Margani era um pedaço de mau caminho!
Colega do banco onde eu trabalhava, despertava paixões em todo quadro
funcional, incluindo gerentes, diretores e alguns clientes mais assanhados.
Morena meio cor de cuia, com um cabelo que se derramava dorso abaixo como uma cachoeira de piche. Os olhos, duas bolitas rasgadas de cor incerta. Um tom exótico de mel, com expressões que iam do mormaço à selvageria, mercê do momento. Era por onde começavam a sucumbir suas vítimas. E a boca... Lábios de pedir beijo, daqueles que permanentemente ensaiam a última vogal. Um bico de selfie, mesmo dormindo. Eu falaria sobre seu corpo, mas temo exagerar. Só não posso deixar de referir, que aquilo tudo se distribuía em pouco mais de 1,60m. Margani crescia na frente dos homens. Na frente, por baixo, por cima... Mas isso só fui saber depois.
Dos babões que a cercavam, poucos tinham liberdades com ela. Eu era um ungido. Por quê? Ora, porque não insistia, explícita ou veladamente, em levá-la para a cama. Era o que ela pensava e por mim estava tudo bem. Até que uma borracheira em uma festa do banco resolveu as coisas entre nós.
Naquela noite, bebíamos e dançávamos todos juntos, comemorando os resultados. Aos poucos se apartaram os grupos, juntando-se os mais próximos, apenas para conversar e rir, sem envolvimentos íntimos, uma vez que a regra tácita do banco era a não formação de casais. Como a minha atividade na agência era solitária, busquei a sacada para oxigenar um pouco o sangue. Tinha bebido um pouco além da conta. Sentei e cochilei. Acordei com a boca de Margani sussurrando e roçando no meu ouvido. “Acorda, belo adormecido, sua princesa está bêbada e precisa de ajuda”. Ela estava pior do que eu e então demos um jeito de sair à francesa. Levei-a para meu apartamento. Era ao lado do banco e não tinha que dar satisfações a ninguém. Tirei a roupa dela tendo o cuidado para não me fixar muito na obra divina e a coloquei no banho. “Hei... Você não vai vir?”. Fui. Fui alcançar uma toalha e me recolher ao lugar dos mortais. Era tentação demais! “Margani, vou fazer um chá. Tome seu banho. Depois falamos”. Como estava demorando muito voltei ao banheiro para conferir. Ela dormia encostada no box. Enrolei-a na toalha, peguei no colo e levei para a cama. Eu dormi no sofá. Fui acordado já de manhã pelo cheirinho de café. Margani estava de pé, ainda enrolada na toalha, curada e bem disposta. Eu quebrado. “Você é um anjo, João, obrigado por me aturar. Vá ao banho e depois venha tomar café”. Entrei no chuveiro e deixei que a água terminasse de me acordar. No entanto, aos agradáveis golpes d’água pelo corpo, juntaram-se duas mãos delicadas a me explorarem por inteiro. Mãos, lábios... Era uma manhã de sábado, inicio de um feriadão, que eu passei a desejar que fosse a vida eterna.
Ficamos três dias inteiros confinados resolvendo nossas coisas, à exaustão.
Na semana seguinte, porém, ela sumiu.
Sumiu total, como por encanto. Demitiu-se do banco e abandonou a república onde
morava.
II
Dois anos se passaram. Eu vinha me
arranjando aqui e ali com Alice, Verônica e nem me lembro com quem mais, mas
não esquecia Margani.
Uma noite, uma sexta-feira que é quando as coisas começam ou terminam, sentado em um piano-bar, jogando pensamentos fora me deparei com ela. Estava acompanhada pelo papai. Papai com açúcar, e era uma versão especial repaginada de Margani.
Cruzamos os olhos despercebidamente como estranhos. Alguns minutos depois ela levantou-se para ir ao toalete a passo lerdo, como quisesse me jogar na cara o tamanho da minha perda. E alguns minutos depois o garçom chegou com um cartãozinho e um recado: “me liga”. Dei-me por satisfeito e fui embora. Por certo ligaria.
- Oi querido. Preciso vê-lo, você pode? Caso possa, anote o endereço.
Era perto, mas parece ter demorado dois dias até chegar. E ser recebido pela nudez dela. Sim, é certo que havia uma toalha por cima, mas isso eu só notei depois.
- Sente. Vou me vestir.
Sim, eu percebia. Em relação aos pré-requisitos, eu não era rico nem tinha 60 anos. E talvez por causa dela também não era casado, mas provavelmente tenha contraído uma cardiopatia.
- Você foi o melhor, talvez o meu único
amigo e o sentimento mais limpo e puro que eu tive. Que eu tive não, que eu
tenho, meu querido. Não me restam mais lembranças boas além das nossas. Esteja
certo disso e é como eu quero lembrar de você quando as coisas se acalmarem para
mim. Você merece uma vida melhor do que eventualmente uma imaginada comigo. Mas
fale-me um pouco de você.
- Aqueles três dias, no entanto, acenderam
uma pequena luz. Nem chegou a ser uma esperança, uma vez que você sempre me
parecia impenetrável. Vou rir porque “impenetrável” não tem nada a ver com o
que aconteceu naqueles dias. Mas me refiro a intransigência do seu foco. Você
olhava longe, muito acima das nossas cabeças e era fácil adivinhar que, mais
cedo ou mais tarde, o destino a levaria para longe.
- Não vou falar de amor porque as trocas
que houve entre nós não tiveram esse viés, mas eu custei a esquecer você.
Esquecer? Não, não é bem isso, porque eu não esqueci, e não houve um dia ou uma
noite em que eu não a procurasse, das formas mais diversas. Ficou me faltando
mais Margani, muito mais.
- Uma pena, meu querido João, João Victor,
mas amor não estava nos meus planos. Eu tinha para mim que qualquer paixão, e
pode acreditar, apesar da vida que levo eu sou muito suscetível a isso,
colocaria todo o meu planejamento por terra. Resisto com toda força do meu ser
contra esse sentimento.
- Agora olhando para você sabe o que eu
sinto? Pena. Uma pena enorme de ter objetivos tão distantes dos comuns. Acho
que como parceiros tínhamos tudo para dar certo. Enfim...
Conversamos muito; rimos, mas era chegada a hora de sepultar em definitivo a saudade. E quanto menos apoteótico o fim, mais fácil haveria de ser o inevitável luto. Peguei Margani pelas mãos, nos levantamos, nos olhamos fundamente para além de nossas pupilas e nos perdemos no tempo abraçados. Levemente nos separamos para nos olharmos, e eu me dei conta de que aquela boca vivia pedindo beijo, mesmo dormindo. Quando sussurrava então era fatal...
Abraçamo-nos novamente para que eu levasse no corpo aquele cheiro de xampu e água de colônia caros; no peito a pressão do volume diferente do peito dela, que tinha uma firmeza acima do natural, sinal que havia sido trabalhado. Despedimos-nos sem promessas, nem de voltarmos a nos ver, sequer nos ligarmos. Seguiríamos os destinos que ela escolhera.
Saí carregando no coração aquela cova que viera rasa, e agora estava um pouco mais funda e escura, uma voçoroca onde seria sepultada a nossa história. A saudade até então fora engraçada porque não doía. Era um desconforto fisiológico tipo uma fome ou uma sede eventual. Porém permanente. Mas tive a impressão que nessa nova fase ela seria chorada, ao menos até a próxima sexta-feira ou duas sextas-feiras. Ficou faltando mais Margani, muito mais!
E... Prestes a completar 30 anos, achei que era hora de dar um rumo diferente à minha vida. Era sábado, perto do meio dia. Mesmo assim fui ao banco. Sempre havia alguém trabalhando por lá, além do que, a minha condição funcional me dava algumas prerrogativas.
Sentei na minha cadeira, para elaborar a situação e ajustar os neurônios. Abri uma gaveta e retirei de lá uma caixinha. Originalmente era uma caixinha de relógio, mas eu tinha ali guardado uma pequena semi jóia. Era um brinco solteiro. Seu par deve ter permanecido na orelha de Margani, dois anos antes, e como não tinha um grande valor material, provavelmente tenha sido descartado. Eu o guardava com se guarda um tesouro ou algo mais. Era o meu pico do Everest. Eu achava isso mesmo: era o meu Everest, pois se tratava de uma grande conquista, porém inútil.
Escrevi a minha carta de demissão e a enviei para a matriz. Só seria lida na segunda- feira, certamente. Mercado de trabalho não me faltaria e, anos a fio sem férias, talvez estivesse merecendo alguns meses de folga.
III
Se a vida, na velocidade dos dias atuais
muda em um mês, em doze anos passa a ser outra vida; o mundo é outro habitat
com personagens novos e situações muito diversas.
Margani tinha cinco anos e éramos só nós dois. Sua mãe tivera muitas complicações durante a gestação e não resistiu ao parto. Não éramos casados, sequer tínhamos uma relação sólida, mas quando soube de sua gravidez, trouxe-a para morar comigo.
O nome de minha filha, por óbvio, foi escolha minha, com a concordância da mãe que se limitou a dizer “Que estranho! Meio exótico, mas gostei. Diferente de tudo o que ouço”. Mas estão mais que evidentes os motivos da escolha
Os finais de semana eram todos integralmente de minha filha, já que a semana inteira eu vivia sob o fogo cruzado da atividade comercial, com o agravante de algumas viagens Margani tinha uma babá que a criava como filha e era chamada por ela de mamãe preta. Justina era uma senhora enorme e tinha de ser mesmo, porque não fosse aquele tamanho, talvez não houvesse espaço para caber um coração tão grande.
Quando eu precisava viajar, Justina se mudava para minha casa. E tanto aconteceu isso que acabei trocando o apartamento por outro um pouco maior, com um anexo, na periferia da cidade onde ela passou a morar. Para a minha felicidade e de minha filha. Tendo Margani e Justina ao meu lado eu não tinha a menor intenção de formar uma nova família. Aliás, eu já tinha uma família. Era aquela.
IV
Eu estava em São Paulo, era uma
convenção em Atibaia, em um hotel praticamente entregue à companhia para a qual
trabalhava. Apenas alguns hóspedes eventuais e estranhos circulavam e que
víamos esporadicamente em uma e outra saída pelo saguão, uma vez que o tempo
era escasso e o trabalho muito intenso.
Apenas à noite tínhamos folga para relaxar, beber alguma coisa e jogar conversa fora. No entanto, não nos estendíamos muito porque na manhã seguinte o pau pegava e era preciso estar esperto.
- João, amanhã encerra a convenção e ninguém é de ninguém. Nossa coleguinha pernambucana faca na bota não me escapa. Você já sabe onde vai largar sua rede?
Tivemos uma apresentação teatral que dramatizava a nossa atividade. Genial! E o agradecimento do hotel, com a palavra de sua gerente. Então eu fui ver o que quis dizer o meu colega sobre a tal moça. Uma mulher classuda, que quando falava soltava borboletas coloridas e sensuais no ar. “Nossa! Tem razão aquele cachorro”
Mas não via a hora de chegar em casa, abraçar e beijar a minha gatinha. E faltava muito pouco.
- Tenho dois, Justina. Dois, um de cada cor. A minha mala é com você, eu quero a minha filha.
E me fui ao quarto dela que me esperava escondida dentro do roupeiro. Nada, mas nada mesmo pode ser melhor do que um abraço de criança.
- Seu Joãozinho, tem uma carta aqui para o senhor. Estava dentro da mala.
- Ué...
“Meu querido... Faz tanto tempo! Você não me viu, mas eu vi você e vi durante cinco dias, mordendo os lábios para não procurá-lo. Aliás, você me viu, mas não me reconheceu. Acho que até achou interessante a gerente do hotel. Só que mais de dez anos depois, luz difusa, cabelos curtos e de outra cor, além dos óculos eu o perdôo por não ter me reconhecido. Agora, porém, você sabe onde eu estou. Sei que é um risco, mas espero que esta cartinha não seja aberta por mãos indevidas. Saudades. Margani”
- O que é isso papai!
O que terá havido nos planos dela para acabar gerenciando um hotel? Era um cinco estrelas e ela deveria estar bem, mas seus planos eram de ser cliente desses espaços e não trabalhadora deles. Isso não poderia ficar assim. Eu precisava vê-la e com urgência. Tinha tantas coisas para falar. Estaria casada? Ou com um ou dois namorados velhos, ricos e cardiopatas? Ela não estava prestes a se aposentar, doze anos atrás?
- Bom dia, tenho uma reserva de dois quartos.
- É complicado, senhor, não tenho autorização para revelar. Mas fique à vontade o rapaz vai levá-los aos apartamentos.
Passou aquele dia que teve nada menos que 72 horas. O tempo? Vivi cada segundo sufocadamente. Justina e Margani... Nem queriam saber de mim. Ainda bem.
Margani se recolheu. Fora demais para ela e precisava descansar. Pediu para conversarmos à noite
- Seu Joãozinho, que história é essa? O senhor pode me contar?
- Posso, meu anjo. Preciso. Vamos ao play ground onde Margani possa brincar.
- Justina, você já se apaixonou alguma vez?
- Claro, não é seu Joãozinho. Eu não era um piteuzinho, mas vinte anos atrás também não tinha 100 quilos. Eu e “nego” Edu tivemos nossos momentos.
Contei em detalhes para Justina minha história com Margani, disse quem ela era, porque nunca ficamos efetivamente juntos e como ela estava hoje lidando com a doença.
- Minha nossa senhora Aparecida! Isso é uma novela! E o que o senhor vai fazer agora?
- Não sei. O que vou fazer não sei. O que eu quero fazer eu sei, mas não sei se vou poder; não sei se terei tempo de fazer.
- O senhor me desculpe a intromissão, seu Joãozinho. Eu sei que o senhor é ajuizado e não vai fazer nada que possa atrapalhar o futuro da nossa Margani. Nem precisava dizer isso, desculpe, mas a situação é diferente. Tem amor, doença séria... Tenha cuidado.
- Sei de tudo isso. Nesses dias vou precisar muito de você com a minha filha. Quero dar o máximo de tempo para a outra Margani.
Durante dez dias ficamos no hotel. Minha filha adorou a nova amiga, que fazia passeios diários pelas atrações do local até cansar; levava-a ao escritório deixava que ela mexesse em tudo. Margani usou com a minha filha sua velha e infalível arma: a sedução. Quem as visse, a partir do segundo dia, diria que eram mãe e filha.
Ela também tinha um filho, era autista e morava com os avós, a quem visitava diariamente pela manhã. Ultimamente andava espaçando as visitas, a fim de que o menino se acostumasse com a sua ausência.
Justina finalmente tirou férias, mas andava como uma ciumeira bárbara da nova relação da pequena.
E Margani e eu tivemos, enfim, a nossa lua de mel. Naqueles dez dias dormi apenas a primeira noite em meu quarto. Foi um período de muito amor. Sem a paixão incendiária de quando éramos mais jovens, mas com um sentimento maduro, intenso e angustiado. Sabíamos que novamente não haveria possibilidade de planos futuros e agora nem que quiséssemos.
Mas a nossa vida sempre foi uma permanente despedida. Era chegada a hora de ir embora e houve muito choro. As Margani apegaram-se de tal forma que dava pena afastá-las. Até Justina, apesar do ciúme, choramingava na despedida.
- Papai, por que você não casa com a tia Margani? Ela me disse que gosta de você e aí você fica com duas.
Rimos... Rimos para voltar a chorar. Foi uma despedida trágica.
De volta à casa, tudo era triste. Não parecia termos saído de férias. Parecíamos vindo de um velório, o que não é de todo um equívoco.
Um mês, dois meses de namoro à distância. Resolvi visitar Margani. Era muito sofrimento querer tocar, beijar, amar... E nós não tínhamos mais idade de ficarmos de longe apenas nos seduzindo. Nem idade, muito menos tempo. Precisava vê-la.
- Justina, terça-feira é feriado. Vou viajar domingo de noite e você sabe para onde, portanto trate de engambelar sua “filha”. Não diga para onde eu vou, porque senão teremos problemas, você sabe.
- Pode deixar, seu Joãozinho. Só um instante, vou atender ao telefone.
Justina me chamou com um tom de voz apreensivo.
- Seu Joãozinho é para o senhor. Parece que é de São Paulo.
- Ok. Quem fala?
- Senhor João Victor? É de Atibaia. Não tenho uma boa notícia para lhe passar, mas é minha obrigação. Infelizmente dona Margani não resistiu ao tratamento e foi a óbito. Faleceu ontem à noite, às 22:00.
- Deus do céu! Mas como é possível? Ontem à noite falamos ao telefone, a essa hora ou perto disso. Ela parecia bem. Meu Deus...
- Então ela falava com o senhor, porque faleceu com o telefone na mão e o bilhete pedindo que lhe informássemos. Sentimos muito. Estamos todos muito sofridos, embora soubéssemos que era uma questão de tempo. Fique bem, senhor. Até logo.
- Justina eu vou no primeiro voo que achar para São Paulo. Não me pergunte mais nada.
Cheguei a tempo de mais um adeus. “Por que nunca insisti com você, Margani? Como dói isso... Por que teve de ser desse jeito?”.
Parecia serena, com um leve sorriso naqueles lábios que estavam sempre pedindo beijo, mesmo depois de morta. Pedi licença aos familiares, peguei a mão dela, empurrei um pouquinho mais o anel do seu dedo esquerdo, anel que já fora um brinco, e coloquei uma aliança de ônix. Uma pedra que para mim passou a ter um significado além dos que pregam os místicos: o luto. Igual a esta que uso. Era o que eu não tinha certeza de que poderia fazer; se teria tempo de fazer, como havia dito à Justina, mas não deixaria o destino atrapalhar os meus planos e me negar aquele casamento, por mais mórbido e sem sentido que pudesse parecer. Não daquela vez.
Margani e eu vivemos de nos despedir até que a morte o fizesse em definitivo. Beijei-a nos lábios, agora frios e inertes, e fui embora. Sim, era uma sexta-feira, dia em que tudo começa ou termina. E daquela vez eu já não sabia de quantas outras precisaria para elaborar a dor.
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