Um dia me pediram as armas que eu tinha guardado. Não seriam usadas; repugnava-me, e porque não dizer, me assustava ter de um dia usá-las. Mas estavam ali. De certa forma me sentia seguro com elas. Mas disseram que era por uma boa causa e eu as entreguei, mesmo antes de ser coagido a isto, ainda que sem convicção.
Em outra oportunidade me proibiram de beber. Nem um pequeno
drinque poderia, caso fosse dirigir. Sempre me mantive dentro dos limites, uma
e outra vez quem sabe tenha me excedido, não me lembro, nada que me tivesse tirado
a consciência e o equilíbrio. Jamais provoquei ou sofri acidente de carro
nestas condições, mas assustado com os números trágicos da mídia, e convencido
que iria ajudar, ou muito mais que isto, me preservar física e economicamente, aquiesci.
Diziam que o grande vilão das mortes do trânsito era o álcool, e enfim as boas
causas estavam postas e eu não iria contrariá-las.
As noites ficaram
mais longas e chatas; os amigos foram se recolhendo mais cedo e eu fui ficando
mais em casa. Casa que sem as armas foi adquirindo cada dia mais grades, porque as mãos que acompanham os olhos da noite continuam armadas e cada vez
mais violentas. E nos cérebros que gerenciam esses olhos, a vida ganha cada vez mais desimportância.
Então criaram o sistema de cotas. Nossos irmãos afrodescendentes teriam privilégios em universidades em função de séculos de
repressão, supressão e pobreza. Eu que já não podia chamar meus amigos negrões
de negrões, ainda que isso demonstrasse carinho, não ousaria fazê-lo agora, que
passaram de iguais a privilegiados. Corrigir a história com erros que um dia
serão históricos cria injustiças imediatas; no caso oficializa a desigualdade
racial; promove novos conflitos que só o tempo haverá de materializar, e talvez
nunca mais recomponha.
Mas também não perguntaram qual era a minha opinião a respeito e eu tive de concordar. Não sem antes pensar nos milhares de filhos pobres que não tiveram o privilégio de nascerem negros. Penso que haverá, mas não sei se chegarei a presenciar, hordas de brancos empobrecidos clamando por justiça racial.
Mas também não perguntaram qual era a minha opinião a respeito e eu tive de concordar. Não sem antes pensar nos milhares de filhos pobres que não tiveram o privilégio de nascerem negros. Penso que haverá, mas não sei se chegarei a presenciar, hordas de brancos empobrecidos clamando por justiça racial.
AÍ resolveram que homossexuais seriam uma casta especial de
pessoas; uma nova e moderna família, sobre as quais pouco poderia ser dito que não fosse do
seu agrado. Além disso, talvez lhes providenciassem cotas de
acesso aos serviços públicos. Meus
amigos negros e meus amigos homossexuais perderam (não quero pensar que talvez
tenham ganhado com a perda) a minha espontaneidade. Eu, que não consigo viver de alegrias contidas ou patrulhadas, por certo
perdi o jeito leve de interagir com eles.
Antigamente
se dizia, e se brincava com isso, no quanto era terrível ser feio, pobre e
morar longe. É? Experimente ser feio, pobre, branco, hétero, morar longe e ter
bom gosto? Por sorte eu cresci, e sem problemas de auto-estima. Mas viver a juventude nessas
condições hoje teria sido uma teimosia imperdoável.
Vi,
por fim, que talvez tirem o nome dos velhos Ramão e Ernestina da minha
identidade; que meus netos possam não cantar e representar no Dia dos Pais, e
que o Dia das Mães das escolinhas sequer seja lembrado.
Pensei
em protestar, mas vejo olhos sinistros à espreita; canetas com tinta fresca e
carimbos que sacramentam essas opções, e que embora não possam me tolher da
liberdade, por certo tratarão de tisnar a minha alegria. Meu riso ainda não se
foi, embora todo esforço legal para que ele me abandone; minha felicidade até
poderá não ser completa, mas quem sabe possa acabar se e quando portugueses, loiras,
gordos, magros, feios, brancos pobres, baixinhos e papagaios resolverem se juntar e pressionar a OAB para o derradeiro
golpe na alegria.
Há espaço, clima sustentado pelo cinismo mórbido politicamente correto; gente com sede de fazer história a qualquer custo, intermediários de viseiras, e na ponta de tudo isso as maiorias inocentes que trocam seus novos privilégios por votos a cada dois anos.
Há espaço, clima sustentado pelo cinismo mórbido politicamente correto; gente com sede de fazer história a qualquer custo, intermediários de viseiras, e na ponta de tudo isso as maiorias inocentes que trocam seus novos privilégios por votos a cada dois anos.
2 comentários:
A casa grande enlouquece quando a senzala aprende a ler.
Fantástico!!
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