Prestei
serviço militar na cavalaria, em Uruguaiana, quando entre outras facilidades da
vida nacional curtíamos o AI-5. Titio Médici ouvia radinho no Maracanã,
torcendo pelo seu Fluminense, enquanto algumas “assessorias civis” agiam nos porões,
ajudando a maltratar a imagem do velho general. Mas este é um passado que já deveria ter sido
sepultado para o bem do futuro.
Na
caserna, sofri os rigores da época, mais por mim do que por ela. Eu era (era?)
um pau torto de angico, duro de beiço. Como passávamos mais tempo confinados do que
na rua, quase sempre de prontidão, certa vez pedi aos meus superiores para
organizar um jornalzinho mural no alojamento. Algo leve, inocente. A idéia era aliviar
as tensões e estimular o humor com recortes do Recruta Zero, a revista, apenas
manipulando os diálogos, a fim de ajustá-los ao dia-a-dia da milicada. Com
muitas desconfianças fui autorizado, desde que respeitadas hierarquias e seus
quetais, também de beiço duro.
Inicialmente
foi um sucesso, e todos aguardavam ansiosamente a renovação do mural para rir e
fazer graça. Mas se fazer graça é difícil, manter-se engraçado é muito mais. Requer
principalmente inovação, além, claro, de criatividade. Assim... Começou o que
foi considerado abusivo. Ora, a revista tinha um personagem chamado coronel
Durindana, e no regimento havia um protótipo semelhante. Como resistir a isto? Os
diálogos postados no dia eram substituídos durante a noite, e ainda que inocentes,
tornavam-se cada vez mais debochados. Enfim, começou a protagonizar os recortes
quem estava sendo preservado, viu-se depois que por justificado medo: o
sargento Tainha. Eis por que se empastela a imprensa marrom. A gente até pode mexer
com quem não pode, mas mexer com quem não deve... Acabou o jornal e o editor foi preso.
Fiquei
dois ou três dias recolhido no quartel. No entanto, fizera muitas amizades em
função do esporte, onde o nome Portella tinha algum peso, e por que, embora
tivesse minhas próprias idéias sobre liberdade de expressão, era inofensivo. Na
época, porém, a coisa era mais ou menos assim: “a noite todos os gatos são
tigres”. Fui então transferido para o hospital militar, onde cumpri o restante
do meu tempo prestando serviços na administração, proibido de me manifestar em
grupo por qualquer meio. Sair de vez em quando, de dia, e com hora marcada
para retornar.
Prestes
a findar meu tempo de caserna, se fez necessário justificar a hospitalização, visto que a minha saúde era perfeita. Aí começou o martírio. O
novo médico, alto, corpulento, postura modelito Quasimodo, braços Toni Ramos e
sobrancelhas Malu Máder decidiu me operar. Mas de quê? Fui chamado à consulta.
Sem me olhar o capitão ordenou “te pela!”. (Não me caguei, mas quase). Ai
resolveu me olhar. Olhar assim como quem olha um arbusto. “Fimose”, disse ele.
E não adiantaram justificativas e demonstrações de que não tinha. E não tinha
mesmo. Mas estava decidido: operariam a fimose. Nunca sem espernear! Não sei quantas
vezes pedi que me poupassem; para que me cortassem os dedos (quem precisa de
dez? Com nove dá até para ser presidente).
Quando
me aplicaram a anestesia raquidiana rezei pela vida de um amigo que nasceu e se
criou comigo, destinado a duas das maiores satisfações que um homem pode ter. O
cirurgião foi especialmente sinistro. Como tinha um pano à minha frente
tolhendo a visão, vi-o falar ao enfermeiro: “pinça”, com a qual pinçava o não
sei o quê anestesiado; “bisturi”, com o qual fazia que cortava o mesmo não sei
o quê, dizendo suavemente: “o soldado que não respeita a carreira e a Revolução não é homem, e
se não é, não precisa disto mesmo...”, e zás (movimento de corte), mostrando a luva
ensangüentada. Eu chorava. E ele falava mais: “e se não tem o principal, pra
que ficar com estas duas inutilidades penduradas?”. Zás, e mais luva com sangue.
Enquanto eu dava uma última choradinha, apaguei. Quando me recobrei acabava a cirurgia,
e eu ainda tive um pensamento sobre todos os netos que gostaria de ter dado ao
velho Portella, antes de apagar de novo sob o efeito de mais um tsunami químico
na veia. Dormi pensando na imprevidência do meu velho querido que me fez seu único
carregador do nome.
Acordei
um dia depois. Fui recobrando de leve os sentidos. Estava com os pulsos presos
e com um enfermeiro enorme do lado. Com o pavor que pode causar um soldado de
55 quilos, ordenei-lhe que me soltasse. Ele riu, claro, e apenas me disse “vai
com calma para não te machucar”. Calma o cacete! E era justamente isto que eu precisava
verificar, junto com suas adjacências penduradas, ou... O lugar onde se
encontravam. Aleluia! Lá estava! Protagonista e coadjuvante, ele todo
enfaixado, costurado, dolorido (não sei o que cortaram).
Como
Deus é bom! Na época cantava-se “oitenta milhões em ação, pra frente Brasil do
meu coração...”. Como gratidão a essa
alegria toda, ajudei bastante nos números seguintes.


2 comentários:
Você está me saindo muitíssimo melhor do que a encomenda, à medida em que fica JOVEM A MAIS TEMPO... Verdade, Zero, como teu recruta (e de NADA ADIANTARÁ JURAR DE MÃOS POSTAS E AJOELHADO...) ; mas criatividade MIL. E quando falamos de CRIADOR de que (m) falamos, senão disso?! Magistral! (ah, antes que esqueça, continues jurando que é VERDADE que a rapaziada, no geral, não suporta a tal de verossimilhança...). Grande abraço e que venham novos textos com as verdades antigas! E, com todos os méritos, fazes com as mãos o que o velho Portella fazia com os pés! Craques em seus afazeres!
Muita boa lembrança Jair(Palito)Guardanapo, ler recordações sadias, ousadas para a época, nos remete a um tempo também em que ousávamos e nossa ousadia não machucava ninguém, feria algum sentimento, mas de leve. Grande abraço - o amigo acima deve ser colorado, pois tratou de transferir para as mãos o dom que tanto dizes ter com os pés. Fica de olho. Nilo
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