O anjo Rosalino
Meu pai, com a sabedoria dos velhos me aconselhava: “melhor baixar os braços a perder os dentes”;
“nenhuma discussão ganha vale a perda de
uma amizade”. E particularmente me dizia: “tu não tens nem tamanho para ser valente”.
E de fato nunca fui de brigar, mas o verbo sempre me atormentou
e nunca houve travas suficientes que o fizesse acomodar-se antes da língua. Nem
em situações críticas e de perigo eminente como quando de minha passagem pelo
quartel, prestando serviço militar em pleno AI-5. Penso, logo falo. Sem meditações metafísicas, não é mesmo seu
Descartes? Mas pago por isto. E a respeito de
amizades que se perdem por discussões vagas, penso que elas também o tenham
sido.
Eu tinha pouco mais de dez anos e vinha de um bate-boca forte
com outro menino, este com tamanho de quinze. O motivo era o futebol, um
coicezinho desproporcional, uma cotovelada, ou apenas um “paninho”... Essas
coisas. Em um determinado momento, o oponente, perdendo o argumento, não lembro
se com um soco, ou com o vento do seu soco me jogou ao solo. Eu ainda me
preparava para levantar, quando lá veio a maldita mão pesada, que vi chegar
perto do meu rosto. Mas não alcançou. Não alcançou e na seqüência lá estava o
“provalecido” estatelado ao meu lado, surpreso e manso. De pé, um amigo da
idade dele, enfurecido, mas controlado, dizendo apenas: “tiscapa daqui! Se te pego de novo te cago a pau!”.
Também em outra oportunidade, na saída de um jogo no campo do Ferro
Carril, eu estava prestes também a pagar caro por alguma firula debochada, e o
mesmo anjo da guarda, ai com calma e jeito afastou o desaforado, abraçando-o e
aconselhando. Afinal, aquele era vizinho e amigo.
Minha mãe, vendo o fato, perguntou: “aquele guri mais velho é teu amigo?”. Sim, ele era meu amigo e
detalhei às vezes em que ele esteve ao meu lado. Minha mãe perguntou: “sabes por que ele faz isto?”. Eu não
sabia, mas desconfiava que ele gostasse de mim. Ela, por fim, com a calma
exigível me esclareceu: “ele cuida de ti
por que é teu irmão”.
Não lembro se entendi, mas lembro de ter ficado intrigado. “Como assim, meu irmão?”. Jeitosa, me
contou que antes de casarem, meu pai tinha tido outra esposa e dali nascera
aquele filho. Disse-me ainda que eu deveria gostar sempre muito dele, uma vez
que ela também gostava, embora ele não soubesse.
Depois disso eu o procurei várias vezes para falarmos, mas como
era muito tímido, desconversava. O tempo se ia, veloz como quem corre atrás de
uma bola, e ele aos poucos iam percebendo que sua missão de anjo anônimo fora
cumprida, embora permanecesse sempre vigilante. Falávamos pouco, mas sempre que
falávamos o sangue puxava, e a partir de um momento melhor de maturidade e
compreensão fomos carinhosos e muito amigos.
A última vez que o vi, combinamos um encontro no final daquele
ano em uma das praias, e finalmente praticarmos juntos os abusos permitidos a
irmãos em férias. Mas não deu tempo. Um descuido o levou embora mais cedo.
Sempre é cedo para morrer, mas irmãos devem viver pelo menos cinqüenta anos
juntos, e algumas praias.
Cumpro assim outra sina. Saudades eternas, Rosalino Ribeiro, meu
irmão. Ainda temos uma praia agendada.