Estava tudo certo. Fora
criado o reino animal, mas o Criador estava num impasse. Já tinha decidido que
voariam os pássaros, nadariam os peixes e andariam outros bípedes e os
quadrúpedes. Precisava então distribuir alguns atributos especiais. Tinha
destinado ao homem a inteligência absoluta, mas, só descobriria depois, isso
lhe traria alguns desconfortos.
Considerou que a fidelidade deveria ser canina e a deu ao
cão, lógico, além de bom faro para que pudesse se achar em dia de mudança. Na
onda da mesma fidelidade entraram os peixes que, orgulhosos, sairiam mar a fora
proclamando que filhinho de peixe, peixinho é. Deu olhos de lince ao lince, sem
esquecer-se de produzir especialíssimos olhos de águia para a própria. Dotou o
gato de acrobacia diferenciada para que mais tarde pudesse mostrar ao mundo o
que haveria de ser o pulo do gato. A porca teria o rabo bastante flexível, uma
vez que alguém haveria de vir torcê-lo em caso de apuros. Já o seu marido teria
duas virtudes indiscutíveis: o lombinho e o pernil. Deu à vaca muita paciência
e anticorpos, pois haveria de passar a vida inteira indo para o brejo. A
propósito de bovinos e paciência, enquadrou o boi, a fim de que ostentasse sem
queixas os chifres e que pudesse elaborar bem suas perdas. Ele passaria a ser o
símbolo de doação e desprendimento. Nasceria como qualquer mamífero. Ainda
jovem lhe arrancariam a masculinidade barbaramente, sem anestesia; passaria sua
curta vida como corno manso para logo a seguir ser morto, retalhado, queimado
no calor das brasas e servido como pasto. E algum sádico ainda haveria de
gritar: “o meu, mal passado!”. Pobre boi. Mas ainda assim haveria de ter
bom sono, pois dormiria com qualquer conversa mole.
O Criador teve dúvidas quanto ao burro. Burro ele seria,
claro, por isso viveria emburrado e empacando, no entanto seria dócil o
suficiente para ser amarrado à vontade do dono e humilde para que baixasse
sempre as orelhas quando outro burro falasse. Ou quando alguém, despercebido,
desse com ele n’água.
A produtividade ficaria
com coelhos e galinhas. Os primeiros viveriam focados num dos mandamentos para
preservar a espécie. Cresceriam e se multiplicariam rapidamente, pois, mais dia
menos dia, haveria de aparecer alguém com vontade de matar dois com uma única
cajadada. As galinhas, que de grão em grão encheriam o papo, deveriam ser
rápidas e abundantes na postura, evitando que algum apressadinho viesse a
contar com o ovo no... Em trânsito. O marido desta, polígamo assumido, além de
cantor e ancestral do relógio-ponto teria grande virilidade, mas não haveria de
ser lá essas coisas como amante.
Deus olhou com tristeza para o peru. Haveria de ser uma
dessas criaturas que nunca participam de festas, pois enchem a cara antes e
morrem na véspera. Até o sétimo dia talvez não conseguisse retira-lo da depressão.
Quando procurou a
serpente o Criador não encontrou. Não estava confortável. Não achou uma boa
ideia a criação daquele ser frio, rastejante e sinistro. Queria livrar-se dela.
Assim, resolveu premiar aquele que a matasse desde que mostrasse o pau. Mas que
não houvesse mal entendido.
Por descuido nasceram insetos. O que fazer com eles? Bem, o
Criador era criativo. Grilos habitariam a cabeça do homem para fazê-lo refletir,
e pulgas, vez por outra colocar-se-iam atrás de orelhas para após as
reflexões. Estes, então, participariam de momentos chatos. Chatos? De
onde vieram esses?
No fim do expediente restavam poucos atributos para serem
distribuídos. A quem o Criador contemplaria com a moral e os bons costumes? O
homem, pela capacidade de discernimento e para justificar a imagem e semelhança
seria o mais indicado. E Deus perguntou ao homem se seria capaz de arcar com
essas duas virtudes, e este vacilou. Desconversou dizendo que estava bom demais
o que ganhara. Além disso, tinha um projeto futuro já desenhado: seria um ser
político, onde esses dois “apêndices” seriam irrelevantes. Dependeria sim
da sua inteligência, capacidade de liderança e observação.
Para esse projeto futuro, também lhe disse o homem, que
dispensaria virtudes como as do cão e iria direto ao gato testar seus pulos. De
linces e águias, imaginariam como ficaria com os olhos destes; aproveitaria a
paciência do boi, mas só para treinar metáforas flácidas, tendo o cuidado para
não seguir o caminho da vaca. Iria, por fim, até a serpente negociar. Mas iria
de pau na mão, conforme desejo do Criador e, dependendo do bônus poderia
matá-la. Antes, porém comeria a maçã e a Eva.
Era o sexto dia, seis da tarde. Não dava tempo para mais nada.
A criação fora encomendada para ser entregue em seis dias e, que diabos (opa!),
o Arquiteto era pontual. E tinha combinado com Ele mesmo que descansaria no
sétimo.
Cansado, concluiu que
nem tudo é perfeito. Nem Ele.
“Noé, prepara o recall!”