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domingo, 27 de dezembro de 2020

MARGANI

 








Margani era um pedaço de mau caminho! Colega do banco onde eu trabalhava, despertava paixões em todo quadro funcional, incluindo gerentes, diretores e alguns clientes mais assanhados.

Morena meio cor de cuia, com um cabelo que se derramava dorso abaixo como uma cachoeira de piche. Os olhos, duas bolitas rasgadas de cor incerta. Um tom exótico de mel, com expressões que iam do mormaço à selvageria, mercê do momento. Era por onde começavam a sucumbir suas vítimas. E a boca... Lábios de pedir beijo, daqueles que permanentemente ensaiam a última vogal. Um bico de selfie, mesmo dormindo. Eu falaria sobre seu corpo, mas temo exagerar. Só não posso deixar de referir, que aquilo tudo se distribuía em pouco mais de 1,60m. Margani crescia na frente dos homens. Na frente, por baixo, por cima... Mas isso só fui saber depois.

Dos babões que a cercavam, poucos tinham liberdades com ela. Eu era um ungido. Por quê? Ora, porque não insistia, explícita ou veladamente, em levá-la para a cama. Era o que ela pensava e por mim estava tudo bem. Até que uma borracheira em uma festa do banco resolveu as coisas entre nós.

Naquela noite, bebíamos e dançávamos todos juntos, comemorando os resultados. Aos poucos se apartaram os grupos, juntando-se os mais próximos, apenas para conversar e rir, sem envolvimentos íntimos, uma vez que a regra tácita do banco era a não formação de casais. Como a minha atividade na agência era solitária, busquei a sacada para oxigenar um pouco o sangue. Tinha bebido um pouco além da conta. Sentei e cochilei. Acordei com a boca de Margani sussurrando e roçando no meu ouvido. “Acorda, belo adormecido, sua princesa está bêbada e precisa de ajuda”. Ela estava pior do que eu e então demos um jeito de sair à francesa. Levei-a para meu apartamento. Era ao lado do banco e não tinha que dar satisfações a ninguém. Tirei a roupa dela tendo o cuidado para não me fixar muito na obra divina e a coloquei no banho. “Hei... Você não vai vir?”. Fui. Fui alcançar uma toalha e me recolher ao lugar dos mortais. Era tentação demais! “Margani, vou fazer um chá. Tome seu banho. Depois falamos”. Como estava demorando muito voltei ao banheiro para conferir. Ela dormia encostada no box. Enrolei-a na toalha, peguei no colo e levei para a cama. Eu dormi no sofá. Fui acordado já de manhã pelo cheirinho de café. Margani estava de pé, ainda enrolada na toalha, curada e bem disposta. Eu quebrado. “Você é um anjo, João, obrigado por me aturar. Vá ao banho e depois venha tomar café”. Entrei no chuveiro e deixei que a água terminasse de me acordar. No entanto, aos agradáveis golpes d’água pelo corpo, juntaram-se duas mãos delicadas a me explorarem por inteiro. Mãos, lábios... Era uma manhã de sábado, inicio de um feriadão, que eu passei a desejar que fosse a vida eterna.

Ficamos três dias inteiros confinados resolvendo nossas coisas, à exaustão.

Na semana seguinte, porém, ela sumiu. Sumiu total, como por encanto. Demitiu-se do banco e abandonou a república onde morava.

 As coisas custaram um pouco a se ajustar. Fiquei com um sentimento amargo de perda, e com a certeza de que aquele feriadão de torrar colchões fora um prêmio de consolação pelo amigo leal que eu tinha sido. Sofri. A extensão das minhas dores, via de regra, tem seu limiar nas sextas-feiras, mas daquela vez talvez fosse diferente.

II

Dois anos se passaram. Eu vinha me arranjando aqui e ali com Alice, Verônica e nem me lembro com quem mais, mas não esquecia Margani.

Uma noite, uma sexta-feira que é quando as coisas começam ou terminam, sentado em um piano-bar, jogando pensamentos fora me deparei com ela. Estava acompanhada pelo papai. Papai com açúcar, e era uma versão especial repaginada de Margani.

Cruzamos os olhos despercebidamente como estranhos. Alguns minutos depois ela levantou-se para ir ao toalete a passo lerdo, como quisesse me jogar na cara o tamanho da minha perda. E alguns minutos depois o garçom chegou com um cartãozinho e um recado: “me liga”. Dei-me por satisfeito e fui embora. Por certo ligaria.

Margani?

- Oi querido. Preciso vê-lo, você pode? Caso possa, anote o endereço.

Era perto, mas parece ter demorado dois dias até chegar. E ser recebido pela nudez dela. Sim, é certo que havia uma toalha por cima, mas isso eu só notei depois.

- Sente. Vou me vestir.

 Quase retruquei por impulso...

 - João, eu sei que devo explicações, mas as coisas se precipitaram e tive de tomar decisões com urgência. Precisei escolher entre ser bancária ou rica. Tinha que seguir o plano que traçado desde quando morava no interior. Não podia vacilar.

 - Saí com um diretor do banco algumas vezes. Fizemos uma viagem juntos, quando ele me pediu exclusividade. Fez ofertas muito atrativas... Eu também fiz algumas exigências... Resumindo, passei de bancária moradora de cortiço a teúda e manteúda, conta com saldo rechonchudo e este apartamento.

 - Explorei a ficha médica dele e comecei a cozinhá-lo em fogo brando. Pelo que vi, tinha seus dias contados. No entanto, sequer dava sinal de fraqueza e deveria custar  “nos deixar”. Então dei um jeito de sermos surpreendidos por sua filha. Um escândalo sufocado, e ele teve de ancorar seu barco. Fiquei livre, com este apartamento e uma grana indenizatória que a filha fez questão de me dar, com medo de escândalos. Eu não faria nada, mas também não iria recusar o dinheiro.

 - É sujo, indigno, mas é o que escolhi. Agora tenho dois “namorados”. Todos “exclusivos”, com mais de 60 anos, casados, ricos e cardiopatas. Mas eu os faço felizes em seus últimos tempos. É assim que vou juntar o suficiente para viver bem e sair de cena, o que não deve tardar. Percebe?

Sim, eu percebia. Em relação aos pré-requisitos, eu não era rico nem tinha 60 anos. E talvez por causa dela também não era casado, mas provavelmente tenha contraído uma cardiopatia.

- Você foi o melhor, talvez o meu único amigo e o sentimento mais limpo e puro que eu tive. Que eu tive não, que eu tenho, meu querido. Não me restam mais lembranças boas além das nossas. Esteja certo disso e é como eu quero lembrar de você quando as coisas se acalmarem para mim. Você merece uma vida melhor do que eventualmente uma imaginada comigo. Mas fale-me um pouco de você.

Pois então, Margani... Margani... Como seu nome me faz bem! Mesmo antes daquele feriado inesquecível eu não a via como uma coisa só. Uma amiga não. Muito além disso. Era algo adormecido, entre outras coisas, uma espécie de veneração, com o que você já estava acostumada, bastava que olhasse ao redor prestando a mínima atenção. Mas se tem algo de que me orgulho é a minha percepção, em especial quando se trata de pessoas e seus lugares. O meu, definitivamente, não era ao seu lado e eu me conformava.

- Aqueles três dias, no entanto, acenderam uma pequena luz. Nem chegou a ser uma esperança, uma vez que você sempre me parecia impenetrável. Vou rir porque “impenetrável” não tem nada a ver com o que aconteceu naqueles dias. Mas me refiro a intransigência do seu foco. Você olhava longe, muito acima das nossas cabeças e era fácil adivinhar que, mais cedo ou mais tarde, o destino a levaria para longe.

- Não vou falar de amor porque as trocas que houve entre nós não tiveram esse viés, mas eu custei a esquecer você. Esquecer? Não, não é bem isso, porque eu não esqueci, e não houve um dia ou uma noite em que eu não a procurasse, das formas mais diversas. Ficou me faltando mais Margani, muito mais.

Eu sei. Acho que sei. Também sei que não vai adiantar falar para você o que vou falar agora, mas já que sempre fomos francos, ou quase sempre da minha parte. Todo aquele cuidado que você tinha comigo, carinho, atenção; sempre disponível, inclusive para me dar broncas, quase me tiraram do prumo. Eu estava caidinha por você e era uma questão vital que eu me afastasse imediatamente. Você falou em foco? Pois é. A pobreza com que fui criada, a violência e a promiscuidade familiar que presenciei merecia uma resposta, e das mulheres da minha família a única que poderia fazer alguma coisa era eu. E fiz. Jamais faria se tivesse me deixado levar pelo que estava começando a sentir por você.

- Uma pena, meu querido João, João Victor, mas amor não estava nos meus planos. Eu tinha para mim que qualquer paixão, e pode acreditar, apesar da vida que levo eu sou muito suscetível a isso, colocaria todo o meu planejamento por terra. Resisto com toda força do meu ser contra esse sentimento.

- Agora olhando para você sabe o que eu sinto? Pena. Uma pena enorme de ter objetivos tão distantes dos comuns. Acho que como parceiros tínhamos tudo para dar certo. Enfim...

Conversamos muito; rimos, mas era chegada a hora de sepultar em definitivo a saudade. E quanto menos apoteótico o fim, mais fácil haveria de ser o inevitável luto. Peguei Margani pelas mãos, nos levantamos, nos olhamos fundamente para além de nossas pupilas e nos perdemos no tempo abraçados. Levemente nos separamos para nos olharmos, e eu me dei conta de que aquela boca vivia pedindo beijo, mesmo dormindo. Quando sussurrava então era fatal...

 -Você acha que devemos, João?

 Eu não achava que quanto menos apoteótico o fim, mais fácil se tornaria o luto?

 - Você está certa. Vou embora.

Abraçamo-nos novamente para que eu levasse no corpo aquele cheiro de xampu e água de colônia caros; no peito a pressão do volume diferente do peito dela, que tinha uma firmeza acima do natural, sinal que havia sido trabalhado. Despedimos-nos sem promessas, nem de voltarmos a nos ver, sequer nos ligarmos. Seguiríamos os destinos que ela escolhera.

Saí carregando no coração aquela cova que viera rasa, e agora estava um pouco mais funda e escura, uma voçoroca onde seria sepultada a nossa história. A saudade até então fora engraçada porque não doía. Era um desconforto fisiológico tipo uma fome ou uma sede eventual. Porém permanente. Mas tive a impressão que nessa nova fase ela seria chorada, ao menos até a próxima sexta-feira ou duas sextas-feiras. Ficou faltando mais Margani, muito mais!

E... Prestes a completar 30 anos, achei que era hora de dar um rumo diferente à minha vida. Era sábado, perto do meio dia. Mesmo assim fui ao banco. Sempre havia alguém trabalhando por lá, além do que, a minha condição funcional me dava algumas prerrogativas.

Sentei na minha cadeira, para elaborar a situação e ajustar os neurônios. Abri uma gaveta e retirei de lá uma caixinha. Originalmente era uma caixinha de relógio, mas eu tinha ali guardado uma pequena semi jóia. Era um brinco solteiro. Seu par deve ter permanecido na orelha de Margani, dois anos antes, e como não tinha um grande valor material, provavelmente tenha sido descartado. Eu o guardava com se guarda um tesouro ou algo mais. Era o meu pico do Everest. Eu achava isso mesmo: era o meu Everest, pois se tratava de uma grande conquista, porém inútil.

Escrevi a minha carta de demissão e a enviei para a matriz. Só seria lida na segunda- feira, certamente. Mercado de trabalho não me faltaria e, anos a fio sem férias, talvez estivesse merecendo alguns meses de folga.

III

Se a vida, na velocidade dos dias atuais muda em um mês, em doze anos passa a ser outra vida; o mundo é outro habitat com personagens novos e situações muito diversas.

 Eu tenho por hábito, salvo exceções, acordar cedo no domingo. Ler notícias, tomar chimarrão, depois sair por aí, ou fazer uma comidinha.

 - Papai, você prometeu me levar ao parque

 - Sim, filhota. Vamos, venha tomar seu lanche e depois vamos arranjar alguma coisa para o almoço.

Margani tinha cinco anos e éramos só nós dois. Sua mãe tivera muitas complicações durante a gestação e não resistiu ao parto. Não éramos casados, sequer tínhamos uma relação sólida, mas quando soube de sua gravidez, trouxe-a para morar comigo.

O nome de minha filha, por óbvio, foi escolha minha, com a concordância da mãe que se limitou a dizer “Que estranho! Meio exótico, mas gostei. Diferente de tudo o que ouço”. Mas estão mais que evidentes os motivos da escolha

Os finais de semana eram todos integralmente de minha filha, já que a semana inteira eu vivia sob o fogo cruzado da atividade comercial, com o agravante de algumas viagens Margani tinha uma babá que a criava como filha e era chamada por ela de mamãe preta. Justina era uma senhora enorme e tinha de ser mesmo, porque não fosse aquele tamanho, talvez não houvesse espaço para caber um coração tão grande.

Quando eu precisava viajar, Justina se mudava para minha casa. E tanto aconteceu isso que acabei trocando o apartamento por outro um pouco maior, com um anexo, na periferia da cidade onde ela passou a morar. Para a minha felicidade e de minha filha. Tendo Margani e Justina ao meu lado eu não tinha a menor intenção de formar uma nova família. Aliás, eu já tinha uma família. Era aquela.

IV

Eu estava em São Paulo, era uma convenção em Atibaia, em um hotel praticamente entregue à companhia para a qual trabalhava. Apenas alguns hóspedes eventuais e estranhos circulavam e que víamos esporadicamente em uma e outra saída pelo saguão, uma vez que o tempo era escasso e o trabalho muito intenso.

Apenas à noite tínhamos folga para relaxar, beber alguma coisa e jogar conversa fora. No entanto, não nos estendíamos muito porque na manhã seguinte o pau pegava e era preciso estar esperto.

- João, amanhã encerra a convenção e ninguém é de ninguém. Nossa coleguinha pernambucana faca na bota não me escapa. Você já sabe onde vai largar sua rede?

Sei. Estou de olho em uma gatinha maravilhosa. Ela não perde por esperar.

 - Ah, deixa de brincadeira... Maravilhosa, maravilhosa não tem nenhuma. Onde conseguiste isso? É a gerente do hotel?

 - Nada disso é uma gatinha chamada Margani.

 - Você é um camisoludo mesmo... Quero ver quando ela chegar para você e disser: “papai, esse é o Ricardo...”

 - Cachorro! Nem me diga. Não me faça sofrer por antecedência.

 Na sexta-feira as cordas afrouxaram. Era encerramento de convenção e as coisas tendiam a ser festivas como sempre. Receberíamos algumas pessoas, fariam alguns discursos e a tarefa de finalizar o evento era minha. E eu falaria no máximo cinco minutos, distribuídos entre alguns vídeos.

Tivemos uma apresentação teatral que dramatizava a nossa atividade. Genial! E o agradecimento do hotel, com a palavra de sua gerente. Então eu fui ver o que quis dizer o meu colega sobre a tal moça. Uma mulher classuda, que  quando falava soltava borboletas coloridas e sensuais no ar. “Nossa! Tem razão aquele cachorro”

Mas não via a hora de chegar em casa, abraçar e beijar a minha gatinha. E faltava muito pouco.

 - Oi Justina, tudo em ordem por aqui?

 - E não vai estar, seu Joãozinho? O senhor tem um anjo em casa.

- Tenho dois, Justina. Dois, um de cada cor. A minha mala é com você, eu quero a minha filha.

E me fui ao quarto dela que me esperava escondida dentro do roupeiro. Nada, mas nada mesmo pode ser melhor do que um abraço de criança.

- Seu Joãozinho, tem uma carta aqui para o senhor. Estava dentro da mala.

- Ué...

“Meu querido... Faz tanto tempo! Você não me viu, mas eu vi você e vi durante cinco dias, mordendo os lábios para não procurá-lo. Aliás, você me viu, mas não me reconheceu. Acho que até achou interessante a gerente do hotel. Só que mais de dez anos depois, luz difusa, cabelos curtos e de outra cor, além dos óculos eu o perdôo por não ter me reconhecido. Agora, porém, você sabe onde eu estou. Sei que é um risco, mas espero que esta cartinha não seja aberta por mãos indevidas. Saudades. Margani”

 - Caralho!

- O que é isso papai!

 - É isso mesmo, seu Joãozinho. O senhor tenha modos!

 - Desculpem.

 - Filha, traga a chave de casa do papai.

 Eu queria era o chaveiro, que nada mais era do que o brinco solteiro de Margani, prensado entre duas lâminas acrílicas.

O que terá havido nos planos dela para acabar gerenciando um hotel? Era um cinco estrelas e ela deveria estar bem, mas seus planos eram de ser cliente desses espaços e não trabalhadora deles. Isso não poderia ficar assim. Eu precisava vê-la e com urgência. Tinha tantas coisas para falar. Estaria casada? Ou com um ou dois namorados velhos, ricos e cardiopatas? Ela não estava prestes a se aposentar, doze anos atrás?

 “Preciso voltar ao centro. Ao meu centro”.

 - Justina, vamos almoçar fora hoje, depois vamos ao shopping e depois vamos conversar um pouco. Preciso de socorro e muitas atenções.

 - Mas o que houve, seu Joãozinho? Notícias ruins?

 - Não sei, Justina... Não sei. Justina, há quanto tempo você trabalha aqui? Três anos? E nunca tirou férias?

 - Cruz credo, seu Joãozinho! Eu lá preciso de férias? Moro no paraíso, cercado por anjos e o senhor quer me dar férias? Está de mal comigo?

 - Não, querida. Bem, é o seguinte: semana que vem a Margani entra nas férias de julho, então nós três vamos fazer uma pequena viagem. Será a nossa viagem de férias. Avise os seus parentes.

 - Mas aonde nós vamos, homem?

 - Você vai gostar e eu tenho certeza de que a Margani também.

 - Margani, venha cá. Minha filhinha, quantas coleguinhas você conhece com o seu nome?

 -  Nenhuma, papai.

 - O que você acha de conhecer alguém com o nome igual ao seu?

 - Só se ela for bonita e legal como eu.

 Combinados e de malas prontas seguimos viagem alguns dias depois.

 V

- Bom dia, tenho uma reserva de dois quartos.

 - Sim. Senhor João Victor? Preciso do nome das outras pessoas.

 - Essa é Justina da Silva e essa é minha filha Margani.

 - Margani? Nossa! É o nome da nossa gerente. Nunca tinha visto um nome igual. Linda a sua filha, parabéns, senhor.

 - Eu sei e ela também sabe. Obrigado. Sua gerente está?

 - Não. Ela está em tratamento. Acho que não vai aparecer por aqui hoje.

 - Tratamento? De que?

- É complicado, senhor, não tenho autorização para revelar. Mas fique à vontade o rapaz vai levá-los aos apartamentos.

 “Meu Deus! Preciso saber disso”

 - Meu jovem, quem está respondendo pela gerência?

 - Faltou alguma coisa, senhor? Posso ajudá-lo?

 - Pode. Apenas me diga quem responde pela gerência na ausência da gerente e onde posso encontrar?

 - Bom dia, senhor, às suas ordens.

 Convidei o rapaz que se apresentou como responsável para conversarmos em um lugar reservado, e comecei explicando o que me trazia ali.

 - Eu sou amigo de sua gerente. Fomos colegas há muitos anos e ela me mandou uma carta dizendo que estava aqui. Trouxe comigo a minha filha, que também se chama Margani, e sua babá para conhecê-la. Diga-me como faço para encontrá-la?

 - Bem... Dona Margani é sócia do hotel e muito reservada. Ela é viúva e mora aqui mesmo, mas está em tratamento e não temos autorização para falar a respeito. No entanto, posso avisá-lo quando ela retornar.

 - Diga-me, por favor, que tipo de tratamento ela faz?

 - Senhor... Eu acho que é leucemia. Por favor, preserve o meu nome.

 - Fique tranqüilo. Só quero vê-la e quero que conheça minha filha. Fará muito bem a ela.

 As horas passavam cheias de angústia. Não para Margani e Justina que se perdiam entre brinquedos e outras atrações do hotel. Como não se cansavam? E Justina, com todo aquele peso...

 - Senhor. Dona Margani chegou, mas acho que o senhor deve dar algum tempo para ela. Deixe passar um pouco e ligue para esse número.

 - Certo. Muito obrigado. Isso é segredo nosso. Vou lhe fazer mais um pedido. Quando ela pedir serviço de quarto, mande entregar este chaveiro junto com uma rosa. Tem rosa por aqui?

 - Sim. Pode deixar que providencio.

 Passei a aguardar ainda mais ansioso. Como seria a reação dela?

Passou aquele dia que teve nada menos que 72 horas. O tempo? Vivi cada segundo sufocadamente. Justina e Margani... Nem queriam saber de mim. Ainda bem.

 - Alô...

 - Margani? É João. Quero vê-la agora. Pode ser?

 - Venha. Estou lhe esperando.

 - Justina, vou me ausentar um pouco, não se preocupe, estarei pelo hotel.

 - Acho que sei muito bem o que o senhor vai fazer e o porquê viemos, seu Joãozinho. Olhe lá...

 Margani parecia debilitada, cansada, mas... Como era linda! Na verdade não sei se ainda era como fora um dia, mas os olhos com que eu a olhava eram únicos e só para esse fim.

 - João Victor... Meu querido João... Venha cá me abraçar. Veio buscar o seu chaveiro?

 Alguns abraços têm a função de mosaico. Misturam pedacinho por pedacinho de sentimentos soltos que, mesmo os contraditórios, acabam se harmonizando e formando um cenário sem nome; sem explicação. É por isso que as palavras, por um tempo de corpos aglutinados são dispensáveis.

 - Puxa... Não sei o que vou dizer; o que vou fazer... Fale algumas coisas. Fale de você, por favor.

 - Sim. Falo. Vou começar de trás para diante. Reconheço que amei, amo e enquanto viver vou amar você. Está bom assim?

 - Isso só piora as coisas. É horrível saber disso agora, mas continue. Sei que tem coisas muito sérias para me contar.

 - Sim. Eu já sei que você foi informado sobre a minha situação. Meu pessoal não consegue esconder nada de mim. Estou chegando ao fim, meu querido. Com muita sorte terei um ano pela frente.

 - Meu Deus... Não pode ser verdade isso. Algo tem de ser feito.

 - Não. Nada mais pode ser feito. Já fiz transplante de medula e a coisa recrudesceu. Não tem volta, infelizmente. Um pouco dos pecados que devo estou pagando e pagando mesmo. Muitos dos recursos que juntei já foram consumidos com a doença. Foi o preço e não me queixo. Mas soube que você já tem a sua Margani. Deus do céu! Chorei muito, muito mesmo quando soube. Não repare o meu egoísmo, mas fiquei muito feliz em saber que você não me esqueceu. Que história essa nossa! E como poderia ter sido diferente... Olhe aqui o outro brinco. Eu não sabia que você tinha “roubado” o par, mas guardei o outro comigo. Acho que vou acabar fazendo um anel. Você está casado?

 - Não, não casei. A Margani é órfã. A mãe faleceu no parto. Tem uma babá, no entanto, que vale por duas mães.

 - Sinto muito por isso. Sim. Já me informei. Justina. Você vai me deixar conhecer sua filha?

 - Claro. Veio junto justamente para isso. Perguntei se ela gostaria de conhecer outra Margani, já que é única entre suas amiguinhas, e sabe o que ela me respondeu? “só se for bonita e legal como eu”. Lembra você em esperteza, a minha loirinha. Você pode vê-la amanhã?

 - Certamente. Vou estar recomposta.

 Ao nos despedirmos, mais abraços e eu fiz o que deveria ter feito as outras raras vezes que nos vimos: beijei longamente aqueles lábios que viviam pedindo beijo.

 - Bom dia, Justina, dormiram bem? Traga a Margani aqui na recepção.

 - Oi papai, quem é essa sua amiga?

 - Minha filha, pergunte a essa moça como é o nome dela.

 - Como é seu nome?

 - Margani e o seu?

 - Margani é o meu. Mas você é bonita e parece legal. Acho que também pode ser Margani.

 - Posso abraçar você?

 As Margani se abraçaram. Uma delas começou a chorar... A seguir chorou muito e estava sendo consolada pela outra quando eu fui ao banheiro. O quadro era insuportável demais. Voltei com os olhos intumescidos. Justina só observava. As outras duas continuavam abraçadas, com minha filha consolando sua nova amiga.

Margani se recolheu. Fora demais para ela e precisava descansar. Pediu para conversarmos à noite

- Seu Joãozinho, que história é essa? O senhor pode me contar?

- Posso, meu anjo. Preciso. Vamos ao play ground onde Margani possa brincar.

- Justina, você já se apaixonou alguma vez?

- Claro, não é seu Joãozinho. Eu não era um piteuzinho, mas vinte anos atrás também não tinha 100 quilos. Eu e “nego” Edu tivemos nossos momentos.

Contei em detalhes para Justina minha história com Margani, disse quem ela era, porque nunca ficamos efetivamente juntos e como ela estava hoje lidando com a doença.

- Minha nossa senhora Aparecida! Isso é uma novela! E o que o senhor vai fazer agora?

- Não sei. O que vou fazer não sei. O que eu quero fazer eu sei, mas não sei se vou poder; não sei se terei tempo de fazer.

- O senhor me desculpe a intromissão, seu Joãozinho. Eu sei que o senhor é ajuizado e não vai fazer nada que possa atrapalhar o futuro da nossa Margani. Nem precisava dizer isso, desculpe, mas a situação é diferente. Tem amor, doença séria... Tenha cuidado.

- Sei de tudo isso. Nesses dias vou precisar muito de você com a minha filha. Quero dar o máximo de tempo para a outra Margani.

Durante dez dias ficamos no hotel. Minha filha adorou a nova amiga, que fazia passeios diários pelas atrações do local até cansar; levava-a ao escritório deixava que ela mexesse em tudo. Margani usou com a minha filha sua velha e infalível arma: a sedução. Quem as visse, a partir do segundo dia, diria que eram mãe e filha.

Ela também tinha um filho, era autista e morava com os avós, a quem visitava diariamente pela manhã. Ultimamente andava espaçando as visitas, a fim de que o menino se acostumasse com a sua ausência.

Justina finalmente tirou férias, mas andava como uma ciumeira bárbara da nova relação da pequena.

E Margani e eu tivemos, enfim, a nossa lua de mel. Naqueles dez dias dormi apenas a primeira noite em meu quarto. Foi um período de muito amor. Sem a paixão incendiária de quando éramos mais jovens, mas com um sentimento maduro, intenso e angustiado. Sabíamos que novamente não haveria possibilidade de planos futuros e agora nem que quiséssemos.

Mas a nossa vida sempre foi uma permanente despedida. Era chegada a hora de ir embora e houve muito choro. As Margani apegaram-se de tal forma que dava pena afastá-las. Até Justina, apesar do ciúme, choramingava na despedida.

- Papai, por que você não casa com a tia Margani? Ela me disse que gosta de você e aí você fica com duas.

Rimos... Rimos para voltar a chorar. Foi uma despedida trágica.

De volta à casa, tudo era triste. Não parecia termos saído de férias. Parecíamos vindo  de um velório, o que não é de todo um equívoco.

 partir dali todas as noites a seguir eu tirava ao menos uma hora para namorar. Ligava para Margani e ficávamos feito dois adolescentes deslumbrados um com o outro. Estávamos em fase de negação da doença e isso até que nos ajudava a enfrentar o problema.

Um mês, dois meses de namoro à distância. Resolvi visitar Margani. Era muito sofrimento querer tocar, beijar, amar... E nós não tínhamos mais idade de ficarmos de longe apenas nos seduzindo. Nem idade, muito menos tempo. Precisava vê-la.

- Justina, terça-feira é feriado. Vou viajar domingo de noite e você sabe para onde, portanto trate de engambelar sua “filha”. Não diga para onde eu vou, porque senão teremos problemas, você sabe.

- Pode deixar, seu Joãozinho. Só um instante, vou atender ao  telefone.  

Justina me chamou com um tom de voz apreensivo.

- Seu Joãozinho é para o senhor. Parece que é de São Paulo.

- Ok. Quem fala?

- Senhor João Victor? É de Atibaia. Não tenho uma boa notícia para lhe passar, mas é minha obrigação. Infelizmente dona Margani não resistiu ao tratamento e foi a óbito. Faleceu ontem à noite, às 22:00.

- Deus do céu! Mas como é possível? Ontem à noite falamos ao telefone, a essa hora ou perto disso. Ela parecia bem. Meu Deus...

- Então ela falava com o senhor, porque faleceu com o telefone na mão e o bilhete pedindo que lhe informássemos. Sentimos muito. Estamos todos muito sofridos, embora soubéssemos que era uma questão de tempo. Fique bem, senhor. Até logo.

- Justina eu vou no primeiro voo que achar para São Paulo. Não me pergunte mais nada.

Cheguei a tempo de mais um adeus. “Por que nunca insisti com você, Margani? Como dói isso... Por que teve de ser desse jeito?”.

Parecia serena, com um leve sorriso naqueles lábios que estavam sempre pedindo beijo, mesmo depois de morta. Pedi licença aos familiares, peguei a mão dela, empurrei um pouquinho mais o anel do seu dedo esquerdo, anel que já fora um brinco, e coloquei uma aliança de ônix. Uma pedra que para mim passou a ter um significado além dos que pregam os místicos: o luto. Igual a esta que uso. Era o que eu não tinha certeza de que poderia fazer; se teria tempo de fazer, como havia dito à Justina, mas não deixaria o destino atrapalhar os meus planos e me negar aquele casamento, por mais mórbido e sem sentido que pudesse parecer. Não daquela vez.

Margani e eu vivemos de nos despedir até que a morte o fizesse em definitivo. Beijei-a nos lábios, agora frios e inertes, e fui embora. Sim, era uma sexta-feira, dia em que tudo começa ou termina. E daquela vez eu já não sabia de quantas outras precisaria para elaborar a dor.

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sexta-feira, 3 de julho de 2020

EROTILDES









Dona Erotildes andava sempre bem vestida. Mulher altiva, discreta, uns trinta e poucos anos. Não chegava a ser de uma beleza estonteante, mas tinha um corpaço e um par de coxas que tirava o fôlego. Dava para ver pelo desenho que se via naquele vestido justo de Jersey que colocava quando saia de vez em quando às tardes e deixava o homerio com os queixos perto do joelho, ao passar. Transpirava sensualidade. Mas nada haveria de ser igual ao que se imagina por detrás daqueles panos. “É pintosa, a balzaquiana”, minimizavam as tias de nariz torcido.

Solteira, vivia do seu ofício e talvez contasse com a ajuda de um parente que se dizia primo. Seu La Garça, que era bancário e a visitava duas vezes por semana, às vezes três.

Costureira de mão cheia, diziam. Fazia suas próprias roupas, sempre orientada pelas revistas de moda, ou pelas chiques que posavam em “O Cruzeiro“. Tinha várias clientes, e Julio, adolescente, com tanta espinha na cara quanto vergonha e as mãos cobertas de pelo, muito por causa dela, fazia entregas de bicicleta por meia dúzia de pilas. No entanto, o “prêmio” maior era estar por perto, quando aproveitava para frestear pelas portas entreabertas da casa, na esperança de flagrar pernas também entreabertas.

Alguns dias antes do aniversário de Julio, Dona Erotildes resolveu lhe dar um presente.

- Vem cá, vou tirar tuas medidas. Vais ganhar uma camisa e uma calça de aniversário.

Mediu o pescoço, tamanho das mangas “estás crescendo, guri, estás quase um homem”. E Julio estaqueado, afinal deveria ser quase um homem mesmo. Quase, porque entre outras coisas, além dos ralos pelos que vertiam no rosto, uns duelando por espaço entre as espinhas, e os pubianos que ainda mal se enroscavam, sexo apenas manipulado. Ainda era "autossuficiente". A ovelha do tio Bonifácio não contava.  

Mediu a cintura, o comprimento da perna e altura do fundilho. E foi nesse momento que o guri extrapolou a vergonha. Mal dona Erotildes roçou a braguilha dele com o dorso da mão, o membro inocente, que até ali permanecia amordaçado, mercê de muita concentração e respiração cachorrinho, intumesceu-se, inchou, perdeu o controle, não parava de crescer e ele, atônito, sem saber o que fazer, saiu correndo porta à fora.

Julio ficou um tempo sem aparecer. Chegava do colégio e se encerrava no quarto. Até o dia do seu aniversário.

Pai e filho moravam sozinhos. A esposa e mãe falecera há alguns anos e eles não tinham ânimo para festas. As tias mandavam bolo, doces, presentinhos e tal e eles se esbaldavam por uns dias.

- Dona Erotildes deixou esse pacotinho pra ti. Deve ser um presente. Tens que ir lá agradecer.  

Julio desconfiava do que era, então tomou seu banho e foi experimentar a camisa e a calça nova ganhas. Perfeito. Quase. A calça ficou um pouco apertada nos fundilhos, afinal ela tinha terminado de fazer “a olho”, já que ele “perdera a cola” enquanto ela tirava medidas, mas de resto, ótima. Então era hora de enfrentar as vergonhas. Foi agradecer o presente vestido com ele.

- Ora, ora... Apareceu o rapazinho... Deixa ver... Ficou bem, um pouco justa aqui embaixo, deve incomodar. Tira que eu arrumo.

“Puta que pariu!” – Vacilou

- Eu sei por que estás com vergonha. Achas que eu nunca vi um homem pelado antes? Vi e aposto que bem mais “documentados”.

Após algumas negaceadas Julio tirou a calça e se enrolou na cortina.

- Deixa de frescura, guri, senta ali.

“Então foda-se”, pensou. Sentou e ficou contemplando o mulherão sentado à máquina, de frente para ele, com as pernas entreabertas.  E quem diz que o “bicho velho” manipulado baixava a cabeça?

Enquanto dona Erotildes trabalhava, ele ficou lá sentado no sofá com uma estaca latejante entre as pernas. Barraca armadíssima. Vez por outra ela olhava de canto de olho e dava um dissimulado sorriso.

- Pronto. Vem cá.

Vacilou um pouco, mas foi. De pau duro mesmo. “Foda-se!”

- Não vai dar para experimentar com esse negócio duro. E eu acho que te subestimei, por isso ficou apertada. Estou curiosa, posso ver? Já “usaste” o amiguinho aí alguma vez?

- Usei só em casa – O pobre guri estava vermelho de vergonha, potencializada por derrames de testosterona. Nem se mexia.  

Sem cerimônia, ela baixou a cueca dele, ficou olhando, talvez surpresa, então pegou o membro com uma das mãos e começou a acariciar mansamente. Molhou as mãos com a língua e continuou a massagem.

- Fica calmo. Eu sei o que tu queres há muito e acho que é hora dar um passo adiante na tua formação. 

Então aproximou os lábios do cabeçote carmim, deu algumas mordiscadas, depois lambeu e passou a usar a língua e a boca em movimentos delicados. “Como assim céu e inferno são lugares distintos?” – pensou o grumete.

- Agora vem cá. Vais ganhar outro presente.

Dona Erotildes levou Julio ao quarto onde deitaram e retirou o resto das roupas que tinha feito. Enquanto também se despia, continuava aquele trabalho maravilhoso que fazia com a boca. 

Ele, no entanto, continuava estático, da mesma forma que deitara. Dona Erotildes, já satisfeita das preliminares se foi à montaria, tendo o cuidado de ajeitar o pino. Assim Julio pode ver melhor o que de fato se escondia por detrás daquele vestido justo de Jersey. Coxas, muitas coxas... Tetas fartas, mamilos enormes e o resto... Ela tinha também um leve sorriso nos lábios.

Ficou lá, como se anda a cavalo, primeiro ao passo, depois a troque curto. Com o acelerar do trote, as feições dela foram mudando, o sorriso esmaecendo, os olhos se revirando, os gemidos desafinando e trocando de tom. O suor começou a tomar conta do seu corpo até que veio o galope. No auge das cavalgadas, dona Erotildes puxou Julio ao seu encontro e esmagou seus lábios nos dele com fome. O coração dela dava saltos que pareciam esbofetear as peles justapostas. Então um frêmito final, comprimindo seu corpo... E foi se soltando aos poucos, retomando à normalidade. E ele? Bem, ele estava tão assustado, surpreso, afinal a virgindade só se perde uma vez, que apesar da excitação toda, travou. Era um obelisco intumescido plantado sobre uma laje.

Quando desmontou, dona Erotildes tratou de acalmar o guri:

- Foi apenas um bloqueio, talvez pela surpresa. Por sorte não aconteceu o contrário. Agora fica bem relaxado que vou dar um jeito nisso.

Dona Erotildes escorregou para os pés da cama e veio massageando as pernas do Julio com o seu instrumental erótico: mãos, língua e lábios... Até chegar ao obelisco, e lá repetiu aquelas maravilhas que o fizeram juntar céu e inferno. Uma massagem delicada com as mãos, contorcionismos linguais, labiais, algumas mordiscadas e engolidas. Aquilo sim era um presente de aniversário!

Na linha tênue que ele identificara entre o céu e o inferno havia um vulcão em permanente ebulição e que a qualquer momento eclodiria. Dona Erotildes sabia disso, recebia os sinais latejantes em seu instrumental erótico e tremores da estrutura, e começou a acelerar os movimentos manuais e labiais. A erupção trouxe, por fim, uma lava incandescente, densa e farta. E foi tanta, que não coube na boca de dona Erotildes, sobrava pelos cantos dos lábios. Pensou um pouco antes de quase desfalecer “Nossa... Credo!”

E assim como estava ficou. Viu dona Erotildes levantar e ir ao banho, ouviu o barulho do chuveiro, tudo muito longe, muito vago, demorado... Estava momentaneamente morto. 

Quando voltou, dona Erotildes vestia um chambre vermelho que contrastava bem com seu cabelo preto ainda molhado, e a pele alva.

- Vai tomar teu banho, está ficando tarde.

Foi flutuando em uma nuvem. Abriu o chuveiro e deixou que a água fizesse o trabalho de recuperá-lo. Banho longo, reconfortante... Enrolou-se em uma toalha e foi procurar as suas roupas.

O cenário que Julio viu ao sair do banheiro era o seguinte: dona Erotildes recostada na cabeceira da cama, meio de lado, com uma cara de paz e felicidade.  Chambre vermelho entreaberto, com um dos seios mamiludos e uma perna inteira de fora. Ora... Não demorou nada para que o pau da barraca se erguesse, a toalha caísse e ele se jogasse sobre a cama como burro no azevém. No entanto, antes que chegasse ao umbigo ela o impediu, colocando as pernas sobre os meus ombros. 

- Calma. Está na hora de conheceres melhor a tua nova amiga. É alguém que vai te dar muito prazer durante a vida, mas um homem de verdade tem que saber retribuir. Lembra daqueles carinhos que te fiz com a boca, não é mesmo? Então faz de conta que tem um pauzinho escondido aí na periquita e deixa a tua língua procurar. Talvez custe a encontrar, mas quando chegares perto, meu corpo te dará sinais.

No roteiro original, na linha dos olhos de Julio estavam aquelas maravilhas dispostas da cintura para cima. Agora era o umbigo e foi por onde ele começou a distribuir beijinhos. Passou pelo ao baixo ventre sentindo o perfume de banho recém tomado com notas almiscaradas, e a pele com pequenos arrepios. 

O clima entre ambos parecia de completa entrega e cumplicidade, e ele já estava bem à vontade. Ao  alcançar a vulva, sentia-se quase um veterano, sabendo exatamente o que deveria ser feito. Quando sentiu o primeiro tremor dela constatou “é por aqui...” E por ali ficou lambiscando, ora firme, ora delicadamente e os tremores, gemidos e suores aumentando. Ela deveria estar curtindo muito aquilo porque em determinados momentos quase enfiava a cabeça dele para dentro dela. Foi em um momento extremo desses que ela o puxou para cima. Mas Julio não se jogou. Foi subindo lentamente deslizando seu corpo sobre o dela, até que o membro encontrasse sozinho a sua parceria profunda e misteriosa, e penetrasse sem atritos por entre suas paredes ensopadas.

No roteiro adaptado, chegara a vez de Julio andar a cavalo. E montou... Primeiro ao passo, depois a trotes curtos, com muitas trocas de carinhos e olhares... A seguir trotes mais duros, com os lábios se esmagando em confronto... E então uma cavalgada frenética em busca de um fim, quando as bocas foram liberadas para a emissão de sons indecifráveis, variados e desafinados, até ultrapassarem juntos apoteoticamente a linha de chegada. Que final!

Caiu um para cada lado, mas ela não o  deixou morrer de novo.

- Está tarde. Coloca a tua roupa e vai. Teu pai deve estar preocupado. Outro dia a gente continua.   

Julio pensou “outro dia é amanhã”, invertendo o ditado popular. Olhou o relógio da cabeceira. Dez horas da noite! “Puta merda! Fui...”

Ao chegar, Julio encontrou o pai na porta, usando a sua feição mais inquiridora. 

- Onde andava o rapazinho? Mandei agradecer o presente e desapareceste?

- É. Fiquei conversando com dona Erotildes.

- Quatro horas dá uma boa conversa. Bueno... Tem janta na Frigidaire. Já comeste?

- Muito.

E se recolheu. Não era hora para conversinhas. Foi um aniversário para a posteridade, uma vez que a primeira ejaculação assistida a gente não esquece. E dona Erotildes conheceu o quanto é dura e insaciável a natureza de um adolescente.

É certo que, apesar de magro e alto, Julio era um guri. Acabara de completar 14 anos, mas uma coisa também precisava ser dita: ter feito gozar com direito a bis a mulher que era o sonho de consumo do homerio da zona, inclusive do pai dele, que mal disfarçava isso, o colocava pau a pau com eles, com vantagem a seu favor. No entanto, ninguém precisaria saber disso. Só ele e dona Eroltildes. 

O improvável casal passou a ter longos finais de tarde e algumas noites de trocas galopantes. Durou mais ou menos 5 anos, até Julio  sair da sua cidade e ir cumprir com o seu destino. Ir embora não foi uma decisão fácil, mas sua generosa parceira, mesmo que também a contragosto o aconselhara: “Vai. És jovem e precisas construir um futuro para ti. Quando sentires saudades daqui olha para dentro,  não para trás”.   

Nunca contou essa história para ninguém, exceto para seu pai, que num dado momento arrastou tanto a asa para a vizinha que até pensou em desposá-la. Então foi obrigado a abrir o jogo, implorando sigilo.  O velho não pareceu chateado, só o chamou de “filho da mãe” e, ao contrário, percebeu certo alívio na cara dele, uma vez que, como nunca tinha apresentado uma namorada, chegou a desconfiar que o filho fosse fresco. Ocorre que Julio só tinha olhares e demais sentidos para dona Erotildes, suas saliências, suas redondices cheirosas de banho recém tomado com notas almiscaradas, e sua boca mágica.    

Depois que Julio foi embora passou quase dez anos sem aparecer. Certo dia seu pai o chamou porque tinha alguns exames para fazer e estava precisando de ajuda. Então retomou o velho caminho que há muito não trilhava. Voltou à terra!

Nada era mais a mesma coisa. As pessoas, as lojas, as ruas e praças tudo modificado. Soube pelo pai que seu La Garça, que já tinha viuvado ainda no tempo em que ele estava por lá, resolvera assumir a dona Erotildes e que tinham até um filho.

- Um filho?

- É, mas todo mundo desconfia que não seja do La Garça, embora tenha registrado como seu e o trate com extremo carinho. O guri tem tudo do bom e do melhor. Todo mundo desconfia, menos eu.  Estranhamente, ou não, o meu velho amigo parou de me cumprimentar. Nem me olha na cara. Claro... Papagaio come milho e periquito leva a fama. Por sorte se mudaram daqui. Moram na casa dele, no centro. O guri é muito parecido contigo. Mas atenção: deixa quieto. São veteranos, vivem bem e até onde eu sei é uma família feliz.  Não te mete.

- Puta que pariu!    

Julio estava aturdido com a notícia. Precisava ajustar o prumo. Havia combinado uma cerveja com alguns amigos remanescente no fim da tarde e se foi à praça.

Cumprimentos, abraços, gritarias adjetivadas... “fiadaputa” pra cá “fiadaputa” pra lá... Essas coisas de amigos jovens. Às garrafas tantas daquela restauração de saudades, percebeu um casal que sentara em um banco próximo. “Ora, ora, vejam só... A nova família La Garça!” E tinha um menino ao lado dela, provavelmente o filho. A primeira vista e de longe, as informações de idade correspondiam, faltava conferir de perto as feições. Como havia prometido ao pai, não haveria de causar transtornos, mas é óbvio que iria conferir. Nada o impedia que os cumprimentasse, e era até educado que o fizesse.  Então pediu licença um instante ao grupo e forçou uma casualidade. Deu uma volta por traz do banco e passou na frente da família.

- Olá, mas que surpresa! D. Erotildes, seu La Garça... Quanto tempo? Prazer em vê-los. Que gurizão lindo, parabéns!

Dona Erotildes riu com satisfação, mas seu La Garça mal mexeu a cabeça em um “boa tarde” grunhido e mastigado entre mandíbulas cerradas.

- Olá, como vais, Julio? Muito tempo mesmo. Obrigada, prazer também em revê-lo. Juliano cumprimente o amigo da mamãe.


domingo, 10 de novembro de 2019

ELIZABETH ROSEMOND TAYLOR






Liz instalou-se no imaginário coletivo de homens e mulheres, cinéfilos ou não, a partir dos anos cinquenta como uma pasta 
compartilhada de lindas imagens. Houve quem dissesse que tenha escalado a grande e viscosa montanha hollywoodiana fincando estacas com seus olhos incomuns, encravados em lousa de alabastro. Cor indefinida, formato e a expressão únicas. Digo que não basta somente ter olhos lindos, há que saber olhar, e Liz sabia, nasceu sabendo. Era um rosto que foi, ao longo de décadas, modelo da mais perfeita arquitetura humana. 

Liz tinha como esporte favorito o casamento. Entre uma e várias "ficadas", casou oito vezes (bem mais do que eu), inclusive, entre um porre e outro, duas vezes com o Burton, que conhecia muito bem as preferências da musa. Ao invés de flores, costumava oferecer-lhe joias. Coisa pouca, como o diamante Krupp, de 33 quilates, ou a pérola La Pelegrina, a mesma que o Rei Felipe II, da Espanha deu a Maria Tudor, no século XV.  Mimos. 

Mas não foram somente seus atributos faciais que fizeram dela um ícone. Foi uma grande atriz consagrada por prêmios máximos da Academia. Um por “Disque Butterfield 8” (60) e outro por “Quem tem medo de Viginia Wolf” (66). E há no largo de sua carreira outros tantos desempenhos que a fizeram no mínimo candidata ao Oscar.  De minha parte, talvez induzido pela música, o que mais me marcou foi o drama Adeus às ilusões. Vi várias vezes, até me dar conta que a diferença entre ir ao Corbacho ou ficar em casa olhando um álbum de figurinhas dela, com um compacto simples rodando na eletrola, eram só as imagens. O valor da obra estava nelas. A paisagem da Califórnia, indescritível,  e os personagens, mereciam uma história de amor muito mais consistente.

O filme não decolou em função da levada monótona e penso também que pela fórmula gasta, pois a personagem Laura Reynolds (Liz) parece ser a mesma Gloria Wandrous (Liz) do Disque Butterfield 8. Talvez tenham tentado aproveitar a história que havia rendido um Oscar, de uma mulher linda e atormentada por suas convicções e paixões desencontradas em busca de amor. A arte imitando a vida. 

A música The shadow of your smile (A sombra do seu sorriso), ou para nós como no filme, Adeus às ilusões é uma poesia musicada. Para quem não conhece digo que é daquelas que nos faz respirar cachorrinho, ter contrações de cinco em cinco segundos e dilatação de quatro dedos. Inesquecível.

Liz se foi aos 79 anos, em 2011, sepultando para sempre os sonhos inocentes de algumas gerações.  Colocou névoas densas sobre Atlântico e Pacifico que carregava entre os cílios, em dias de melhor tom de azul, verde ou violeta. Com ela levou  as rugas e as deformidades naturais que eu nunca percebi.

sábado, 10 de agosto de 2019

YOM KIPUR


Há seres iluminados, e eu conheci alguns, que parece já terem nascido pais. Há outros que aprendem com o próprio exercício da paternidade; há os que nunca aprendem e ainda há os que ousam não saber do que se trata. O fator-pai não sei ao certo identificar. Sei que se sustenta em alguns pilares. Uns gostando e sendo amigos, outros rígidos e gerenciais, ou uma mistura disso tudo que, dizem, é o ideal. Mas tudo isso tem o prazo definido pelos filhos e sua tomada de rédeas dos próprio destinos. É inexorável.

Eu, bem assim como o meu pai, só aprendi a gostar, quase nada além disso. E amo à proporção do tempo e as distâncias que só fazem crescer, o que acaba resultando em dor e saudades.


Fui um fracasso como gestor do tema, e tomo sempre o dia dos pais como o meu Yom Kipur (dia do perdão). Nesse dia sempre peço perdão pelo que não fui como filho e pai, seja por obstáculos que eu mesmo criei, seja por circunstancialidades fatais na origem ou seja pela inabilidade inata de lidar com os temas. Nunca, no entanto, por desamor, o que no caso passa de atenuante a agravante, uma vez que consagra a certeza de que eu poderia ter feito melhor.


E o conformismo quando chega é sempre amargo, porque vem nos lembrar que as páginas em branco que nos deram, onde rabiscamos nossos passos não são rascunhos. Não há "control Z" e nada pode ser editado. Cada risco é parte da obra acabada.


No Dia dos Pais, em que os meus fantasmas vêm em bloco arrastar correntes na minha consciência; que lembrar do meu pai tem o mesmo valor que lembrar dos meus filhos, é dia também de agradecer ao Velho o fato de ter herdado e transferido com orgulho um sobrenome; de ter sido amado como filho, e além de amar os meus, ter descoberto, enfim, que ser pai é mais do que um ditongo.


Devo ter aprendido isso quando percebi que aventais, meias, cuecas e camisetas são mimos que, ao serem entregues dentro de um abraço, tem um valor maior do que qualquer conta na Suíça.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

HOMENAGEM AO DÉCIMO ENCONTRO DE BASQUETEIROS - PLACA












X ENCONTRO DOS BASQUETEIROS DE URUGUAIANA

O Encontro dos Basqueteiros nasceu para ser uma espécie de paradoxo temporal. Uma viagem lúdica iniciada em 2001; uma renovação de votos de amizade, carinho e companheirismo entre pares, e de amor a Uruguaiana, a nossa terra santa que nos realimenta e energiza.

Em quase duas décadas de encontros, afora os mapas de tempo desenhados em nossas lousas físicas, nada mudamos. Que bom que nada tenha mudado! E pouco importa para onde tenhamos levado as carcaças cedidas em comodato pelo Criador, em espírito jamais saímos daqui.

Que esta homenagem, tatuada em aço na praça que nos concentra; no coração das nossas melhores e mais puras lembranças, seja a nossa profissão de fé sobre os valores humanos declarados que nos unem desde sempre e que assim permanecerão eternamente.

Basqueteiros de Uruguaiana
Maio de 2019

segunda-feira, 24 de junho de 2019

SUPEREGO





Acumular-me de atenuantes, ainda que inúteis,
Porque sou minha acusação mais dura;
Perdoar-me, ainda que não haja perdões possíveis,
Porque sou eu a minha única redenção;
Amar-me, ainda que já não dimensione mais isso,
Porque sou meu apego mais leal,
Alimentar-me de utopias, ainda que improváveis,
Porque preciso disso e ninguém sonha melhor do que eu.

sábado, 1 de junho de 2019

O JOELHO




Texto de 2005 - do livro Castelo de Guardanapos 

O joelho, salvo duvidosas interpretações, aberrações traumáticas ou genéticas, fica no meio da perna. Via de regra passa despercebido ou quando muito habita o imaginário fantasioso de alguns. Mas não é tão somente isso. Penso no joelho como um Everest feminino. O pico onde meio século atrás as mulheres fincaram a bandeira redentora de suas conquistas.  

No comecinho dos anos 60, meu pai me falava dos vestidos de antes que, ousados, deixavam à mostra tornozelos  e canelas. Falava e deixava brilhar o melhor tom de azul que tinha nos olhos, borboleteando pensamentos nas velhas barras rendadas, saudoso. Súbito, as barras chegaram aos joelhos e no momento imediatamente posterior, ultrapassava-os, marcando limites alguns centímetros acima. A redentora Mary Quant levava a mulher a conquistar o joelho, centro da perna e início de todos os mistérios. A época se prestava a revoluções sociais e de costumes.  

A mini-saia entrou como estandarte feminino no pacotaço, que teve seu auge naquela suruba de Woodstock.  Pais politicamente corretos  e que não queriam pagar o mico de conservadores apenas culpavam as mães pelo abuso das filhas. Pais ortodoxos davam duro em nome da moral e dos bons costumes, reprimiam e castigavam. As filhas usavam saias comportadas, na altura das canelas, plissadas, godês, amplas. Até a primeira esquina. Ali o cós se enrolava com quatro dedos gordos de dobra, até atingir a altura desejada, por elas e pela galera salivante que se desdobravam em estratégias para conseguir o melhor ângulo de observação. Ia desde a fixação nas cruzadas de perna, que instigavam o instinto selvagem de cada um, reuniões em baixo das escadas e até a lenda do espelhinho despudorado se equilibrando no bico do sapato em busca de flashes. Saudades de ti, Colégio União!

Depois que a saia transpôs os joelhos, liberou geral. Romperam-se todas as fronteiras e a mulher não parou mais de conquistar, sempre em duplas, a saber: primeiro tornozelos, depois joelhos, nádegas e seios. Estes que já se espremeram em espartilhos e corpinhos, passaram por porta-seios e outras amarras agora também ameaçam (ou prometem?) liberdade total.  Será como um assalto ou sequestro. Quando menos você, pai zeloso e de férias na praia esperar a filhinha, de costas, lhe pedirá: “pai, desamarra p’ra mim” . Você passa de inocente a cúmplice. E não se iluda, a mãe já sabia. Tudo igualzinho àquele dia de quarenta anos atrás quando uma filha descobriu os joelhos.

Assim como o homem costuma, ou costumava, afirmar seu machismo erguendo obeliscos, a mulher deveria erguer monumentos ao joelho. Lá tudo começou. Mais do que uma articulação fria no inverno, que costuma atingir rins incautos na reversão da posição "conchinha", o joelho dá ginga, balanço,  é cheio de redondices e seduz pelo imaginário, portal das reentrâncias. 


É também responsável direto pela formação da vida e conseqüente preservação da espécie. No entanto, não estarão juntos nesta última tarefa. Ela, a vida, só se faz quando os dois joelhos se afastam.

sexta-feira, 31 de maio de 2019

A CRIAÇÃO





Estava tudo certo. Fora criado o reino animal, mas o Criador estava num impasse. Já tinha decidido que voariam os pássaros, nadariam os peixes e andariam outros bípedes e os quadrúpedes. Precisava então distribuir alguns atributos especiais. Tinha destinado ao homem a inteligência absoluta, mas, só descobriria depois, isso lhe traria alguns desconfortos.

Considerou que a fidelidade deveria ser canina e a deu ao cão, lógico, além de bom faro para que pudesse se achar em dia de mudança. Na onda da mesma fidelidade entraram os peixes que, orgulhosos, sairiam mar a fora proclamando que filhinho de peixe, peixinho é. Deu olhos de lince ao lince, sem esquecer-se de produzir especialíssimos olhos de águia para a própria. Dotou o gato de acrobacia diferenciada para que mais tarde pudesse mostrar ao mundo o que haveria de ser o pulo do gato. A porca teria o rabo bastante flexível, uma vez que alguém haveria de vir torcê-lo em caso de apuros. Já o seu marido teria duas virtudes indiscutíveis: o lombinho e o pernil. Deu à vaca muita paciência  e anticorpos, pois haveria de passar a vida inteira indo para o brejo. A propósito de bovinos e paciência, enquadrou o boi, a fim de que ostentasse sem queixas os chifres e que pudesse elaborar bem suas perdas. Ele passaria a ser o símbolo de doação e desprendimento. Nasceria como qualquer mamífero. Ainda jovem lhe arrancariam a masculinidade barbaramente, sem anestesia; passaria sua curta vida como corno manso para logo a seguir ser morto, retalhado, queimado no calor das brasas e servido como pasto. E algum sádico ainda haveria de gritar: “o meu, mal passado!”.  Pobre boi. Mas ainda assim haveria de ter bom sono, pois dormiria com qualquer conversa mole.

O Criador teve dúvidas quanto ao burro. Burro ele seria, claro, por isso viveria emburrado e empacando, no entanto seria dócil o suficiente para ser amarrado à vontade do dono e humilde para que baixasse sempre as orelhas quando outro burro falasse. Ou quando alguém, despercebido, desse com ele n’água. 

A produtividade ficaria com coelhos e galinhas. Os primeiros viveriam focados num dos mandamentos para preservar a espécie. Cresceriam e se multiplicariam rapidamente, pois, mais dia menos dia, haveria de aparecer alguém com vontade de matar dois com uma única cajadada. As galinhas, que de grão em grão encheriam o papo, deveriam ser rápidas e abundantes na postura, evitando que algum apressadinho viesse a contar com o ovo no... Em trânsito. O marido desta, polígamo assumido, além de cantor e ancestral do relógio-ponto teria grande virilidade, mas não haveria de ser lá essas coisas como amante.

Deus olhou com tristeza para o peru. Haveria de ser uma dessas criaturas que nunca participam de festas, pois enchem a cara antes e morrem na véspera. Até o sétimo dia talvez não conseguisse retira-lo da depressão.


Quando procurou a serpente o Criador não encontrou. Não estava confortável. Não achou uma boa ideia a criação daquele ser frio, rastejante e sinistro. Queria livrar-se dela. Assim, resolveu premiar aquele que a matasse desde que mostrasse o pau. Mas que não houvesse mal entendido.

Por descuido nasceram insetos. O que fazer com eles? Bem, o Criador era criativo. Grilos habitariam a cabeça do homem para fazê-lo refletir,  e pulgas, vez por outra colocar-se-iam atrás de orelhas para após as reflexões.  Estes, então, participariam de momentos chatos. Chatos? De onde vieram esses?

No fim do expediente restavam poucos atributos para serem distribuídos. A quem o Criador contemplaria com a moral e os bons costumes? O homem, pela capacidade de discernimento e para justificar a imagem e semelhança seria o mais indicado. E Deus perguntou ao homem se seria capaz de arcar com essas duas virtudes, e este vacilou. Desconversou dizendo que estava bom demais o que ganhara. Além disso, tinha um projeto futuro já desenhado: seria um ser político, onde esses dois “apêndices” seriam irrelevantes.  Dependeria sim da sua inteligência, capacidade de liderança e observação.

Para esse projeto futuro, também lhe disse o homem, que dispensaria virtudes como as do cão e iria direto ao gato testar seus pulos. De linces e águias, imaginariam como ficaria com os olhos destes; aproveitaria a paciência do boi, mas só para treinar metáforas flácidas, tendo o cuidado para não seguir o caminho da vaca. Iria, por fim, até a serpente negociar. Mas iria de pau na mão, conforme desejo do Criador e, dependendo do bônus poderia matá-la. Antes, porém comeria a maçã e a Eva.

Era o sexto dia, seis da tarde. Não dava tempo para mais nada. A criação fora encomendada para ser entregue em seis dias e, que diabos (opa!), o Arquiteto era pontual. E tinha combinado com Ele mesmo que descansaria no sétimo.


Cansado, concluiu que nem tudo é perfeito. Nem Ele.

“Noé, prepara o recall!”

sábado, 25 de maio de 2019

DANÇA (HAIKAI)





Passos de folhas
Na valsa do vento...
Pares não sentam

terça-feira, 24 de julho de 2018

LEVANTA-TE E ANDA

quer nos confortar. 



Lá, se sentirmos a vida (eu chamo de vida a vontade imorredoura de viver) escorrendo preguiçosamente por entre os dedos, ainda não murchos, mas deliberadamente inertes, e essa letargia conseguir trazer um pouco de alivio ou prazer, por mórbido, significa que enfim, morremos. Apenas que por tanta preguiça esquecemo-nos de deitar, e por assim não nos decidirmos, nossos queridos ainda não choram por nós.  Mas como sofrem!

Digo isso por transeunte de uma idade crítica e por ver alguns pares entregando esse tesouro assim, à toa. Porque vejo alguém desistindo, e por querido, fragilizando também seus circundantes. Talvez haja mais alguém num cantinho da sala cuja bronquite tenha escarrado o próprio sorriso, ou que uma recém inaugurada artrite tenha entrevado a cintura, as juntas e o olhar, tirando de vez a vontade de dançar ou de apenas retribuir um afetuoso abraço.  Há por perto alguém cujas rugas, ainda em formação, tenham sulcado também a esperança, e o crítico olhar do espelho a tenha feito perder o bom costume de sonhar.

Por fim há por ai mais alguém, cuja visão tenha ficado curta e esteja impedindo de perceber que os olhos apenas retratam, mas as imagens ainda são reveladas no laboratório fino da alma e que a resolução depende de como essa interface, olhos/alma é trabalhada. 

A nossa vida não é “a nossa vida” e sim a resultante de uma convergência de afetos ou falta deles, mas nunca um conjunto vazio; é, pois, dos que um dia floresceram conosco e hoje meio murcham solidários; daqueles que vimos sair de nós, homens e mulheres paridos e formatados no melhor do nosso carinho, hoje parindo novas vidas que nos estimulam a continuar vivendo com o fôlego do carinho original. Se verdadeiramente pudermos sentir isso e acreditarmos que somos centro não apenas de dor, mas de geração de afetos, então há vida para viver e quem se foi, deliberadamente ou não, há de perder a melhor parte. 

Amanhã, quando o sol levantar para reinar sobre o universo, não pense duas vezes, apenas siga o exemplo dele. Levante-se e reine.

E que se quebrem os espelhos que não retribuam o seu sorriso, sem medo dos tais sete anos seguintes.