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segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

LILITH

 



Após dez anos de curso e especializações, por fim Eduardo tornou-se médico. No entanto, levaria para o mercado onde se inseria um passivo muito grande, em função de sua dívida com o governo que lhe bancara os estudos.

Dessa forma, a primeira providência seria abraçar as oportunidades oferecidas, e o faria onde entendesse por melhor a relação custo/benefício.

Seus pais haviam falecido quase simultaneamente durante o curso. Era filho único e sua eventual amarra optou por buscar novos ares, bem distantes: Marina. Com ela  dividia livros, estudos, posteriormente cama e apartamento, e com quem tinha planejado dividir o resto da vida. No entanto, tão logo formada mudou-se para a Austrália. Portanto, nada o prendia.

Recebeu uma oferta  de trabalho do outro lado do país: Amazonas, quase fronteira com a Colômbia. Salário igual ao dos grandes centros, porém, certamente com custo de vida bem menor. Não demorou muito para decidir. Talvez o que precisasse mesmo, além de pagar seus custos, seria uma guinada radical de vida. Marina deixara-lhe um buraco enorme no peito, e mesmo com a pouca possibilidade de que viesse a preenchê-lo com indiazinhas, por certo teria muito trabalho. Assim, partiu rumo a Seringal, no alto do Rio Negro.

Três dias depois da partida, entre aeroportos e barcos chegou ao seu destino. O quadro na chegada era quase trágico. “Nada animador. “Anima dor... Que palavra bem adequada”, pensou.

- Bom dia. Preciso saber onde fica o hospital e se há algum hotel próximo de lá.

- Bom dia. Hospital é fácil. É só subir reto por ali. Hotel mesmo só na cidade mais acima. É perto. São três horas de barco. Mas tem pousadas por aí.

“Puta que pariu”. Eduardo esquecera de um detalhe importante. Agradeceu e se foi. Certamente no hospital teria informações mais precisas.

Chegando ao seu destino foi recebido pela enfermeira-chefe. Uma jovem alta para o padrão regional, exótica, meio indígena, mas de feição suave e  marcante, e olhos estranhamente claros, quase amarelos, amendoados, cobertos por óculos de armação grossa.

- Bom dia, dr. Eduardo. Sou Nikita, enfermeira-chefe. Seja muito bem-vindo. Vamos trabalhar juntos quase que permanentemente. Venha, vou apresentá-lo aos demais. A seguir, caso necessite, conversaremos a respeito de cada um dos colaboradores. Aviso, no entanto, que a mão de obra e as condições de trabalho talvez não estejam à altura das suas expectativas.

- Nikita, não é? Estranho seu nome. Apenas me apresente ao pessoal e depois vou precisar que você me indique um lugar para morar.

- Isso não será problema. Depois das apresentações vá ao banco. O senhor precisa abrir a conta onde será depositado o seu salário e antes disso, o reembolso de suas despesas da viagem até aqui.

Feitas as apresentações, Eduardo foi até a agência abrir a conta. Não tinha combinado o reembolso das despesas e por isso poucos recibos tinha guardado.  Duas boas surpresas até agora: o reembolso e uma colega de trabalho muito agradável e receptiva. Só não deu para ver se era bonita, porque estava coberta por óculos, toca e avental. 

- Bom dia. Preciso abrir uma conta – disse Eduardo à atendente. Não demorou dois segundos e saiu da salinha a gerente.

- Bom dia. É doutor Eduardo? Venha à minha sala para conversarmos. Sou Lilith, a gerente. Estava lhe aguardando.

“Lilith? Quem diabos batizaria uma filha com esse nome? E que filha!”. A gerente era uma loira, 35 anos no máximo, olhos verdes, cabelos ondulados. “Que é isso!”   

- Muito prazer, doutor, seja bem-vindo. Sua chegada era muito aguardada por nós. Seguinte: como não havíamos definido o reembolso do seu deslocamento, estimamos um valor entre passagens, alimentação e estadias e vamos depositar em sua conta. Caso não esteja de acordo, por favor, converse com o prefeito para... Veja... certamente não por acaso ele está entrando e virá falar conosco. 

- Bom dia, meu amor. E bom dia, doutor. O senhor é o doutor Eduardo, pois não? Prazer em conhecê-lo pessoalmente. Eu sou Raimundo, o prefeito e afortunado marido dessa belezura aí.

- Também tenho prazer em estar aqui. O valor de reembolso está muito mais do que adequado, em especial porque não havíamos combinado.   Obrigado. Fui informado de que há muito trabalho pela frente e já quero começar. Antes, no entanto, preciso arrumar um lugar para morar.

- O senhor... Vamos nos tratar por você, por favor... Você já tem onde morar. Vai morar no nosso sítio, que fica a dois quilômetros daqui.  Não se assuste. Terá total independência por lá, uma vez que se trata de uma casa separada, distante alguns metros da casa principal. Já mandamos reformar e pintar. Espero que esteja do seu agrado.

- Puxa! Muito obrigado! Ok. Então vou ao hospital apanhar minhas malas e...

- Nada disso. Nikita está com o carro do hospital aí na frente com as suas coisas. Não se preocupe.

“Ufa! Mas é só coisa boa que tem por aqui? Uma melhor que a outra!”

De fato, Nikita o aguardava no carro do hospital e mais uma surpresa: o carro era uma Land Roover, com o logo do hospital! Eduardo entrou no veículo cheio de perguntas, mas que por certo ainda não faria. Ao chegar à casa do prefeito, quando o  portão se abriu, pareceu estar entrando em um sítio de filme. Não achou adjetivos. Apenas olhou para sua cicerone que lhe devolveu o olhar com um sorriso iluminador.

- Aguardo o senhor colocar a sua bagagem e vamos até a concessionário buscar o seu carro. Raimundo escolheu um veículo rústico porque por onde andaremos... Bem, é melhor não falar... 

Sim. Um veículo para o trabalho estava no contrato firmado.

- Ok, Nikita, demoro só alguns minutos. Por favor... Não me chame de senhor.

A casa era um pequeno sobrado, bem funcional e com uma enorme sacada na parte de cima em toda a sua volta. “Perfeito!”. Desceu e foram à concessionária buscar o veículo prometido. Eduardo então teve sua última surpresa boa do dia: Picape S10 zero km! Depois de todo aquele aparato, restou uma pergunta: “Mas de onde será que vem tanto dinheiro?”. A resposta veio junto com um pequeno calafrio, ao lembrar-se que a Colômbia ficava logo ali.

Eduardo apanhou seu carro e recolheu-se à casa, alertado por Nikita que no dia seguinte teriam bastante trabalho. Iriam a uma comunidade indígena a alguns quilômetros da cidade. Mal acabou de banhar-se e se acomodava na rede da sacada, quando alguém gritou no pátio.

- Doutor! O prefeito e a primeira-dama lhe aguardam para jantar. Esteja lá às 18 horas. 

“Putz! Bem, faz parte. Depois de toda essa recepção não posso reclamar de nada”.

As 18 horas Eduardo chegou à casa principal. Tempo em que Raimundo e Lilith saiam da piscina.

- Perdão! Ouvi 18 horas. Acho que entendi mal.

- Sem problemas doutor. O macaco deve ter lhe informado errado. Sirva-se de um uísque e sente. Em alguns minutos estaremos aqui para conversar.

O casal se foi à casa e Eduardo pode conferir e comprovar sua primeira impressão sobre Lilith.  Um mulherão! “Nossa... Foco, Eduardo, olha o risco!”

Meia hora depois o casal apareceu, banho tomado e Lilith vestida... Vestida? É, mas era como se não estivesse, tal a transparência da roupa.

- Então, doutor. Antes quero lhe informar que a sua estadia aqui não será gratuita. Estabelecemos um valor, acho que simbólico, de aluguel. Será meio salário mínimo, já descontado na folha. Penso que assim você ficará mais à vontade, certo?

- Perfeito. Fica bem melhor assim.

- A limpeza e arrumação da casa fica por conta da nossa gente, e você pode dispor da academia e da piscina. Pelo seu porte, acho que deve gostar de fazer exercícios, não?  

- Apenas nado. Faço isso desde criança. Se puder dispor da piscina, ótimo. Piscina não. Isso é quase um lago de tão grande.

- Então... Conte-nos alguma coisa a seu respeito. Quem é a pessoa que vai cuidar da saúde de Seringal e que vai morar perto de nós? Por que uma radicalizada tão grande? Do sul onde tudo acontece para o quinto dos infernos onde tudo custa a acontecer?    

- Raimundo, sem emoções do lado de cá. Mais de uma década cursando medicina, me especializando, sem tempo para grandes festas... Sou solteiro, órfão e sem parentes próximos. Devo a minha formação ao governo e preciso pagar, por isso abracei a primeira oportunidade que tive. Viram? Não fossem os estudos seria um vazio constrangedor.  

- Você é um homem bonito, porte de atleta, médico... Duvido não ter deixado alguém... Um coração partido lá pelo sul...  

- Pois é, Lilith, até tive, mas o coração partido veio comigo. Marina, minha namorada durante todo o tempo de faculdade me trocou pelos cangurus. Recebeu uma oportunidade na Austrália e se foi. Faz parte e médicos precisam estar curados para curar. Bola para frente.

Conversaram longamente, mais sobre futilidades; riram e jantaram. Eduardo se recolheu levando para o travesseiro o jeito, as caras, bocas e olhares sugestivos da Lilith. Um dia de tantas surpresas boas e duas aflições: a origem de todo aquele luxo e desperdício e a primeira-dama. Precisava urgente estreitar relações com sua companheira Nikita.

“Nikita? Que nome! E Lilith?”. Dormiu exausto.

- Bom dia, doutor Eduardo, o senhor dormiu bem. Melhor que tenha dormido porque hoje o senhor vai ver o que é trabalhar – disse Nikita rindo.

- Bom dia Nikita. Se você me chamar mais uma vez de senhor eu jogo você pela janela do carro. Vamos. Juntou o que precisamos? Ah, sorria mais. Seu sorriso é lindo.  

A estrada era tudo o que Nikita deixara supor, a comunidade um amontoado de casas sujas, velhas jogadas em pequenos lotes. Uma pobreza infinita. Eduardo foi apresentado a Guaciara, uma índia forte e determinada que, ao que tudo indicava, dava as cartas na comunidade. 

De fato foi um dia exaustivo, mas uma oportunidade gratificante de exercitar muito do que aprendeu; sentir o verdadeiro valor da profissão que escolheu. Além do que, pode conhecer um pouco mais de sua parceira de trabalho. Muito da profissional e muito mais da pessoa. Era uma mulher linda em vários sentidos, embora não explorasse a maioria deles.

Chegando à casa, confirmou com o mordomo do casal sobre a utilização da piscina.

- Claro, doutor, está à sua disposição.

Eduardo nadou e nadou. Certamente mais do que uma hora na vasta piscina. Ao debruçar-se na borda e tirar os óculos de natação, deu de cara com a imagem do paraíso, ou do inferno, dependendo do ângulo. Lilith, dentro de um minúsculo biquíni o aguardava de pé, com dois copos de uísque na mão.

- Bravo! Estou impressionada, você é um atleta. Sente aqui. Não me deixe beber sozinha, já que Raimundo está viajando.

- Ex-atleta. Mas é o exercício que mais gosto. Bebo essa dose e vou desmaiar na cama. O dia hoje foi duro e você não merece uma companhia sonolenta. Obrigado.

Eduardo bebeu como se fosse água e se retirou. Uma segunda dose daria espaço para uma terceira e por certo as facilidades proibidas se insinuariam. Melhor fugir. Banho tomado, uma rápida conferida nos e-mails e se foi à rede da sacada. Se facilitasse dormiria por lá.

A casa de Eduardo distava uns trinta metros da casa principal, sendo que a janela do quarto do casal ficava em frente a sacada de Eduardo. Lilith certamente acabara de sair do banho e vestia apenas uma toalha na cabeça. Mais nada. Passou uma, duas, várias vezes pela janela até que parou em frente e de frente. Não era alta, mas tinha um corpo escultural, e assim ficou um tempo olhando para o médico estático. Então deu um tchauzinho e debruçou-se na janela. Eduardo deu um leve sorriso, abanou e entrou em casa. Deitou a cabeça com os demônios borboleteando no cérebro, comandados pela deusa de todos eles: Lilith.

- Bom dia, Nikita. Tenho um plano para a comunidade da Guaciara... Vamos conversar em um lugar fora daqui onde possamos sentar e falar sobre isso e outras coisas? Por favor, não me entenda mal, também podemos conversar aqui.

- Fique tranquilo. Não levo a mal. Vamos sim. Tenho algumas coisas para fazer, mas depois passe lá em casa no fim da tarde e vamos tomar alguma coisa no cais. Só não espere nada sofisticado.

Era tanto trabalho, tantas pessoas precisando atendimento que o tempo voava. Eduardo não foi em casa, foi direto à  casa de Nikita para apanhá-la e conversarem. Uma rápida buzinada e a colega apareceu.

- Uau! Você de fato consegue se esconder sob aventais, óculos e toca. Que linda! Tem medo de casar?

Nikita tinha os cabelos longos, quase na cintura, agora soltos valorizando o rosto que, sem os enormes óculos, mostrava que além de exótico era bonito. Vestia uma camiseta curta e justa e um jeans, deixando perceber um corpo esguio e bem formado. “Bem que poderia fazer carreira modelando” – pensou Eduardo - Definitivamente de índia só tinha a cor parda.

- Vou ouvir como um elogio desinteressado, colega. Obrigada.

Sentaram, comeram alguns petiscos, bebericaram pouco e conversaram muito.

- Diga-me uma coisa: pela liderança que Guaciara tem, você acha que ela pode reunir mão de obra para um mutirão de limpeza e pintura das casas? O ambiente lá é sujo, promíscuo e muito suscetível ao surgimento de doenças.

- Não sei. Ela é líder, mas não sei até que ponto pode mobilizar os homens. A maioria é acomodado. Podemos tentar. Temos de voltar lá ainda essa semana.

- Ok. Bem. Vamos nos reapresentar? Estamos a quase um mês trabalhando juntos e pouco sabemos um do outro. Eu sou Eduardo, 30 anos, médico solteiro, endividado com o governo, com muitos planos e poucas possibilidades de execução.

- Então... Eu sou Nikita, 29 anos, viúva,  colombiana e brasileira, enfermeira e um projeto de vida enorme sobre o qual não falo nem sob tortura.

- Você é viúva? Puxa! Lamento. Certamente não quer falar sobre isso, mas caso queira meus ouvidos são seus. E certamente, uma hora dessas vou querer conhecer esse tal projeto enorme. Se é tão grande assim, não deve caber só dentro de você.

- Sim, certamente. Mas não lamente a minha viuvez, e é certo que não quero falar a respeito. Com o tempo talvez.

- Nikita... Por que Nikita? De onde vem esse nome? Claro que eu sei a origem, mas especificamente sobre você.

- Meu pai era russo e minha mãe colombiana. Nasci em Medelin e me casei no Brasil, quando vim para cá. Essa é a miscigenação que eu mostro. E você está autorizado a pensar que Nikolay, meu pai, era mafioso. Pertencia a Bratva, mas aí já é papo para outro dia. Eu, no entanto, estou limpa e livre dessas práticas. Pode acreditar.

- Que coisa! Sim. Não sou julgador, fique tranquila. Nikita... É bonito e interessante. Outro nome interessante é o da primeira dama. Você certamente sabe o que significa Lilith.

- Sim, sei – Nikita abriu um sorriso mostrando ainda mais o quanto era bonita – Ela faz jus ao nome, cuidado. Só não me diga que não percebeu as manobras. Tudo nela é ensaiado. E você não me decepcione se fazendo de desentendido.

“Xeque-mate! Sai dessa, Eduardo!”   

- Ora... Não conheço os costumes regionais; os comportamentos... Claro, observei um certo olhar interessado e tal, mas vai saber... Ademais, eu vim para cá para ficar um tempo longo, não sei se para sempre. Mas se para sempre, que não seja no campo santo. É cedo e se tem algo que eu não gosto é de rolo.

- Certo. Eu a conheço bem demais. Preste a atenção. Bem... Está ficando tarde e amanhã começamos cedo. Você me leva para casa? Outro dia podemos falar sobre o seu coração e porque veio para tão longe. 

Alguns dias depois, Nikita e Eduardo foram a comunidade e conversaram com Guaciara, explicando o plano. Sem entusiasmo, talvez por conhecer a sua gente, ela concordou em reunir um pequeno grupo que pudesse influenciar aos demais. Reuniram-se em um campinho de futebol, onde Eduardo detalhou o que pretendia. Concluiu dizendo:

- Acreditem: quanto mais limpeza, menos remédio; menos doenças. Vocês ganham saúde e qualidade de vida. Vou conseguir cal para a pintura e solução de hipoclorito para a desinfecção. Se houver entrave na prefeitura eu pago a cal. 

Alguns resmungos depois e uma chamada às falas feita por Guaciara, todos comprometeram com a ideia. Nikita assistia a conversa com um leve sorriso no rosto. E manteve o sorriso durante a viagem de volta.

- Agora vou ter de convencer o prefeito a ceder a cal, senão meu bolso vai doer. E... O quê? De que você está rindo?

- Você é um anjo que caiu do céu para essa gente, doutor. Estou encantada com o que ouvi.

- Se esse anjo caiu é porque só tinha uma asa. Veio buscar a outra e acho que já encontrou.

Nikita parou de rir e mudou de assunto.

Chegando em casa Eduardo foi nadar. Era noite quando saiu da piscina. Encontrava Lilith só de vez em quando à beira da piscina, em especial quando Raimundo viajava. Banho tomado, foi dar uma espiadinha na janela da vizinha. E lá estava a primeira-dama vestida com a sua tolha na cabeça. Ato contínuo, também tirou a toalha e começou a secar os cabelos, hipnotizando o espectador privilegiado. Terminando o processo, lentamente pegou o celular e ligou.

- Alô doutor, sei que você olha e gosta do que vê. Não quer me fazer companhia? Estou com medo de ficar sozinha.     

- Lilith,  Lilith... Você é uma tentação. Mas é claro que esse pecado eu não vou cometer. Imagine o tamanho do risco? Vou dormir com os meus demônios.

Não deu direito a tréplica, desligou o telefone e deitou. Como dormir? Minutos depois a porta se abriu. Eduardo pulou da cama, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, Lilith grudou seus lábios nos dele, empurrou-o de volta que se deixou beijar e lamber por inteiro, até o desfecho de um ato quase brutal de sexo.

- Uau, doutor, qual de nós estava com mais fome? Vou me acostumar mal.

- Não vai se repetir, Lilith. Não pode. Veja o tamanho do risco!

- Sei lidar com isso, meu caro. Fique calmo e aproveite o privilégio de desfrutar do que tem de melhor nesta cidade.    

Como Raimundo viajava frequentemente, sabe-se lá por qual motivo, as noitadas foram se repetindo. E a relação de Eduardo com Nikita ficando restrita às questões do dia a dia. Apenas a conquista do engajamento da comunidade indígena, em relação a pintura e profilaxia ambiental gerara alguma euforia, troca de beijinhos protocolares em cumprimento e alguns olhares esparsos com algum significado. Havia um clima de cumplicidade entre os dois além do simples afeto, mas Eduardo, dominado pelos hormônios, estava deixando em segundo plano.  

Num final de tarde, após cumprir o seu ritual de natação, Eduardo emergiu à borda, quando foi empurrado de volta para a água por Lilith, que se jogou a seguir.

-  A piscina é nossa. A criadagem foi liberada para ir à igreja. Só voltam as dez, portanto, vou dar uma mergulhadinha agora e volto com a sua sunga nos dentes.

Lilith era insaciável. Depois de tudo o que ocorreu na piscina, esperou o retorno e recolhimento dos empregados aos seus aposentos, e perto da meia-noite foi gastar mais um pouco do já desgastado amante. Voltou à sua casa quase pela manhã. 

Passava da hora de uma tomada de atitude, ou o pior poderia ser esperado. A realidade começava a bater firme em Eduardo.

- Bom dia, Nikita. Nunca mais saímos para conversar. Amanhã é sábado e estamos restritos às urgências. Vamos sair? Pode ser?

- Ok. Você quer que eu vá a sua casa ou pode ser lá no cais?

- No cais, claro – Eduardo surpreendeu-se com a possibilidade proposta, para logo a seguir dar-se conta que caíra em outra armadilha verbal.

- Foi o que pensei – disse secamente Nikita.

No final da tarde, sentados no cais, enquanto Eduardo procurava uma definição sobre o que sentia pela mulher que estava à sua frente, ela foi taxativa:

- Eduardo, somos colegas, não amigos e não porque eu não queira, mas você parece que tomou outros rumos e ignorou a amizade que começava a se formar. Não é uma queixa, respeito a sua opção, mas sejamos francos, porque além de ser uma forma de demonstrar respeito vai manter o bom nível da nossa relação. O que você tem em mente e por que estamos conversando hoje?

- Você é impressionante...

- Vamos nos poupar. Seja objetivo.

- Ok. A verdade é que não criei vínculos por aqui, além de você. E como concordamos na franqueza, você sabe muito bem que não somos indiferentes um ao outro. Falo mais por mim, óbvio. Porém, caí em uma armadilha velha e banal, e me deixei levar como uma folha solta na correnteza. Lilith me tomou de assalto, mas é claro que a responsabilidade também é minha. Agora preciso resolver isso. Preciso sair de lá. Já pensei em romper o contrato e ir embora.  

Eduardo contou detalhadamente como foram as primeiras abordagens, os “descuidos” dela nua na janela; a pressão nas saídas da piscina, ajudados pelas viagens frequentes de Raimundo.  

- Lilith é diabólica e eu lhe avisei. Eu a conheço muito bem, e você meu caro, está enrascado. No entanto, talvez estivesse pior caso a tivesse rejeitado. Aí não sei o que poderia ter acontecido. Barato não ficaria. Ela faz jus ao ditado “se ficar o bicho come, se correr o bicho pega”. Bem assim. Das pessoas que eu conheço, ela só respeita uma: eu, e não me pergunte porquê. 

- Você! Ok, não pergunto. Mas me diga alguma coisa sobre isso.

- Não. Não por enquanto. Seguinte: estamos em dezembro e daqui a exatos vinte dias tem a festa da cidade. São duas festas: uma para o povo na praça central e outra para os chiques na casa do prefeito. Você certamente será convidado e eu darei um jeito de ir também. Antes, vou à cidade aqui do lado comprar algumas  coisas. Aliás, mandei fazer uma roupa especial. Caso você queira eu compro algo para você. Só precisa me dar seu cartão, suas medidas e que tipo, cor, etc...

- Claro. Deixo meu cartão com você e as escolhas são suas. As medidas estão aqui. Meça-me. Você tem todo o tempo que quiser.

- Bobão. Vou pedir para a primeira-dama.

- Nikita... Peço duas coisas, se você me permitir

- Depende.

- Primeira: perdão, atrapalhei nossa amizade; segunda: não me abandone. 

- Vou pensar. Gosto de você. Em especial porque é mais inocente do que eu pensava. Quase babaca.  

Nos dias subsequentes, Eduardo começou a chegar tarde em casa, às vezes dormia no hospital. Tudo para não encontrar Llith.

- Alô doutor, anda me evitando? Preciso falar com você hoje no final da tarde. Não aceito qualquer resposta que não seja “ok”. Aguardo você em casa.

Não havia saída e Eduardo lembrou-se do que lhe havia dito Nikita de que a rejeição poderia ser pior. Ainda assim, chegou em casa, não foi nadar, tomou banho e foi ler seus e-mails. Até a chegada de Lilith, que não conversou muito. Ajoelhou-se à frente de Eduardo, baixou a calça do pijama e começou o seu infernal trabalho de lábios e língua. Foi subindo lentamente segurando a flecha intumescida, virando de costas grudando seu corpo ao dele e puxou-o para cima dela sobre a cama. Eduardo a penetrou com força e raiva, de uma forma tão animalesca que resultou esfolado. Ao fim, Lilith disse-lhe

- Se o cavalo não vai à rainha, a rainha vai ao cavalo. Algo me diz que você está com medo ou que está se deixando encantar pela indiazinha sua colega. Mas só largo o que quero quando eu quero. Guarde isso para sempre. Você até pode ir embora, mas não vai se livrar de mim. É uma promessa e eu as cumpro.  

E se foi, deixando Eduardo ainda com mais raiva. Raiva dele.

Alguns dias depois Lilith chamou Eduardo porque não estava passando bem, Teve problemas, tendo inclusive batido o carro. Recebeu o médico vestida de baby doll e reportou o que tinha acontecido. Foi examinada e o diagnóstico uma crise de labirintite, sendo aconselhada a buscar um especialista. É claro que antes de terminar a consulta tentou seduzir o médico de todas as formas que conhecia e das quais era mestre. Dessa vez, entretanto, Eduardo tinha uma saída: a questão médica era importante.

- Lilith, você não pode. Esse seu problema não é tão simples e pode desencadear um AVC. Imagine eu como médico sendo responsável por deixar a minha linda paciente toda torta e entrevada numa cadeira?

Argumento clínico suficientemente forte. E naturalmente fraudulento. Eduardo pensava fortemente em Nikita  no momento dessa recusa sentindo-se muito feliz. E por sorte, porque já na porta de saída encontrou Raimundo que antecipara sua chegada.

- Ora, ora... Não me diga que veio dar assistência à primeira-dama na minha ausência.

- Mais ou menos isso. Lilith teve uma crise, penso que de labirintite, mas é preciso que se avalie melhor. Aconselho a levá-la a um especialista. Hoje bateu o carro, por sorte levemente, mas poderia ter sido pior.

- Oi, Raimundo, que bom que veio antes. Vou precisar de você. – Lilith chegava à sala para receber o marido, com uma cara visível de contrariedade.

- Bem, sente Eduardo, vamos beber um uísque rapidamente e me dê mais detalhes sobre isso.

Raimundo conhecia bem a mulher. Desconfiava de que estava jogando penas no doutor e estava muito contrariado com a  presença dele na casa naquele  momento. Apenas desconfiava, apesar da postura firme e teoricamente profissional do médico. Eduardo explicou o que pode ao marido desconfiado, bebeu, achou prudente ficar um pouco mais a fim de acalmar o ambiente, jogando conversa fora.

- Mas me diga, agora mudando de assunto. Há tempos quero falar com você a respeito. Aquele projeto de pintura das casas dos índios e da quantidade enorme de material de limpeza foi ideia sua? Se foi, digo que você está extrapolando suas funções. Não foi contratado para me dar despesas extras.

- Faça as contas, Raimundo. O munícipio tem quinze mil habitantes. Só na comunidade são quase três mil, a maioria votante. Você tem feito visita por lá para avaliar o grau de satisfação deles com a prefeitura? Considere isso um programa de saúde pública e retorno se serviços. Quanto mais limpeza, mais gente feliz e menos remédio, e você, melhor do que eu, deve saber qual deles é o mais caro. Diga-me outra coisa: algum funcionário da prefeitura colocou a mão na massa para trabalhar no projeto? Só a Guaciara que já trabalha lá, justamente para isso. A mão de obra é toda deles.  Você, se me permite, deveria ampliar esse plano às demais comunidades.

- Olhando por esse lado... Acho que você está certo. Ok. Bem e quanto ao mulherio? Já tratou de se pegar com alguma indiazinha? Soube que está se entrosando muito bem com a Nikita. Vá por mim: é um mulherão e está invicta há muitos anos. Nem o prefeito conseguiu ciscar por ali.

- Nos dê licença, Eduardo. Raimundo, pelo visto já chegou bêbado. Em matéria de ser desagradável ele não desce do pódio. E é bem assim que nascem os cornos.

- Você se atreva para ver. Gosto de sangue você já conhece.

- Boa noite, pessoal. Descansem. Raimundo, não esqueça de levar Lilith a um especialista.  

Dias depois Nikita foi às compras na cidade vizinha e isso levaria mais do que um dia. Tempo que custou a passar para Eduardo.  Era inegável e crescente o que estava sentindo pela colega.  Retornou cheia de pacotes e ao entregar-lhe as compras, olharam-se de forma nova. Meio que especulando-se.

- Olhe, espero que goste. Pequenos ajustes, caso precise eu tenho quem faça.

- Pouco me importam as compras. É bom vê-la de volta. Senti a sua falta. É a primeira vez que nos separamos. Anote aí: da próxima vamos juntos.

Nikita olhou um pouco surpresa para o colega. Parece ter pensado algo para falar, mas apenas respondeu

- Também senti a sua falta.

Não perceberam, mas ficaram um bom tempo olhos nos olhos segurando o mesmo pacote com as mãos encostadas, próximos demais. Nikita desviou os olhos, soltou a sacola e arrumou a gola do avental de Eduardo.

- Você não se olhou no espelho hoje?

- Olhei. Não vi nada. Significa que faltou tudo.

- Olhe lá, seu moço... Não brinque com o que não conhece.  

Chegou enfim a noite a festa e Nikita disse a Eduardo que não precisava ir apanhá-la em casa.  Ela iria de taxi. “Mesmo porque você já está em casa”. 

Nikita chegou cedo à festa. Foi recebida por Lilith.

- Meu Deus, como você está linda, Nikita. Vejo você sempre fantasiada de branco ou de azul que sempre esqueço o quanto você é bonita. Vai roubar a festa. E esse vestido! Cai muito bem em você. Parabéns.

- Obrigado, Lilith, você também está linda. Parabéns pela festa. Quanto ao vestido, preste bem a atenção nele. Você conheceu um igual a última vez que me viu arrumada.

Lilith desconversou e disse apenas um “fique à vontade” e saiu rapidamente para atender a outras pessoas.  

A festa, de fato era grandiosa. Eduardo atrasou-se um pouco como é normal quando é tudo fácil. Bastava ir a pé. Ainda não conhecia o salão de festas da família. Era como o de um clube social. Amplo, um lustre de cristal enorme ao centro que deveria ser do valor de um carro novo. Foi recebido pela primeira dama, com a sutileza de praxe:

- Uau! Depois da festa quero arrancar essa roupa com os dentes. Raimundo vai dormir o sono de um anjo viking. Agora vá encontrar a sua amiga indiazinha.

Eduardo passou os olhos pelo salão e viu muita gente bonita. Pessoas que nunca tinha visto, mas nada da colega. Andou um pouco sendo cumprimentado por todos pelos quais passava, mas nada de Nikita.

- Não está reconhecendo? Provocou Lilith - Veja naquele grupo lá no canto da saída para a varanda, onde estão as mais lindas. .

Eduardo só foi reconhecer quando chegou mais perto e ela se virou, informada da presença dele por uma amiga. À sua cor de pele, Nikita contrastou  com um vestido justo verde água, deixando as costas totalmente de fora, apenas coberta pela cascata negra e reta que descia da cabeça. Usava uma maquiagem bem leve que tão somente dava realce aos olhos e a boca.

- Declare a hora do óbito agora e doe meus órgãos, menos o coração. Esse já é seu. Se não quiser usar guarde na bolsa. Como você é linda, colega!

- Bobão! Você também está um gato. Agora vamos sentar e não se atreva a sair de perto de mim. Olhe ao redor. Veja que não é só a chefe da matilha que quer devorá-lo. Prevejo fortes emoções hoje.

- Você é uma bruxa. Se quiser que eu olhe ao redor devolva meus olhos. Ah, meu queixo também está no seu colo.

- “Mister Robinson, você está tentando me seduzir?",  lembrei de um filme.

- Seduzir? Estou tentando achar uma forma de me declarar a você que não pareça tão patética. Quero um uísque.

- Cuidado. Nossos celulares estão ligados e a qualquer momento nossa festa pode acabar.

- Ah é

-  Agora cale-se. Vai começar o show.

- Meus amigos, boa noite. Quero agradecer a presença de todos e como cá estou para beber e não para conversar, deixo o cerimonial para Dona Lilith que tem coisas a dizer.

- Obrigada, meu querido. Bem vindos. Hoje é uma noite muito especial para mim. Em primeiro lugar porque depois de anos de tratamento para fertilização, os mais próximos sabem bem a respeito, eu e Raimundo conseguimos engravidar. Estou grávida, finalmente a família vai aumentar.

Foram saudados com palmas e vivas.

- Em segundo porque consegui trazer à minha casa a pessoa que mais me conhece. Aquela com quem, entre poucos brinquedos e muitas brigas passei a minha infância não muito longe daqui e por quem, embora ela duvide disso, eu tenho muito carinho: a minha linda irmãzinha Nikita. Bem vinda, querida, a casa é sua. 

Eduardo gelou e ensaiou a pergunta óbvia, quando Nikita segurou a mão dele   entre as dela, delicada, mas firmemente dizendo apenas “aguarde”. Muitos olhares surpresos em direção a Nikita em função da revelação.

- Vamos curtir a festa.  Se você me levar em casa no final da noite eu conto a nossa história.

Eduardo e Nikita finalmente se encontraram. Viram-se para além dos aventais e tocas. Aquela era uma noite de revelações e algumas nem precisaram ser ditas. Tudo ficou ainda mais explicito quando foram dançar. O corpo fala; os corpos quando se ajustam dialogam com muito mais clareza que uma frase feita, ensaiada, por mais enfática que venha a ser dita. Dois corpos justapostos; dois braços enlaçados; dois olhos fixos no ponto comum, convidando as bocas para a mesma festa.  Isso tem um nome: paixão!

Lilith percebeu o envolvimento do casal e lançava olhares com dardos venenosos. Raimundo enquanto esteve sóbrio ou minimamente sóbrio também resolveu fazer sua graça ao ouvido de Nikita que fez pouco caso: “escolhi a índia errada”.  E isso foi o suficiente para que decidissem, minutos após a meia-noite, irem embora. Havia muitas urgências entre Eduardo e Nikita, que todo o resto se tornava irrelevante.

- Lilith, está na minha hora. Já vou. Obrigada pelo convite e cuide-se. Você já bebeu demais. Agora tem de cuidar de dois. Parabéns, mais uma vez.

- É muito cedo ainda, minha irmãzinha... Ainda se preocupa comigo... Quando vai me perdoar?

- Não é hora de falarmos sobre isso.

- Ok. Mas apareça para me ver. E onde está aquele gostoso do seu acompanhante?

- Foi pegar o carro. Ele vai me levar em casa.

- Merda! Ok. Faça bom proveito, mas depois devolva. 

- Ah, mas não tenha a menor dúvida de que farei um ótimo proveito.          

Entrou no carro soltando fumaça pelas narinas. “Admita que você está morta de raiva e ciúmes, mulher” – dizia para si mesma. 

- Uma vez cadela, sempre cadela!

Eduardo apenas pegou uma das mãos dela e beijou. Não era hora de falar nada. Chegando em casa, Nikita tirou os calçados. Eduardo pegou as duas mãos dela, puxou-a para si. Acariciou seu rosto e deu um leve beijo em seus lábios.

- Tudo o que eu ouvir hoje só há de aumentar o que estou sentido; que andei negando, muito por causa dos derrames hormonais mais burros, mas que de uns dias para cá tomou conta de mim. Amo você e se você me aceitar em sua vida, do jeito que for, eu ficarei feliz.     

- Vou fazer um café porque a noite vai ser longa.

- Temos tempo

Nikita começou sua narrativa, pedindo para não ser interrompida porque, se era difícil começar a falar, imagina reviver tudo e em detalhes. Mas era necessário e o momento, sempre negado, chegara.  

No aniversário de 15 anos de Nikita, Nikolay, o pai, deu uma grande festa em Medelin. Havia lá a fina flor da máfia colombiana e russa, residente na América. Um dos capangas graduados,  Carlos, que tinha uma espécie de obsessão por Lilith, criava uma dissidência e ela sabia e explorava isso. Convenceu a ele de que sequestrando a filha mais jovem e preferida do papai,  ele teria um grande trunfo na mão. Ela facilitaria o processo durante a festa, quando a vigilância certamente estaria mais frouxa. No horário combinado com Carlos, Nikita foi chamada ao quarto, a fim de que brindassem apenas as irmãs e sem perceber foi drogada. Lilith então tomou as providências para que o trânsito fosse facilitado na casa, que era um verdadeiro forte. 

Carlos levou Nikita para a selva, ainda sem saber de que lado da fronteira estava, se no Brasil ou na Colômbia. Como a data base era o aniversário, ela soube apenas que ficou 46 dias escondida. Um dia foi novamente drogada e acordou em uma casa enorme, já no Brasil. Era tipo um castelo no meio do mato, do tamanho e tão ou mais fortificada que a de Medelin. Era a casa de Carlos, que já tinha conseguido seu espaço próprio no tráfico. Soube que houve alguns pagamentos de resgate por parte de Nikolay, em vão, e muitas escaramuças entre eles. E descobriu que Lilith sempre dava um jeito de informar a Carlos sobre as movimentações de Nikolay, até ser descoberta. Mas antes disso ela já estava bem longe e protegida por Carlos.

Nikita foi se acostumando com a vida reclusa e anulando aos poucos tudo o que sonhava. Era forçada a ter relações sexuais Carlos, o que lhe havia gerado trauma, medo, nojo e toda a espécie de rejeição ao sexo oposto. Um tempo depois, ajudada por um dos capangas de Carlos, conseguiu uma boa quantidade de droga e tentou o suicídio. Ficou um tempo entre a vida e a morte, mas salvou-se, porém com sequelas seríssimas. Quando Carlos soube a origem da droga mandou executar o capanga. 

Começou então a mudar o seu comportamento. Tinha um plano de fuga, mas precisava ganhar confiança. Então decidiu estudar. Queria ser enfermeira, até para ser útil ao grupo, porque quando chegavam de suas operações sempre havia feridos. Precisava também ter a sua situação regularizada no Brasil e a melhor forma encontrada foi o casamento. Então, com 21 anos casou e se tornou cidadã brasileira.  No entanto, Carlos a mantinha sob severa vigilância. Quando entrou na faculdade conheceu seu novo guarda-costas. Um brutamontes, mas com jeito efeminado. Perico, que foi um amigo sempre gentil e cuidadoso com ela, e tinha uma razão para isso.

Em uma dessas brigas entre grupos por disputa de mercado, Nikolay e Carlos finalmente se encontraram. Muitos morreram, inclusive os dois. Carlos acertou Nikolay e, prestes a dar o tiro de misericórdia, Perico pediu que lhe condesse esse privilégio. Queria ter o prazer de “acabar com a raça daquele perro”. Então Carlos cometeu a sua última burrice: deu uma calibre doze a Perico para que explodisse a cara de Nikolay. Perico fez isso, porém com a cara de Carlos. Ainda levou Nikolay ao hospital, mas já chegou morto. Em resumo: Perico era filho de Nikolay, portanto meio irmão de Lilith e Nikita, e estava infiltrado no bando de Carlos, justamente para cuidar dela. Carlos havia contratado o novo guarda-costas pelo tamanho, violência com que tratava todo mundo e pelo seu jeito efeminado, que aliás, era só um personagem.

Quando Carlos morreu, Perico procurou Nikita para colocar tudo às claras. Soube, por exemplo, tudo a respeito do envolvimento de Lilith com Carlos e seu irmão... Raimundo, o prefeito, o que explicava a origem de todo o luxo. Soube também  que o casarão onde ela morava estava em seu nome, não soube bem porque, mas o que acabaria facilitando muito as coisas na hora de vender. E mais: soube que estava rica, não só pela casa, mas porque nas paredes dela havia muito dinheiro escondido; que seu pai, ao descobrir a traição de Lilith, colocou todo dinheiro e patrimônio em seu nome, em uma conta no Panamá. Perico foi tão leal que lhe trouxe os dados escritos por Nikolay um pouco antes de morrer.

- Enfim, o dinheiro das paredes da casa guardei o necessário para sobreviver alguns meses, o resto deixei com Perico para que distribuísse aos empregados; a casa vendi a ele por um valor quase simbólico, o patrimônio de Medelin também dividi com ele e o dinheiro do Panamá está lá, intacto. Tenho um projeto para ele, mas preciso resolver questões burocráticas para sua repatriação. O imposto ainda é alto. Vou esperar um pouco mais. Nunca mais vi Perico, mas sei que me cuida nas sombras. Lilith sabe disso também, daí o respeito e por isso talvez nunca mais tenha tentado nada contra mim. Vai ver deve ter recebido um recado “carinhoso” da parte dele. Sei também que não acabei em Seringal por acaso. Candidatei-me em vários lugares, hospitais, prefeituras, porém nenhum deles me ofereceu tantas vantagens como aqui. Ou seja: eu sempre fui monitorada.  

Nikita terminou a narrativa deitada no colo de Eduardo, que nada mais fazia do que alisar seu cabelo e acarinhar seu rosto.

- Nossa! Já é quase manhã e eu não desarmei esta árvore de natal. Sabe este vestido aqui? É cópia exata do que eu usava na noite do sequestro, por isso ela ficou tão incomodada quando me viu hoje. Você quer dormir aqui, Eduardo? Tome um banho, vou ver uma toalha e depois venha para o sofá. Não abro mão da minha cama.

- Ótimo. Obrigado. Vou ao banho.

Eduardo deixou a água cair. Encostou a cabeça na parede, fazendo os antebraços como travesseiro e quase pegou no sono. Quase. A toalha que era para vir não foi notada. Diferente disso, foi envolvido por dois braços, um corpo colou-se ao seu por inteiro e suas costas foram acarinhadas por duas protuberâncias macias e firmes. Virou-se para olhar Nikita, plena e entregue. Ficaram um lapso de tempo assim, apenas namorando-se com os olhos e embalando-se como se dançassem na chuva. Um rápido beijinho e mais outro; olhares que fugiam do terno para soltar fagulhas e outros tantos beijos  que passaram de carinhosos contatos à esmagação esfomeada. Enrodilharam-se das línguas às pernas  e deixaram que a água tépida se mistura-se ao suor dos corpos. Dali foram para a cama, molhados, consumar sua primeira noite de amor. E dormiram o sono justo e cansado dos apaixonados.

- Bom dia, doutor. Venha tomar café.

- Bom dia meu amor. Estou perdidamente apaixonado por você. E com uma fome de lobo.

- Vamos com calma. Você tem questões sérias para resolver.

- Sim eu sei e tenho muita pressa de resolver isso. Você está bem? Está à vontade? 

- Estou. Passei por cima de um problema de uma forma que jamais imaginei conseguir. Sem lembranças, traumas ou bloqueios. Finalmente descobri o que é fazer amor. Devo isso a você. Não sei bem porque, mas eu sabia que isso aconteceria conosco. Talvez por isso tenha odiado cada momento que você passou com aquela “zinha” da minha irmã. Bem... É importante que ela saiba que estamos tendo alguma coisinha.

- Vamos tentar esquecer o que passou. Já fugi daquela moça uma vez e ela não me pega mais.

Eduardo contou a Nikita a história da labirintite com AVC. 

- Vou para casa. Tenho coisas a acertar e tratar de me mudar.

- Fique  - Nikita segurou Eduardo pela mão e o levou de volta ao quarto de onde só saíram no dia seguinte para voltarem ao trabalho.

- Bom dia pessoal. Vamos aguardar a chegada do doutor Eduardo para definirmos o que fazer a respeito da virose na escola. Ah. Aí está ele. 

- Bom dia, colegas 

Eduardo foi até onde estava Nikita, segurou seu rosto com as duas mãos e grudou sua boca na dela, em um beijo de tirar o fôlego. Ela mal pode reagir. Houve assovios, gritos de vivas e de “eu já sabia”.

- Eduardo, como é que você faz uma coisa dessas? Eu não permito que você me exponha desse jeito.

- Nikita, eu estou completamente apaixonado por você e isso é definitivo. A menos que você me diga que eu não tenho a menor chance de ficar a seu lado, eu não faço questão nenhuma de esconder. Você pode ficar chateada comigo, mas não me arrependo do que fiz. E nós precisamos ser convincentes para com aquela “zinha”.

- Quer saber? Você tem razão. Venha. Vamos passear pelos corredores. Amo você, mas não pense que vou esquecer tão cedo aquele o seu “casinho”.

O novo casal passou a ser assunto prioritário nas rodinhas de conversa e isso fazia muito bem a ambos.

- Eduardo precisamos ampliar nossa conversa. Você sabe que tenho planos para o dinheiro lá de fora, mas preciso saber também algumas coisas. Você pretende ficar sempre por aqui?

- Eu tinha muitos motivos pra vir para cá e poucos para ficar. Agora todos os motivos que eu tenho para ficar ou sair estão bem à minha frente. Quero ficar com você.  

- Bem. Você sabe que eu trato a tudo objetivamente, não é? Então vamos lá. Lembra que eu disse que fiquei com sequelas sérias da vez que fui hospitalizada e quase morri? Pois bem. São coisas graves, mas não letais. Graves porque, caso você queira ser pai, eu não vou poder servir a esse seu desejo. Tive de retirar o útero. Você vai ficar frustrado?

-  Meu amor, me responda uma coisa: desde a noite da festa,  quantas vezes ficamos sem uma noite tórrida de amor?

Nikita respondeu com um riso ligeiramente encabulado:

- Nenhuma, acho.  

- Nós lidamos com o corpo humano. Você não toma anticoncepcional, eu não uso preservativo e você não menstrua. Portanto... Eu sei, meu amor. Não é um problema. Caso queiramos ter filhos a gente adota um indiozinho. Agora venha cá e me diga olhando nos meus olhos: quando vamos casar?

- Ops! Você acha necessário? Não tinha pensado nisso. Enfim, acho que vai ser bom casar de verdade. Antes de tudo, porém, doutor Eduardo, o senhor vá já buscar as suas coisas. Seu endereço agora é aqui. E nada de despedidas. Quer saber? Eu vou junto... Não vá você. Eu vou ao banco abrir uma conta conjunta para você depositar a metade das despesas de casa. Aguardemos abrir a agência que assim matamos a mesma cobra com dois paus. Você não encontra ninguém em casa e eu encontro quem eu quero na agência.

- Oi Lilith. Como vai a barriguinha? Preciso abrir uma conta. É conjunta. Pode ser com você?

- Tudo bem conosco. Claro. Você titular? E quem mais?

- Eduardo Possoni.

- Olalá! A coisa ficou séria, minha irmã.

- Pois é. Depois de tudo o que passei, e que você deve imaginar, nunca pensei que pudesse acontecer isso comigo. Mas aconteceu e está sendo maravilhoso. Eduardo é um homem lindo por inteiro.

- Sim, um belo exemplar de macho. Daria um ótimo doador de sêmen, você não acha?

- Certamente que daria, mas não deve estar sobrando, porque mal dá tempo para o consumo diário. E como você sabe, algumas sequelas do passado me impedem a gestação, por qualquer método. Pronto, já assinei os papéis, até mais. Depois ele passa para assinar.   

Uma pequena vitória ao ver a cara enraivecida da irmã. Uma vitória amarga; ressentida, mas necessária. Meia vida depois, o troco começara a ser dado.

 

O CASAMENTO E OS PLANOS

Nikita e Eduardo não tinha grandes planos para a cerimônia. Tinham, além de um ao outro, os colegas de trabalho e Guaciara, a índia que tratava Nikita como uma filha, apesar da pouco diferença de idade. Uma das colegas se propôs a prepara o evento para um final de tarde de uma sexta-feira, sem cerimônia religiosa, apenas juiz de paz.

Como não havia a menor possibilidade de afastarem-se os dois de seus postos, apenas tiraram o dia do casamento para descansar e ultimar pequenos detalhes. Nada havia de ser mudado, uma vez que já moravam juntos a um bom tempo. O salão encomendado seria uma surpresa e eles precisariam passar pelo hospital, a fim de descobrirem o endereço e para o tal lugar seguirem em comitiva. Assim fizeram.

Cinco horas da tarde daquela sexta-feira o casal entrou no hospital. Passaram por colegas sorridentes, alguns votos de muitas felicidades... Coisas de praxe.  Foram até a sala tradicional de reuniões e... A festa estava montada. Casaram ali mesmo, tendo por testemunhas seus colegas de trabalho e as alianças entregues por Guaciara. Brindaram com chá, café e água. Nikita Nikolayeva, a filha de Nikolay, passara a ser senhora Nikita Possoni.

Depois de festejarem, vestiram seus aventais e foram ao trabalho, deixando para continuar a festa em comitê particular. Em casa havia um espumante à espera.

Alguns dias depois Nikita recebeu a notícia que aguardava há muito tempo

- Eduardo  você sabe que casou com uma mulher rica, mas que não dá a mínima para o dinheiro.

- Sei. Eu dou. Casei por isso.

- Nojento! Recebi uma novidade do advogado lá de Brasília sobre os impostos para repatriação da grana. Continuam altos, mas em função da destinação que pretendo dar a ele, há boas chances de pagarmos bem pouco. O meu projeto, a construção de uma clínica para dependentes químicos, em duas alas, sendo uma para atendimento particular e outra pública está aprovado. A negociação proposta pelo advogado foi muito inteligente. Pagamos os impostos e 70% do que pagarmos retorna em subsídios pela atividade social   da clínica. Ou seja... Só falta achar o lugar. A Guaciara, que treinei como atendente e hoje sabe tanto ou mais do que eu, já está preparando cursinhos para formação de mão-de-obra e me ajudando a pesquisar sobre locais possíveis para execução do projeto.

- Bem, eu sou um duro, que ainda deve ao governo. Só posso dispor do meu trabalho. Serve?

- Ora, você é minha fonte de força e inspiração, doutor, eu continuaria sonhando com o projeto se não estivesse ao meu lado. Isso não tem preço. Aceito você no negócio, porque é a nossa referência médica, não só da cidade, que ficou pequena para você. Seu nome e trabalho valem 50% do negócio. Estamos combinados quanto a isso, meu amor, essa parte é inegociável. Mas vai demorar um pouco ainda. Precisamos definir o local.

 

CLÍNICA SÃO NICOLAU

Eduardo e Nikita estavam deitados, descansando quando surgiu Lilith na conversa. Ela acabara de ser mãe. Ganhou um meninão robusto e saudável e estava de licença maternidade.

- Preciso vê-la nesta semana. Visita de praxe, vamos juntos? Acho que seria uma boa oportunidade para mitigar as raivas.

- É, pode ser. Uma criança ajuda muito nessas horas. Não tenho mais raiva dela. Alias, não sinto nada. É uma estranha que eu quero manter longe. Mas tudo bem. Vou com você.

- Olá, como vai o lindo casal? O casamento está lhe fazendo muito bem, minha irmã. Vejo que o doutor está lhe dando um bom trato.

- De fato estamos nos tratando muito bem, e você Lilith? E o bebê, como vai?

Eduardo examinou mãe e bebê, conversaram mais um pouco e, antes de irem embora, ele notou sobre o criado mudo uma escova de cabelo que jurou ser a que tinha perdido na mudança. Não deu bola. “De certo quis guardar uma lembrança, a safada”.  Ao sair o casal parou na varanda, e como se tivessem combinado, passaram os olhos sobre o vasto e bem cuidado terreno.         

- Que lugar para uma clínica, hein doutor?

- Pensei a mesma coisa! É perfeito. Quantos hectares tem aqui?

- Vários.  

Quase dois anos depois, outro acontecimento haveria de reunir as irmãs, este trágico. Raimundo sofrera um AVC, e ainda na ambulância teve uma parada cardíaca, tendo chegado já sem vida ao hospital.

- Lamentamos muito, Lilith. Soube que Raimundo, antes de morrer chamou pelo meu nome, mas acho que já era tarde.

- Sim, soube também. Deveria ter seus motivos. Não lamente muito, Raimundo passou a vida inteira se matando e na noite que morreu bebeu muito, quebrou coisas e me agrediu. Vou ficar bem. Nikita, você pode vir amanhã ou depois para conversarmos? Acho que pode ser do seu interesse. Não se preocupe, Eduardo, é só uma conversa. Acho que a essas alturas você já sabe quem eu fui na vida dela. Deve saber também que ela tem um anjo da guarda muito poderoso.

- Ok. Venho amanhã pela manhã, perto das dez horas.

No dia seguinte, no horário combinado, Nikita foi até a irmã.

- Bom dia, minha irmã. Sente aqui e vamos direto ao ponto. Olha, eu sei do seu projeto da clínica. Sei que já está tudo em ordem, faltando apenas o local. Bem coisa sua e que diz bem das diferenças entre nós. Jamais pensaria em uma coisa dessas. Enfim... Não sei se lhe passou pela cabeça esta área aqui de casa. Adaptações e reformas sairiam bem mais barato que uma construção. E tem amplo espaço para novas unidades. Sei que você ainda não fechou o negócio com aquela área da periferia. Então o que lhe proponho: mande avaliar esta propriedade. Vendo para você por um valor menor do que o de mercado, com algumas condições, que depois da avaliação eu falo. Eu vou embora para Manaus. Tenho casa lá e Ivan precisa ter uma formação melhor da que a que oferecem por aqui. Você vai perguntar se eu mudei ou melhorei com a maternidade. Nada disso. Eu sou imelhorável, apenas quero ajustar algumas coisas, pensar no meu filho e, cá para nós, dinheiro não há de me faltar.

- Certo, Lilith, para ser sincera, de fato nos passou pela cabeça esta área sim, mas sequer cogitamos. Vou pedir a avaliação e depois disso conversamos.

Dias depois, de posse dos dados providenciados e sabendo que a irmã também já tinha a sua avaliação, Nikita retornou à casa de Lilith para conversarem.

- Certo. Os números são parecidos com os que tenho e a proposta que lhe faço é a seguinte: você me paga 50% desse valor à vista e na constituição da empresa, 20% fica para o Ivan. Quando começarem a faturar apenas me informem que eu mando para onde deve ser transferido o que for definido para o meu filho. Faço isso porque é a forma mais segura que vejo para o futuro dele. Ademais, chega de Seringal. Vou aguardar a sua definição e vou embora.

- É uma proposta generosa. Vou falar com meu marido, mas acho que bateremos o martelo imediatamente. Amanhã mesmo dou retorno.

Faltavam poucos ajustes para que o dinheiro do Panamá pudesse ser considerado legal, com os impostos pagos. Nikita avisou a Lilith que as condições seriam aceitas e que tão logo tivesse ao alcance o valor acordado fariam assinatura de papéis e respectiva transferência de conta.

- Nikita, pelos meus cálculos levaremos mais de um ano para adaptações, reformas, construções e equiparmos a clínica. Tão logo ocupemos a casa, sugiro que a gente traga Guaciara para morar lá. Ela apode ficar na casa que eu morava até que seja demolida, de acordo com o projeto e gerenciar as obras.

- Claro. Agora falta pouco para darmos o passo definitivo da Clínica São Nicolau. Vou tentar redimir um pouco dos danos causados pelo meu pai. 

   

A SOCIEDADE

Eduardo e Nikita estão casados há mais de vinte anos. Comandam a clínica que virou referência no atendimento de dependentes químicos em toda a região e para países vizinhos. Abaixo deles no comando, a fiel Guaciara, chefe da enfermagem e quase cem funcionários.

Têm duas filhas gêmeas adotadas, fato que ocorreu de uma forma bem singular. Nos primeiros meses da clínica, um casal foi internado em péssimo estado de saúde. Ambos dependentes de drogas, que prestavam serviço a traficantes. A situação deles era bastante crítica. Caso lograssem se salvar com os tratamentos, ao pisarem na rua a possibilidade de serem abatidos era de 100%, segundo eles mesmos diziam.  O homem era do sul, descendente de italianos, e não demorou mais que algumas semanas para falecer. A mulher  indígena, teve mais sorte e reagia bem ao tratamento. Um dia chamou Nikita e fez-lhe uma súplica: “doutora, minhas filhas estão sempre aí pelo corredor trazidas por uma vizinha porque não têm onde ficar. Ficam catando uma coisa aqui outra ali, dependentes da bondade das pessoas. Meu marido já morreu, eu vou morrer também, aqui ou na rua. Estou jurada. Eu sei que a senhora não tem filhos. Por misericórdia, fique com as minhas meninas. Chame um oficial, assino qualquer papel. Nunca vou lhe pedir nada, caso consiga sobreviver”.

Nikita foi procurar Eduardo que, por coincidência, estava em um banco conversando com as meninas. Queria saber porque elas estavam ali e sozinhas.

- Eduardo, é sobre elas mesmo que temos de falar.

A mãe das meninas, contra todos os prognósticos conseguiu se recuperar. Recebeu alta e como as filhas já estavam acomodadas na nova residência, optou por não vê-las. Cumpriria o prometido. Recebeu uma razoável quantia oferecida por Eduardo, a fim de que pudesse se manter por um tempo e foi embora. No entanto, não custaram muito a receber notícias dela. Uma semana após a alta foi encontrada em um terreno baldio com mais de trinta perfurações de bala. O tráfico não perdoa.      

Maiara e Tainara, as gêmeas, estão com quinze anos. Contrariando tendências, adaptaram-se rapidamente à nova vida e são duas verdadeiras bênçãos como filhas. São gêmeas idênticas, com poucas diferenças comportamentais. Dóceis, carinhosas, de bom trato e disciplinadas, mas uma é expansiva a outra muito tímida, e acima de tudo bastante unidas, muito em função das recomendações de Nikita, por motivos óbvios.

Estudam fervorosamene e o caminho a ser seguido não poderia ser outro que não o da saúde. Desde já têm suas tarefas na clínica e são comandadas pela mão dura de Guaciara, a quem chamam de “abuelita”.

Uma manhã, Nikita recebeu uma surpresa. Uma visita de dois jovens. Um casal.

- Eduardo, deixe tudo o que está fazendo e venha já para cá. Estou na nossa sala.

Eduardo demorou alguns minutos, chegando assustado.

- Olá, bom dia...

- Bom dia, tio Eduardo. Você certamente não se lembra de mim. Sou Ivan, filho da Lilith e essa é minha namorada Dalila.

- Nossa... Puxa... Que bom ver você. Bem, sinto muito a sua perda. Sei que Lilith foi uma grande mãe. 

Lilith morrera havia seis meses, mas Nikita e Eduardo só haviam sido  informados semanas atrás.

- Sim. Foi uma grande mãe. Sei, no entanto, que não foi uma grande filha e muito menos uma grande irmã. Ela passou a limpo comigo a sua vida, mas sobre isso falamos à noite, se desejarem. Bem, gostaria de conhecer a clínica, afinal sou sócio, não é mesmo? Dalila já está há algum tempo trabalhando e não demora será médica. Com o período de hospitalização de minha mãe, as duas tornaram-se bem próximas. Já eu iniciei há pouco. Tenho longo caminho pela frente  

- Claro. Deixe Dalila com Nikita, que vai mostrar a parte chique e venha comigo ver o nosso trabalho social.

- Tio e tia, hoje à noite podemos conversar? Sei que tenho primas. Também gostaria de conhecê-las.

- Sim. Jantamos e depois conversamos 

O jantar transcorreu de forma leve, muita conversa jogada fora, lembranças que não poderiam ser muitas, até porque não convinham.

- As primas, apesar de adotadas, são muito parecidas com você tia Nikita. Mesmo porte, mesmos olhos claros indefinidos. Muito simpáticas.

- Você esqueceu dois detalhes, primo, um o principal: inteligentes. O outro: lindas – cobrou Maiara rindo.      

- Sim, certamente. Quando disse que eram parecidas com tia Nikita deixei isso implícito. Lilith, apesar de bonita tinha inveja do seu porte tia. Bem... Como disse, em suas últimas semanas minha mãe se revelou a mim. Contou em detalhes toda a sua vida, as partes mais relevantes, acho. Sei quem foi meu avô, sei quem foi meu pai, meu outro tio e sei o que fez minha mãe, inclusive de sua participação no seu sequestro, tia. Participação não, ela planejou tudo e isso me dá a dimensão do que é você como pessoa. Conclui que minha mãe era diabólica, embora fosse um anjo comigo.

- Agora vamos à parte mais difícil. Você sabe a origem disso aqui, tio Eduardo?

- Sim. É uma escova de cabelo parecida com a que eu perdi quando me mudei de casa. Isso há mais de vinte anos.

Nikita e Eduardo olharam-se por um lapso de tempo, sentindo algo como um pesar.   

- Meu pai, quando morreu, chegou em casa e começou a beber. Ele desconfiava de minha mãe, tinha ciúmes e já tinham discutido durante o dia. Nessa noite, tanto procurou que acabou encontrando algo que mudaria tudo. Isto (Ivan mostrou aos tios um envelope) a partir daí começou a quebrar coisas, bateu na minha mãe e bebeu mais. Então teve o AVC. Minha mãe poderia ter chamado antes o atendimento, mas, segundo ela, sentou-se no chão, à frente dele e ficou assistindo-o se debater. Quando ele estava desacordado então chamou o socorro.

- Que horror!

- Meu pai recebeu os primeiros socorros e ainda na ambulância deu uma pequena reagida, e foi aí que pronunciou o seu nome, tio Eduardo.

- Sim, nós soubemos disso.

- Só não sabem que o motivo dele ter pronunciado o seu nome foi o mesmo que provocou aquele caos. Veja aqui, tio, isso foi o que meu pai encontrou e que desencadeou toda a crise, e que justifica também a importância desse objeto. Você não perdeu sua escova. Ela estava com a minha mãe e por um motivo bem especial. Abra o envelope.   

Ivan entregou a Eduardo um envelope envelhecido. Era um teste de DNA, que ele repassou a Nikita para que abrisse. Sim, Ivan era seu filho. Eduardo saiu da sala, lembrando de uma frase dita por Lilith “você não vai se livrar de mim”.

“Burro! Mil vezes burro! Imbecil!”, brigava consigo mesmo. Demorou para voltar à sala e só o fez quando as filhas foram buscá-lo.

- Venha papito. Nada vai mudar. Vocês nos ensinaram que devemos ficar sempre juntos, porque assim somos fortes e imbatíveis. Vamos.

- Bem, Ivan, lamento não ter ficado feliz com a notícia. Ao contrário, estou profundamente constrangido, talvez até magoado. Tenho muitas culpas aí e isso vai me tirar o sono. Aceitei a espada de Dâmocles sobre a cabeça e eu mesmo cortei a corda.

- Fique tranquilo, tio. Nada vai mudar. Falei porque acho que era direito que soubessem. Também me choquei quando soube. Somos vítimas da mentalidade diabólica da minha mãe, essa é a verdade. Ela fez tudo isso de caso pensado.

Enquanto falavam, as gêmeas só observavam. Tainara olhava em especial para Dalila. Era muito intuitiva. Botava olho e dava o diagnóstico, quase sempre certo. Dalila sentiu-se bastante desconfortável com a situação.

Depois de todas as tensões, recolheram-se aos aposentos. Eduardo estava transtornado, quase choroso, sendo consolado por Nikita

- Não há o que fazer, meu bem. Lilith avisou que estaria sempre em nossas vidas. Ivan tem o mesmo olhar enviesado da mãe. Não gosto disso, já a namorada... Parece que tem uma bagagem muito grande escondida. Só parece. Mas cabe a nós impedirmos que isso nos perturbe.  

As gêmeas entraram no quarto para o beijinho de boa noite  e Tainara sentenciou:

- Pai, você sabe que a minha intuição não falha. Ok, falha, mas quase nunca. Não gostei do primo, mas gostei muito menos dela. Acho que tem idade para ser mãe dele, para dizer o mínimo. Melhor não facilitar com eles. Boa noite. 

- Ok, filhas, obrigado, tragam cá seus beijos e depois vão dormir.

- Nikita, a sociedade é dividida em 40/40/20, certo? Amanhã chame a contadora e faça uma alteração no nosso contrato. Você fica com 51%, as meninas com 5% cada uma e eu com 19%. Vamos fazer isso sem alarde. Por favor.

- Entendi o que você quer fazer. Ok. De qualquer forma vai ficar tudo igual. O que aconteceu esta noite, se de um lado força lembranças não tão boas, por outro faz com que valorizemos cada passo que demos, com fé e confiança um no outro. Foi assim que tudo deu certo e assim continuará dando. E como fomos abençoados com a chegada dessas filhas! Eu não poderia desejar que fossem melhores. Às vezes me atormenta a saudade de quando eram crianças. Que mulheres lindas estão se tornando! E você, meu querido... Você é a alma da clínica e essa grandiosidade não teria acontecido sem o seu trabalho e visão social. Nem eu poderia imaginar que pudesse ser tão feliz ao lado de um homem tão inocente; quase babaca. Meu amor por você é progressivo, para o desencanto daquela alma sem luz. Agora descanse, porque amanhã essa coisa continua.

Na manhã seguinte, quando chegava à sua sala, Nikita foi surpreendida com um buquê enorme de rosas. Não eram rosas comuns. Eram rosas colombianas lindas E um cartãozinho:

 Aquí estoy, hermanita, siempre con los ojos bien abiertos, pero abre los tuyos también. El huevo que dejó la serpiente no está solo. La mujer tiene lazos peligrosos. Precaución. P”.

                        

   

    


 [j1]

domingo, 27 de dezembro de 2020

MARGANI

 








Margani era um pedaço de mau caminho! Colega do banco onde eu trabalhava, despertava paixões em todo quadro funcional, incluindo gerentes, diretores e alguns clientes mais assanhados.

Morena meio cor de cuia, com um cabelo que se derramava dorso abaixo como uma cachoeira de piche. Os olhos, duas bolitas rasgadas de cor incerta. Um tom exótico de mel, com expressões que iam do mormaço à selvageria, mercê do momento. Era por onde começavam a sucumbir suas vítimas. E a boca... Lábios de pedir beijo, daqueles que permanentemente ensaiam a última vogal. Um bico de selfie, mesmo dormindo. Eu falaria sobre seu corpo, mas temo exagerar. Só não posso deixar de referir, que aquilo tudo se distribuía em pouco mais de 1,60m. Margani crescia na frente dos homens. Na frente, por baixo, por cima... Mas isso só fui saber depois.

Dos babões que a cercavam, poucos tinham liberdades com ela. Eu era um ungido. Por quê? Ora, porque não insistia, explícita ou veladamente, em levá-la para a cama. Era o que ela pensava e por mim estava tudo bem. Até que uma borracheira em uma festa do banco resolveu as coisas entre nós.

Naquela noite, bebíamos e dançávamos todos juntos, comemorando os resultados. Aos poucos se apartaram os grupos, juntando-se os mais próximos, apenas para conversar e rir, sem envolvimentos íntimos, uma vez que a regra tácita do banco era a não formação de casais. Como a minha atividade na agência era solitária, busquei a sacada para oxigenar um pouco o sangue. Tinha bebido um pouco além da conta. Sentei e cochilei. Acordei com a boca de Margani sussurrando e roçando no meu ouvido. “Acorda, belo adormecido, sua princesa está bêbada e precisa de ajuda”. Ela estava pior do que eu e então demos um jeito de sair à francesa. Levei-a para meu apartamento. Era ao lado do banco e não tinha que dar satisfações a ninguém. Tirei a roupa dela tendo o cuidado para não me fixar muito na obra divina e a coloquei no banho. “Hei... Você não vai vir?”. Fui. Fui alcançar uma toalha e me recolher ao lugar dos mortais. Era tentação demais! “Margani, vou fazer um chá. Tome seu banho. Depois falamos”. Como estava demorando muito voltei ao banheiro para conferir. Ela dormia encostada no box. Enrolei-a na toalha, peguei no colo e levei para a cama. Eu dormi no sofá. Fui acordado já de manhã pelo cheirinho de café. Margani estava de pé, ainda enrolada na toalha, curada e bem disposta. Eu quebrado. “Você é um anjo, João, obrigado por me aturar. Vá ao banho e depois venha tomar café”. Entrei no chuveiro e deixei que a água terminasse de me acordar. No entanto, aos agradáveis golpes d’água pelo corpo, juntaram-se duas mãos delicadas a me explorarem por inteiro. Mãos, lábios... Era uma manhã de sábado, inicio de um feriadão, que eu passei a desejar que fosse a vida eterna.

Ficamos três dias inteiros confinados resolvendo nossas coisas, à exaustão.

Na semana seguinte, porém, ela sumiu. Sumiu total, como por encanto. Demitiu-se do banco e abandonou a república onde morava.

 As coisas custaram um pouco a se ajustar. Fiquei com um sentimento amargo de perda, e com a certeza de que aquele feriadão de torrar colchões fora um prêmio de consolação pelo amigo leal que eu tinha sido. Sofri. A extensão das minhas dores, via de regra, tem seu limiar nas sextas-feiras, mas daquela vez talvez fosse diferente.

II

Dois anos se passaram. Eu vinha me arranjando aqui e ali com Alice, Verônica e nem me lembro com quem mais, mas não esquecia Margani.

Uma noite, uma sexta-feira que é quando as coisas começam ou terminam, sentado em um piano-bar, jogando pensamentos fora me deparei com ela. Estava acompanhada pelo papai. Papai com açúcar, e era uma versão especial repaginada de Margani.

Cruzamos os olhos despercebidamente como estranhos. Alguns minutos depois ela levantou-se para ir ao toalete a passo lerdo, como quisesse me jogar na cara o tamanho da minha perda. E alguns minutos depois o garçom chegou com um cartãozinho e um recado: “me liga”. Dei-me por satisfeito e fui embora. Por certo ligaria.

Margani?

- Oi querido. Preciso vê-lo, você pode? Caso possa, anote o endereço.

Era perto, mas parece ter demorado dois dias até chegar. E ser recebido pela nudez dela. Sim, é certo que havia uma toalha por cima, mas isso eu só notei depois.

- Sente. Vou me vestir.

 Quase retruquei por impulso...

 - João, eu sei que devo explicações, mas as coisas se precipitaram e tive de tomar decisões com urgência. Precisei escolher entre ser bancária ou rica. Tinha que seguir o plano que traçado desde quando morava no interior. Não podia vacilar.

 - Saí com um diretor do banco algumas vezes. Fizemos uma viagem juntos, quando ele me pediu exclusividade. Fez ofertas muito atrativas... Eu também fiz algumas exigências... Resumindo, passei de bancária moradora de cortiço a teúda e manteúda, conta com saldo rechonchudo e este apartamento.

 - Explorei a ficha médica dele e comecei a cozinhá-lo em fogo brando. Pelo que vi, tinha seus dias contados. No entanto, sequer dava sinal de fraqueza e deveria custar  “nos deixar”. Então dei um jeito de sermos surpreendidos por sua filha. Um escândalo sufocado, e ele teve de ancorar seu barco. Fiquei livre, com este apartamento e uma grana indenizatória que a filha fez questão de me dar, com medo de escândalos. Eu não faria nada, mas também não iria recusar o dinheiro.

 - É sujo, indigno, mas é o que escolhi. Agora tenho dois “namorados”. Todos “exclusivos”, com mais de 60 anos, casados, ricos e cardiopatas. Mas eu os faço felizes em seus últimos tempos. É assim que vou juntar o suficiente para viver bem e sair de cena, o que não deve tardar. Percebe?

Sim, eu percebia. Em relação aos pré-requisitos, eu não era rico nem tinha 60 anos. E talvez por causa dela também não era casado, mas provavelmente tenha contraído uma cardiopatia.

- Você foi o melhor, talvez o meu único amigo e o sentimento mais limpo e puro que eu tive. Que eu tive não, que eu tenho, meu querido. Não me restam mais lembranças boas além das nossas. Esteja certo disso e é como eu quero lembrar de você quando as coisas se acalmarem para mim. Você merece uma vida melhor do que eventualmente uma imaginada comigo. Mas fale-me um pouco de você.

Pois então, Margani... Margani... Como seu nome me faz bem! Mesmo antes daquele feriado inesquecível eu não a via como uma coisa só. Uma amiga não. Muito além disso. Era algo adormecido, entre outras coisas, uma espécie de veneração, com o que você já estava acostumada, bastava que olhasse ao redor prestando a mínima atenção. Mas se tem algo de que me orgulho é a minha percepção, em especial quando se trata de pessoas e seus lugares. O meu, definitivamente, não era ao seu lado e eu me conformava.

- Aqueles três dias, no entanto, acenderam uma pequena luz. Nem chegou a ser uma esperança, uma vez que você sempre me parecia impenetrável. Vou rir porque “impenetrável” não tem nada a ver com o que aconteceu naqueles dias. Mas me refiro a intransigência do seu foco. Você olhava longe, muito acima das nossas cabeças e era fácil adivinhar que, mais cedo ou mais tarde, o destino a levaria para longe.

- Não vou falar de amor porque as trocas que houve entre nós não tiveram esse viés, mas eu custei a esquecer você. Esquecer? Não, não é bem isso, porque eu não esqueci, e não houve um dia ou uma noite em que eu não a procurasse, das formas mais diversas. Ficou me faltando mais Margani, muito mais.

Eu sei. Acho que sei. Também sei que não vai adiantar falar para você o que vou falar agora, mas já que sempre fomos francos, ou quase sempre da minha parte. Todo aquele cuidado que você tinha comigo, carinho, atenção; sempre disponível, inclusive para me dar broncas, quase me tiraram do prumo. Eu estava caidinha por você e era uma questão vital que eu me afastasse imediatamente. Você falou em foco? Pois é. A pobreza com que fui criada, a violência e a promiscuidade familiar que presenciei merecia uma resposta, e das mulheres da minha família a única que poderia fazer alguma coisa era eu. E fiz. Jamais faria se tivesse me deixado levar pelo que estava começando a sentir por você.

- Uma pena, meu querido João, João Victor, mas amor não estava nos meus planos. Eu tinha para mim que qualquer paixão, e pode acreditar, apesar da vida que levo eu sou muito suscetível a isso, colocaria todo o meu planejamento por terra. Resisto com toda força do meu ser contra esse sentimento.

- Agora olhando para você sabe o que eu sinto? Pena. Uma pena enorme de ter objetivos tão distantes dos comuns. Acho que como parceiros tínhamos tudo para dar certo. Enfim...

Conversamos muito; rimos, mas era chegada a hora de sepultar em definitivo a saudade. E quanto menos apoteótico o fim, mais fácil haveria de ser o inevitável luto. Peguei Margani pelas mãos, nos levantamos, nos olhamos fundamente para além de nossas pupilas e nos perdemos no tempo abraçados. Levemente nos separamos para nos olharmos, e eu me dei conta de que aquela boca vivia pedindo beijo, mesmo dormindo. Quando sussurrava então era fatal...

 -Você acha que devemos, João?

 Eu não achava que quanto menos apoteótico o fim, mais fácil se tornaria o luto?

 - Você está certa. Vou embora.

Abraçamo-nos novamente para que eu levasse no corpo aquele cheiro de xampu e água de colônia caros; no peito a pressão do volume diferente do peito dela, que tinha uma firmeza acima do natural, sinal que havia sido trabalhado. Despedimos-nos sem promessas, nem de voltarmos a nos ver, sequer nos ligarmos. Seguiríamos os destinos que ela escolhera.

Saí carregando no coração aquela cova que viera rasa, e agora estava um pouco mais funda e escura, uma voçoroca onde seria sepultada a nossa história. A saudade até então fora engraçada porque não doía. Era um desconforto fisiológico tipo uma fome ou uma sede eventual. Porém permanente. Mas tive a impressão que nessa nova fase ela seria chorada, ao menos até a próxima sexta-feira ou duas sextas-feiras. Ficou faltando mais Margani, muito mais!

E... Prestes a completar 30 anos, achei que era hora de dar um rumo diferente à minha vida. Era sábado, perto do meio dia. Mesmo assim fui ao banco. Sempre havia alguém trabalhando por lá, além do que, a minha condição funcional me dava algumas prerrogativas.

Sentei na minha cadeira, para elaborar a situação e ajustar os neurônios. Abri uma gaveta e retirei de lá uma caixinha. Originalmente era uma caixinha de relógio, mas eu tinha ali guardado uma pequena semi jóia. Era um brinco solteiro. Seu par deve ter permanecido na orelha de Margani, dois anos antes, e como não tinha um grande valor material, provavelmente tenha sido descartado. Eu o guardava com se guarda um tesouro ou algo mais. Era o meu pico do Everest. Eu achava isso mesmo: era o meu Everest, pois se tratava de uma grande conquista, porém inútil.

Escrevi a minha carta de demissão e a enviei para a matriz. Só seria lida na segunda- feira, certamente. Mercado de trabalho não me faltaria e, anos a fio sem férias, talvez estivesse merecendo alguns meses de folga.

III

Se a vida, na velocidade dos dias atuais muda em um mês, em doze anos passa a ser outra vida; o mundo é outro habitat com personagens novos e situações muito diversas.

 Eu tenho por hábito, salvo exceções, acordar cedo no domingo. Ler notícias, tomar chimarrão, depois sair por aí, ou fazer uma comidinha.

 - Papai, você prometeu me levar ao parque

 - Sim, filhota. Vamos, venha tomar seu lanche e depois vamos arranjar alguma coisa para o almoço.

Margani tinha cinco anos e éramos só nós dois. Sua mãe tivera muitas complicações durante a gestação e não resistiu ao parto. Não éramos casados, sequer tínhamos uma relação sólida, mas quando soube de sua gravidez, trouxe-a para morar comigo.

O nome de minha filha, por óbvio, foi escolha minha, com a concordância da mãe que se limitou a dizer “Que estranho! Meio exótico, mas gostei. Diferente de tudo o que ouço”. Mas estão mais que evidentes os motivos da escolha

Os finais de semana eram todos integralmente de minha filha, já que a semana inteira eu vivia sob o fogo cruzado da atividade comercial, com o agravante de algumas viagens Margani tinha uma babá que a criava como filha e era chamada por ela de mamãe preta. Justina era uma senhora enorme e tinha de ser mesmo, porque não fosse aquele tamanho, talvez não houvesse espaço para caber um coração tão grande.

Quando eu precisava viajar, Justina se mudava para minha casa. E tanto aconteceu isso que acabei trocando o apartamento por outro um pouco maior, com um anexo, na periferia da cidade onde ela passou a morar. Para a minha felicidade e de minha filha. Tendo Margani e Justina ao meu lado eu não tinha a menor intenção de formar uma nova família. Aliás, eu já tinha uma família. Era aquela.

IV

Eu estava em São Paulo, era uma convenção em Atibaia, em um hotel praticamente entregue à companhia para a qual trabalhava. Apenas alguns hóspedes eventuais e estranhos circulavam e que víamos esporadicamente em uma e outra saída pelo saguão, uma vez que o tempo era escasso e o trabalho muito intenso.

Apenas à noite tínhamos folga para relaxar, beber alguma coisa e jogar conversa fora. No entanto, não nos estendíamos muito porque na manhã seguinte o pau pegava e era preciso estar esperto.

- João, amanhã encerra a convenção e ninguém é de ninguém. Nossa coleguinha pernambucana faca na bota não me escapa. Você já sabe onde vai largar sua rede?

Sei. Estou de olho em uma gatinha maravilhosa. Ela não perde por esperar.

 - Ah, deixa de brincadeira... Maravilhosa, maravilhosa não tem nenhuma. Onde conseguiste isso? É a gerente do hotel?

 - Nada disso é uma gatinha chamada Margani.

 - Você é um camisoludo mesmo... Quero ver quando ela chegar para você e disser: “papai, esse é o Ricardo...”

 - Cachorro! Nem me diga. Não me faça sofrer por antecedência.

 Na sexta-feira as cordas afrouxaram. Era encerramento de convenção e as coisas tendiam a ser festivas como sempre. Receberíamos algumas pessoas, fariam alguns discursos e a tarefa de finalizar o evento era minha. E eu falaria no máximo cinco minutos, distribuídos entre alguns vídeos.

Tivemos uma apresentação teatral que dramatizava a nossa atividade. Genial! E o agradecimento do hotel, com a palavra de sua gerente. Então eu fui ver o que quis dizer o meu colega sobre a tal moça. Uma mulher classuda, que  quando falava soltava borboletas coloridas e sensuais no ar. “Nossa! Tem razão aquele cachorro”

Mas não via a hora de chegar em casa, abraçar e beijar a minha gatinha. E faltava muito pouco.

 - Oi Justina, tudo em ordem por aqui?

 - E não vai estar, seu Joãozinho? O senhor tem um anjo em casa.

- Tenho dois, Justina. Dois, um de cada cor. A minha mala é com você, eu quero a minha filha.

E me fui ao quarto dela que me esperava escondida dentro do roupeiro. Nada, mas nada mesmo pode ser melhor do que um abraço de criança.

- Seu Joãozinho, tem uma carta aqui para o senhor. Estava dentro da mala.

- Ué...

“Meu querido... Faz tanto tempo! Você não me viu, mas eu vi você e vi durante cinco dias, mordendo os lábios para não procurá-lo. Aliás, você me viu, mas não me reconheceu. Acho que até achou interessante a gerente do hotel. Só que mais de dez anos depois, luz difusa, cabelos curtos e de outra cor, além dos óculos eu o perdôo por não ter me reconhecido. Agora, porém, você sabe onde eu estou. Sei que é um risco, mas espero que esta cartinha não seja aberta por mãos indevidas. Saudades. Margani”

 - Caralho!

- O que é isso papai!

 - É isso mesmo, seu Joãozinho. O senhor tenha modos!

 - Desculpem.

 - Filha, traga a chave de casa do papai.

 Eu queria era o chaveiro, que nada mais era do que o brinco solteiro de Margani, prensado entre duas lâminas acrílicas.

O que terá havido nos planos dela para acabar gerenciando um hotel? Era um cinco estrelas e ela deveria estar bem, mas seus planos eram de ser cliente desses espaços e não trabalhadora deles. Isso não poderia ficar assim. Eu precisava vê-la e com urgência. Tinha tantas coisas para falar. Estaria casada? Ou com um ou dois namorados velhos, ricos e cardiopatas? Ela não estava prestes a se aposentar, doze anos atrás?

 “Preciso voltar ao centro. Ao meu centro”.

 - Justina, vamos almoçar fora hoje, depois vamos ao shopping e depois vamos conversar um pouco. Preciso de socorro e muitas atenções.

 - Mas o que houve, seu Joãozinho? Notícias ruins?

 - Não sei, Justina... Não sei. Justina, há quanto tempo você trabalha aqui? Três anos? E nunca tirou férias?

 - Cruz credo, seu Joãozinho! Eu lá preciso de férias? Moro no paraíso, cercado por anjos e o senhor quer me dar férias? Está de mal comigo?

 - Não, querida. Bem, é o seguinte: semana que vem a Margani entra nas férias de julho, então nós três vamos fazer uma pequena viagem. Será a nossa viagem de férias. Avise os seus parentes.

 - Mas aonde nós vamos, homem?

 - Você vai gostar e eu tenho certeza de que a Margani também.

 - Margani, venha cá. Minha filhinha, quantas coleguinhas você conhece com o seu nome?

 -  Nenhuma, papai.

 - O que você acha de conhecer alguém com o nome igual ao seu?

 - Só se ela for bonita e legal como eu.

 Combinados e de malas prontas seguimos viagem alguns dias depois.

 V

- Bom dia, tenho uma reserva de dois quartos.

 - Sim. Senhor João Victor? Preciso do nome das outras pessoas.

 - Essa é Justina da Silva e essa é minha filha Margani.

 - Margani? Nossa! É o nome da nossa gerente. Nunca tinha visto um nome igual. Linda a sua filha, parabéns, senhor.

 - Eu sei e ela também sabe. Obrigado. Sua gerente está?

 - Não. Ela está em tratamento. Acho que não vai aparecer por aqui hoje.

 - Tratamento? De que?

- É complicado, senhor, não tenho autorização para revelar. Mas fique à vontade o rapaz vai levá-los aos apartamentos.

 “Meu Deus! Preciso saber disso”

 - Meu jovem, quem está respondendo pela gerência?

 - Faltou alguma coisa, senhor? Posso ajudá-lo?

 - Pode. Apenas me diga quem responde pela gerência na ausência da gerente e onde posso encontrar?

 - Bom dia, senhor, às suas ordens.

 Convidei o rapaz que se apresentou como responsável para conversarmos em um lugar reservado, e comecei explicando o que me trazia ali.

 - Eu sou amigo de sua gerente. Fomos colegas há muitos anos e ela me mandou uma carta dizendo que estava aqui. Trouxe comigo a minha filha, que também se chama Margani, e sua babá para conhecê-la. Diga-me como faço para encontrá-la?

 - Bem... Dona Margani é sócia do hotel e muito reservada. Ela é viúva e mora aqui mesmo, mas está em tratamento e não temos autorização para falar a respeito. No entanto, posso avisá-lo quando ela retornar.

 - Diga-me, por favor, que tipo de tratamento ela faz?

 - Senhor... Eu acho que é leucemia. Por favor, preserve o meu nome.

 - Fique tranqüilo. Só quero vê-la e quero que conheça minha filha. Fará muito bem a ela.

 As horas passavam cheias de angústia. Não para Margani e Justina que se perdiam entre brinquedos e outras atrações do hotel. Como não se cansavam? E Justina, com todo aquele peso...

 - Senhor. Dona Margani chegou, mas acho que o senhor deve dar algum tempo para ela. Deixe passar um pouco e ligue para esse número.

 - Certo. Muito obrigado. Isso é segredo nosso. Vou lhe fazer mais um pedido. Quando ela pedir serviço de quarto, mande entregar este chaveiro junto com uma rosa. Tem rosa por aqui?

 - Sim. Pode deixar que providencio.

 Passei a aguardar ainda mais ansioso. Como seria a reação dela?

Passou aquele dia que teve nada menos que 72 horas. O tempo? Vivi cada segundo sufocadamente. Justina e Margani... Nem queriam saber de mim. Ainda bem.

 - Alô...

 - Margani? É João. Quero vê-la agora. Pode ser?

 - Venha. Estou lhe esperando.

 - Justina, vou me ausentar um pouco, não se preocupe, estarei pelo hotel.

 - Acho que sei muito bem o que o senhor vai fazer e o porquê viemos, seu Joãozinho. Olhe lá...

 Margani parecia debilitada, cansada, mas... Como era linda! Na verdade não sei se ainda era como fora um dia, mas os olhos com que eu a olhava eram únicos e só para esse fim.

 - João Victor... Meu querido João... Venha cá me abraçar. Veio buscar o seu chaveiro?

 Alguns abraços têm a função de mosaico. Misturam pedacinho por pedacinho de sentimentos soltos que, mesmo os contraditórios, acabam se harmonizando e formando um cenário sem nome; sem explicação. É por isso que as palavras, por um tempo de corpos aglutinados são dispensáveis.

 - Puxa... Não sei o que vou dizer; o que vou fazer... Fale algumas coisas. Fale de você, por favor.

 - Sim. Falo. Vou começar de trás para diante. Reconheço que amei, amo e enquanto viver vou amar você. Está bom assim?

 - Isso só piora as coisas. É horrível saber disso agora, mas continue. Sei que tem coisas muito sérias para me contar.

 - Sim. Eu já sei que você foi informado sobre a minha situação. Meu pessoal não consegue esconder nada de mim. Estou chegando ao fim, meu querido. Com muita sorte terei um ano pela frente.

 - Meu Deus... Não pode ser verdade isso. Algo tem de ser feito.

 - Não. Nada mais pode ser feito. Já fiz transplante de medula e a coisa recrudesceu. Não tem volta, infelizmente. Um pouco dos pecados que devo estou pagando e pagando mesmo. Muitos dos recursos que juntei já foram consumidos com a doença. Foi o preço e não me queixo. Mas soube que você já tem a sua Margani. Deus do céu! Chorei muito, muito mesmo quando soube. Não repare o meu egoísmo, mas fiquei muito feliz em saber que você não me esqueceu. Que história essa nossa! E como poderia ter sido diferente... Olhe aqui o outro brinco. Eu não sabia que você tinha “roubado” o par, mas guardei o outro comigo. Acho que vou acabar fazendo um anel. Você está casado?

 - Não, não casei. A Margani é órfã. A mãe faleceu no parto. Tem uma babá, no entanto, que vale por duas mães.

 - Sinto muito por isso. Sim. Já me informei. Justina. Você vai me deixar conhecer sua filha?

 - Claro. Veio junto justamente para isso. Perguntei se ela gostaria de conhecer outra Margani, já que é única entre suas amiguinhas, e sabe o que ela me respondeu? “só se for bonita e legal como eu”. Lembra você em esperteza, a minha loirinha. Você pode vê-la amanhã?

 - Certamente. Vou estar recomposta.

 Ao nos despedirmos, mais abraços e eu fiz o que deveria ter feito as outras raras vezes que nos vimos: beijei longamente aqueles lábios que viviam pedindo beijo.

 - Bom dia, Justina, dormiram bem? Traga a Margani aqui na recepção.

 - Oi papai, quem é essa sua amiga?

 - Minha filha, pergunte a essa moça como é o nome dela.

 - Como é seu nome?

 - Margani e o seu?

 - Margani é o meu. Mas você é bonita e parece legal. Acho que também pode ser Margani.

 - Posso abraçar você?

 As Margani se abraçaram. Uma delas começou a chorar... A seguir chorou muito e estava sendo consolada pela outra quando eu fui ao banheiro. O quadro era insuportável demais. Voltei com os olhos intumescidos. Justina só observava. As outras duas continuavam abraçadas, com minha filha consolando sua nova amiga.

Margani se recolheu. Fora demais para ela e precisava descansar. Pediu para conversarmos à noite

- Seu Joãozinho, que história é essa? O senhor pode me contar?

- Posso, meu anjo. Preciso. Vamos ao play ground onde Margani possa brincar.

- Justina, você já se apaixonou alguma vez?

- Claro, não é seu Joãozinho. Eu não era um piteuzinho, mas vinte anos atrás também não tinha 100 quilos. Eu e “nego” Edu tivemos nossos momentos.

Contei em detalhes para Justina minha história com Margani, disse quem ela era, porque nunca ficamos efetivamente juntos e como ela estava hoje lidando com a doença.

- Minha nossa senhora Aparecida! Isso é uma novela! E o que o senhor vai fazer agora?

- Não sei. O que vou fazer não sei. O que eu quero fazer eu sei, mas não sei se vou poder; não sei se terei tempo de fazer.

- O senhor me desculpe a intromissão, seu Joãozinho. Eu sei que o senhor é ajuizado e não vai fazer nada que possa atrapalhar o futuro da nossa Margani. Nem precisava dizer isso, desculpe, mas a situação é diferente. Tem amor, doença séria... Tenha cuidado.

- Sei de tudo isso. Nesses dias vou precisar muito de você com a minha filha. Quero dar o máximo de tempo para a outra Margani.

Durante dez dias ficamos no hotel. Minha filha adorou a nova amiga, que fazia passeios diários pelas atrações do local até cansar; levava-a ao escritório deixava que ela mexesse em tudo. Margani usou com a minha filha sua velha e infalível arma: a sedução. Quem as visse, a partir do segundo dia, diria que eram mãe e filha.

Ela também tinha um filho, era autista e morava com os avós, a quem visitava diariamente pela manhã. Ultimamente andava espaçando as visitas, a fim de que o menino se acostumasse com a sua ausência.

Justina finalmente tirou férias, mas andava como uma ciumeira bárbara da nova relação da pequena.

E Margani e eu tivemos, enfim, a nossa lua de mel. Naqueles dez dias dormi apenas a primeira noite em meu quarto. Foi um período de muito amor. Sem a paixão incendiária de quando éramos mais jovens, mas com um sentimento maduro, intenso e angustiado. Sabíamos que novamente não haveria possibilidade de planos futuros e agora nem que quiséssemos.

Mas a nossa vida sempre foi uma permanente despedida. Era chegada a hora de ir embora e houve muito choro. As Margani apegaram-se de tal forma que dava pena afastá-las. Até Justina, apesar do ciúme, choramingava na despedida.

- Papai, por que você não casa com a tia Margani? Ela me disse que gosta de você e aí você fica com duas.

Rimos... Rimos para voltar a chorar. Foi uma despedida trágica.

De volta à casa, tudo era triste. Não parecia termos saído de férias. Parecíamos vindo  de um velório, o que não é de todo um equívoco.

 partir dali todas as noites a seguir eu tirava ao menos uma hora para namorar. Ligava para Margani e ficávamos feito dois adolescentes deslumbrados um com o outro. Estávamos em fase de negação da doença e isso até que nos ajudava a enfrentar o problema.

Um mês, dois meses de namoro à distância. Resolvi visitar Margani. Era muito sofrimento querer tocar, beijar, amar... E nós não tínhamos mais idade de ficarmos de longe apenas nos seduzindo. Nem idade, muito menos tempo. Precisava vê-la.

- Justina, terça-feira é feriado. Vou viajar domingo de noite e você sabe para onde, portanto trate de engambelar sua “filha”. Não diga para onde eu vou, porque senão teremos problemas, você sabe.

- Pode deixar, seu Joãozinho. Só um instante, vou atender ao  telefone.  

Justina me chamou com um tom de voz apreensivo.

- Seu Joãozinho é para o senhor. Parece que é de São Paulo.

- Ok. Quem fala?

- Senhor João Victor? É de Atibaia. Não tenho uma boa notícia para lhe passar, mas é minha obrigação. Infelizmente dona Margani não resistiu ao tratamento e foi a óbito. Faleceu ontem à noite, às 22:00.

- Deus do céu! Mas como é possível? Ontem à noite falamos ao telefone, a essa hora ou perto disso. Ela parecia bem. Meu Deus...

- Então ela falava com o senhor, porque faleceu com o telefone na mão e o bilhete pedindo que lhe informássemos. Sentimos muito. Estamos todos muito sofridos, embora soubéssemos que era uma questão de tempo. Fique bem, senhor. Até logo.

- Justina eu vou no primeiro voo que achar para São Paulo. Não me pergunte mais nada.

Cheguei a tempo de mais um adeus. “Por que nunca insisti com você, Margani? Como dói isso... Por que teve de ser desse jeito?”.

Parecia serena, com um leve sorriso naqueles lábios que estavam sempre pedindo beijo, mesmo depois de morta. Pedi licença aos familiares, peguei a mão dela, empurrei um pouquinho mais o anel do seu dedo esquerdo, anel que já fora um brinco, e coloquei uma aliança de ônix. Uma pedra que para mim passou a ter um significado além dos que pregam os místicos: o luto. Igual a esta que uso. Era o que eu não tinha certeza de que poderia fazer; se teria tempo de fazer, como havia dito à Justina, mas não deixaria o destino atrapalhar os meus planos e me negar aquele casamento, por mais mórbido e sem sentido que pudesse parecer. Não daquela vez.

Margani e eu vivemos de nos despedir até que a morte o fizesse em definitivo. Beijei-a nos lábios, agora frios e inertes, e fui embora. Sim, era uma sexta-feira, dia em que tudo começa ou termina. E daquela vez eu já não sabia de quantas outras precisaria para elaborar a dor.

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sexta-feira, 3 de julho de 2020

EROTILDES









Dona Erotildes andava sempre bem vestida. Mulher altiva, discreta, uns trinta e poucos anos. Não chegava a ser de uma beleza estonteante, mas tinha um corpaço e um par de coxas que tirava o fôlego. Dava para ver pelo desenho que se via naquele vestido justo de Jersey que colocava quando saia de vez em quando às tardes e deixava o homerio com os queixos perto do joelho, ao passar. Transpirava sensualidade. Mas nada haveria de ser igual ao que se imagina por detrás daqueles panos. “É pintosa, a balzaquiana”, minimizavam as tias de nariz torcido.

Solteira, vivia do seu ofício e talvez contasse com a ajuda de um parente que se dizia primo. Seu La Garça, que era bancário e a visitava duas vezes por semana, às vezes três.

Costureira de mão cheia, diziam. Fazia suas próprias roupas, sempre orientada pelas revistas de moda, ou pelas chiques que posavam em “O Cruzeiro“. Tinha várias clientes, e Julio, adolescente, com tanta espinha na cara quanto vergonha e as mãos cobertas de pelo, muito por causa dela, fazia entregas de bicicleta por meia dúzia de pilas. No entanto, o “prêmio” maior era estar por perto, quando aproveitava para frestear pelas portas entreabertas da casa, na esperança de flagrar pernas também entreabertas.

Alguns dias antes do aniversário de Julio, Dona Erotildes resolveu lhe dar um presente.

- Vem cá, vou tirar tuas medidas. Vais ganhar uma camisa e uma calça de aniversário.

Mediu o pescoço, tamanho das mangas “estás crescendo, guri, estás quase um homem”. E Julio estaqueado, afinal deveria ser quase um homem mesmo. Quase, porque entre outras coisas, além dos ralos pelos que vertiam no rosto, uns duelando por espaço entre as espinhas, e os pubianos que ainda mal se enroscavam, sexo apenas manipulado. Ainda era "autossuficiente". A ovelha do tio Bonifácio não contava.  

Mediu a cintura, o comprimento da perna e altura do fundilho. E foi nesse momento que o guri extrapolou a vergonha. Mal dona Erotildes roçou a braguilha dele com o dorso da mão, o membro inocente, que até ali permanecia amordaçado, mercê de muita concentração e respiração cachorrinho, intumesceu-se, inchou, perdeu o controle, não parava de crescer e ele, atônito, sem saber o que fazer, saiu correndo porta à fora.

Julio ficou um tempo sem aparecer. Chegava do colégio e se encerrava no quarto. Até o dia do seu aniversário.

Pai e filho moravam sozinhos. A esposa e mãe falecera há alguns anos e eles não tinham ânimo para festas. As tias mandavam bolo, doces, presentinhos e tal e eles se esbaldavam por uns dias.

- Dona Erotildes deixou esse pacotinho pra ti. Deve ser um presente. Tens que ir lá agradecer.  

Julio desconfiava do que era, então tomou seu banho e foi experimentar a camisa e a calça nova ganhas. Perfeito. Quase. A calça ficou um pouco apertada nos fundilhos, afinal ela tinha terminado de fazer “a olho”, já que ele “perdera a cola” enquanto ela tirava medidas, mas de resto, ótima. Então era hora de enfrentar as vergonhas. Foi agradecer o presente vestido com ele.

- Ora, ora... Apareceu o rapazinho... Deixa ver... Ficou bem, um pouco justa aqui embaixo, deve incomodar. Tira que eu arrumo.

“Puta que pariu!” – Vacilou

- Eu sei por que estás com vergonha. Achas que eu nunca vi um homem pelado antes? Vi e aposto que bem mais “documentados”.

Após algumas negaceadas Julio tirou a calça e se enrolou na cortina.

- Deixa de frescura, guri, senta ali.

“Então foda-se”, pensou. Sentou e ficou contemplando o mulherão sentado à máquina, de frente para ele, com as pernas entreabertas.  E quem diz que o “bicho velho” manipulado baixava a cabeça?

Enquanto dona Erotildes trabalhava, ele ficou lá sentado no sofá com uma estaca latejante entre as pernas. Barraca armadíssima. Vez por outra ela olhava de canto de olho e dava um dissimulado sorriso.

- Pronto. Vem cá.

Vacilou um pouco, mas foi. De pau duro mesmo. “Foda-se!”

- Não vai dar para experimentar com esse negócio duro. E eu acho que te subestimei, por isso ficou apertada. Estou curiosa, posso ver? Já “usaste” o amiguinho aí alguma vez?

- Usei só em casa – O pobre guri estava vermelho de vergonha, potencializada por derrames de testosterona. Nem se mexia.  

Sem cerimônia, ela baixou a cueca dele, ficou olhando, talvez surpresa, então pegou o membro com uma das mãos e começou a acariciar mansamente. Molhou as mãos com a língua e continuou a massagem.

- Fica calmo. Eu sei o que tu queres há muito e acho que é hora dar um passo adiante na tua formação. 

Então aproximou os lábios do cabeçote carmim, deu algumas mordiscadas, depois lambeu e passou a usar a língua e a boca em movimentos delicados. “Como assim céu e inferno são lugares distintos?” – pensou o grumete.

- Agora vem cá. Vais ganhar outro presente.

Dona Erotildes levou Julio ao quarto onde deitaram e retirou o resto das roupas que tinha feito. Enquanto também se despia, continuava aquele trabalho maravilhoso que fazia com a boca. 

Ele, no entanto, continuava estático, da mesma forma que deitara. Dona Erotildes, já satisfeita das preliminares se foi à montaria, tendo o cuidado de ajeitar o pino. Assim Julio pode ver melhor o que de fato se escondia por detrás daquele vestido justo de Jersey. Coxas, muitas coxas... Tetas fartas, mamilos enormes e o resto... Ela tinha também um leve sorriso nos lábios.

Ficou lá, como se anda a cavalo, primeiro ao passo, depois a troque curto. Com o acelerar do trote, as feições dela foram mudando, o sorriso esmaecendo, os olhos se revirando, os gemidos desafinando e trocando de tom. O suor começou a tomar conta do seu corpo até que veio o galope. No auge das cavalgadas, dona Erotildes puxou Julio ao seu encontro e esmagou seus lábios nos dele com fome. O coração dela dava saltos que pareciam esbofetear as peles justapostas. Então um frêmito final, comprimindo seu corpo... E foi se soltando aos poucos, retomando à normalidade. E ele? Bem, ele estava tão assustado, surpreso, afinal a virgindade só se perde uma vez, que apesar da excitação toda, travou. Era um obelisco intumescido plantado sobre uma laje.

Quando desmontou, dona Erotildes tratou de acalmar o guri:

- Foi apenas um bloqueio, talvez pela surpresa. Por sorte não aconteceu o contrário. Agora fica bem relaxado que vou dar um jeito nisso.

Dona Erotildes escorregou para os pés da cama e veio massageando as pernas do Julio com o seu instrumental erótico: mãos, língua e lábios... Até chegar ao obelisco, e lá repetiu aquelas maravilhas que o fizeram juntar céu e inferno. Uma massagem delicada com as mãos, contorcionismos linguais, labiais, algumas mordiscadas e engolidas. Aquilo sim era um presente de aniversário!

Na linha tênue que ele identificara entre o céu e o inferno havia um vulcão em permanente ebulição e que a qualquer momento eclodiria. Dona Erotildes sabia disso, recebia os sinais latejantes em seu instrumental erótico e tremores da estrutura, e começou a acelerar os movimentos manuais e labiais. A erupção trouxe, por fim, uma lava incandescente, densa e farta. E foi tanta, que não coube na boca de dona Erotildes, sobrava pelos cantos dos lábios. Pensou um pouco antes de quase desfalecer “Nossa... Credo!”

E assim como estava ficou. Viu dona Erotildes levantar e ir ao banho, ouviu o barulho do chuveiro, tudo muito longe, muito vago, demorado... Estava momentaneamente morto. 

Quando voltou, dona Erotildes vestia um chambre vermelho que contrastava bem com seu cabelo preto ainda molhado, e a pele alva.

- Vai tomar teu banho, está ficando tarde.

Foi flutuando em uma nuvem. Abriu o chuveiro e deixou que a água fizesse o trabalho de recuperá-lo. Banho longo, reconfortante... Enrolou-se em uma toalha e foi procurar as suas roupas.

O cenário que Julio viu ao sair do banheiro era o seguinte: dona Erotildes recostada na cabeceira da cama, meio de lado, com uma cara de paz e felicidade.  Chambre vermelho entreaberto, com um dos seios mamiludos e uma perna inteira de fora. Ora... Não demorou nada para que o pau da barraca se erguesse, a toalha caísse e ele se jogasse sobre a cama como burro no azevém. No entanto, antes que chegasse ao umbigo ela o impediu, colocando as pernas sobre os meus ombros. 

- Calma. Está na hora de conheceres melhor a tua nova amiga. É alguém que vai te dar muito prazer durante a vida, mas um homem de verdade tem que saber retribuir. Lembra daqueles carinhos que te fiz com a boca, não é mesmo? Então faz de conta que tem um pauzinho escondido aí na periquita e deixa a tua língua procurar. Talvez custe a encontrar, mas quando chegares perto, meu corpo te dará sinais.

No roteiro original, na linha dos olhos de Julio estavam aquelas maravilhas dispostas da cintura para cima. Agora era o umbigo e foi por onde ele começou a distribuir beijinhos. Passou pelo ao baixo ventre sentindo o perfume de banho recém tomado com notas almiscaradas, e a pele com pequenos arrepios. 

O clima entre ambos parecia de completa entrega e cumplicidade, e ele já estava bem à vontade. Ao  alcançar a vulva, sentia-se quase um veterano, sabendo exatamente o que deveria ser feito. Quando sentiu o primeiro tremor dela constatou “é por aqui...” E por ali ficou lambiscando, ora firme, ora delicadamente e os tremores, gemidos e suores aumentando. Ela deveria estar curtindo muito aquilo porque em determinados momentos quase enfiava a cabeça dele para dentro dela. Foi em um momento extremo desses que ela o puxou para cima. Mas Julio não se jogou. Foi subindo lentamente deslizando seu corpo sobre o dela, até que o membro encontrasse sozinho a sua parceria profunda e misteriosa, e penetrasse sem atritos por entre suas paredes ensopadas.

No roteiro adaptado, chegara a vez de Julio andar a cavalo. E montou... Primeiro ao passo, depois a trotes curtos, com muitas trocas de carinhos e olhares... A seguir trotes mais duros, com os lábios se esmagando em confronto... E então uma cavalgada frenética em busca de um fim, quando as bocas foram liberadas para a emissão de sons indecifráveis, variados e desafinados, até ultrapassarem juntos apoteoticamente a linha de chegada. Que final!

Caiu um para cada lado, mas ela não o  deixou morrer de novo.

- Está tarde. Coloca a tua roupa e vai. Teu pai deve estar preocupado. Outro dia a gente continua.   

Julio pensou “outro dia é amanhã”, invertendo o ditado popular. Olhou o relógio da cabeceira. Dez horas da noite! “Puta merda! Fui...”

Ao chegar, Julio encontrou o pai na porta, usando a sua feição mais inquiridora. 

- Onde andava o rapazinho? Mandei agradecer o presente e desapareceste?

- É. Fiquei conversando com dona Erotildes.

- Quatro horas dá uma boa conversa. Bueno... Tem janta na Frigidaire. Já comeste?

- Muito.

E se recolheu. Não era hora para conversinhas. Foi um aniversário para a posteridade, uma vez que a primeira ejaculação assistida a gente não esquece. E dona Erotildes conheceu o quanto é dura e insaciável a natureza de um adolescente.

É certo que, apesar de magro e alto, Julio era um guri. Acabara de completar 14 anos, mas uma coisa também precisava ser dita: ter feito gozar com direito a bis a mulher que era o sonho de consumo do homerio da zona, inclusive do pai dele, que mal disfarçava isso, o colocava pau a pau com eles, com vantagem a seu favor. No entanto, ninguém precisaria saber disso. Só ele e dona Eroltildes. 

O improvável casal passou a ter longos finais de tarde e algumas noites de trocas galopantes. Durou mais ou menos 5 anos, até Julio  sair da sua cidade e ir cumprir com o seu destino. Ir embora não foi uma decisão fácil, mas sua generosa parceira, mesmo que também a contragosto o aconselhara: “Vai. És jovem e precisas construir um futuro para ti. Quando sentires saudades daqui olha para dentro,  não para trás”.   

Nunca contou essa história para ninguém, exceto para seu pai, que num dado momento arrastou tanto a asa para a vizinha que até pensou em desposá-la. Então foi obrigado a abrir o jogo, implorando sigilo.  O velho não pareceu chateado, só o chamou de “filho da mãe” e, ao contrário, percebeu certo alívio na cara dele, uma vez que, como nunca tinha apresentado uma namorada, chegou a desconfiar que o filho fosse fresco. Ocorre que Julio só tinha olhares e demais sentidos para dona Erotildes, suas saliências, suas redondices cheirosas de banho recém tomado com notas almiscaradas, e sua boca mágica.    

Depois que Julio foi embora passou quase dez anos sem aparecer. Certo dia seu pai o chamou porque tinha alguns exames para fazer e estava precisando de ajuda. Então retomou o velho caminho que há muito não trilhava. Voltou à terra!

Nada era mais a mesma coisa. As pessoas, as lojas, as ruas e praças tudo modificado. Soube pelo pai que seu La Garça, que já tinha viuvado ainda no tempo em que ele estava por lá, resolvera assumir a dona Erotildes e que tinham até um filho.

- Um filho?

- É, mas todo mundo desconfia que não seja do La Garça, embora tenha registrado como seu e o trate com extremo carinho. O guri tem tudo do bom e do melhor. Todo mundo desconfia, menos eu.  Estranhamente, ou não, o meu velho amigo parou de me cumprimentar. Nem me olha na cara. Claro... Papagaio come milho e periquito leva a fama. Por sorte se mudaram daqui. Moram na casa dele, no centro. O guri é muito parecido contigo. Mas atenção: deixa quieto. São veteranos, vivem bem e até onde eu sei é uma família feliz.  Não te mete.

- Puta que pariu!    

Julio estava aturdido com a notícia. Precisava ajustar o prumo. Havia combinado uma cerveja com alguns amigos remanescente no fim da tarde e se foi à praça.

Cumprimentos, abraços, gritarias adjetivadas... “fiadaputa” pra cá “fiadaputa” pra lá... Essas coisas de amigos jovens. Às garrafas tantas daquela restauração de saudades, percebeu um casal que sentara em um banco próximo. “Ora, ora, vejam só... A nova família La Garça!” E tinha um menino ao lado dela, provavelmente o filho. A primeira vista e de longe, as informações de idade correspondiam, faltava conferir de perto as feições. Como havia prometido ao pai, não haveria de causar transtornos, mas é óbvio que iria conferir. Nada o impedia que os cumprimentasse, e era até educado que o fizesse.  Então pediu licença um instante ao grupo e forçou uma casualidade. Deu uma volta por traz do banco e passou na frente da família.

- Olá, mas que surpresa! D. Erotildes, seu La Garça... Quanto tempo? Prazer em vê-los. Que gurizão lindo, parabéns!

Dona Erotildes riu com satisfação, mas seu La Garça mal mexeu a cabeça em um “boa tarde” grunhido e mastigado entre mandíbulas cerradas.

- Olá, como vais, Julio? Muito tempo mesmo. Obrigada, prazer também em revê-lo. Juliano cumprimente o amigo da mamãe.


domingo, 10 de novembro de 2019

ELIZABETH ROSEMOND TAYLOR






Liz instalou-se no imaginário coletivo de homens e mulheres, cinéfilos ou não, a partir dos anos cinquenta como uma pasta 
compartilhada de lindas imagens. Houve quem dissesse que tenha escalado a grande e viscosa montanha hollywoodiana fincando estacas com seus olhos incomuns, encravados em lousa de alabastro. Cor indefinida, formato e a expressão únicas. Digo que não basta somente ter olhos lindos, há que saber olhar, e Liz sabia, nasceu sabendo. Era um rosto que foi, ao longo de décadas, modelo da mais perfeita arquitetura humana. 

Liz tinha como esporte favorito o casamento. Entre uma e várias "ficadas", casou oito vezes (bem mais do que eu), inclusive, entre um porre e outro, duas vezes com o Burton, que conhecia muito bem as preferências da musa. Ao invés de flores, costumava oferecer-lhe joias. Coisa pouca, como o diamante Krupp, de 33 quilates, ou a pérola La Pelegrina, a mesma que o Rei Felipe II, da Espanha deu a Maria Tudor, no século XV.  Mimos. 

Mas não foram somente seus atributos faciais que fizeram dela um ícone. Foi uma grande atriz consagrada por prêmios máximos da Academia. Um por “Disque Butterfield 8” (60) e outro por “Quem tem medo de Viginia Wolf” (66). E há no largo de sua carreira outros tantos desempenhos que a fizeram no mínimo candidata ao Oscar.  De minha parte, talvez induzido pela música, o que mais me marcou foi o drama Adeus às ilusões. Vi várias vezes, até me dar conta que a diferença entre ir ao Corbacho ou ficar em casa olhando um álbum de figurinhas dela, com um compacto simples rodando na eletrola, eram só as imagens. O valor da obra estava nelas. A paisagem da Califórnia, indescritível,  e os personagens, mereciam uma história de amor muito mais consistente.

O filme não decolou em função da levada monótona e penso também que pela fórmula gasta, pois a personagem Laura Reynolds (Liz) parece ser a mesma Gloria Wandrous (Liz) do Disque Butterfield 8. Talvez tenham tentado aproveitar a história que havia rendido um Oscar, de uma mulher linda e atormentada por suas convicções e paixões desencontradas em busca de amor. A arte imitando a vida. 

A música The shadow of your smile (A sombra do seu sorriso), ou para nós como no filme, Adeus às ilusões é uma poesia musicada. Para quem não conhece digo que é daquelas que nos faz respirar cachorrinho, ter contrações de cinco em cinco segundos e dilatação de quatro dedos. Inesquecível.

Liz se foi aos 79 anos, em 2011, sepultando para sempre os sonhos inocentes de algumas gerações.  Colocou névoas densas sobre Atlântico e Pacifico que carregava entre os cílios, em dias de melhor tom de azul, verde ou violeta. Com ela levou  as rugas e as deformidades naturais que eu nunca percebi.