso. Como seria a reação dela?

Passou aquele dia que teve nada menos que 72 horas. O tempo? Vivi cada segundo sufocadamente. Justina e Margani... Nem queriam saber de mim. Ainda bem.

 - Alô...

 - Margani? É João. Quero vê-la agora. Pode ser?

 - Venha. Estou lhe esperando.

 - Justina, vou me ausentar um pouco, não se preocupe, estarei pelo hotel.

 - Acho que sei muito bem o que o senhor vai fazer e o porquê viemos, seu Joãozinho. Olhe lá...

 Margani parecia debilitada, cansada, mas... Como era linda! Na verdade não sei se ainda era como fora um dia, mas os olhos com que eu a olhava eram únicos e só para esse fim.

 - João Victor... Meu querido João... Venha cá me abraçar. Veio buscar o seu chaveiro?

 Alguns abraços têm a função de mosaico. Misturam pedacinho por pedacinho de sentimentos soltos que, mesmo os contraditórios, acabam se harmonizando e formando um cenário sem nome; sem explicação. É por isso que as palavras, por um tempo de corpos aglutinados são dispensáveis.

 - Puxa... Não sei o que vou dizer; o que vou fazer... Fale algumas coisas. Fale de você, por favor.

 - Sim. Falo. Vou começar de trás para diante. Reconheço que amei, amo e enquanto viver vou amar você. Está bom assim?

 - Isso só piora as coisas. É horrível saber disso agora, mas continue. Sei que tem coisas muito sérias para me contar.

 - Sim. Eu já sei que você foi informado sobre a minha situação. Meu pessoal não consegue esconder nada de mim. Estou chegando ao fim, meu querido. Com muita sorte terei um ano pela frente.

 - Meu Deus... Não pode ser verdade isso. Algo tem de ser feito.

 - Não. Nada mais pode ser feito. Já fiz transplante de medula e a coisa recrudesceu. Não tem volta, infelizmente. Um pouco dos pecados que devo estou pagando e pagando mesmo. Muitos dos recursos que juntei já foram consumidos com a doença. Foi o preço e não me queixo. Mas soube que você já tem a sua Margani. Deus do céu! Chorei muito, muito mesmo quando soube. Não repare o meu egoísmo, mas fiquei muito feliz em saber que você não me esqueceu. Que história essa nossa! E como poderia ter sido diferente... Olhe aqui o outro brinco. Eu não sabia que você tinha “roubado” o par, mas guardei o outro comigo. Acho que vou acabar fazendo um anel. Você está casado?

 - Não, não casei. A Margani é órfã. A mãe faleceu no parto. Tem uma babá, no entanto, que vale por duas mães.

 - Sinto muito por isso. Sim. Já me informei. Justina. Você vai me deixar conhecer sua filha?

 - Claro. Veio junto justamente para isso. Perguntei se ela gostaria de conhecer outra Margani, já que é única entre suas amiguinhas, e sabe o que ela me respondeu? “só se for bonita e legal como eu”. Lembra você em esperteza, a minha loirinha. Você pode vê-la amanhã?

 - Certamente. Vou estar recomposta.

 Ao nos despedirmos, mais abraços e eu fiz o que deveria ter feito as outras raras vezes que nos vimos: beijei longamente aqueles lábios que viviam pedindo beijo.

 - Bom dia, Justina, dormiram bem? Traga a Margani aqui na recepção.

 - Oi papai, quem é essa sua amiga?

 - Minha filha, pergunte a essa moça como é o nome dela.

 - Como é seu nome?

 - Margani e o seu?

 - Margani é o meu. Mas você é bonita e parece legal. Acho que também pode ser Margani.

 - Posso abraçar você?

 As Margani se abraçaram. Uma delas começou a chorar... A seguir chorou muito e estava sendo consolada pela outra quando eu fui ao banheiro. O quadro era insuportável demais. Voltei com os olhos intumescidos. Justina só observava. As outras duas continuavam abraçadas, com minha filha consolando sua nova amiga.

Margani se recolheu. Fora demais para ela e precisava descansar. Pediu para conversarmos à noite

- Seu Joãozinho, que história é essa? O senhor pode me contar?

- Posso, meu anjo. Preciso. Vamos ao play ground onde Margani possa brincar.

- Justina, você já se apaixonou alguma vez?

- Claro, não é seu Joãozinho. Eu não era um piteuzinho, mas vinte anos atrás também não tinha 100 quilos. Eu e “nego” Edu tivemos nossos momentos.

Contei em detalhes para Justina minha história com Margani, disse quem ela era, porque nunca ficamos efetivamente juntos e como ela estava hoje lidando com a doença.

- Minha nossa senhora Aparecida! Isso é uma novela! E o que o senhor vai fazer agora?

- Não sei. O que vou fazer não sei. O que eu quero fazer eu sei, mas não sei se vou poder; não sei se terei tempo de fazer.

- O senhor me desculpe a intromissão, seu Joãozinho. Eu sei que o senhor é ajuizado e não vai fazer nada que possa atrapalhar o futuro da nossa Margani. Nem precisava dizer isso, desculpe, mas a situação é diferente. Tem amor, doença séria... Tenha cuidado.

- Sei de tudo isso. Nesses dias vou precisar muito de você com a minha filha. Quero dar o máximo de tempo para a outra Margani.

Durante dez dias ficamos no hotel. Minha filha adorou a nova amiga, que fazia passeios diários pelas atrações do local até cansar; levava-a ao escritório deixava que ela mexesse em tudo. Margani usou com a minha filha sua velha e infalível arma: a sedução. Quem as visse, a partir do segundo dia, diria que eram mãe e filha.

Ela também tinha um filho, era autista e morava com os avós, a quem visitava diariamente pela manhã. Ultimamente andava espaçando as visitas, a fim de que o menino se acostumasse com a sua ausência.

Justina finalmente tirou férias, mas andava como uma ciumeira bárbara da nova relação da pequena.

E Margani e eu tivemos, enfim, a nossa lua de mel. Naqueles dez dias dormi apenas a primeira noite em meu quarto. Foi um período de muito amor. Sem a paixão incendiária de quando éramos mais jovens, mas com um sentimento maduro, intenso e angustiado. Sabíamos que novamente não haveria possibilidade de planos futuros e agora nem que quiséssemos.

Mas a nossa vida sempre foi uma permanente despedida. Era chegada a hora de ir embora e houve muito choro. As Margani apegaram-se de tal forma que dava pena afastá-las. Até Justina, apesar do ciúme, choramingava na despedida.

- Papai, por que você não casa com a tia Margani? Ela me disse que gosta de você e aí você fica com duas.

Rimos... Rimos para voltar a chorar. Foi uma despedida trágica.

De volta à casa, tudo era triste. Não parecia termos saído de férias. Parecíamos vindo  de um velório, o que não é de todo um equívoco.

 partir dali todas as noites a seguir eu tirava ao menos uma hora para namorar. Ligava para Margani e ficávamos feito dois adolescentes deslumbrados um com o outro. Estávamos em fase de negação da doença e isso até que nos ajudava a enfrentar o problema.

Um mês, dois meses de namoro à distância. Resolvi visitar Margani. Era muito sofrimento querer tocar, beijar, amar... E nós não tínhamos mais idade de ficarmos de longe apenas nos seduzindo. Nem idade, muito menos tempo. Precisava vê-la.

- Justina, terça-feira é feriado. Vou viajar domingo de noite e você sabe para onde, portanto trate de engambelar sua “filha”. Não diga para onde eu vou, porque senão teremos problemas, você sabe.

- Pode deixar, seu Joãozinho. Só um instante, vou atender ao  telefone.  

Justina me chamou com um tom de voz apreensivo.

- Seu Joãozinho é para o senhor. Parece que é de São Paulo.

- Ok. Quem fala?

- Senhor João Victor? É de Atibaia. Não tenho uma boa notícia para lhe passar, mas é minha obrigação. Infelizmente dona Margani não resistiu ao tratamento e foi a óbito. Faleceu ontem à noite, às 22:00.

- Deus do céu! Mas como é possível? Ontem à noite falamos ao telefone, a essa hora ou perto disso. Ela parecia bem. Meu Deus...

- Então ela falava com o senhor, porque faleceu com o telefone na mão e o bilhete pedindo que lhe informássemos. Sentimos muito. Estamos todos muito sofridos, embora soubéssemos que era uma questão de tempo. Fique bem, senhor. Até logo.

- Justina eu vou no primeiro voo que achar para São Paulo. Não me pergunte mais nada.

Cheguei a tempo de mais um adeus. “Por que nunca insisti com você, Margani? Como dói isso... Por que teve de ser desse jeito?”.

Parecia serena, com um leve sorriso naqueles lábios que estavam sempre pedindo beijo, mesmo depois de morta. Pedi licença aos familiares, peguei a mão dela, empurrei um pouquinho mais o anel do seu dedo esquerdo, anel que já fora um brinco, e coloquei uma aliança de ônix. Uma pedra que para mim passou a ter um significado além dos que pregam os místicos: o luto. Igual a esta que uso. Era o que eu não tinha certeza de que poderia fazer; se teria tempo de fazer, como havia dito à Justina, mas não deixaria o destino atrapalhar os meus planos e me negar aquele casamento, por mais mórbido e sem sentido que pudesse parecer. Não daquela vez.

Margani e eu vivemos de nos despedir até que a morte o fizesse em definitivo. Beijei-a nos lábios, agora frios e inertes, e fui embora. Sim, era uma sexta-feira, dia em que tudo começa ou termina. E daquela vez eu já não sabia de quantas outras precisaria para elaborar a dor.

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