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sábado, 15 de dezembro de 2012

O ANJO ROSALINO


O anjo Rosalino

Meu pai, com a sabedoria dos velhos me aconselhava: “melhor baixar os braços a perder os dentes”; “nenhuma discussão ganha vale a perda de uma amizade”. E particularmente me dizia: “tu não tens nem tamanho para ser valente”.

E de fato nunca fui de brigar, mas o verbo sempre me atormentou e nunca houve travas suficientes que o fizesse acomodar-se antes da língua. Nem em situações críticas e de perigo eminente como quando de minha passagem pelo quartel, prestando serviço militar em pleno AI-5. Penso, logo falo. Sem meditações metafísicas, não é mesmo seu Descartes? Mas pago por isto. E a respeito de amizades que se perdem por discussões vagas, penso que elas também o tenham sido.  

Eu tinha pouco mais de dez anos e vinha de um bate-boca forte com outro menino, este com tamanho de quinze. O motivo era o futebol, um coicezinho desproporcional, uma cotovelada, ou apenas um “paninho”... Essas coisas. Em um determinado momento, o oponente, perdendo o argumento, não lembro se com um soco, ou com o vento do seu soco me jogou ao solo. Eu ainda me preparava para levantar, quando lá veio a maldita mão pesada, que vi chegar perto do meu rosto. Mas não alcançou. Não alcançou e na seqüência lá estava o “provalecido” estatelado ao meu lado, surpreso e manso. De pé, um amigo da idade dele, enfurecido, mas controlado, dizendo apenas: “tiscapa daqui! Se te pego de novo te cago a pau!”.

Também em outra oportunidade, na saída de um jogo no campo do Ferro Carril, eu estava prestes também a pagar caro por alguma firula debochada, e o mesmo anjo da guarda, ai com calma e jeito afastou o desaforado, abraçando-o e aconselhando. Afinal, aquele era vizinho e amigo.

Minha mãe, vendo o fato, perguntou: “aquele guri mais velho é teu amigo?”. Sim, ele era meu amigo e detalhei às vezes em que ele esteve ao meu lado. Minha mãe perguntou: “sabes por que ele faz isto?”. Eu não sabia, mas desconfiava que ele gostasse de mim. Ela, por fim, com a calma exigível me esclareceu: “ele cuida de ti por que é teu irmão”.

Não lembro se entendi, mas lembro de ter ficado intrigado. “Como assim, meu irmão?”. Jeitosa, me contou que antes de casarem, meu pai tinha tido outra esposa e dali nascera aquele filho. Disse-me ainda que eu deveria gostar sempre muito dele, uma vez que ela também gostava, embora ele não soubesse. 

Depois disso eu o procurei várias vezes para falarmos, mas como era muito tímido, desconversava. O tempo se ia, veloz como quem corre atrás de uma bola, e ele aos poucos iam percebendo que sua missão de anjo anônimo fora cumprida, embora permanecesse sempre vigilante. Falávamos pouco, mas sempre que falávamos o sangue puxava, e a partir de um momento melhor de maturidade e compreensão fomos carinhosos e muito amigos.

A última vez que o vi, combinamos um encontro no final daquele ano em uma das praias, e finalmente praticarmos juntos os abusos permitidos a irmãos em férias. Mas não deu tempo. Um descuido o levou embora mais cedo. Sempre é cedo para morrer, mas irmãos devem viver pelo menos cinqüenta anos juntos, e algumas praias.  
Cumpro assim outra sina. Saudades eternas, Rosalino Ribeiro, meu irmão. Ainda temos uma praia agendada.   





sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

RETRATO PRESUNÇOSO





Vivo de convicções, certas e erradas. Talvez por isso meu metro de vida até agora, mais do que ser apenas uma linha de tempo, reta e despercebida de si mesma, tenha sido de sobressaltos, margeada por céus e purgatórios. São as minhas escolhas. Por mim, nada pode ser morno; nada foi e não será sem sal e pimenta. E minhas doçuras, ah, essas repugnam as abelhas. Tenho a presunção, uma de tantas, de não ter vindo mais ou menos viver.

Sou um ser atormentado pela lógica, buscada com intransigência, ainda que em causas absurdamente mínimas. São as minhas miudezas. E tenho como antepenúltima presunção ser, das três coisas que meu pai precisava para seu complemento, o livro que ele plantou.

Vivo de ventos fortes, sol escaldante e tempestades, permeadas por recuos de marés. Sei que o saldo disto tudo são marcas, melhor, voçorocas em corpo e alma. Nunca me vejo um pátio bucólico com folhas caídas, pequenos galhos frágeis e velhos esparramados; ou pouco chamuscado. Por vezes racha-me o tronco, remexem minhas raízes e me incendeio. Por outro lado, não consigo me imaginar num fim medianamente feliz.  Prezo o “ser” por permanente, embora não seja; provoco o “estar”, qualquer que seja, de prazer ou dor, para que não seja apenas o vão momento.  E descubro certo sadomasoquismo em viver com intensidade.

Digo aos meus afetos como sou. Alguns acreditam, outras não dão bola, e ainda outros vivem de se sobressaltarem. Contrariam-se, depois sem saber o que fazer comigo acabam esquecendo, que é seu modo de perdoar e me aceitarem. E há outros que, passado o momento de contrariedades, ao serem perguntados por mim, acredito que gostariam de responder “quem?”. Isto, no entanto, esbarra na minha penúltima presunção: Passar pela vida das pessoas de tal forma que impeça este tipo de pergunta. E como venho de aquerenciar afetos, e como já é tarde demais para trocar de roupa, sigo fiel e desconstrangido com a indumentária cedida pelos anjos tortos que me anunciaram.

Por precaução sempre revejo os picos anímicos, suas antevésperas e seus rescaldos. São os meus coquetéis; os espumantes e chazinhos pósteros espirituais, mas são também minhas jurisprudentes terapias. O sem graça disto é que hoje pouco me surpreendo.

Por fim, quando a luz ficar esmaecida, bem no finzinho da tarde, por certo vou estender a rede em estágios temporais de riso e paz, e isto, mais do que ser meu desafio, é minha última presunção.