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quarta-feira, 2 de outubro de 2013

CASERNA



Prestei serviço militar na cavalaria, em Uruguaiana, quando entre outras facilidades da vida nacional curtíamos o AI-5. Titio Médici ouvia radinho no Maracanã, torcendo pelo seu Fluminense, enquanto algumas “assessorias civis” agiam nos porões, ajudando a maltratar a imagem do velho general.  Mas este é um passado que já deveria ter sido sepultado para o bem do futuro.

Na caserna, sofri os rigores da época, mais por mim do que por ela. Eu era (era?) um pau torto de angico, duro de beiço.   Como passávamos mais tempo confinados do que na rua, quase sempre de prontidão, certa vez pedi aos meus superiores para organizar um jornalzinho mural no alojamento. Algo leve, inocente. A idéia era aliviar as tensões e estimular o humor com recortes do Recruta Zero, a revista, apenas manipulando os diálogos, a fim de ajustá-los ao dia-a-dia da milicada. Com muitas desconfianças fui autorizado, desde que respeitadas hierarquias e seus quetais, também de beiço duro.   

Inicialmente foi um sucesso, e todos aguardavam ansiosamente a renovação do mural para rir e fazer graça. Mas se fazer graça é difícil, manter-se engraçado é muito mais. Requer principalmente inovação, além, claro, de criatividade. Assim... Começou o que foi considerado abusivo. Ora, a revista tinha um personagem chamado coronel Durindana, e no regimento havia um protótipo semelhante. Como resistir a isto? Os diálogos postados no dia eram substituídos durante a noite, e ainda que inocentes, tornavam-se cada vez mais debochados. Enfim, começou a protagonizar os recortes quem estava sendo preservado, viu-se depois que por justificado medo: o sargento Tainha. Eis por que se empastela a imprensa marrom. A gente até pode mexer com quem não pode, mas mexer com quem não deve... Acabou o jornal e o editor foi preso.

Fiquei dois ou três dias recolhido no quartel. No entanto, fizera muitas amizades em função do esporte, onde o nome Portella tinha algum peso, e por que, embora tivesse minhas próprias idéias sobre liberdade de expressão, era inofensivo. Na época, porém, a coisa era mais ou menos assim: “a noite todos os gatos são tigres”. Fui então transferido para o hospital militar, onde cumpri o restante do meu tempo prestando serviços na administração, proibido de me manifestar em grupo por qualquer meio. Sair de vez em quando, de dia, e com hora marcada para retornar.

Prestes a findar meu tempo de caserna, se fez necessário justificar a hospitalização, visto que a minha saúde era perfeita. Aí começou o martírio. O novo médico, alto, corpulento, postura modelito Quasimodo, braços Toni Ramos e sobrancelhas Malu Máder decidiu me operar. Mas de quê? Fui chamado à consulta. Sem me olhar o capitão ordenou “te pela!”. (Não me caguei, mas quase). Ai resolveu me olhar. Olhar assim como quem olha um arbusto. “Fimose”, disse ele. E não adiantaram justificativas e demonstrações de que não tinha. E não tinha mesmo. Mas estava decidido: operariam a fimose. Nunca sem espernear! Não sei quantas vezes pedi que me poupassem; para que me cortassem os dedos (quem precisa de dez? Com nove dá até para ser presidente).

Quando me aplicaram a anestesia raquidiana rezei pela vida de um amigo que nasceu e se criou comigo, destinado a duas das maiores satisfações que um homem pode ter. O cirurgião foi especialmente sinistro. Como tinha um pano à minha frente tolhendo a visão, vi-o falar ao enfermeiro: “pinça”, com a qual pinçava o não sei o quê anestesiado; “bisturi”, com o qual fazia que cortava o mesmo não sei o quê, dizendo suavemente: “o soldado que não respeita a carreira e a Revolução não é homem, e se não é, não precisa disto mesmo...”, e zás (movimento de corte), mostrando a luva ensangüentada. Eu chorava. E ele falava mais: “e se não tem o principal, pra que ficar com estas duas inutilidades penduradas?”. Zás, e mais luva com sangue. Enquanto eu dava uma última choradinha, apaguei. Quando me recobrei acabava a cirurgia, e eu ainda tive um pensamento sobre todos os netos que gostaria de ter dado ao velho Portella, antes de apagar de novo sob o efeito de mais um tsunami químico na veia. Dormi pensando na imprevidência do meu velho querido que me fez seu único carregador do nome.

Acordei um dia depois. Fui recobrando de leve os sentidos. Estava com os pulsos presos e com um enfermeiro enorme do lado. Com o pavor que pode causar um soldado de 55 quilos, ordenei-lhe que me soltasse. Ele riu, claro, e apenas me disse “vai com calma para não te machucar”. Calma o cacete! E era justamente isto que eu precisava verificar, junto com suas adjacências penduradas, ou... O lugar onde se encontravam. Aleluia! Lá estava! Protagonista e coadjuvante, ele todo enfaixado, costurado, dolorido (não sei o que cortaram).



Como Deus é bom! Na época cantava-se “oitenta milhões em ação, pra frente Brasil do meu coração...”.  Como gratidão a essa alegria toda, ajudei bastante nos números seguintes.   

2 comentários:

Anônimo disse...

Você está me saindo muitíssimo melhor do que a encomenda, à medida em que fica JOVEM A MAIS TEMPO... Verdade, Zero, como teu recruta (e de NADA ADIANTARÁ JURAR DE MÃOS POSTAS E AJOELHADO...) ; mas criatividade MIL. E quando falamos de CRIADOR de que (m) falamos, senão disso?! Magistral! (ah, antes que esqueça, continues jurando que é VERDADE que a rapaziada, no geral, não suporta a tal de verossimilhança...). Grande abraço e que venham novos textos com as verdades antigas! E, com todos os méritos, fazes com as mãos o que o velho Portella fazia com os pés! Craques em seus afazeres!

Anônimo disse...

Muita boa lembrança Jair(Palito)Guardanapo, ler recordações sadias, ousadas para a época, nos remete a um tempo também em que ousávamos e nossa ousadia não machucava ninguém, feria algum sentimento, mas de leve. Grande abraço - o amigo acima deve ser colorado, pois tratou de transferir para as mãos o dom que tanto dizes ter com os pés. Fica de olho. Nilo