Após
dez anos de curso e especializações, por fim Eduardo tornou-se médico. No
entanto, levaria para o mercado onde se inseria um passivo muito grande, em
função de sua dívida com o governo que lhe bancara os estudos.
Dessa
forma, a primeira providência seria abraçar as oportunidades oferecidas, e o
faria onde entendesse por melhor a relação custo/benefício.
Seus
pais haviam falecido quase simultaneamente durante o curso. Era filho único e
sua eventual amarra optou por buscar novos
ares, bem distantes: Marina. Com ela dividia livros, estudos, posteriormente
cama e apartamento, e com quem tinha planejado dividir o resto da vida. No entanto, tão logo formada mudou-se para a Austrália. Portanto, nada o prendia.
Recebeu
uma oferta de trabalho do outro lado do
país: Amazonas, quase fronteira com a Colômbia. Salário igual ao dos grandes
centros, porém, certamente com custo de vida bem menor. Não demorou muito para
decidir. Talvez o que precisasse mesmo, além de pagar seus custos, seria uma
guinada radical de vida. Marina deixara-lhe um buraco enorme no peito, e mesmo
com a pouca possibilidade de que viesse a preenchê-lo com indiazinhas, por
certo teria muito trabalho. Assim, partiu rumo a Seringal, no alto do Rio
Negro.
Três
dias depois da partida, entre aeroportos e barcos chegou ao seu destino. O
quadro na chegada era quase trágico. “Nada animador. “Anima dor... Que palavra
bem adequada”, pensou.
-
Bom dia. Preciso saber onde fica o hospital e se há algum hotel próximo de lá.
-
Bom dia. Hospital é fácil. É só subir reto por ali. Hotel mesmo só na cidade
mais acima. É perto. São três horas de barco. Mas tem pousadas por aí.
“Puta
que pariu”. Eduardo esquecera de um detalhe importante. Agradeceu e se foi.
Certamente no hospital teria informações mais precisas.
Chegando
ao seu destino foi recebido pela enfermeira-chefe. Uma jovem alta para o padrão
regional, exótica, meio indígena, mas de feição suave e marcante, e olhos estranhamente claros, quase
amarelos, amendoados, cobertos por óculos de armação grossa.
-
Bom dia, dr. Eduardo. Sou Nikita, enfermeira-chefe. Seja muito bem-vindo. Vamos
trabalhar juntos quase que permanentemente. Venha, vou apresentá-lo aos demais.
A seguir, caso necessite, conversaremos a respeito de cada um dos
colaboradores. Aviso, no entanto, que a mão de obra e as condições de trabalho
talvez não estejam à altura das suas expectativas.
-
Nikita, não é? Estranho seu nome. Apenas me apresente ao pessoal e depois
vou precisar que você me indique um lugar para morar.
-
Isso não será problema. Depois das apresentações vá ao banco. O senhor precisa
abrir a conta onde será depositado o seu salário e antes disso, o reembolso de
suas despesas da viagem até aqui.
Feitas
as apresentações, Eduardo foi até a agência abrir a conta. Não tinha combinado
o reembolso das despesas e por isso poucos recibos tinha guardado. Duas boas surpresas até agora: o reembolso e
uma colega de trabalho muito agradável e receptiva. Só não deu para ver se era
bonita, porque estava coberta por óculos, toca e avental.
-
Bom dia. Preciso abrir uma conta – disse Eduardo à atendente. Não demorou dois
segundos e saiu da salinha a gerente.
-
Bom dia. É doutor Eduardo? Venha à minha sala para conversarmos. Sou Lilith, a
gerente. Estava lhe aguardando.
“Lilith?
Quem diabos batizaria uma filha com esse nome? E que filha!”. A gerente era uma
loira, 35 anos no máximo, olhos verdes, cabelos ondulados. “Que é isso!”
-
Muito prazer, doutor, seja bem-vindo. Sua chegada era muito aguardada por nós.
Seguinte: como não havíamos definido o reembolso do seu deslocamento, estimamos
um valor entre passagens, alimentação e estadias e vamos depositar em
sua conta. Caso não esteja de acordo, por favor, converse com o prefeito para...
Veja... certamente não por acaso ele está entrando e virá falar conosco.
-
Bom dia, meu amor. E bom dia, doutor. O senhor é o doutor Eduardo, pois não? Prazer
em conhecê-lo pessoalmente. Eu sou Raimundo, o prefeito e afortunado marido
dessa belezura aí.
-
Também tenho prazer em estar aqui. O valor de reembolso está muito mais do que
adequado, em especial porque não havíamos combinado. Obrigado.
Fui informado de que há muito trabalho pela frente e já quero começar. Antes,
no entanto, preciso arrumar um lugar para morar.
-
O senhor... Vamos nos tratar por você, por favor... Você já tem onde morar. Vai
morar no nosso sítio, que fica a dois quilômetros daqui. Não se assuste. Terá total independência por
lá, uma vez que se trata de uma casa separada, distante alguns metros da casa
principal. Já mandamos reformar e pintar. Espero que esteja do seu agrado.
-
Puxa! Muito obrigado! Ok. Então vou ao hospital apanhar minhas malas e...
-
Nada disso. Nikita está com o carro do hospital aí na frente com as suas coisas.
Não se preocupe.
“Ufa!
Mas é só coisa boa que tem por aqui? Uma melhor que a outra!”
De
fato, Nikita o aguardava no carro do hospital e mais uma surpresa: o carro era
uma Land Roover, com o logo do hospital! Eduardo entrou no veículo cheio de
perguntas, mas que por certo ainda não faria. Ao chegar à casa do prefeito,
quando o portão se abriu, pareceu estar
entrando em um sítio de filme. Não achou adjetivos. Apenas olhou para sua
cicerone que lhe devolveu o olhar com um sorriso iluminador.
-
Aguardo o senhor colocar a sua bagagem e vamos até a concessionário buscar o
seu carro. Raimundo escolheu um veículo rústico porque por onde andaremos... Bem,
é melhor não falar...
Sim.
Um veículo para o trabalho estava no contrato firmado.
-
Ok, Nikita, demoro só alguns minutos. Por favor... Não me chame de senhor.
A
casa era um pequeno sobrado, bem funcional e com uma enorme sacada na parte de
cima em toda a sua volta. “Perfeito!”. Desceu e foram à concessionária buscar o
veículo prometido. Eduardo então teve sua última surpresa boa do dia: Picape
S10 zero km! Depois de todo aquele aparato, restou uma pergunta: “Mas de onde
será que vem tanto dinheiro?”. A resposta veio junto com um pequeno calafrio,
ao lembrar-se que a Colômbia ficava logo ali.
Eduardo
apanhou seu carro e recolheu-se à casa, alertado por Nikita que no dia seguinte
teriam bastante trabalho. Iriam a uma comunidade indígena a alguns quilômetros
da cidade. Mal acabou de banhar-se e se acomodava na rede da sacada, quando
alguém gritou no pátio.
-
Doutor! O prefeito e a primeira-dama lhe aguardam para jantar. Esteja lá às 18
horas.
“Putz!
Bem, faz parte. Depois de toda essa recepção não posso reclamar de nada”.
As
18 horas Eduardo chegou à casa principal. Tempo em que Raimundo e Lilith saiam
da piscina.
-
Perdão! Ouvi 18 horas. Acho que entendi mal.
-
Sem problemas doutor. O macaco deve ter lhe informado errado. Sirva-se de um
uísque e sente. Em alguns minutos estaremos aqui para conversar.
O
casal se foi à casa e Eduardo pode conferir e comprovar sua primeira impressão
sobre Lilith. Um mulherão! “Nossa...
Foco, Eduardo, olha o risco!”
Meia
hora depois o casal apareceu, banho tomado e Lilith vestida... Vestida? É, mas
era como se não estivesse, tal a transparência da roupa.
-
Então, doutor. Antes quero lhe informar que a sua estadia aqui não será
gratuita. Estabelecemos um valor, acho que simbólico, de aluguel. Será meio
salário mínimo, já descontado na folha. Penso que assim você ficará mais à
vontade, certo?
-
Perfeito. Fica bem melhor assim.
-
A limpeza e arrumação da casa fica por conta da nossa gente, e você pode dispor
da academia e da piscina. Pelo seu porte, acho que deve gostar de fazer
exercícios, não?
-
Apenas nado. Faço isso desde criança. Se puder dispor da piscina, ótimo.
Piscina não. Isso é quase um lago de tão grande.
-
Então... Conte-nos alguma coisa a seu respeito. Quem é a pessoa que vai cuidar
da saúde de Seringal e que vai morar perto de nós? Por que uma radicalizada tão
grande? Do sul onde tudo acontece para o quinto dos infernos onde tudo custa a
acontecer?
-
Raimundo, sem emoções do lado de cá. Mais de uma década cursando medicina, me
especializando, sem tempo para grandes festas... Sou solteiro, órfão e sem
parentes próximos. Devo a minha formação ao governo e preciso pagar, por isso
abracei a primeira oportunidade que tive. Viram? Não fossem os estudos seria um
vazio constrangedor.
-
Você é um homem bonito, porte de atleta, médico... Duvido não ter deixado
alguém... Um coração partido lá pelo sul...
-
Pois é, Lilith, até tive, mas o coração partido veio comigo. Marina, minha
namorada durante todo o tempo de faculdade me trocou pelos cangurus. Recebeu
uma oportunidade na Austrália e se foi. Faz parte e médicos precisam estar
curados para curar. Bola para frente.
Conversaram
longamente, mais sobre futilidades; riram e jantaram. Eduardo se recolheu
levando para o travesseiro o jeito, as caras, bocas e olhares sugestivos da
Lilith. Um dia de tantas surpresas boas e duas aflições: a origem de todo
aquele luxo e desperdício e a primeira-dama. Precisava urgente estreitar
relações com sua companheira Nikita.
“Nikita?
Que nome! E Lilith?”. Dormiu exausto.
-
Bom dia, doutor Eduardo, o senhor dormiu bem. Melhor que tenha dormido porque
hoje o senhor vai ver o que é trabalhar – disse Nikita rindo.
-
Bom dia Nikita. Se você me chamar mais uma vez de senhor eu jogo você pela
janela do carro. Vamos. Juntou o que precisamos? Ah, sorria mais. Seu sorriso é
lindo.
A
estrada era tudo o que Nikita deixara supor, a comunidade um amontoado de casas
sujas, velhas jogadas em pequenos lotes. Uma pobreza infinita. Eduardo foi
apresentado a Guaciara, uma índia forte e determinada que, ao que tudo
indicava, dava as cartas na comunidade.
De
fato foi um dia exaustivo, mas uma oportunidade gratificante de exercitar muito
do que aprendeu; sentir o verdadeiro valor da profissão que escolheu. Além do
que, pode conhecer um pouco mais de sua parceira de trabalho. Muito da
profissional e muito mais da pessoa. Era uma mulher linda em vários sentidos,
embora não explorasse a maioria deles.
Chegando
à casa, confirmou com o mordomo do casal sobre a utilização da piscina.
-
Claro, doutor, está à sua disposição.
Eduardo
nadou e nadou. Certamente mais do que uma hora na vasta piscina. Ao debruçar-se
na borda e tirar os óculos de natação, deu de cara com a imagem do paraíso, ou
do inferno, dependendo do ângulo. Lilith, dentro de um minúsculo biquíni o
aguardava de pé, com dois copos de uísque na mão.
-
Bravo! Estou impressionada, você é um atleta. Sente aqui. Não me deixe beber
sozinha, já que Raimundo está viajando.
-
Ex-atleta. Mas é o exercício que mais gosto. Bebo essa dose e vou desmaiar na
cama. O dia hoje foi duro e você não merece uma companhia sonolenta. Obrigado.
Eduardo
bebeu como se fosse água e se retirou. Uma segunda dose daria espaço para uma
terceira e por certo as facilidades proibidas se insinuariam. Melhor fugir.
Banho tomado, uma rápida conferida nos e-mails e se foi à rede da sacada. Se
facilitasse dormiria por lá.
A
casa de Eduardo distava uns trinta metros da casa principal, sendo que a janela
do quarto do casal ficava em frente a sacada de Eduardo. Lilith certamente
acabara de sair do banho e vestia apenas uma toalha na cabeça. Mais nada.
Passou uma, duas, várias vezes pela janela até que parou em frente e de frente.
Não era alta, mas tinha um corpo escultural, e assim ficou um tempo olhando
para o médico estático. Então deu um tchauzinho e debruçou-se na janela.
Eduardo deu um leve sorriso, abanou e entrou em casa. Deitou a cabeça com os
demônios borboleteando no cérebro, comandados pela deusa de todos eles: Lilith.
-
Bom dia, Nikita. Tenho um plano para a comunidade da Guaciara... Vamos
conversar em um lugar fora daqui onde possamos sentar e falar sobre isso e
outras coisas? Por favor, não me entenda mal, também podemos conversar aqui.
-
Fique tranquilo. Não levo a mal. Vamos sim. Tenho algumas coisas para fazer,
mas depois passe lá em casa no fim da tarde e vamos tomar alguma coisa no cais.
Só não espere nada sofisticado.
Era
tanto trabalho, tantas pessoas precisando atendimento que o tempo voava.
Eduardo não foi em casa, foi direto à casa de Nikita para apanhá-la e conversarem.
Uma rápida buzinada e a colega apareceu.
-
Uau! Você de fato consegue se esconder sob aventais, óculos e toca. Que linda!
Tem medo de casar?
Nikita
tinha os cabelos longos, quase na cintura, agora soltos valorizando o rosto que, sem os enormes óculos, mostrava que além de exótico era bonito. Vestia uma
camiseta curta e justa e um jeans, deixando perceber um corpo esguio e bem
formado. “Bem que poderia fazer carreira modelando” – pensou Eduardo - Definitivamente de índia só tinha a cor parda.
-
Vou ouvir como um elogio desinteressado, colega. Obrigada.
Sentaram,
comeram alguns petiscos, bebericaram pouco e conversaram muito.
-
Diga-me uma coisa: pela liderança que Guaciara tem, você acha que ela pode
reunir mão de obra para um mutirão de limpeza e pintura das casas? O ambiente
lá é sujo, promíscuo e muito suscetível ao surgimento de doenças.
-
Não sei. Ela é líder, mas não sei até que ponto pode mobilizar os homens. A
maioria é acomodado. Podemos tentar. Temos de voltar lá ainda essa semana.
-
Ok. Bem. Vamos nos reapresentar? Estamos a quase um mês trabalhando juntos e
pouco sabemos um do outro. Eu sou Eduardo, 30 anos, médico solteiro, endividado
com o governo, com muitos planos e poucas possibilidades de execução.
-
Então... Eu sou Nikita, 29 anos, viúva, colombiana
e brasileira, enfermeira e um projeto de vida enorme sobre o qual não falo nem
sob tortura.
-
Você é viúva? Puxa! Lamento. Certamente não quer falar sobre isso, mas caso
queira meus ouvidos são seus. E certamente, uma hora dessas vou querer conhecer esse tal projeto enorme. Se é tão grande assim, não deve caber só dentro de você.
- Sim, certamente. Mas não lamente a minha viuvez, e é certo que não quero falar a respeito. Com o tempo talvez.
-
Nikita... Por que Nikita? De onde vem esse nome? Claro que eu sei a origem, mas
especificamente sobre você.
-
Meu pai era russo e minha mãe colombiana. Nasci em Medelin e me casei no Brasil,
quando vim para cá. Essa é a miscigenação que eu mostro. E você está autorizado
a pensar que Nikolay, meu pai, era mafioso. Pertencia a Bratva, mas aí já é
papo para outro dia. Eu, no entanto, estou limpa e livre dessas práticas. Pode
acreditar.
-
Que coisa! Sim. Não sou julgador, fique tranquila. Nikita... É bonito e interessante.
Outro nome interessante é o da primeira dama. Você certamente sabe o que
significa Lilith.
-
Sim, sei – Nikita abriu um sorriso mostrando ainda mais o quanto era bonita –
Ela faz jus ao nome, cuidado. Só não me diga que não percebeu as manobras. Tudo
nela é ensaiado. E você não me decepcione se fazendo de desentendido.
“Xeque-mate!
Sai dessa, Eduardo!”
-
Ora... Não conheço os costumes regionais; os comportamentos... Claro, observei
um certo olhar interessado e tal, mas vai saber... Ademais, eu vim para cá para
ficar um tempo longo, não sei se para sempre. Mas se para sempre, que não seja
no campo santo. É cedo e se tem algo que eu não gosto é de rolo.
-
Certo. Eu a conheço bem demais. Preste a atenção. Bem... Está ficando tarde e
amanhã começamos cedo. Você me leva para casa? Outro dia podemos falar sobre o
seu coração e porque veio para tão longe.
Alguns
dias depois, Nikita e Eduardo foram a comunidade e conversaram com Guaciara,
explicando o plano. Sem entusiasmo, talvez por conhecer a sua gente, ela
concordou em reunir um pequeno grupo que pudesse influenciar aos demais. Reuniram-se
em um campinho de futebol, onde Eduardo detalhou o que pretendia. Concluiu
dizendo:
-
Acreditem: quanto mais limpeza, menos remédio; menos doenças. Vocês ganham
saúde e qualidade de vida. Vou conseguir cal para a pintura e solução de
hipoclorito para a desinfecção. Se houver entrave na prefeitura eu pago a
cal.
Alguns
resmungos depois e uma chamada às falas feita por Guaciara, todos comprometeram
com a ideia. Nikita assistia a conversa com um leve sorriso no rosto. E manteve
o sorriso durante a viagem de volta.
-
Agora vou ter de convencer o prefeito a ceder a cal, senão meu bolso vai doer.
E... O quê? De que você está rindo?
-
Você é um anjo que caiu do céu para essa gente, doutor. Estou encantada com o
que ouvi.
-
Se esse anjo caiu é porque só tinha uma asa. Veio buscar a outra e acho que já
encontrou.
Nikita
parou de rir e mudou de assunto.
Chegando
em casa Eduardo foi nadar. Era noite quando saiu da piscina. Encontrava Lilith
só de vez em quando à beira da piscina, em especial quando Raimundo viajava. Banho
tomado, foi dar uma espiadinha na janela da vizinha. E lá estava a primeira-dama
vestida com a sua tolha na cabeça. Ato contínuo, também tirou a toalha e
começou a secar os cabelos, hipnotizando o espectador privilegiado. Terminando
o processo, lentamente pegou o celular e ligou.
-
Alô doutor, sei que você olha e gosta do que vê. Não quer me fazer companhia?
Estou com medo de ficar sozinha.
-
Lilith, Lilith... Você é uma tentação.
Mas é claro que esse pecado eu não vou cometer. Imagine o tamanho do risco? Vou
dormir com os meus demônios.
Não
deu direito a tréplica, desligou o telefone e deitou. Como dormir? Minutos
depois a porta se abriu. Eduardo pulou da cama, mas antes que pudesse dizer
qualquer coisa, Lilith grudou seus lábios nos dele, empurrou-o de volta que se
deixou beijar e lamber por inteiro, até o desfecho de um ato quase brutal de
sexo.
-
Uau, doutor, qual de nós estava com mais fome? Vou me acostumar mal.
-
Não vai se repetir, Lilith. Não pode. Veja o tamanho do risco!
-
Sei lidar com isso, meu caro. Fique calmo e aproveite o privilégio de desfrutar
do que tem de melhor nesta cidade.
Como
Raimundo viajava frequentemente, sabe-se lá por qual motivo, as noitadas foram
se repetindo. E a relação de Eduardo com Nikita ficando restrita às questões do
dia a dia. Apenas a conquista do engajamento da comunidade indígena, em relação
a pintura e profilaxia ambiental gerara alguma euforia, troca de beijinhos
protocolares em cumprimento e alguns olhares esparsos com algum significado. Havia
um clima de cumplicidade entre os dois além do simples afeto, mas Eduardo,
dominado pelos hormônios, estava deixando em segundo plano.
Num
final de tarde, após cumprir o seu ritual de natação, Eduardo emergiu à borda,
quando foi empurrado de volta para a água por Lilith, que se jogou a seguir.
- A piscina é nossa. A criadagem foi liberada
para ir à igreja. Só voltam as dez, portanto, vou dar uma mergulhadinha agora e
volto com a sua sunga nos dentes.
Lilith era insaciável. Depois de tudo o que ocorreu na piscina, esperou o retorno e recolhimento dos empregados aos seus aposentos, e perto da meia-noite foi gastar mais um pouco do já desgastado amante. Voltou à sua casa quase pela manhã.
Passava da hora de uma tomada de atitude, ou o pior poderia ser esperado.
A realidade começava a bater firme em Eduardo.
-
Bom dia, Nikita. Nunca mais saímos para conversar. Amanhã é sábado e estamos restritos
às urgências. Vamos sair? Pode ser?
-
Ok. Você quer que eu vá a sua casa ou pode ser lá no cais?
-
No cais, claro – Eduardo surpreendeu-se com a possibilidade proposta, para logo
a seguir dar-se conta que caíra em outra armadilha verbal.
-
Foi o que pensei – disse secamente Nikita.
No
final da tarde, sentados no cais, enquanto Eduardo procurava uma definição
sobre o que sentia pela mulher que estava à sua frente, ela foi taxativa:
-
Eduardo, somos colegas, não amigos e não porque eu não queira, mas você parece
que tomou outros rumos e ignorou a amizade que começava a se formar. Não é uma
queixa, respeito a sua opção, mas sejamos francos, porque além de ser uma forma
de demonstrar respeito vai manter o bom nível da nossa relação. O que você tem
em mente e por que estamos conversando hoje?
-
Você é impressionante...
-
Vamos nos poupar. Seja objetivo.
-
Ok. A verdade é que não criei vínculos por aqui, além de você. E como
concordamos na franqueza, você sabe muito bem que não somos indiferentes um ao
outro. Falo mais por mim, óbvio. Porém, caí em uma armadilha velha e banal, e
me deixei levar como uma folha solta na correnteza. Lilith me tomou de assalto,
mas é claro que a responsabilidade também é minha. Agora preciso resolver isso.
Preciso sair de lá. Já pensei em romper o contrato e ir embora.
Eduardo
contou detalhadamente como foram as primeiras abordagens, os “descuidos” dela nua
na janela; a pressão nas saídas da piscina, ajudados pelas viagens frequentes
de Raimundo.
-
Lilith é diabólica e eu lhe avisei. Eu a conheço muito bem, e você meu caro,
está enrascado. No entanto, talvez estivesse pior caso a tivesse rejeitado. Aí
não sei o que poderia ter acontecido. Barato não ficaria. Ela faz jus ao ditado
“se ficar o bicho come, se correr o bicho pega”. Bem assim. Das pessoas que eu
conheço, ela só respeita uma: eu, e não me pergunte porquê.
-
Você! Ok, não pergunto. Mas me diga alguma coisa sobre isso.
-
Não. Não por enquanto. Seguinte: estamos em dezembro e daqui a exatos vinte dias
tem a festa da cidade. São duas festas: uma para o povo na praça central e
outra para os chiques na casa do prefeito. Você certamente será convidado e eu darei um jeito de ir também. Antes, vou à cidade aqui do lado comprar algumas coisas. Aliás, mandei
fazer uma roupa especial. Caso você queira eu compro algo para você. Só precisa me
dar seu cartão, suas medidas e que tipo, cor, etc...
-
Claro. Deixo meu cartão com você e as escolhas são suas. As medidas estão aqui.
Meça-me. Você tem todo o tempo que quiser.
-
Bobão. Vou pedir para a primeira-dama.
-
Nikita... Peço duas coisas, se você me permitir
-
Depende.
-
Primeira: perdão, atrapalhei nossa amizade; segunda: não me abandone.
-
Vou pensar. Gosto de você. Em especial porque é mais inocente do que eu pensava.
Quase babaca.
Nos
dias subsequentes, Eduardo começou a chegar tarde em casa, às vezes dormia no
hospital. Tudo para não encontrar Llith.
-
Alô doutor, anda me evitando? Preciso falar com você hoje no final da tarde.
Não aceito qualquer resposta que não seja “ok”. Aguardo você em casa.
Não
havia saída e Eduardo lembrou-se do que lhe havia dito Nikita de que a rejeição
poderia ser pior. Ainda assim, chegou em casa, não foi nadar, tomou banho e foi
ler seus e-mails. Até a chegada de Lilith, que não conversou muito. Ajoelhou-se
à frente de Eduardo, baixou a calça do pijama e começou o seu infernal trabalho
de lábios e língua. Foi subindo lentamente segurando a flecha intumescida,
virando de costas grudando seu corpo ao dele e puxou-o para cima dela sobre a
cama. Eduardo a penetrou com força e raiva, de uma forma tão animalesca
que resultou esfolado. Ao fim, Lilith disse-lhe
-
Se o cavalo não vai à rainha, a rainha vai ao cavalo. Algo me diz que você está
com medo ou que está se deixando encantar pela indiazinha sua colega. Mas só
largo o que quero quando eu quero. Guarde isso para sempre. Você até pode ir
embora, mas não vai se livrar de mim. É uma promessa e eu as cumpro.
E
se foi, deixando Eduardo ainda com mais raiva. Raiva dele.
Alguns
dias depois Lilith chamou Eduardo porque não estava passando bem, Teve
problemas, tendo inclusive batido o carro. Recebeu o médico vestida de baby
doll e reportou o que tinha acontecido. Foi examinada e o diagnóstico uma crise
de labirintite, sendo aconselhada a buscar um especialista. É claro que antes
de terminar a consulta tentou seduzir o médico de todas as formas que conhecia
e das quais era mestre. Dessa vez, entretanto, Eduardo tinha uma saída: a
questão médica era importante.
-
Lilith, você não pode. Esse seu problema não é tão simples e pode desencadear
um AVC. Imagine eu como médico sendo responsável por deixar a minha linda
paciente toda torta e entrevada numa cadeira?
Argumento
clínico suficientemente forte. E naturalmente fraudulento. Eduardo pensava
fortemente em Nikita no momento dessa
recusa sentindo-se muito feliz. E por sorte, porque já na porta de saída
encontrou Raimundo que antecipara sua chegada.
-
Ora, ora... Não me diga que veio dar assistência à primeira-dama na minha
ausência.
-
Mais ou menos isso. Lilith teve uma crise, penso que de labirintite, mas é
preciso que se avalie melhor. Aconselho a levá-la a um especialista. Hoje bateu
o carro, por sorte levemente, mas poderia ter sido pior.
-
Oi, Raimundo, que bom que veio antes. Vou precisar de você. – Lilith chegava à
sala para receber o marido, com uma cara visível de contrariedade.
-
Bem, sente Eduardo, vamos beber um uísque rapidamente e me dê mais detalhes
sobre isso.
Raimundo
conhecia bem a mulher. Desconfiava de que estava jogando penas no doutor e
estava muito contrariado com a presença
dele na casa naquele momento. Apenas
desconfiava, apesar da postura firme e teoricamente profissional do médico. Eduardo
explicou o que pode ao marido desconfiado, bebeu, achou prudente ficar um pouco
mais a fim de acalmar o ambiente, jogando conversa fora.
-
Mas me diga, agora mudando de assunto. Há tempos quero falar com você a respeito.
Aquele projeto de pintura das casas dos índios e da quantidade enorme de
material de limpeza foi ideia sua? Se foi, digo que você está extrapolando suas
funções. Não foi contratado para me dar despesas extras.
-
Faça as contas, Raimundo. O munícipio tem quinze mil habitantes. Só na
comunidade são quase três mil, a maioria votante. Você tem feito visita por lá
para avaliar o grau de satisfação deles com a prefeitura? Considere isso um
programa de saúde pública e retorno se serviços. Quanto mais limpeza, mais
gente feliz e menos remédio, e você, melhor do que eu, deve saber qual deles é
o mais caro. Diga-me outra coisa: algum funcionário da prefeitura colocou a mão
na massa para trabalhar no projeto? Só a Guaciara que já trabalha lá,
justamente para isso. A mão de obra é toda deles. Você, se me permite, deveria ampliar esse
plano às demais comunidades.
-
Olhando por esse lado... Acho que você está certo. Ok. Bem e quanto ao
mulherio? Já tratou de se pegar com alguma indiazinha? Soube que está se
entrosando muito bem com a Nikita. Vá por mim: é um mulherão e está invicta há
muitos anos. Nem o prefeito conseguiu ciscar por ali.
-
Nos dê licença, Eduardo. Raimundo, pelo visto já chegou bêbado. Em matéria de
ser desagradável ele não desce do pódio. E é bem assim que nascem os cornos.
-
Você se atreva para ver. Gosto de sangue você já conhece.
-
Boa noite, pessoal. Descansem. Raimundo, não esqueça de levar Lilith a um
especialista.
Dias
depois Nikita foi às compras na cidade vizinha e isso levaria mais do que um
dia. Tempo que custou a passar para Eduardo. Era inegável e crescente o que estava sentindo
pela colega. Retornou cheia de pacotes e
ao entregar-lhe as compras, olharam-se de forma nova. Meio que especulando-se.
-
Olhe, espero que goste. Pequenos ajustes, caso precise eu tenho quem faça.
-
Pouco me importam as compras. É bom vê-la de volta. Senti a sua falta. É a
primeira vez que nos separamos. Anote aí: da próxima vamos juntos.
Nikita
olhou um pouco surpresa para o colega. Parece ter pensado algo para falar, mas
apenas respondeu
-
Também senti a sua falta.
Não
perceberam, mas ficaram um bom tempo olhos nos olhos segurando o mesmo pacote
com as mãos encostadas, próximos demais. Nikita desviou os olhos, soltou a
sacola e arrumou a gola do avental de Eduardo.
-
Você não se olhou no espelho hoje?
-
Olhei. Não vi nada. Significa que faltou tudo.
-
Olhe lá, seu moço... Não brinque com o que não conhece.
Chegou
enfim a noite a festa e Nikita disse a Eduardo que não precisava ir apanhá-la
em casa. Ela iria de taxi. “Mesmo porque
você já está em casa”.
Nikita
chegou cedo à festa. Foi recebida por Lilith.
-
Meu Deus, como você está linda, Nikita. Vejo você sempre fantasiada de branco
ou de azul que sempre esqueço o quanto você é bonita. Vai roubar a festa. E
esse vestido! Cai muito bem em você. Parabéns.
-
Obrigado, Lilith, você também está linda. Parabéns pela festa. Quanto ao
vestido, preste bem a atenção nele. Você conheceu um igual a última vez que me
viu arrumada.
Lilith
desconversou e disse apenas um “fique à vontade” e saiu rapidamente para
atender a outras pessoas.
A
festa, de fato era grandiosa. Eduardo atrasou-se um pouco como é normal quando
é tudo fácil. Bastava ir a pé. Ainda não conhecia o salão de festas da família.
Era como o de um clube social. Amplo, um lustre de cristal enorme ao centro que
deveria ser do valor de um carro novo. Foi recebido pela primeira dama, com a
sutileza de praxe:
-
Uau! Depois da festa quero arrancar essa roupa com os dentes. Raimundo vai
dormir o sono de um anjo viking. Agora vá encontrar a sua amiga indiazinha.
Eduardo
passou os olhos pelo salão e viu muita gente bonita. Pessoas que nunca tinha visto, mas nada da colega. Andou um pouco sendo cumprimentado por
todos pelos quais passava, mas nada de Nikita.
-
Não está reconhecendo? Provocou Lilith - Veja naquele grupo lá no canto da
saída para a varanda, onde estão as mais lindas. .
Eduardo
só foi reconhecer quando chegou mais perto e ela se virou, informada da
presença dele por uma amiga. À sua cor de pele, Nikita contrastou com um vestido justo verde água, deixando as
costas totalmente de fora, apenas coberta pela cascata negra e reta que descia
da cabeça. Usava uma maquiagem bem leve que tão somente dava realce aos olhos e
a boca.
-
Declare a hora do óbito agora e doe meus órgãos, menos o coração. Esse já é
seu. Se não quiser usar guarde na bolsa. Como você é linda, colega!
-
Bobão! Você também está um gato. Agora vamos sentar e não se atreva a sair de
perto de mim. Olhe ao redor. Veja que não é só a chefe da matilha que
quer devorá-lo. Prevejo fortes emoções hoje.
-
Você é uma bruxa. Se quiser que eu olhe ao redor devolva meus olhos. Ah, meu
queixo também está no seu colo.
-
“Mister Robinson, você está tentando me seduzir?", lembrei de um filme.
-
Seduzir? Estou tentando achar uma forma de me declarar a você que não pareça
tão patética. Quero um uísque.
-
Cuidado. Nossos celulares estão ligados e a qualquer momento nossa festa pode
acabar.
-
Ah é
-
Agora cale-se. Vai começar o show.
-
Meus amigos, boa noite. Quero agradecer a presença de todos e como cá estou para
beber e não para conversar, deixo o cerimonial para Dona Lilith que tem coisas
a dizer.
-
Obrigada, meu querido. Bem vindos. Hoje é uma noite muito especial para mim. Em
primeiro lugar porque depois de anos de tratamento para fertilização, os mais
próximos sabem bem a respeito, eu e Raimundo conseguimos engravidar. Estou
grávida, finalmente a família vai aumentar.
Foram
saudados com palmas e vivas.
-
Em segundo porque consegui trazer à minha casa a pessoa que mais me conhece.
Aquela com quem, entre poucos brinquedos e muitas brigas passei a minha
infância não muito longe daqui e por quem, embora ela duvide disso, eu tenho
muito carinho: a minha linda irmãzinha Nikita. Bem vinda, querida, a casa é
sua.
Eduardo
gelou e ensaiou a pergunta óbvia, quando Nikita segurou a mão dele entre as dela, delicada, mas firmemente
dizendo apenas “aguarde”. Muitos olhares surpresos em direção a Nikita em
função da revelação.
-
Vamos curtir a festa. Se você me levar
em casa no final da noite eu conto a nossa história.
Eduardo
e Nikita finalmente se encontraram. Viram-se para além dos aventais e tocas.
Aquela era uma noite de revelações e algumas nem precisaram ser ditas. Tudo
ficou ainda mais explicito quando foram dançar. O corpo fala; os corpos quando
se ajustam dialogam com muito mais clareza que uma frase feita, ensaiada, por
mais enfática que venha a ser dita. Dois corpos justapostos; dois braços
enlaçados; dois olhos fixos no ponto comum, convidando as bocas para a mesma
festa. Isso tem um nome: paixão!
Lilith
percebeu o envolvimento do casal e lançava olhares com dardos venenosos.
Raimundo enquanto esteve sóbrio ou minimamente sóbrio também resolveu fazer sua
graça ao ouvido de Nikita que fez pouco caso: “escolhi a índia errada”. E isso foi o suficiente para que decidissem, minutos após a meia-noite, irem embora. Havia muitas urgências entre Eduardo e Nikita, que todo o
resto se tornava irrelevante.
-
Lilith, está na minha hora. Já vou. Obrigada pelo convite e cuide-se. Você já
bebeu demais. Agora tem de cuidar de dois. Parabéns, mais uma vez.
-
É muito cedo ainda, minha irmãzinha... Ainda se preocupa comigo... Quando vai
me perdoar?
-
Não é hora de falarmos sobre isso.
-
Ok. Mas apareça para me ver. E onde está aquele gostoso do seu acompanhante?
-
Foi pegar o carro. Ele vai me levar em casa.
-
Merda! Ok. Faça bom proveito, mas depois devolva.
-
Ah, mas não tenha a menor dúvida de que farei um ótimo proveito.
Entrou
no carro soltando fumaça pelas narinas. “Admita que você está morta de raiva e
ciúmes, mulher” – dizia para si mesma.
-
Uma vez cadela, sempre cadela!
Eduardo
apenas pegou uma das mãos dela e beijou. Não era hora de falar nada. Chegando
em casa, Nikita tirou os calçados. Eduardo pegou as duas mãos dela, puxou-a
para si. Acariciou seu rosto e deu um leve beijo em seus lábios.
-
Tudo o que eu ouvir hoje só há de aumentar o que estou sentido; que andei
negando, muito por causa dos derrames hormonais mais burros, mas que de uns dias para cá tomou conta de mim. Amo você e se você me
aceitar em sua vida, do jeito que for, eu ficarei feliz.
-
Vou fazer um café porque a noite vai ser longa.
-
Temos tempo
Nikita começou sua narrativa, pedindo para não ser interrompida porque, se era difícil começar a falar, imagina reviver tudo e em detalhes. Mas era necessário e o momento, sempre negado, chegara.
No aniversário de 15 anos de Nikita, Nikolay, o pai, deu uma grande festa em Medelin. Havia lá a fina flor da máfia colombiana e russa, residente na América. Um dos capangas graduados, Carlos, que tinha uma espécie de obsessão por Lilith, criava uma dissidência e ela sabia e explorava isso. Convenceu a ele de que sequestrando a filha mais jovem e preferida do papai, ele teria um grande trunfo na mão. Ela facilitaria o processo durante a festa, quando a vigilância certamente estaria mais frouxa. No horário combinado com Carlos, Nikita foi chamada ao quarto, a fim de que brindassem apenas as irmãs e sem perceber foi drogada. Lilith então tomou as providências para que o trânsito fosse facilitado na casa, que era um verdadeiro forte.
Carlos levou Nikita para a selva, ainda sem saber de que lado da fronteira estava, se no Brasil ou na Colômbia. Como a data base era o aniversário, ela soube apenas que ficou 46 dias escondida. Um dia foi novamente drogada e acordou em uma casa enorme, já no Brasil. Era tipo um castelo no meio do mato, do tamanho e tão ou mais fortificada que a de Medelin. Era a casa de Carlos, que já tinha conseguido seu espaço próprio no tráfico. Soube que houve alguns pagamentos de resgate por parte de Nikolay, em vão, e muitas escaramuças entre eles. E descobriu que Lilith sempre dava um jeito de informar a Carlos sobre as movimentações de Nikolay, até ser descoberta. Mas antes disso ela já estava bem longe e protegida por Carlos.
Nikita foi se acostumando com a vida reclusa e anulando aos poucos tudo o que sonhava. Era forçada a ter relações sexuais Carlos, o que lhe havia gerado trauma, medo, nojo e toda a espécie de rejeição ao sexo oposto. Um tempo depois, ajudada por um dos capangas de Carlos, conseguiu uma boa quantidade de droga e tentou o suicídio. Ficou um tempo entre a vida e a morte, mas salvou-se, porém com sequelas seríssimas. Quando Carlos soube a origem da droga mandou executar o capanga.
Começou então
a mudar o seu comportamento. Tinha um plano de fuga, mas precisava ganhar
confiança. Então decidiu estudar. Queria ser enfermeira, até para ser útil ao
grupo, porque quando chegavam de suas operações sempre havia feridos. Precisava também ter a sua situação regularizada no Brasil e a melhor forma
encontrada foi o casamento. Então, com 21 anos casou e se tornou cidadã
brasileira. No entanto, Carlos a mantinha sob severa vigilância. Quando entrou na faculdade conheceu seu novo
guarda-costas. Um brutamontes, mas com jeito efeminado. Perico, que foi um amigo sempre gentil e cuidadoso com ela, e tinha uma razão para isso.
Em
uma dessas brigas entre grupos por disputa de mercado, Nikolay e Carlos finalmente se encontraram. Muitos morreram, inclusive os dois. Carlos acertou Nikolay e,
prestes a dar o tiro de misericórdia, Perico pediu que lhe condesse esse
privilégio. Queria ter o prazer de “acabar com a raça daquele perro”. Então
Carlos cometeu a sua última burrice: deu uma calibre doze a Perico para que
explodisse a cara de Nikolay. Perico fez isso, porém com a cara de Carlos.
Ainda levou Nikolay ao hospital, mas já chegou morto. Em resumo: Perico era
filho de Nikolay, portanto meio irmão de Lilith e Nikita, e estava infiltrado no bando de Carlos,
justamente para cuidar dela. Carlos havia contratado o novo guarda-costas pelo
tamanho, violência com que tratava todo mundo e pelo seu jeito efeminado, que
aliás, era só um personagem.
Quando
Carlos morreu, Perico procurou Nikita para colocar tudo às claras. Soube, por exemplo,
tudo a respeito do envolvimento de Lilith com Carlos e seu irmão... Raimundo, o prefeito, o que explicava a origem de todo o luxo. Soube também que o casarão onde ela morava estava em seu
nome, não soube bem porque, mas o que acabaria facilitando muito as coisas na
hora de vender. E mais: soube que estava rica, não só pela casa,
mas porque nas paredes dela havia muito dinheiro escondido; que seu pai,
ao descobrir a traição de Lilith, colocou todo dinheiro e patrimônio em seu nome, em uma conta no Panamá. Perico foi tão leal que lhe trouxe os
dados escritos por Nikolay um pouco antes de morrer.
-
Enfim, o dinheiro das paredes da casa guardei o necessário para sobreviver
alguns meses, o resto deixei com Perico para que distribuísse aos empregados; a
casa vendi a ele por um valor quase simbólico, o patrimônio de Medelin também
dividi com ele e o dinheiro do Panamá está lá, intacto. Tenho um projeto para
ele, mas preciso resolver questões burocráticas para sua repatriação. O imposto
ainda é alto. Vou esperar um pouco mais. Nunca mais vi Perico, mas sei que me
cuida nas sombras. Lilith sabe disso também, daí o respeito e por isso talvez
nunca mais tenha tentado nada contra mim. Vai ver deve ter recebido um recado
“carinhoso” da parte dele. Sei também que não acabei em Seringal por acaso.
Candidatei-me em vários lugares, hospitais, prefeituras, porém nenhum deles me
ofereceu tantas vantagens como aqui. Ou seja: eu sempre fui monitorada.
Nikita
terminou a narrativa deitada no colo de Eduardo, que nada mais fazia do que
alisar seu cabelo e acarinhar seu rosto.
- Nossa! Já é quase manhã e eu não desarmei esta árvore de natal. Sabe este vestido aqui? É cópia exata do que eu usava na noite do sequestro, por isso ela ficou tão incomodada quando me viu hoje. Você quer dormir aqui, Eduardo? Tome um banho, vou ver uma toalha e depois venha para o sofá. Não abro mão da minha cama.
-
Ótimo. Obrigado. Vou ao banho.
Eduardo
deixou a água cair. Encostou a cabeça na parede, fazendo os antebraços como
travesseiro e quase pegou no sono. Quase. A toalha que era para vir não foi
notada. Diferente disso, foi envolvido por dois braços, um corpo colou-se ao
seu por inteiro e suas costas foram acarinhadas por duas protuberâncias macias
e firmes. Virou-se para olhar Nikita, plena e entregue. Ficaram um lapso de
tempo assim, apenas namorando-se com os olhos e embalando-se como se dançassem
na chuva. Um rápido beijinho e mais outro; olhares que fugiam do terno para soltar
fagulhas e outros tantos beijos que
passaram de carinhosos contatos à esmagação esfomeada. Enrodilharam-se das
línguas às pernas e deixaram que a água
tépida se mistura-se ao suor dos corpos. Dali foram para a cama, molhados,
consumar sua primeira noite de amor. E dormiram o sono justo e cansado dos
apaixonados.
-
Bom dia, doutor. Venha tomar café.
-
Bom dia meu amor. Estou perdidamente apaixonado por você. E com uma fome de
lobo.
-
Vamos com calma. Você tem questões sérias para resolver.
-
Sim eu sei e tenho muita pressa de resolver isso. Você está bem? Está à
vontade?
-
Estou. Passei por cima de um problema de uma forma que jamais imaginei
conseguir. Sem lembranças, traumas ou bloqueios. Finalmente descobri o que é
fazer amor. Devo isso a você. Não sei bem porque, mas eu sabia que isso
aconteceria conosco. Talvez por isso tenha odiado cada momento que você passou
com aquela “zinha” da minha irmã. Bem... É importante que ela saiba que estamos
tendo alguma coisinha.
-
Vamos tentar esquecer o que passou. Já fugi daquela moça uma vez e ela não me
pega mais.
Eduardo contou a Nikita a história da labirintite com AVC.
- Vou para casa. Tenho coisas a acertar e tratar de me mudar.
-
Fique - Nikita segurou Eduardo pela mão
e o levou de volta ao quarto de onde só saíram no dia seguinte para voltarem ao
trabalho.
-
Bom dia pessoal. Vamos aguardar a chegada do doutor Eduardo para definirmos o
que fazer a respeito da virose na escola. Ah. Aí está ele.
- Bom dia, colegas
Eduardo foi até onde estava Nikita, segurou seu rosto com as
duas mãos e grudou sua boca na dela, em um beijo de tirar o fôlego. Ela mal
pode reagir. Houve assovios, gritos de vivas e de “eu já sabia”.
-
Eduardo, como é que você faz uma coisa dessas? Eu não permito que você me
exponha desse jeito.
-
Nikita, eu estou completamente apaixonado por você e isso é definitivo. A menos
que você me diga que eu não tenho a menor chance de ficar a seu lado, eu não
faço questão nenhuma de esconder. Você pode ficar chateada comigo, mas não me
arrependo do que fiz. E nós precisamos ser convincentes para com aquela
“zinha”.
-
Quer saber? Você tem razão. Venha. Vamos passear pelos corredores. Amo você, mas não pense que vou esquecer tão cedo aquele o seu “casinho”.
O
novo casal passou a ser assunto prioritário nas rodinhas de conversa e isso fazia
muito bem a ambos.
-
Eduardo precisamos ampliar nossa conversa. Você sabe que tenho planos para o
dinheiro lá de fora, mas preciso saber também algumas coisas. Você pretende
ficar sempre por aqui?
-
Eu tinha muitos motivos pra vir para cá e poucos para ficar. Agora todos os
motivos que eu tenho para ficar ou sair estão bem à minha frente. Quero ficar
com você.
-
Bem. Você sabe que eu trato a tudo objetivamente, não é? Então vamos lá. Lembra
que eu disse que fiquei com sequelas sérias da vez que fui hospitalizada e quase morri?
Pois bem. São coisas graves, mas não letais. Graves porque, caso você queira
ser pai, eu não vou poder servir a esse seu desejo. Tive de retirar o útero. Você
vai ficar frustrado?
- Meu amor, me responda uma coisa: desde a
noite da festa, quantas vezes ficamos
sem uma noite tórrida de amor?
Nikita
respondeu com um riso ligeiramente encabulado:
-
Nenhuma, acho.
-
Nós lidamos com o corpo humano. Você não toma anticoncepcional, eu não uso
preservativo e você não menstrua. Portanto... Eu sei, meu amor. Não é um
problema. Caso queiramos ter filhos a gente adota um indiozinho. Agora venha cá
e me diga olhando nos meus olhos: quando vamos casar?
-
Ops! Você acha necessário? Não tinha pensado nisso. Enfim, acho que vai ser bom
casar de verdade. Antes de tudo, porém, doutor Eduardo, o senhor vá já buscar
as suas coisas. Seu endereço agora é aqui. E nada de despedidas. Quer saber? Eu
vou junto... Não vá você. Eu vou ao banco abrir uma conta conjunta para você
depositar a metade das despesas de casa. Aguardemos abrir a agência que assim
matamos a mesma cobra com dois paus. Você não encontra ninguém em casa e eu
encontro quem eu quero na agência.
-
Oi Lilith. Como vai a barriguinha? Preciso abrir uma conta. É conjunta. Pode
ser com você?
-
Tudo bem conosco. Claro. Você titular? E quem mais?
-
Eduardo Possoni.
-
Olalá! A coisa ficou séria, minha irmã.
-
Pois é. Depois de tudo o que passei, e que você deve imaginar, nunca pensei que
pudesse acontecer isso comigo. Mas aconteceu e está sendo maravilhoso. Eduardo
é um homem lindo por inteiro.
-
Sim, um belo exemplar de macho. Daria um ótimo doador de sêmen, você não acha?
-
Certamente que daria, mas não deve estar sobrando, porque mal dá tempo para o
consumo diário. E como você sabe, algumas sequelas do passado me impedem a gestação, por qualquer método. Pronto, já assinei os papéis, até mais. Depois ele passa para
assinar.
Uma
pequena vitória ao ver a cara enraivecida da irmã. Uma vitória amarga;
ressentida, mas necessária. Meia vida depois, o troco começara a ser dado.
O
CASAMENTO E OS PLANOS
Nikita
e Eduardo não tinha grandes planos para a cerimônia. Tinham, além de um ao
outro, os colegas de trabalho e Guaciara, a índia que tratava Nikita como uma
filha, apesar da pouco diferença de idade. Uma das colegas se propôs a prepara
o evento para um final de tarde de uma sexta-feira, sem cerimônia religiosa,
apenas juiz de paz.
Como
não havia a menor possibilidade de afastarem-se os dois de seus postos, apenas
tiraram o dia do casamento para descansar e ultimar pequenos detalhes. Nada
havia de ser mudado, uma vez que já moravam juntos a um bom tempo. O salão
encomendado seria uma surpresa e eles precisariam passar pelo hospital, a fim
de descobrirem o endereço e para o tal lugar seguirem em comitiva. Assim
fizeram.
Cinco
horas da tarde daquela sexta-feira o casal entrou no hospital. Passaram por
colegas sorridentes, alguns votos de muitas felicidades... Coisas de
praxe. Foram até a sala tradicional de
reuniões e... A festa estava montada. Casaram ali mesmo, tendo por testemunhas
seus colegas de trabalho e as alianças entregues por Guaciara. Brindaram com
chá, café e água. Nikita Nikolayeva, a filha de Nikolay, passara a ser senhora
Nikita Possoni.
Depois
de festejarem, vestiram seus aventais e foram ao trabalho, deixando para
continuar a festa em comitê particular. Em casa havia um espumante à espera.
Alguns
dias depois Nikita recebeu a notícia que aguardava há muito tempo
-
Eduardo você sabe que casou com uma
mulher rica, mas que não dá a mínima para o dinheiro.
-
Sei. Eu dou. Casei por isso.
-
Nojento! Recebi uma novidade do advogado lá de Brasília sobre os impostos para
repatriação da grana. Continuam altos, mas em função da destinação que pretendo
dar a ele, há boas chances de pagarmos bem pouco. O meu projeto, a construção
de uma clínica para dependentes químicos, em duas alas, sendo uma para
atendimento particular e outra pública está aprovado. A negociação proposta
pelo advogado foi muito inteligente. Pagamos os impostos e 70% do que pagarmos
retorna em subsídios pela atividade social
da clínica. Ou seja... Só falta achar o lugar. A Guaciara, que treinei
como atendente e hoje sabe tanto ou mais do que eu, já está preparando
cursinhos para formação de mão-de-obra e me ajudando a pesquisar sobre locais possíveis para execução do projeto.
-
Bem, eu sou um duro, que ainda deve ao governo. Só posso dispor do meu trabalho.
Serve?
-
Ora, você é minha fonte de força e inspiração, doutor, eu continuaria sonhando
com o projeto se não estivesse ao meu lado. Isso não tem preço. Aceito você no
negócio, porque é a nossa referência médica, não só da cidade, que ficou
pequena para você. Seu nome e trabalho valem 50% do negócio. Estamos combinados
quanto a isso, meu amor, essa parte é inegociável. Mas vai demorar um pouco ainda. Precisamos definir o local.
CLÍNICA
SÃO NICOLAU
Eduardo
e Nikita estavam deitados, descansando quando surgiu Lilith na conversa. Ela
acabara de ser mãe. Ganhou um meninão robusto e saudável e estava de licença
maternidade.
-
Preciso vê-la nesta semana. Visita de praxe, vamos juntos? Acho que seria uma
boa oportunidade para mitigar as raivas.
-
É, pode ser. Uma criança ajuda muito nessas horas. Não tenho mais raiva dela.
Alias, não sinto nada. É uma estranha que eu quero manter longe. Mas tudo bem.
Vou com você.
-
Olá, como vai o lindo casal? O casamento está lhe fazendo muito bem, minha
irmã. Vejo que o doutor está lhe dando um bom trato.
-
De fato estamos nos tratando muito bem, e você Lilith? E o bebê, como vai?
Eduardo
examinou mãe e bebê, conversaram mais um pouco e, antes de irem embora, ele
notou sobre o criado mudo uma escova de cabelo que jurou ser a que tinha
perdido na mudança. Não deu bola. “De certo quis guardar uma lembrança, a
safada”. Ao sair o casal parou na
varanda, e como se tivessem combinado, passaram os olhos sobre o vasto e bem
cuidado terreno.
-
Que lugar para uma clínica, hein doutor?
-
Pensei a mesma coisa! É perfeito. Quantos hectares tem aqui?
-
Vários.
Quase
dois anos depois, outro acontecimento haveria de reunir as irmãs, este trágico.
Raimundo sofrera um AVC, e ainda na ambulância teve uma parada cardíaca, tendo
chegado já sem vida ao hospital.
-
Lamentamos muito, Lilith. Soube que Raimundo, antes de morrer chamou pelo meu
nome, mas acho que já era tarde.
-
Sim, soube também. Deveria ter seus motivos. Não lamente muito, Raimundo
passou a vida inteira se matando e na noite que morreu bebeu muito, quebrou
coisas e me agrediu. Vou ficar bem. Nikita, você pode vir amanhã ou depois para
conversarmos? Acho que pode ser do seu interesse. Não se preocupe, Eduardo, é
só uma conversa. Acho que a essas alturas você já sabe quem eu fui na vida
dela. Deve saber também que ela tem um anjo da guarda muito poderoso.
-
Ok. Venho amanhã pela manhã, perto das dez horas.
No
dia seguinte, no horário combinado, Nikita foi até a irmã.
-
Bom dia, minha irmã. Sente aqui e vamos direto ao ponto. Olha, eu sei do seu projeto
da clínica. Sei que já está tudo em ordem, faltando apenas o local. Bem coisa
sua e que diz bem das diferenças entre nós. Jamais pensaria em uma coisa
dessas. Enfim... Não sei se lhe passou pela cabeça esta área aqui de casa.
Adaptações e reformas sairiam bem mais barato que uma construção. E tem amplo
espaço para novas unidades. Sei que você ainda não fechou o negócio com aquela
área da periferia. Então o que lhe proponho: mande avaliar esta propriedade.
Vendo para você por um valor menor do que o de mercado, com algumas condições,
que depois da avaliação eu falo. Eu vou embora para Manaus. Tenho casa lá e
Ivan precisa ter uma formação melhor da que a que oferecem por aqui. Você vai
perguntar se eu mudei ou melhorei com a maternidade. Nada disso. Eu sou
imelhorável, apenas quero ajustar algumas coisas, pensar no meu filho e, cá
para nós, dinheiro não há de me faltar.
-
Certo, Lilith, para ser sincera, de fato nos passou pela cabeça esta área sim,
mas sequer cogitamos. Vou pedir a avaliação e depois disso conversamos.
Dias
depois, de posse dos dados providenciados e sabendo que a irmã também já tinha
a sua avaliação, Nikita retornou à casa de Lilith para conversarem.
-
Certo. Os números são parecidos com os que tenho e a proposta que lhe faço é a
seguinte: você me paga 50% desse valor à vista e na constituição da empresa,
20% fica para o Ivan. Quando começarem a faturar apenas me informem que eu
mando para onde deve ser transferido o que for definido para o meu filho. Faço
isso porque é a forma mais segura que vejo para o futuro dele. Ademais, chega
de Seringal. Vou aguardar a sua definição e vou embora.
-
É uma proposta generosa. Vou falar com meu marido, mas acho que bateremos o
martelo imediatamente. Amanhã mesmo dou retorno.
Faltavam
poucos ajustes para que o dinheiro do Panamá pudesse ser considerado legal, com
os impostos pagos. Nikita avisou a Lilith que as condições seriam aceitas e que
tão logo tivesse ao alcance o valor acordado fariam assinatura de papéis e
respectiva transferência de conta.
-
Nikita, pelos meus cálculos levaremos mais de um ano para adaptações, reformas,
construções e equiparmos a clínica. Tão logo ocupemos a casa, sugiro que a
gente traga Guaciara para morar lá. Ela apode ficar na casa que eu morava até
que seja demolida, de acordo com o projeto e gerenciar as obras.
-
Claro. Agora falta pouco para darmos o passo definitivo da Clínica São Nicolau.
Vou tentar redimir um pouco dos danos causados pelo meu pai.
A
SOCIEDADE
Eduardo
e Nikita estão casados há mais de vinte anos. Comandam a clínica que virou
referência no atendimento de dependentes químicos em toda a região e para
países vizinhos. Abaixo deles no comando, a fiel Guaciara, chefe da enfermagem
e quase cem funcionários.
Têm
duas filhas gêmeas adotadas, fato que ocorreu de uma forma bem singular. Nos
primeiros meses da clínica, um casal foi internado em péssimo estado de saúde.
Ambos dependentes de drogas, que prestavam serviço a traficantes. A situação
deles era bastante crítica. Caso lograssem se salvar com os tratamentos, ao
pisarem na rua a possibilidade de serem abatidos era de 100%, segundo eles
mesmos diziam. O homem era do sul,
descendente de italianos, e não demorou mais que algumas semanas para falecer.
A mulher indígena, teve mais sorte e
reagia bem ao tratamento. Um dia chamou Nikita e fez-lhe uma súplica: “doutora,
minhas filhas estão sempre aí pelo corredor trazidas por uma vizinha porque não
têm onde ficar. Ficam catando uma coisa aqui outra ali, dependentes da bondade
das pessoas. Meu marido já morreu, eu vou morrer também, aqui ou na rua. Estou
jurada. Eu sei que a senhora não tem filhos. Por misericórdia, fique com as
minhas meninas. Chame um oficial, assino qualquer papel. Nunca vou lhe pedir
nada, caso consiga sobreviver”.
Nikita
foi procurar Eduardo que, por coincidência, estava em um banco conversando com
as meninas. Queria saber porque elas estavam ali e sozinhas.
-
Eduardo, é sobre elas mesmo que temos de falar.
A
mãe das meninas, contra todos os prognósticos conseguiu se recuperar. Recebeu
alta e como as filhas já estavam acomodadas na nova residência, optou por não
vê-las. Cumpriria o prometido. Recebeu uma razoável quantia oferecida por
Eduardo, a fim de que pudesse se manter por um tempo e foi embora. No entanto,
não custaram muito a receber notícias dela. Uma semana após a alta foi
encontrada em um terreno baldio com mais de trinta perfurações de bala. O
tráfico não perdoa.
Maiara
e Tainara, as gêmeas, estão com quinze anos. Contrariando tendências, adaptaram-se
rapidamente à nova vida e são duas verdadeiras bênçãos como filhas. São gêmeas
idênticas, com poucas diferenças comportamentais. Dóceis, carinhosas, de bom
trato e disciplinadas, mas uma é expansiva a outra muito tímida, e acima de
tudo bastante unidas, muito em função das recomendações de Nikita, por motivos
óbvios.
Estudam fervorosamene e o caminho a ser seguido não poderia ser outro que não o da saúde. Desde já
têm suas tarefas na clínica e são comandadas pela mão dura de Guaciara, a quem
chamam de “abuelita”.
Uma
manhã, Nikita recebeu uma surpresa. Uma visita de dois jovens. Um casal.
-
Eduardo, deixe tudo o que está fazendo e venha já para cá. Estou na nossa sala.
Eduardo
demorou alguns minutos, chegando assustado.
-
Olá, bom dia...
-
Bom dia, tio Eduardo. Você certamente não se lembra de mim. Sou Ivan, filho da
Lilith e essa é minha namorada Dalila.
-
Nossa... Puxa... Que bom ver você. Bem, sinto muito a sua perda. Sei que Lilith
foi uma grande mãe.
Lilith
morrera havia seis meses, mas Nikita e Eduardo só haviam sido informados semanas atrás.
-
Sim. Foi uma grande mãe. Sei, no entanto, que não foi uma grande filha e muito menos uma grande
irmã. Ela passou a limpo comigo a sua vida, mas sobre isso falamos à noite, se
desejarem. Bem, gostaria de conhecer a clínica, afinal sou sócio, não é mesmo?
Dalila já está há algum tempo trabalhando e não demora será médica. Com o
período de hospitalização de minha mãe, as duas tornaram-se bem próximas. Já eu
iniciei há pouco. Tenho longo caminho pela frente
-
Claro. Deixe Dalila com Nikita, que vai mostrar a parte chique e venha comigo
ver o nosso trabalho social.
-
Tio e tia, hoje à noite podemos conversar? Sei que tenho primas. Também
gostaria de conhecê-las.
-
Sim. Jantamos e depois conversamos
O
jantar transcorreu de forma leve, muita conversa jogada fora, lembranças que
não poderiam ser muitas, até porque não convinham.
-
As primas, apesar de adotadas, são muito parecidas com você tia Nikita. Mesmo
porte, mesmos olhos claros indefinidos. Muito simpáticas.
-
Você esqueceu dois detalhes, primo, um o principal: inteligentes. O outro:
lindas – cobrou Maiara rindo.
-
Sim, certamente. Quando disse que eram parecidas com tia Nikita deixei isso implícito.
Lilith, apesar de bonita tinha inveja do seu porte tia. Bem... Como disse, em
suas últimas semanas minha mãe se revelou a mim. Contou em detalhes toda a sua
vida, as partes mais relevantes, acho. Sei quem foi meu avô, sei quem foi meu
pai, meu outro tio e sei o que fez minha mãe, inclusive de sua participação no
seu sequestro, tia. Participação não, ela planejou tudo e isso me dá a dimensão
do que é você como pessoa. Conclui que minha mãe era diabólica, embora fosse um
anjo comigo.
-
Agora vamos à parte mais difícil. Você sabe a origem disso aqui, tio Eduardo?
-
Sim. É uma escova de cabelo parecida com a que eu perdi quando me mudei de casa.
Isso há mais de vinte anos.
Nikita
e Eduardo olharam-se por um lapso de tempo, sentindo algo como um pesar.
-
Meu pai, quando morreu, chegou em casa e começou a beber. Ele desconfiava de
minha mãe, tinha ciúmes e já tinham discutido durante o dia. Nessa noite, tanto
procurou que acabou encontrando algo que mudaria tudo. Isto (Ivan mostrou aos
tios um envelope) a partir daí começou a quebrar coisas, bateu na minha mãe e
bebeu mais. Então teve o AVC. Minha mãe poderia ter chamado antes o
atendimento, mas, segundo ela, sentou-se no chão, à frente dele e ficou
assistindo-o se debater. Quando ele estava desacordado então chamou o socorro.
-
Que horror!
-
Meu pai recebeu os primeiros socorros e ainda na ambulância deu uma pequena
reagida, e foi aí que pronunciou o seu nome, tio Eduardo.
-
Sim, nós soubemos disso.
-
Só não sabem que o motivo dele ter pronunciado o seu nome foi o mesmo que
provocou aquele caos. Veja aqui, tio, isso foi o que meu pai encontrou e que
desencadeou toda a crise, e que justifica também a importância desse objeto. Você
não perdeu sua escova. Ela estava com a minha mãe e por um motivo bem especial.
Abra o envelope.
Ivan
entregou a Eduardo um envelope envelhecido. Era um teste de DNA, que ele repassou
a Nikita para que abrisse. Sim, Ivan era seu filho. Eduardo saiu da sala, lembrando
de uma frase dita por Lilith “você não vai se livrar de mim”.
“Burro!
Mil vezes burro! Imbecil!”, brigava consigo mesmo. Demorou para voltar à sala e
só o fez quando as filhas foram buscá-lo.
-
Venha papito. Nada vai mudar. Vocês nos ensinaram que devemos ficar sempre
juntos, porque assim somos fortes e imbatíveis. Vamos.
-
Bem, Ivan, lamento não ter ficado feliz com a notícia. Ao contrário, estou
profundamente constrangido, talvez até magoado. Tenho muitas culpas aí e isso
vai me tirar o sono. Aceitei a espada de Dâmocles sobre a cabeça e eu mesmo cortei
a corda.
-
Fique tranquilo, tio. Nada vai mudar. Falei porque acho que era direito que
soubessem. Também me choquei quando soube. Somos vítimas da mentalidade
diabólica da minha mãe, essa é a verdade. Ela fez tudo isso de caso pensado.
Enquanto
falavam, as gêmeas só observavam. Tainara olhava em especial para Dalila. Era
muito intuitiva. Botava olho e dava o diagnóstico, quase sempre certo. Dalila
sentiu-se bastante desconfortável com a situação.
Depois
de todas as tensões, recolheram-se aos aposentos. Eduardo estava transtornado,
quase choroso, sendo consolado por Nikita
-
Não há o que fazer, meu bem. Lilith avisou que estaria sempre em nossas vidas. Ivan
tem o mesmo olhar enviesado da mãe. Não gosto disso, já a namorada... Parece
que tem uma bagagem muito grande escondida. Só parece. Mas cabe a nós impedirmos
que isso nos perturbe.
As
gêmeas entraram no quarto para o beijinho de boa noite e Tainara sentenciou:
-
Pai, você sabe que a minha intuição não falha. Ok, falha, mas quase nunca. Não
gostei do primo, mas gostei muito menos dela. Acho que tem idade para ser mãe
dele, para dizer o mínimo. Melhor não facilitar com eles. Boa noite.
-
Ok, filhas, obrigado, tragam cá seus beijos e depois vão dormir.
-
Nikita, a sociedade é dividida em 40/40/20, certo? Amanhã chame a contadora e
faça uma alteração no nosso contrato. Você fica com 51%, as meninas com 5% cada
uma e eu com 19%. Vamos fazer isso sem alarde. Por favor.
-
Entendi o que você quer fazer. Ok. De qualquer forma vai ficar tudo igual. O
que aconteceu esta noite, se de um lado força lembranças não tão boas, por
outro faz com que valorizemos cada passo que demos, com fé e confiança um no
outro. Foi assim que tudo deu certo e assim continuará dando. E como fomos abençoados
com a chegada dessas filhas! Eu não poderia desejar que fossem melhores. Às
vezes me atormenta a saudade de quando eram crianças. Que mulheres lindas estão
se tornando! E você, meu querido... Você é a alma da clínica e essa
grandiosidade não teria acontecido sem o seu trabalho e visão social. Nem eu
poderia imaginar que pudesse ser tão feliz ao lado de um homem tão inocente;
quase babaca. Meu amor por você é progressivo, para o desencanto daquela alma
sem luz. Agora descanse, porque amanhã essa coisa continua.
Na
manhã seguinte, quando chegava à sua sala, Nikita foi surpreendida com um buquê
enorme de rosas. Não eram rosas comuns. Eram rosas colombianas lindas E um
cartãozinho:
” Aquí estoy, hermanita, siempre con los ojos bien abiertos, pero abre los tuyos también. El huevo que dejó la serpiente no está solo. La mujer tiene lazos peligrosos. Precaución.
P”.
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