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terça-feira, 18 de maio de 2021

QUO VADIS?


Raciocinamos nós outros, que passamos por algumas gerações, desde a dureza familiar da primeira metade do século 20, depois pela revolução de costumes dos anos 60 e ... Bueno, aí se foi o boi com a corda. Perderam-se os limites e os culpados estão bem aqui, ó: nós, precursores dessa tal liberdade, que não percebemos que a fronteira com a libertinagem nem era assim tão larga. Pois racionamos como há de ser o mundo logo ali, com o saldo de gente que restar (saldo genérico e quantitativo), olhando pelo prisma alarmista que verbera pela grande mídia e faz eco entre os nossos medos.

Haveremos de nos encontrar, mantendo distanciamento social, sem apertar as mãos, sem dois ou três beijos... Sorrisos moderados, quiçá escondidos, já que gargalhadas geram perdigotos; contatos físicos serão arriscados, e logo mais virá uma outra geração que não há de saber o que ou o quanto significa um abraço. Falo de um ABRAÇO, desses que já nos fazem tanta falta. E a juventude nas baladas, que há bem pouco se enfileirava para beijar na boca, contabilizando, e as vezes se perdendo nas contas, de quantas bocas foram beijadas? Nem pensar. Ou haverão de criar camisinhas especiais para bocas e línguas que mantenham a sensação de "pele com pele". Bah!
Por este último prisma, a verdade é que os excessos liberais, a par de nos ter criado como seres extremamente afetivos, também acabou vulgarizando a arte da sedução. Modernamente as coisas se tornaram bem mais fáceis e as três melhores coisas da vida, que antes se dizia ser um uísque antes e um cigarro depois, hoje se basta com um olhar antes e uma pergunta depois, tipo: "qual é mesmo teu nome?". Essa banalização da conquista, não por culpa dela nem das pessoas, claro, haverá de ser agora uma tarefa de alto risco. Que se virem os que vierem! As dificuldades serão outras. 
Sinceramente? Gostei de ter passado a minha vida pela fase um e dois do processo que me delegaram nesse "vale de lágrimas", tendo de driblar as dificuldades que deram gosto às conquistas e amargando dores e frustrações que tanto me ensinaram. Arrependimentos e perdões são inúteis. Fazem parte das tais águas passadas que não movem moinhos. Tudo isso de acordo com o que dizia vó Miroca. E afinal, as penitências físicas já entram a crédito nas minhas remissões.  
Mas ainda assim pedindo perdão pelos maus ensinamentos ou pela falta deles, que dei aos filhos, calço serenamente minhas pantufas, agradecendo ao Velho a oportunidade de ter atingido a condição de grupo de risco, lúcido, e vivendo minuto a minuto fora do modo automático. Não facilito. 
Fiquem bem. Eu... Me viro. 

terça-feira, 6 de abril de 2021

HELENA

 




Arthur não perdia os bailinhos nos anos 70. Ia a todos os possíveis e a mais não ia por concomitância. E as parcerias, guris e gurias, eram sempre as mesmas. Ou quase.

Era temporada de férias, dezembro, e Arthur pisou no salão já com olhar de varredura. Circulou, cumprimentou pessoas, identificou os pares, oportunidades, ameaças e tal.

Cruzou os olhos com alguém que não conhecia... Cruzou e voltou. Chamam de olhar fixo, mas aquilo era um pouco mais. Foi uma troca fulminante de olhares que se acharam, como se há muito se procurassem. Era uma menina nova no lugar, acompanhada por Regina, sua amiga, confidente, parceira de dança. Imantaram-se até  o chamado de Regina. Arthur foi até a mesa seguindo o traçado dos olhos, reafirmando a tese de que a linha reta é a menor distância entre dois pontos.

- Arthur, esta é minha prima Helena, que mora em Minas.

- Oi, prima Helena. Vou dizer algo que você deve ter cansado de  ouvir hoje: como você é linda!

- Oi Arthur, obrigada. Mais ou menos já conheço você. Regina fala muito a seu respeito.

-  São calúnias. Tudo mentira, juro. Me dê a chance de provar.

Juntaram-se mais amigos e um, em especial não perdeu tempo. Pegou Helena pela mão e foi dançar, como se já se conhecessem há tempos. Arthur que já estava perturbado desde a troca de olhares, impactou-se. “Como assim? Será que já se conheciam? Merda!” Dançaram e dançaram sem folga, para a contrariedade de Arthur, que esquecera que estava junto da sua velha companheira de danças.

- Ok. O próximo parente que eu convidar para passar as férias aqui será um primo – disse Regina brincando, mas visivelmente chateada.

- Oi? Claro, por que não dançamos?

Mas Arthur não tirava os olhos de Helena, que lhe retribuía, mas desviava o olhar, como se desse um aviso de não conformidade. Dançava e conversava alegremente com Emílio. “Será que não terei chance? O cara não larga o osso”. E enfim pararam.  Arthur e Regina também pararam, óbvio.

Emílio puxou Arthur até o bar, com a desculpa de comprarem refrigerantes.

- Olha só, bicho, desde que Helena chegou estou investindo forte nela. Tive a sorte de vir no mesmo ônibus que ela, começamos a conversar e nos entrosamos. Portanto... Cai fora! Conheço muito bem essa ligação entre seus olhos e suas garras. Certo?

“Puta que pariu!”

- Não sei, mano. Ela me atordoou. Não posso prometer muita coisa além de respeitar uma distância mínima. Por enquanto vou deixar você em paz, mas se é assim vou embora. Não vou ficar aqui.

E Arthur não voltou à mesa, dando um tchauzinho à distância.

- O que deu nele? – perguntou Regina.

Emílio olhou para Helena, Regina também olhou para a prima que se constrangeu um pouco, e todos mais ou menos entenderam, só acharam uma atitude estranha e incompatível com Arthur. Um dia depois ele foi procurar Regina. Precisava falar com ela, desculpar-se, entre outras coisas.

- Regina, meu amor, sabemos um do outro desde que andávamos pelados dentro de casa, portanto nós nos conhecemos bem e não precisamos de rodeios para falar. Antes de dizer o que quero, descobri que Emílio está de quatro pela prima. Bem... Ele e eu. Uma vez você me falou sobre amor à primeira vista e eu gozei com a sua cara, lembra? Pois bem... Chegou a sua vez. Divirta-se. Estou como se tivesse sido abduzido.

- Putz! Não acredito... Bem, diga isso diretamente à destinatária. Ela está bem atrás de você e já ouviu, mas é bom repetir. Vou deixar vocês sozinhos.

Arthur não tinha a timidez entre suas características, mas aquela   era uma situação nova, diferente e ele se enredou um pouco.

- Helena...

- Não fale. Eu falo primeiro, pode ser? Ok. Quando você chegou no bailinho a gente se olhou e teve um magnetismo muito forte, sabemos que sim e não precisamos mentir ou disfarçar. Perguntei para a Regina quem era “aquele” e ela o identificou. Aliás, ela me falava a seu respeito há muito tempo e eu já conhecia muito de você. Então tratei de desviar o foco, por uma questão simples e é impressionante como você não tenha percebido – esses homens! – ela é apaixonada; louca por você! Mas me prometa, por favor, não diga que eu lhe contei isso, ok? Por favor.  Percebe por quê não podemos ter nada, não é mesmo?

- Não acredito nisso! A minha Regina? Quase uma irmã! Não sei o que fazer com isso! Estou desarmado. Helena, acho que você já entendeu o que eu sinto. Nunca aconteceu comigo nada parecido e foi logo de cara. Tenho certeza de que é isso que chamam de amor.  É algo absurdamente forte, que domina a minha vontade.

- Não sei medir muito isso. Fui educada para ter controle das coisas. O que sei é que você não está sozinho nessa tormenta. Penso em ficar até o final de janeiro, mas não sei não.

- Bah! Vai ser difícil. Lembrei do meu tio diabético, apaixonado por quindim. Dá pena de ver como olha a vitrine da confeitaria. Não quero atrapalhar as suas férias, mas também não vou poder ficar apenas olhando você. Posso ganhar um abraço?

Abraçaram-se, trocaram alguns carinhos, colaram seus rostos e Arthur quis beijá-la, mas ela colocou um dedo em seus lábios.

- Não. Por favor. Nada que eu não queira, mas não posso fazer isso com a prima. Ao menos não agora.

Os dias passavam, Arthur e Helena encontravam-se em grupo, ele sempre buscando o olhar dela que viajava entre os presentes e a vida que passava ao largo daquele campo magnético. Helena demonstrava já uma certa tristeza e Arthur experimentava um misto de revolta e frustração; vontade de forçar a barra, chutar o balde e outros atropelos. Tomou então uma decisão: viajaria. Sairia de perto. 

No final de semana, um novo evento. Um baile mesmo, com trajes sociais, vestidos longos, cabelos lambidos de um lado, cabelos edificados de outro. Arthur não era mais o mesmo e estava em dúvida sobre ir ao baile. Emílio não deixou por menos:

- Vamos lá ciumento. De hoje Helena não me escapa. Não vai querer conferir?

- Vou. Agora eu vou. E já comprei a minha passagem para depois de amanhã. Vou ficar uns tempos em Porto. Estou me enterrando e acho que estou fazendo mal à Helena. Desculpe.

Helena era loira, tinha cabelos longos, mas até então os mantinha  presos de alguma forma. Nessa noite, diferentemente do usual na época, onde se armavam em cachopas duras de laquê, ela os soltou para que varressem as costas decotadas enquanto caminhava. O vestido era o contraste do inferno. Um vermelho escuro, quase grená e que... bem... Arthur ficou em dúvidas se estava diante de um anjo ou de um demônio.  E Emílio salivando do lado.   

Regina também estava muito bonita. Aliás, tanto era o costume de tê-la por perto que nunca havia percebido no mulherão que se tornara. E tão logo viu o amigo o chamou. Arthur não foi. Não tão logo chamado. Fez ondinha, experimentou um uísque, ele que se gabava de não beber álcool, e mais uma dose e uma terceira. Parecia um bicho encurralado precisando de sedativo. Então foi à mesa.

- Nossa, mas que mulherio lindo! Vou ter que escolher com quem dançar primeiro e não será fácil.

- Arthur, vi você bebendo... É isso mesmo? - Perguntou Regina apreensiva

- Ah, uns golinhos de álcool para desinfetar uma ferida.

Todos se entreolharam e Emílio puxou o amigo para darem uma volta.

- Bicho, você não está nada bem. Acho que deve ir para casa. Vai ficar feio, olhe o seu estado. A gente sabe que não está acostumado com bebida, daqui a pouco vai fazer fiasco.

- Vou. Vou mesmo e vai ser agora.

Arthur deixou o amigo falando sozinho e voltou à mesa.

- Regina, minha querida, minha amiga, minha irmãzinha, a última pessoa do mundo que eu gostaria de magoar. Que vida linda que tivemos! Mas... Mas... E me perdoe também Emílio, mas... Helena, eu estou bêbado e vou embora. Vou mesmo. Quarta vou para Porto Alegre e talvez a gente não se veja nunca mais. Antes quero que todos saibam que eu estou completamente apaixonado por você. É mais forte que eu e muito mais forte que esse uísque horroroso que eu tomei. Vou embora, Vou embora porque o lugar onde eu gostaria de estar ou estará vago, ou ocupado por outra pessoa. Helena... Não tivemos nada, infelizmente, talvez nem possamos ter, mas prometo uma coisa: nunca, nunca mesmo vou esquecer você. Enfim, o tal amor existe e à primeira vista é ainda mais devastador. Estou destruído.  Olhe aqui ó... Pegue... É o meu coração. A partir de hoje ele começa a bater fora do meu peito. Fique com ele, não quero de volta. Acredite: é usufruto vitalício. Minha alma beija a tua com muito amor e eu me vou. O diabo me aguarda na porta do inferno e ele não gosta de esperar.  Amor, bosta de amor... 

Arthur fez o discurso bêbado, rasgado, dolorido como letra de tango, em frente a mesa onde estavam os amigos, constrangendo a todos. O baile ainda não havia começado e assim não só foi ouvido por uma grande plateia, como aplaudido,  com gritos de viva e “dá uma chance, Helena!”. Mas já era tarde. Ele tinha saído, indo embora tropeçando nos passos, tentando equilibrar-se na corda bamba da calçada. Helena estava imóvel. Olhar firme para frente, mas com os olhos borrados de uma lava preta que escorria pelas bochechas. Apesar de ter sempre o controle das coisas, fora demais e ela pediu para que Emílio a acompanhasse até a casa.

No dia seguinte e durante o dia da viagem, deu um jeito de não ser visto. Ninguém sabia onde Arthur se encontrava. Os pais apenas informavam -“saiu cedo e não disse para onde ia”. No momento de  embarcar, uma rápida despedida em casa e chegou à rodoviária em cima da hora. Não queria dar chance a nada e a ninguém que pudesse relembrar o fiasco do clube, ou despedidas melosas.

Com o pé no degrau do ônibus uma mão segurou a sua. Helena estava lá, carinha de choro e um olhar cheio de promessas impossíveis.

- Quero um abraço de despedida.

Abraçaram-se, trocaram carinhos e beijaram-se longamente, sendo separados pela buzina do motorista. Quietos e sem promessas, soltaram-se. Ato contínuo ela foi embora às pressas e ele subiu no ônibus, louco para ficar.

“Que loucura, meu Deus! Que loucura! Preciso tirar essa guria da cabeça”.

No bolso do casaco tinha ficado uma foto deixada por Helena, com uma dedicatória e um endereço de Belo Horizonte. Era, enfim, uma promessa: “você me deu seu coração, não esqueça disso. Eu entrego o meu a você, cuide bem dele. Helena”.

 II

- Esse é o livro que não consigo concluir, Arthurzinho. Não acho um fim porque talvez não tenha tido um começo. Mas são fragmentos de uma história real

Arthur estava revivendo essa história, contando-a ao neto, recém saído da adolescência, que teve seu namorico interrompido por que sua namoradinha fora morar nos EUA com os pais. Estava inconsolável. Não queria comer, se negava a ir à escola, sequer sair do quarto.

- E você nunca mais viu ela, vô?

- Vi. Tempos depois mandei uma carta e ela me respondeu. Fiquei de ir a Belo Horizonte, mas na mesma ocasião tive que voltar para ver meus velhos que estavam doentes e a coisa não aconteceu. Ela veio meses depois. Passamos um feriadão juntos em Gramado, maravilhoso, cheio de amor e promessas. Depois eu comecei a me virar para ver se encontrava trabalho por lá. Porém, passados alguns meses, ela me mandou uma carta curta, dizendo que ia para a Austrália. Ia fazer intercâmbio e aí... Bem, aí mixou tudo. É isso. Nunca mais soube dela.

Cada vez que lembrava dessa história, Arthur viajava, degustava o tempo experimentando todas as notas e aromas. Entrava em transe. De fato, como havia dito naquela fatídica noite do único porre que tomou na vida, ratificado no único momento em que estiveram juntos, nunca esqueceu Helena.   

- A vó sabia disso, vô?  

- Sua avó soube desde sempre, não tudo, claro. No leito de morte tentou falar alguma coisa que não entendi sobre a prima. Parecia importante, mas... Foi traída pela morte. Fique tranquilo. Regina e eu sempre fomos mais amigos do que um casal.

Arthur casou com Regina, com quem viveu por 35 anos. Uma relação harmônica sem sobressaltos e paixões. Uma brisa suave e morna. Tiveram um filho, Bruno, que resultou em um casal de netos, Arthurzinho e Nina, ainda criança.

Desde a morte de Regina, Arthur vivia só. Tinha imaginado uma vida intensa, mas a paixão frustrada por Helena fez com que sossegasse o pito. Não foi um caso duro demais, até porque não chegou a ser um caso, mas carregou ou carrega,  um sonho frustrado há quase meio século, e isso sim é muito duro.  

Tinha um plano para dali a pouco tempo. Com sessenta e oito anos, apesar da saúde boa,  negava-se a falar em futuro “na minha idade não existe futuro e passado foi minutos atrás. Só existe  presente e eu tenho que prestar a atenção em tudo, caso queira aproveitar a vida. Mas eu reconheço que vivo com um pé no passado”. O plano consistia em mudar-se para um condomínio de idosos, com facilitadores e recursos para uma vida independente. Seu foco era mudar-se para Caldas Novas, em Goiânia, onde conhecera um local desses, com toda  a estrutura e conforto que queria. Apenas esperava a melhor hora para anunciar aos seus.  E em um churrasco de final de semana pegou o notebook  e mostrou o vídeo do lugar ao filho, nora e netos.

- Tem tudo o que eu quero. Internet boa, TV a cabo. Vou poder ver meus jogos e filmes, continuar pintando, escrevendo e publicando. Já fui lá. É muito lindo e agradável.

- Mas pai...

- E aqui está o contrato. Vou mês que vem e, claro, sempre que quiserem ir me ver é só ir.

- Velho teimoso.

 II

O condomínio era composto por pequenas cabanas independentes, uma sede social e uma administrativa, com um ambulatório e supervisão médica.  Tudo simples, mas muito confortável. Já o lugar era maravilhoso, com matas, corredeiras e quedas d’água e um lago de águas termais.

Arthur não era muito bom de relacionamentos. Foi procurado por outros condôminos para fazer programas de velho, tipo jogo de cartas, bocha, dama e por aí vai. Não era a praia dele e aquilo o tornava antipático aos grupos que se formavam. Mal cumprimentavam-se. Não que fosse obrigatória, mas era bom para a convivência que todos se dessem bem.

Um tempo depois recebeu um chamado da administração. Dr. O’Neil, o administrador, gostaria de ter uma conversa com ele. Apenas para se conhecerem, mas ele sabia que deveria ter algo mais. “Mal cheguei e já arrumei confusão! Bueno...”  

- Bom dia, sou Almeida, Arthur Almeida, vim falar com doutor O’Neil. 

- Sim, só um instante.

- Bom dia, sr. Almeida. Sou doutora O’Neil. Meu marido e eu administramos o condomínio. No momento ele está em Brasília. Faz quimioterapia. Entre, sente e fique à vontade. Então... Como está se sentindo em seus primeiros dias conosco?

- Puxa. Lamento pelo seu marido. Falei com ele ano passado, quando vim conhecer o lugar. É aqui que vou encerrar meus dias, se tudo correr bem.

- “Encerrar meus dias” não é uma pauta que eu gosto. Mas diga: o que podemos fazer para que o senhor se sinta mais à vontade entre nós?

- Nada não. Tenho tudo o que preciso. Ver filmes, internet boa e tempo para escrever.

- Ah, o senhor é escritor? Que maravilha. Gostaria de ler suas publicações. Trabalha em algo atualmente?

- Sim. Quero finalizar um romance.

- Reserve o meu exemplar. Bem, mas era só isso. Gostaria de conhecê-lo. Observo que o senhor é bastante reservado e agora está explicado, não que precisasse. Cada um é dono do seu próprio espaço.

Arthur despediu-se bem impressionado com a doutora e se foi cantarolando: Que bonitos ojos tienes debajo de esas dos cejas? Vou rever "El secreto de sus ojos" hoje. "Bonitona, ela" .

Doutora O’Neil, médica, com especialização em gerontologia, era casada com Dr. Charles O’Neil, inglês e seu antigo orientador na universidade de Sidney, uma referência nessa área. Chegaram ao Brasil com o planejamento pronto para o condomínio de idosos. Compraram uma antiga pousada, reformaram e deram o toque final para o fim a que se destina.O doutor Charles O’Neil estava com 82 anos e tratava de um câncer no pulmão.

Doutora O’Neil, Helena O'Neil, ficou observando da janela o condômino caminhando em direção a sua cabana. A seguir, abriu uma gaveta e retirou uma caixinha metálica, onde guardava dezenas de cartas e uma foto. “Arthur Almeida... Arthur... Meu Arthur, como a vida ficou nos devendo coisas! E agora você está aqui. Veio morar comigo. Como pode não ter me reconhecido? Sequer desconfiado? Ah, Regina... Regina.. O que me fizeste prometer... Quando nos virmos de novo vou puxar seus cabelos”. Helena levantou-se e foi olhar-se no espelho. “É, envelheci, mas os corações continuam batendo forte e agora já não dá para destrocá-los”.

Após esse encontro, Arthur não viu mais a doutora O’Neil. Nem quando foi até a sede levar alguns livros antigos seus, destinados à biblioteca do condomínio. Deveria estar envolvida com o marido.

De fato, Helena estava cuidando do marido que piorava rapidamente e as sessões de quimioterapia, além de não surtirem o efeito desejado, fragilizavam cada vez mais o organismo. Recebeu os livros deixados por Arthur, passou rapidamente os olhos sobre eles. Abriu um que falava sobre a juventude. Leu algumas crônicas, viajou no tempo, e ,quando fechou, deixou cair uma foto que estava dentro. Uma foto bem conhecida: a mesma que dera a Arthur quando fora despedir-se dele na rodoviária, mais de meio século atrás.

“Meu Deus! Como evitar o inevitável?”  

Doutor Charles O’Neil faleceu dois meses depois.

- Doutora, sei que não há palavras para momentos como este. Também tive uma perda dessas e a gente custa a elaborar a nova realidade. Meus pêsames.

- Obrigada. Tivemos uma vida boa. Charles era um bom homem e fomos ótimos parceiros de vida. Vai fazer falta aqui. Ah, veja, essa foto caiu de um dos livros que o senhor nos deixou.

- Puxa! Que coisa boa! Há muito procurava por essa foto. Achei que a tinha perdido.  Agora vou poder concluir o trabalho. O nome dela é o título do romance: “Helena”, uma longa e interminável história de amor. Minha Helena! Obrigado, doutora.

Arthur se retirou com mais algumas palavras de conforto, uma vez que finalmente a doutora O’Neil começara a chorar convulsivamente, pedindo para ficar só. “Coitada, deveria estar ainda em choque pela perda. A ficha deve ter caído finalmente”.

O reencontro com a foto que julgara perdida deu um up nos textos. Conseguira amarrar bem a história e encaminhar um final legal. Pronto. Agora era entregar para a editora que faria o resto. Por certo que alguns ajustes ainda haveriam de ser feitos durante a revisão. 

Depois de uma obra pronta vem o relaxamento. Um vazio interminável onde o que sobra é apenas a saudade dos personagens.  Arthur, que havia encomendado pela internet o material de pintura, passaria à segunda coisa que mais lhe preenchia o tempo: pintura. Não era um virtuose, mas retratava bem, e de posse da foto que julgava perdida, iria reproduzi-la em tela. “Vai demorar. Espero não jogar tantas telas fora”.

A viuvez da doutora produziu um recolhimento além da conta. Foram algumas semanas em que sequer se ouvia falar da administradora. Mas Arthur, absorto, ou alienado como sempre, pouco percebeu isso. Até que um dia, final de tarde, enquanto tomava um chimarrão sentado na varanda recebeu uma visita.

- Boa tarde, Arthur, vou tratá-lo de você e espero o mesmo. Nunca consegui compreender como vocês, gaúchos, conseguem beber água quente em pleno verão.

- Boa tarde, doutora. Que surpresa boa! Também não entendo esse hábito, aliás nem tento entender. Tudo bem?

- Sim, está tudo bem. Ando me sentindo muito sozinha e hoje escolhi o mais solitário e retraído dos meus condôminos para conversar. Espero não atrapalhar o seu chimarrão.

- Nada. Por favor, sente-se.

Helena sentou-se à frente de Arthur e ficou um tempo quietinha, como se estivesse escolhendo um assunto para começar.

- Seu livro... Como está o seu livro?

- Terminei. Está na editora. Fiz recentemente alguns ajustes após a revisão. Deve sair mês que vem. Mas foi um livro que escrevi durante quase dez anos. Tudo por causa do final, que nunca me agradou.

- Ótimo. Não esqueça do meu exemplar. Amo finais felizes. Espero que tenha tido um final feliz para a sua Helena.

- Não sei se é feliz. É um final vago, já que é uma história que não terminou. Ou melhor: sequer começou.

- Agora você me deixou curiosa. Não me obrigue a torturá-lo para que me conte como terminou - riram.

- Ok. Vou lhe contar a última sentença. Tenho bem presente na memória porque demorei um mês para decidir como encerraria. “Cá estamos, Helena, como idealizamos na única vez em que estivemos juntos. Mas permanecemos como sempre matéria e sonho, agora no paraíso”.  É isso.

- Foi um amor de verdade?

- Se foi verdadeiro? Não sei. As vezes acho que foi um sonho. Um sonho escolhido na estante dos maravilhosos. Amei... Amei? Amo demais uma imagem desde o primeiro momento que a vi e sofro desde que se tornou lembrança.  Venha. Vou lhe mostrar a capa.

Arthur pegou Helena pela mão e a levou para dentro, onde estava a tela com a foto que havia perdido, reproduzida em tela. Ele não percebeu, mas a doutora lacrimejava mansamente. Até que uma tempestade salgada explodiu em seus olhos. Imediatamente Helena deu as costas e foi embora sem dizer uma única palavra.

Arthur ficou desconcertado, culpado, entristecido. O que teria feito de errado? “Puta que pariu! Pobrezinha! Ainda deve estar muito sentida”.

Menos de um mês depois, Arthur recebeu sua cota de livros, enviados pela editora. Uma ótima desculpa para visitar a doutora. Iria entregar-lhe o exemplar.

- Bom dia, doutora. Tudo bem? Posso entrar?

- Claro. Por favor sente-se. Estava justamente reunindo coragem para ir à sua casa pedir-lhe perdão pelo fiasco que fiz.

- Nada. Não precisa. Sua viuvez ainda é muito recente e eu compreendo.

- Não é isso. Ou não foi por isso. Você tem tempo para ouvir uma historinha?

- O que mais tenho é tempo e preenchê-lo é uma luta terrível. Por favor, fale.

- A sua história sobre a foto e o livro, que ainda não li, mas que imagino, mexeu comigo por demais. Minha história também passa por algo assim.

Helena serviu os cafés e sentou-se em frente a Arthur. 

- Eu tinha dezoito anos e conheci um rapaz, numa cidadezinha bem longe daqui. Foi daquelas coisas que não se explica pela ciência. Talvez encontre parâmetro naquilo que não podemos ver, só queremos acreditar. Ele e eu apenas nos olhamos em meio a várias pessoas e houve um magnetismo imediato, impulsivo, só controlável, porque eu sempre fui controlada, e eu digo hoje: infelizmente. Perguntei quem era "aquele" à pessoa que estava comigo, e que me era muito cara, e ela me disse: é ele. Ele, no caso, era o rapaz que era pauta permanente dela, sempre que trocávamos confidências por carta ou telefone. Ela era louca por ele e o babaca não percebia. Uma guerra dentro de mim começou de pronto. O porquê, eu não sei, mas sabia que aquele rapaz tinha muito a ver comigo. Fisicamente era o que eu havia idealizado a partir das descrições dela e depois, quando nos falamos, tinha aquela tempestade mal contida em tudo o que dizia. Era intenso, cheio de energia boa. Mas ceder ao impulso magoaria outra pessoa.  E tudo ficou pior quando soube que a recíproca era verdadeira. Enfim... Ele foi embora, embora mesmo, foi viajar e não voltou mais. Levou uma foto minha como lembrança.

- Puxa! Você parece que leu o meu livro. É mais ou menos isso. Ele levou uma foto sua e não deixou nenhuma?

- Tenho uma, mas ele não sabe. É o seguinte: quando ele percebeu que eu não arredaria pé de me manter fiel à pessoa que era apaixonada por ele, uma quase irmã minha, ele se desesperou de vez. Antes de viajar houve um baile na cidade e ele, que segundo soube, jamais havia experimentado bebida de álcool, tomou um porre e fez uma declaração pública de amor para mim, em frente a todos os que estavam no baile. Perdi o chão, flutuei nas nuvens, me apaixonei e despenquei do salto... A foto dele, bêbado, me foi entregue pelo fotógrafo da festa, alguns dias depois, com a seguinte dedicatória: “jamais ouvi uma declaração de amor tão intensa e verdadeira”.

- E eu achando que a história do meu livro, que é quase uma biografia, era algo incomum, única, extraordinária. Que nada! Quase tudo tão igual!

Helena estava impressionada com a falta de conexão de Arthur.  A ponto de perder a paciência. "Como pode ser tão abobado?"

- É isso. Bem, daqui a alguns dias devo me mudar. Estou negociando o condomínio. Não tenho condições de cuidar sozinha e a minha especialização médica é muito cara para poder contratar um colega. Inviabilizaria o projeto. Vou procurar a foto para lhe mostrar.

- Que pena! Você é das poucas pessoas que eu gosto de sentar e conversar. Estava me acostumando a ter alguém com quem podia trocar ideias. Bem. Vou autografar o seu exemplar. Dedico para...

- Helena,

- Sim, Helena. Dedico para?

- Helena. Achei, eis a foto que lhe falei. 

Arthur apanhou a foto, pareceu perder o foco e o fôlego. Ficou lapsos de segundo cabisbaixo, sentindo uma forte alteração nos batimentos cardíacos e sem levantar os olhos disse:

- Não pode ser... Não pode ser verdade.

E olhou para Helena. E viu Helena. Foi a vez de Arthur fazer o que não fazia desde que nascera seu filho. Rompeu um choro convulsivo, misto de dor e alegria, com notas de espanto.

Helena levantou-se, serviu mais um café e um copo de água e voltou a sentar-se, agora ao lado de Arthur. Parecia degustar cada lágrima jorrada, afinal, era a segunda declaração de amor intensa que recebia, meio século após a primeira. Pegou a mão dele entre as suas e falou:

- Não esqueci um minuto sequer de tudo o que vivemos e sonhamos na única vez em que estivemos juntos. Tive quase certeza de que ali era o início de uma relação com gostinho de eternidade. Tínhamos tudo a ver, pelo menos era o que eu achava. Voltei para BH com a missão de contar à Regina o que aconteceu e o que eu queria para o meu futuro. Ia contrariá-la; ia descumprir a promessa que fizera a ela, de mantê-lo à distância, tão logo ela soube que eu tinha ido à rodoviária me despedir de você.

- Que coisa... Pobre Regina. Sempre soube que o nosso casamento era uma ação entre amigos, dispostos a nos protegermos da vida. Apesar disso, como já falei, tivemos uma vida boa. 

- Era completamente louca por você. Mas preciso contar mais algumas coisas...

- Antes me prometa que não vai embora.

- Bem... Por favor, mantenha-se o mais calmo possível, porque vou lhe contar o pior. O nosso momento lá na serra rendeu um fruto. Eu engravidei. Descobri dois meses depois do nosso encontro. Estava indo ao Correio postar uma carta para Regina, onde pedia perdão e falaria do resto. No entanto, enquanto atravessava a rua para enviar a carta fui atropelada. Tive vários ferimentos no rosto, em especial no nariz, que teve de ser reconstruído. Talvez por isso você não tenha me reconhecido. Infelizmente perdi não só o nosso bebê, mas o útero também e isso mudou a minha vida. Alguém, não sei quem, talvez um transeunte com pena, fez a gentileza de postar a carta. O que sei é que Regina me respondeu rudemente tempos depois e nunca mais falou comigo. Eu fiquei destroçada muito mais por dentro que por fora. Entrei em depressão, experimentei drogas, até que meu pai chegou com a notícia do intercâmbio na Austrália. Não pensei duas vezes e acho que foi a minha salvação.  Escrevi umas dez cartas para você, porém só mandei a última, curta e objetiva, como você bem sabe e que deve ter odiado. Estava me sentindo sofrida, deprimida, castigada, desleal. Mas nunca esqueci ou deixei de amar você. Veja aqui, tenho todas as suas cartas guardadas. Isso é tudo.

- Não. Isso é nada. Você não vai fugir de novo. Olhe para mim; olhe para nós... O que temos mais a perder? E o que temos de vida pela frente? Quanto tempo? Pode não parecer, porque sou muito desligado, pareço desligado, mas o nosso link permanece. Sabemos disso desde que conversamos a primeira vez aqui, depois de tanto tempo.  Você sabe que sim, é uma ligação de alma, ancestral. Saí daqui cantando e fui rever um filme chamado "O segredo dos seus olhos". Tudo o que eu sinto por você estava em pausa, aguardando um click. Nós não precisamos ter nada. Não precisamos namorar, sequer sermos muito próximos, caso você não queira, mas nunca mais vou permitir que você se afaste de mim. Ainda assim, caso queira ir embora, saiba que eu vou atrás. Não passei uma vida inteira pendurado em uma lembrança ou a um sonho, para vê-lo esfumaçar à minha frente. Não mesmo.

 III

- Alô, velhote! Quanta saudade, vô querido! Achei que tinha esquecido de nós. Pai, vô está na linha. Quer falar com você. Beijo vô. Venha nos ver. Ah, obrigado pelo livro, isso é o que eu chamo de amor. Fui!

- Pai? Puxa, quase me queixei no conselho tutelar por abandono.

Pai e filho falaram durante meia hora. Ou melhor, Bruno ouviu o pai por quase meia hora, apenas sacudindo a cabeça, esboçando um riso, arqueando as sobrancelhas e vez por outra engasgando-se nas  poucas palavras que proferiu. Assim que desligou, ficou um tempinho absorto, com cara de incredulidade. Então chamou a família.

- Solange, venha cá, meu bem, tenho algo a contar. Arthur! Desça, vamos falar.

- Olha... Vocês não sabem da maior... O pai vai casar. E ele me disse que o Arthur sabe com quem. O que você sabe que nós não sabemos, filho?

- Ué... Como posso saber? O velho se foi morar no mato. Deve ter encontrado uma índia por lá e... Se eu sei... A menos que... Não! Não dá para acreditar! O velho tinha tudo armado! Pai, o que você sabe sobre uma tal de Helena? Essa da capa do livro?

- É brincadeira?  Helena que eu conheço, além da gerente da nossa conta, tinha uma da mãe que ela odiava. O livro é ficção. O pai é muito bom nisso.     

- Ficção é o caralho, paizinho. Lembra que me descornei aquela vez que a Liliane foi embora para os Estados Unidos? Saí com o vô, tomamos uma cerveja e ele me contou uma de suas histórias. Eu nem preciso ler esse livro para saber o que tem dentro. É a história dele com essa moça. Peraí, Tive uma ideia. Vou ligar e colocar no viva-voz

- Alô, tia Rejane? É Arthur, tudo bem? Tenho uma pergunta para fazer. Vocês tinham uma prima que foi embora não sei pra onde... era Helena, é isso? Você sabe dela?

Rejane, irmã mais velha de Regina confirmou e acrescentou que a irmã tinha brigado com a prima, antes da viagem dela, não sabia porquê. Disse que nunca mais queria vê-la e tal. Ela, Rejane, soube apenas que a prima sofrera um acidente grave, ainda quando morava no Brasil, que estava grávida, mas que perdera a criança no acidente, que tinha entrado em parafuso e depois fora embora para a Austrália. Depois disso, nunca mais soube nada.

- Mas olha, Arthurzinho, eu desconfiava que as duas tinham brigado por causa do meu cunhado, seu avô. Aí vi a capa do romance e tive certeza. É ela, a prima, quando jovem. Lembro bem. Era linda pra dedéu e causou rebuliço entre o homerio daqui, quando veio nos visitar. Beijo. Saudades.

- Escutou pai?

- Mas então ele já tinha marcado de encontrar com ela lá onde está morando. Não pode ser coincidência. Vejam só, que malandro! Bem, ele sabe o que está fazendo, e mesmo que não saiba, vai fazer igual.

Bruno foi para o computador trocar mensagens com o pai, e quase juntaram material para um novo livro.  

- Helena... É ela na capa. Agora eu entendi muita coisa das tristezas da mãe. Inacreditável isso tudo. Venha ler, Solange, ela é médica e dona do condomínio onde ele mora. Parece ficção.  Bem, vamos visitá-los no final do ano. Mas aviso: também estou apaixonado por ela.

- Eu também! - gritou Arthurzinho.

Solange, que tinha unhas poderosas, deixou mais uma marca em Bruno e apenas resmungou:

- Estamos juntas, minha sogra.


domingo, 14 de março de 2021

À TERRA SANTA








“Por longo que seja o caminho percorrido,
Que incontáveis aventuras eu tenha vivido,
E nem por trinta e três de envido
Eu abro mão das minhas saudades.
Não há jura de alegria imorredoura
Que me faça esquecer as gurias de eslaque;
Do charme soberbo da Dora Jacques
E dos mistérios da Pata Moura.
Como esquecer o tilintar da frigideira
Das baterias de Cova e Rouxinóis,
No improvável carnaval da fronteira?
E jamais esquecer o lambuzo dos lençóis
Na formação dos pubianos caracóis.
Da terra que eu apelidei de santa
Tenho um duro nó na garganta
Quando peço ao Velho que me garanta
A alegria de sempre voltar.
Mas como poesia só entra no meu balaio
Quando me lembro da irmã do papagaio,
Não truco, não retruco e não minto,
Pego uma garrafa de tinto,
Canto flor e saio”.


Nunca deveria começar com versinhos. Não sei compatibilizar direito os ritmos, muito menos consegui definir o tal modelo estruturante das métricas. Não me entendo bem com os aspectos técnicos da poesia e estamos conversados. Porém, o prenúncio de ir à minha terra santa mexe com os guardanapos escondidos e rabiscados, e fico cá tomado de wamosys, o Alceu que me perdoe.

A Uruguaiana nunca vou, sempre volto, e penso que este é um pensamento comum a todas as pessoas amigas que fazem parte da enorme delegação prestes a chegar em mais um setembro, esse cheio de cuidados e medos. Vamos atrás da nossa saudade. Lá vamos nós tentar crucificá-la, ela que tanto nos judia, para depois, logo ali no terceiro dia, como aconteceu com o Mano, ressuscitá-la. E assim há de ser até que tenhamos esquecido o número do nosso CPF.

É teimosa nossa saudade e imorredoura, porque a cada volta, menos sabemos da terra que estamos visitando. Não é a mesma, claro. Alguns sorrisos já se perderam; as ruas se impermeabilizaram de negro, as casas treparam umas sobre as outras e as quadras traçadas pela régua cuidadosa de Domingos de Almeida, pela periferia expandida, se entortaram. Mas é lá, bem lá e antes de tudo isso, que mora quem vamos visitar. Ou é aqui, bem aqui onde só nós pensamos ver.

Breve estaremos em Uruguaiana. Ainda de máscaras, receosos, com beijos e abraços amordaçados. Somos sempre uma comitiva moribunda de lembranças, só as boas. Que possamos festejar o fato insólito de mais uma vez viajarmos no tempo, naquela equação improvável de quilômetros, raiz quadrada de anos, cumprindo um paradoxo temporal, sem a menor intenção mudar nada. Os nativos verão o mesmo bando de velhos adolescentes em excursão colegial. Meninos e meninas-avós em busca de novas fotos que retratem um passado mais que perfeito, mesmo que a esse passado se agreguem fatos novos. Mas passado é passado, vale como for contado, e do jeito que eu conto às vezes até eu acredito.

Quando setembro vier!

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Isis

 




 

ISIS

Era um domingo, fim de tarde e fim de férias. Armando voltava para casa com a família.  Atena, a esposa e a filha Isis, uma princesa de cinco anos. Foram quinze dias na serra para repor as baterias e enfrentar o ano.

- Bom que não tenha chovido antes, mas não precisava chover tanto agora.  Essa estrada já é complica...

Armando não viu mais nada. Apenas ouviu um forte estrondo e foi acordar uma semana depois, no hospital. Lúcido, o que o fez gritar desesperado para a enfermeira.

- Onde estão minha mulher e minha filha? Como elas estão?

- Tenha calma, por favor. Vou chamar o médico de plantão.

- Boa noite. Sou o doutor Péricles. Como o senhor está?

- Por misericórdia... Não me pergunte como estou. Não está vendo que estou acordado? Quero saber da minha família.

- Sua filha teve uma fratura no braço que não deixará sequelas e está bem. Mas vai precisar muito do senhor. Infelizmente sua esposa não resistiu. Foram ferimentos graves e houve muita perda de sangue. Foi a óbito ainda na ambulância.

Armando passou então a viver a mais profunda dor que pode sentir um ser humano. Sentimentos múltiplos, feios e indecifráveis. Uma espécie de estuário onde se despejam todas as dores. Sem fim e sem prazo.

À medida em que os dias passavam, foi tomando conhecimento dos fatos. Soube que bateu de frente em outro veículo que vinha em direção oposta, e que também teve uma vítima fatal. Mas nada mais importava. Constituiu um colega para acompanhar o caso e, tanto quanto possível, que fosse informado o mínimo sobre o acidente. E que se não houvesse denúncias, que o caso fosse esquecido. Assim foi feito.

As dores estavam apenas começando e vigeriam por toda a vida. Mas Isis precisava dele e que estivesse forte. O ano letivo estava prestes a começar e a vida precisava seguir seu curso. A casa tinha uma boa administração. Justina, a empregada, acabou vindo morar com eles, muito em função dos cuidados com Isis. Era mais que empregada. Era já uma boa amiga e seria vital contar com ela em tempo integral.

O ano que iniciava correria amargo demais. Atrena era uma figura muito presente em todos os cantos da casa. Afora a importância que tinha para a família, era uma personalidade difícil de não ser notada. Era a estrela guia, com seu jeito e carisma.  

Sem poder conter a inconformidade, Armando passou a beber de forma desmesurada. Saia e voltava tarde e as vezes sequer via a filha. Só recobrou o juízo quando foi ameaçado por Justina.

- Ou o senhor se comporta como um homem e pai, ou vai ficar sozinho. Não vou ficar aqui assistindo a sua morte e a orfandade total da pequena Isis. O senhor não está pensando nela e para mim chega! Pelo menos vá levá-la ou buscá-la no colégio. Mostre que se interessa por ela. A menina está parecendo mais madura que o pai.

- Tem razão, Justina. Obrigado. A partir de amanhã vou começar a buscar a minha filha no fim da tarde. Tem a minha palavra de que vou maneirar.

Armando passou a lutar contra seus demônios. Buscou ajuda profissional e começou a dedicar-se mais à filha. Nesse meio tempo, Isis tinha feito uma amiguinha, talvez por uma razão singular: ela também se chamava Isis. Desde que começara a ir buscar a filha,  assistia as duas amiguinhas conversando e rindo. Pareciam gostar uma da outra o que era muito bom.

- Filha, como é o nome da sua amiguinha?

- Isis. Eu sou Isis-L, de loira e ela é Isis-M, de morena.

- É mesmo? Que coincidência.

- Não acho. Ela me convidou par ir na casa dela sábado. Posso ir?

- Podemos negociar isso. Primeiro preciso saber quem são os familiares.

No dia seguinte foi abordado na saída da escola.

- Boa tarde, senhor. Sou Vera, a babá da Isis.

E fez o convite para que a sua filha passasse o sábado na casa tal, endereço tal, pertencente a família tal e tal. Surpreso, mas diante dos olhos inquisidores da sua Isis e dos olhos pedintes da outra Isis, Armando concordou.

- Ok. Sábado levo minha filha lá

- Oba!!

A casa da amiguinha da filha... Não era bem uma casa, era quase um condomínio, assentado sobre um amplo terreno, com jardins e piscinas.

- Uau! Você sabe fazer amizades, minha filha.

- Bom dia, senhor, a patroa lamenta não poder vir recebe-lo e se desculpa por isso, mas não se preocupe, as meninas estarão muito bem cuidadas. Ficarei responsável por elas. Esse é o telefone da casa e esse é o meu celular. Ligue a hora que quiser.  O senhor tem alguma recomendação especial? Ela tem alguma restrição alimentar?

- Não. Tudo bem, obrigado. Divirta-se, filha. Venho às seis horas.   

Aquele haveria de ser o primeiro de vários sábados ao longo do ano, sem que Armando tivesse a oportunidade de conhecer os pais da menina. Era sempre a atenciosa babá que o recebia. Óbvio que pela ausência de um estreitamento de relações, Armando vetou a viagem de férias da filha com a amiguinha, mesmo que fosse apenas uma semana.

- Nem pensar! Ano que vem a gente vê. Este ano não, e não se conversa mais sobre isso.

Mas não houve outra oportunidade. Passadas as férias de final de ano. Armando recebeu uma ligação.

- Bom dia, é doutor Armando? Aqui é Jaqueline, mãe da Isis. Isis-M. Prazer em conversar com o senhor, ainda que pelo telefone. Desde já me desculpo por, em nenhum dos tantos encontros de nossas filhas, eu tivesse me apresentado. Tenho um problema de locomoção, a despeito das cansativas sessões de fisioterapia. A sua Isis foi muito importante para a minha no ano passado. Eu pergunto se há a possibilidade de neste final de semana, a sua filha vir nos visitar. Minha filha está com muitas saudades da sua.

- Ah sim. Prazer. Claro, também sua filha foi muito importante para a minha. Sábado eu a levo, após o meio dia.   

Estava esclarecido o mistério da mãe da menina. Já descobrira que era viúva e agora que é doente.

Sábado Isis foi visitar a amiguinha que a esperava na grande porta da frente e sumiram para dentro da casa. Uma hora depois, Armando recebeu uma ligação:

- Boa tarde, doutor Armando? É Jaqueline novamente. Não se preocupe. Está tudo bem com as meninas, sob os cuidados da Vera. Estou ligando para lhe fazer um pedido e caso o senhor queira vir para conversarmos, sem problemas. O pedido é para que sua filha pernoite aqui conosco. Ano passado ela já ficou algumas vezes e acho que desta vez é ainda mais especial.

- Não estava preparado para isso. A senhora pode chamar a minha filha? Quero conversar com ela.

- Oi pai. Eu quero ficar, posso? Estou ajudando a Isis.

- Ajudando? Se está tudo bem, ok. Mas me ligue antes de dormir. Vou buscar você amanhã antes do almoço.

“Ora, ajudando!” Armando não dormiu. Certo. Isis tinha ficado uma ou duas vezes na casa da amiguinha, mas tinha algo  estranho desta vez. Tanto que, dez horas da manhã já estava no portão da mansão. Foi recebido pela filha chorosa e pela mãe de sua amiguinha, cadeirante.

- O que houve, filha? – perguntou Armando com cara nada amigável. 

- Bom dia, doutor Armando. Sou Jaqueline. Não se preocupe. Isis está tão chorosa quanto a amiguinha dela. Tanto que não quis descer para se despedir. Acontece que vamos viajar. Vamos nos mudar para Boston, onde poderei continuar meu tratamento dentro da especialidade que necessito. Por algum motivo ainda não consigo andar e acho que lá terei minhas respostas. É onde meu falecido marido trabalhava. Vamos embora amanhã.

Jaqueline era uma mulher bonita, estilosa, mas parecia abatida, precocemente envelhecida e triste. Era chocante vê-la em uma cadeira de rodas.

- Lamento muito por isso, em especial pela minha falta de cuidado em não perguntar a seu respeito. E lamento também pela minha Isis. Não gostaria que se repetissem suas perdas. Não tão seguido. Bem, resta-me desejar que a senhora tenha sucesso no tratamento. Saiba que, caso eu possa ajudar de alguma forma por aqui, disponha.

- Agradeço. Nunca apareci para conversarmos porque ainda me constranjo com a situação. Sempre fui muito ativa e isso acabou comigo. Isis-L, venha cá me dar mais um abraço. Você foi um anjinho de Deus para nós e lá para onde vamos, caso você queria ir, basta combinar com o papai e ficar o tempo que quiser.  

 

II – A DISTÂNCIA QUE APROXIMA

A vida tomava seu rumo. As Isis viam-se crescer conversando pela internet, rindo, brincando, trocando confidências. Os anos que passavam e a distância só faziam fortalecer a amizade entre as duas. Tinham a mesma idade, com uma diferença de dois meses uma da outra e pouquíssimas diferenças de interesses. Uma daquelas noites de conversa entre elas, Jaqueline, a mãe, entrou no meio;

- Oi Isis-L. Como vai você? Veja... Estou de pé. Mas já faz algum tempo que comecei a andar ainda devagar. Diga ao seu pai que tenho um convite para você, mas quero falar com ele.

- Oi tia... Que coisa boa. Como você é alta. Acho que é da altura do meu pai. Sim. Quando você quer conversar?

- Caso ele esteja aí, hoje mesmo.

- Paiê!

- Olá... Opa!, mas que maravilha vê-la de pé! Parabéns, Jaqueline. Fico feliz por você.

- Obrigada, Armando. Ainda não posso dançar, mas me aguarde...  Seguinte: tantos anos se passaram e a sua Isis nunca veio nos ver. Tenho um convite para ela, que é extensivo a você. As meninas fazem 15 anos este ano. A sua em outubro e a minha em dezembro. Quero fazer uma festinha para elas. Como será no final do ano, acho que vocês podem vir. O que você acha?

- Acho maravilhoso. De fato, e me desculpo por isso, nunca cedi às investidas das meninas em relação a essa viagem. São meus traumas. Mas veja...Não descarto não. De qualquer forma digo duas coisas: primeira) obrigado pelo convite; segunda) óbvio que a Isis, pelo menos ela, vai.

- Que bom. Pense no quanto nos faria feliz vindo também. Até mais. Abraço.

Mais tarde, antes de dormir, Armando foi ao quarto da filha.

- Filha, não sei se poderei ir junto. Tenho muito trabalho pela frente. Temos alguns meses ainda, vá juntando dinheiro. Pegue o meu cartão e compre a passagem. Antecipadamente sai mais barato

- Nada disso, meu velho. Você vai junto comigo e esse será o meu presente de aniversário. Nunca vi você tirar férias; sequer passar um final de semana fora. Namorar então... Sei lá. A vida seguiu, pai. Não vamos jamais esquecer dona Atena. Sempre será insubstituível, mas você não precisa fazer voto de castidade.

- Ah, você acha que eu virei celibatário? Vai nessa. Apenas não quero compromisso.

- De qualquer forma, doutor Armando, o senhor vai viajar comigo em dezembro. Vou comprar duas passagens.

- Não faça isso. Eu não autorizo você.

- Ãrrã.

No dia primeiro de dezembro, malas despachadas, cartão de embarque em punho, pai e filha na fila, rumo ao rigoroso inverno de Boston.

- Nosso hotel é perto da casa da Isis. Mas as ruas estão com um metro de gelo de altura. Bem... Relaxe. É quase um dia de viagem.

Gelo puro nas ruas e no ar. Armando e Isis chegaram ao hotel batendo queixo.

- Pai, dá para jogar água quente no corpo, descansar e irmos à noite jantar com nossas amigas. Já combinei.

- Ok, meu anjo. Você é quem manda. Você chama o motorista. É perto, mas não vou andar no gelo.

- Frouxo!

Às 19 horas chegaram à casa de Jaqueline. Foram recebidos por Isis que não cabia em si de tanta felicidade. Aliás, ambas pareciam ter ganho brinquedo novo. Impressionava a relação daquelas duas meninas!

- Oi tio. Ufa! Até que enfim... A mãe já vem. Vou servir um conhaque ou prefere uísque?

- Com qualquer um eu corro risco, mas vou arriscar. O frio é grande.  

E as meninas sumiram, deixando Armando e uma garrafa de uísque. Meia hora depois apareceu Jaqueline.

Armando teve um baque. Jaqueline andava com certa dificuldade, amparada em uma bengala, o que não inibia uma virgula de sua beleza. Linda, elegante, sorridente... Muito diferente daquela senhora cadeirante, de perfil sombrio que conhecera.

- Boa noite Armando. Muito obrigada por ter vindo. Vou ficar devendo esse presente maravilhoso que você trouxe para a minha Isis.

- Boa noite Jaqueline. Você me perdoa ter ficado impactado. Feliz em vê-la de pé e sorridente.

- Você ia me chamar de linda. Eu aceito. E como pode ver, recuperei também o humor. Fique à vontade.   

Foi uma noite extremamente agradável. Que mulher aquela Jaqueline! Tinha um “quê” da sua Atena, o carisma, talvez. Interessante saber que tenha ficado tanto tempo paraplégica e perdido o marido também em um acidente. Aquele, no entanto, era um assunto que nem ele, nem ela pareciam dispostos a reportar.

- Pai, lamento informar que você vai voltar sozinho para o hotel. As maninhas não abrem mão de dormir juntas hoje. Há uma coleção enorme de gatos sobre os quais precisamos falar.

- Ok. filha. Só não esqueça de dormir e não encha o saco da dona da casa,

- Imagine, Armando, ela é uma necessidade aqui. E você corre o risco de perdê-la para mim, uma vez que sabemos onde ela quer terminar os estudos.

- Sei. Terei que enfrentar isso. Bem. Já vou. Obrigado pela janta e pela companhia agradável.

- Eu que estou agradecida. Você também é uma ótima companhia. Vamos falando. Tem três dias até o aniversário. Boa noite.

As meninas não estavam acomodadas no quarto, estava à espreita, atrás da estante, acompanhando a conversa, alcoviteiras.

- Não sei qual dos dois será mais difícil de convencer. Mas um cedendo, o outro está no papo. Minha mãe ficou anos na cadeira de rodas, assim nem teve tempo, ou coragem ou enfim... Oportunidade de refazer a vida. Mas você viu o quanto ela é linda e resolvida. Seu pai também é um gato. Ele tem namorada?

- Tem nada. Pega uma aqui, outra ali e acha que eu não sei, só não quer compromisso. Acho que nunca vai esquecer dona Atena. Mas é verdade. Sua mãe é linda, charmosa, inteligente. Tem muito da minha. Vamos provocá-los. Temos que fazer com que se vejam todos os dias.

- Sim. Amanhã vamos a um shopping e fazer com que eles fiquem juntos. Ela ainda precisa de apoio para caminhar. Se esse apoio for um braço forte, melhor. O médico falou que daqui a um tempo estará dançando.

Nos poucos dias que ficou em Boston, Armando e Jaqueline mais do que se conheceram. Tornaram-se bem próximos. Pareciam um casal, conforme plano das filhas, uma vez que para caminhar ela precisava do braço dele como apoio. Mas não avançaram o sinal. Havia um tal constrangimento, que poderia ser explicado pela falta de convivência, falta de arrojo, traumas, e por óbvio, segredos. Mas parecia sim uma questão de tempo. Tempo que naquela oportunidade não teriam.

A festa de aniversário, a rigor, não justificaria uma viagem tão longa e cansativa para Armando. Foi uma reunião de alguns jovens mais próximos onde, como se vivesse naquele meio, a sua Isis brilhou.   Justina acabou tendo razão quando havia classificado o evento de pretexto. “Vá por mim, doutor Armandinho, é pretexto para junção dos pais”. Justina, Justina!   No entanto, serviu para que em algumas trocas de olhares, Armando e Jaqueline se percebessem como homem e mulher. Não só como pai e mãe; tio e tia. 

Passado o aniversário, era hora de voltar. Armando foi inquirido por três argumentadoras muito bem fundamentadas. Em resumo, caso quisesse ou tivesse de voltar, que o fizesse sozinho. As amigas não abriam mão de cumprirem juntas o período de férias. E acabou de ser convencido por Jaqueline que se comprometeu de ir pessoalmente entregar a filha no início de janeiro.

Não havia o que fazer e Armando retornou sozinho. Mas levou junto um sentimento inquietante. Jaqueline mexera com ele de uma forma que nenhuma outra, nesses anos todos conseguira.

“É bom sentir isso de novo, doutor Armando. Sinal de que você está vivo”

- Justina, nem adiantou argumentar: sua filhota trocou de família. Somos nos dois por enquanto. Ela só volta em janeiro.

- Imaginei que isso aconteceria, doutor. Impressionante como se dão bem essas meninas. Isso só pode ser coisa de Deus. Parecem irmãs! Será que não acabarão sendo?   

- Nem brinque com isso.

- Ué...Onde está a barreira? Só não me levem para o frio.

A relação entre pai e filha, desde a puxada de orelhas de Justina em função da bebida, quando ainda Isis era criança, passara a ser umbilical. Cuidavam-se muito. No período em que ficou nos EUA, Isis falava todos os dias com o pai. Vez por outra chamava Jaqueline para participar da conversa e estrategicamente se retirava.

- Oi mimosa, quando é que você vem?

- Vamos terça-feira.

- Vamos?

- Sim. Jaqueline vai junto e eu a convidei para ficar aí em casa.

- Ah sim... Mas minha filha. Ela não está acostumada a espaços miúdos como os da nossa casa. Vai ficar desconfortável. Não me constranja.

- É brincadeira, pai. Ela já reservou hotel, mas guarde algumas noites para fazer companhia a ela   

- Ah sim. Certamente. Será um prazer. Vou me exibir por aí com ela.

- Que bom que você acha isso, Armando. Prometo não decepcionar. – disse Jaqueline rindo

- Putz! Perdão. Não sabia que você estava escutando.

Conforme o combinado, terça-feira no final da tarde chegaram as moças.

- Olá, Armando. Aqui está a sua encomenda. Cumpri o prometido. Está sã, salva e muito feliz. Devo dizer, no entanto, que deixou dois corações despedaçados em Boston. Um é o da minha filha.

- Pare, tia Jaque...      

- Ah... Bom saber. Falamos depois sobre isso, mocinha. Como você está Jaqueline? Cansada?

- Exausta. Saímos de dez graus negativos e chegamos com trinta positivos. Haja saúde. Bem. Você me deixa no hotel? Hoje vou descansar, mas a partir de amanhã estou disponível. A minha Isis ficou triste de não poder ter vindo, mas as aulas começam logo logo. Devo ficar no máximo dez dias por aqui e faço questão de conhecer a Justina.

- Sim. Vamos. Fique tranquila, ela também quer conhecer você.

Foram dez dias em que Armando trabalhou pouco e dedicou muito tempo e atenções a Jaqueline. Isis estava exultante e diariamente passava relatórios à sua xará. Justina também se encantou com a nova amiga do patrão e nas vezes em que foi à casa, tratou de paparicá-la.

Como ainda tinha sequelas de tantos anos de imobilidade, Jaqueline cansava rápido. Caminhava um pouco, sentava, amparava-se no braço de Armando e assim passeavam. E pareciam gostar disso.

- Você não está cansado de pajear uma inválida, Armando? Veja esse barzinho, essa música... Dá vontade de dançar.

- Venha. Eu seguro você. Se ficar muito apertado reclame.

- Eu não reclamaria disso.        

Era inevitável. Tanta conspiração  haveria de ter algum resultado. Enquanto dançavam lentamente, olhando-se, e Armando segurando Jaqueline com uma firmeza além do normal, quase um amasso, beijaram-se.  E depois de um beijo, outro e mais outro e assim acordaram na manhã seguinte: beijando-se no antigo quarto do casal, na casa de Armando.

Isis foi acordada por Justina, com um largo sorriso nos lábios.

- Isis, minha filha, aconteceu aquilo. Como é que vocês dizem? “Rolou”. Não entre no quarto do seu pai. Venha tomar café.

- Meu Deus... Aleluia! Preciso mandar uma mensagem para a mana.

- Bom dia, Armando – miou Jaqueline espreguiçando-se.

- Bom dia. Você está bem?

- Sim. Foi uma noite divina. Não achei que isso pudesse acontecer tão rápido. Agora tenho um problema: com que cara vou sair daqui?

- Bem. As duas alcoviteiras, que devem estar fofocando na sala, passaram uma vida tentando me arranjar namoros, portanto, sem problemas. Encare naturalmente, Isis ama você. Aconteceu o que tinha de acontecer, mas vamos deixar o tempo resolver por nós. Nós dois temos questões sérias em aberto.

- Sim. Tudo é sério. Eu tenho assuntos muito graves para resolver, sem o que nada poderá me fazer plenamente feliz. Tem a ver conosco, mas ainda não estou pronta para falar. Peço que entenda.

- Certo. No seu tempo   

 

III AMARGO REGRESSO

- Isis, minha filha, preciso de você para me ouvir. Vai ser um longo tempo.

- Sério, mãe? O que houve? Ok, podemos falar agora.

- Não vai ser muito fácil, minha filha, até porque intrometeu-se nessa história o intruso mais imprudente e sensível de todos: o coração. E se antes eram só dois, agora são quatro.   

- Não me assuste, dona Jaqueline... 

- Vou começar pelo fim. É mais fácil. Armando e eu nos aproximamos muito nesses dias. Sinto que existe uma química forte entre nós e... Bem, ficamos juntos e eu amei cada segundo.

- Obaaaaa!! Mas?

- Bem. Há dez anos seu pai morreu. Estávamos voltando para casa quando ele surtou. Tinha uma série de questões em aberto no hospital aqui e não queria voltar. Queria ficar no Brasil. Chovia muito naquele dia e ele, ao invés de focar na estrada, falava pelo rádio. Então aconteceu o inevitável: ele bateu o carro de frente, morreu e eu fiquei todos esses anos na cadeira de rodas.

- Até aí eu sei. Estava em casa com a Vera quando recebemos a notícia

- Infelizmente, no carro em que batemos também houve um óbito. Como fiquei muito tempo inconsciente, tudo foi cuidado pelos meus irmãos e acabou ficando por isso mesmo. Nunca mais soube de nada. Sempre me protegeram e pouparam de informações. Não sabia da família que estava no outro carro. Tudo correria em direção ao esquecimento total.  Não sabia de nada, até você conhecer Isis e criarem essa ligação incompreensivelmente linda.. Eis a questão: o acidente em que seu pai morreu foi o mesmo que vitimou a mãe da nossa Isis. Você vai me perguntar desde quando eu sei, e aí entra a maior das minhas culpas: sei desde que vocês se conheceram. Também por isso eu não aparecia para conversar com Armando. Tinha vergonha, medo, sei lá o que mais, além da minha condição, claro.

- Mãe, que coisa horrível!  Inacreditável! Fora o que Armando possa entender sobre o seu silêncio de todos esses anos, não há culpados, mas precisamos encarar essa situação com ele. Eu acho que vou me entender com a Isis, mas, puxa vida, a gente gostaria tanto que você e o Armando ficassem juntos. São tão harmônicos e ele é tão delicado com você. Ademais é um gato e um paizão. Ah, meu Deus... O que vamos fazer?  

- Não sei, filha. Desde que soube, e isso faz tantos anos, tenho o peito apertado por essa proximidade de vocês. Agora meu coração está destroçado porque vejo no Armando o mesmo que eu via em seu pai, quando nos apaixonamos. Não sei o que fazer, espero que você me ajude a pensar. Estou perdida nessa correnteza. Agora veja isso aqui.

Jaqueline mostrou à filha um recorte de jornal falando sobre o acidente, cuidadosamente guardado em um saco plástico, onde também tinha um papel em branco dobrado, escrito à mão.

- Abra e leia, minha filha.

“Atena, você morreu jovem e essa culpa minha família vai levar para sempre. Eu prometo a você mover céus e terras e, com a bênção de Deus e enquanto viver, ajudar a cuidar de sua filha”.   

- Pai Todo Poderoso! Como é possível? Que coisa mais triste isso!

 

IV A REVELAÇÃO   

-Oi, Isis-L, minha irmãzinha do coração. Tenho uma pergunta: se você tivesse que dar uma informação a alguém, por dura que fosse, como você faria? Diria claramente e de cara?

- Acho que sim... Não sei, não me ocorre nada momento. Dê um exemplo.

- Hummm... Bom, sei que você ficou interessada no Bob, quando esteve aqui e que ele também tem uma queda por você. Se eu tivesse pegado ele, como você gostaria de ser informada?

- O quê? Você fez isso?

- Não, só um exemplo

- Ufa! Olha, mesmo assim, acho que gostaria de saber de cara.

- E se fosse o inverso, se você tivesse pegado o Bill, como você faria?

- Primeiro eu não faria isso, portanto, não sei. Mas o que você quer mesmo me dizer? Pare de me enrolar, mana. Ou passamos a não confiar mais uma na outra?

- Tenho algo para contar, mas não sei como. Não tem nada a ver conosco. Tem mais a ver com Jaqueline e Armando.

- Ah é isso? Posso dizer que desde que dormiram juntos, meu pai voltou a cantar no banheiro. Você precisava ver a cara de pateta dos dois no outro dia. Não sei, não, maninha, mas acho que vamos conseguir o que queríamos. Até a Justina está vibrando.

- Pois é, ela chegou aqui feliz da vida também. Mas não é sobre isso. Bem. Falamos depois. Beijo

Isis ficou com a impressão de que havia algo errado. Aquelas questões todas pareceram sem sentido... Ou com um sentido tão amplo que fez com que sua amiga tivesse bloqueado o raciocínio e por consequência o argumento. Certamente é algo grave. Seria com a Jaqueline? Teria adoecido novamente? Resolveu não esperar e retornou o contato imediatamente.   

- Oi M... Você está com tempo agora? Podemos conversar?

- Oi L... Sim. Temos que fazer isso. Acabei enrolando tudo colocando o Bill e o Bob na conversa. Bem... Essa é uma conversa que deveríamos ter pessoalmente, mas como só soube agora não pude aproveitar o seu tempo aqui. E soube por um motivo maravilhoso: Jaqueline está apaixonada por Armando, embora ainda não admita.

- Não me assuste...

- Bem, vamos aos fatos terríveis, e como não vou mais enrolar, vou apenas descrever o que ouvi. E por favor: apenas me ouça, porque vai ser difícil de falar. Sua mãe morreu no mesmo acidente em que morreu meu pai.

- O quê!  O que você está me dizendo?

- Pedi para você apenas me ouvir, porque já está sendo pesado demais falar sobre isso. Mas é bem assim. Minha mãe soube desde que nos conhecemos.  Ela foi se informar a que família você pertencia, quando ficamos amigas e descobriu. Agora leia o que ela escreveu quando você foi a primeira vez lá em casa.

Isis-M mandou o print do que Jaqueline tinha escrito. A amiga leu, ficou um tempo estática e a seguir desandou.

- Perdão, maninha, me dê um tempo, não aguento mais. Quero chorar.

- Choramos juntas. Achei que já tinha chorado tudo, mas ver você assim dói demais.

Após um tempo, Isis-M retomou a conversa:

- Meu pai dirigia o carro e por uma desatenção dele, bateu em vocês. Também por isso minha mãe custou tanto a conhecer Armando. Quando viemos para cá, a pretexto do tratamento, era para fugir da situação, mesmo presa a promessa de ajudar você. Ela não contava que a nossa amizade acabasse se fortalecendo ainda mais com a distância.

- Isis, estou sem chão...

- Eu sei, também fiquei quando soube, e comecei a rezar para que isso não nos afetasse. Eu morreria se você me desse as costas. Por favor, não me abandone...

- Jamais faria isso, muito menos agora. Só não consigo raciocinar

- Minha mãe não sabe como contar ao Armando. 

- Vamos ver... Vou preparar o terreno. Só preciso retomar o centro. Agora, por favor, fale mais comigo. Preciso de você.  

 

V – A PREPARAÇÃO

- Pai, você nunca quis saber sobre o acidente em que a mãe morreu? Quem foi... Culpa de quem... Essas coisas.

- Não. Pelas condições da estrada não posso culpar ninguém. Foi repentino. Saímos da serra com sol e em 15 minutos parece que abriram uma enorme torneira. Não se via nada. Foi terrível. Não quero lembrar disso. Foi muito sofrimento. Nunca houve um amor como o meu e o da sua mãe. Crescemos juntos, namoramos, casamos e vivemos como namorados. Ela era perfeita. Você sabe disso.  

- Sei. Também me lembro bem dela. Inesquecível. Além de linda era carismática. Que coisa... Mas a vida anda. Até achei que ia rolar com a tia Jaqueline. Ela parece bem caidinha por você.

- E vocês fazendo um esforço danado, que eu sei. Até a Justina alcovitando. Não estou preparado para isso, filha. Não sei se algum dia estarei. Atena levou a minha metade negociável. E vamos combinar: juntar duas dores não é uma boa receita, você não acha?

- Mas se você encontrasse as pessoas que provocaram o acidente, qual seria sua reação?

- Não sei. Não penso nisso. Sei, no entanto, que eles levaram metade de mim, como já disse. Que história é essa agora, Isis?

- Nada não. Vai ver há tanto sofrimento do lado de lá como o do lado de cá. Pense nisso.

- Filha, o que está acontecendo? Você tem alguma coisa para me falar?

- Tenho, claro, mas não vou falar. Não interessa no momento.

Ser filha única e ter perdido a mãe quando criança deu à Isis uma maturidade precoce. Era uma menina inteligente, articulada e com uma bela visão da vida, ainda que com apenas 15 anos. Queria plantar na mente do pai uma versão mitigada do acidente que os tinha abalado. Ele pensaria a respeito, conheci-o bem. Agora precisavam, ela e sua xará, aplainar o caminho pedregoso que tinha ficado, estava esquecido, mas que voltaria mais forte quando tudo fosse revelado. Pobre Jaqueline!

 

VI - TEMPO

Não é o tempo que aplaca as tensões. É a pluralidade de ações inseridas no tempo que ajudam a aliviar os males. Jaqueline e Armando tornaram-se assíduos pela internet. Levavam uma espécie de namoro constrangido à distância. Havia um sentimento bom entre eles, mas que carecia de combustível. Ou de revelações.  Certamente, se estivessem próximos, as coisas poderiam ser mais claras e intensas.

- Pai, em julho temos alguns dias de férias. Acho que você também pode se dar esse direito, não? Vamos viajar? A Justina está louquinha para ficar só.

- É disso aqui que você está falando?

Armando mostrou para a filha três passagens. Justina iria junto.

- Meu amor! Pai, amo você! A Justina já sabe? Vou contar para a Isis-M. Você já combinou com a Jaqueline?

- Não, a Justina não sabe. A sua tarefa é prepará-la e agilizar o passaporte dela. E avise que lá, julho é verão. E sim. Jaqueline e eu estamos acertados. E atenção: não ficaremos em hotel.

- Oba!!!!! Agora vai!

- Cale-se. Temos dois meses até lá.

... Que passam voando. Num piscar de olhos estavam reunidos como uma família, na sala de Boston. Quem os visse através da enorme janela da sala de jantar diria que era uma família comum, incomumente feliz. Um casal, duas filhas lindas e uma amiga, sentados à mesa conversando e rindo. Justina estava muito à vontade, sem fazer a mínima questão de esconder sua torcida para que aquela visão se perpetuasse. “Vocês formam um belo casal”, comentou depois de meia taça de vinho, já sonolenta e se retirando para o quarto.

Tão logo Justina saiu, as meninas cruzaram seus olhares e também se declararam cansadas. “Ãrrã... Bill e Bob na pauta”, resmungou Armando. “Papai e mamãe também...” E se foram rindo.  

 - Obrigado por ter vindo, Armando. Você me faz muito bem.

- Há muito não me esforçava tanto para isso. Quero fazer bem a você. Depois de longo período, por fim me sinto vivo.

O casal sentou-se em um sofá voltado para a janela, por onde filtrava as luzes da rua. Era verão em Boston e nessa época não há diferença das temperaturas e da umidade do sul do Brasil. Uma noite agradável. Ideal para o começo de muitas coisas boas.

Jaqueline havia preparado um texto, escolhido e decorado cada palavra, a fim de que o que fosse dito chegasse da forma mais suave possível aos ouvidos de Armando. Precisaria, no entanto, reunir coragem. Por outro lado, como estragar aquele momento tão mágico quando, depois de tantos anos, estava reencontrando o prazer de viver? A negação dessa iniciativa descia pela garganta com um sabor amargo de medo, com notas de egoísmo. Ao menos aquela noite ela haveria de preservar. Então deixou-se abraçar por Armando, sentados lado a lado, silentes e ali ficaram até que o silêncio também tomasse conta das ruas. Depois recolheram-se, cada um para o seu quarto.

Ouvidos atentos aguardavam o desfecho da noite... Ao ouvirem o ruido de duas portas se fechando, as meninas e Justina foram dormir, decepcionadas. Jaqueline, no entanto, sabia com quem lidava. Conhecia demais a filha. Por isso colocou Armando em um quarto contíguo ao seu, com uma porta de acesso. E ao inferno o medo e o egoísmo! Aquela seria a segunda noite de amor do casal.

- Meninas, vamos tomar café. Já é tarde

- Justina... Só mais meia hora...

- Nada disso. Vamos lá.

A casa tinha dois empregados. Uma moça brasileira, que cuidava das tarefas domésticas e seu marido americano, uma espécie de faz tudo. Ambos moravam lá, em uma casa anexa. Justina entrosou-se rapidamente com a moça e passou a ajudá-la.

-Cadê o casal, Justina?

- Vá saber. Eu é que não vou chamar. Como vocês dizem, acho que não “rolou”.

- Esses adultos se acham o centro da moral. Perdem um tempo enorme. Caralho!

- Modos, menina!

- Bom dia, filhotas...

- Oi mãe. Tão feliz porquê? Dormiu bem?

- Não me lembro de ter dormido.

- E meu pai, tia Jaque? Sabe se já levantou?

- Sei. Está correndo no parque aí da frente.

- E... Posso saber como você sabe disso, mamazita?

- Não é da sua conta – respondeu Jaqueline com um leve sorriso no rosto.   

Foi o suficiente para receber alguns apertões e vários beijos em cada bochecha, enquanto teve as suas pernas servindo de colo para duas marmanjas.

- Cuidado, meninas. Dona Jaqueline ainda não pode ter muito peso em cima, saiam já daí.

- Como assim “não pode receber peso em cima”, Justina? Você só pode estar de brincadeira. Pelo que dá para ver, tio Armando deve pesar 90 quilos. Mamãe não é fraca.  

- Modos! Respeite a sua mãe! -  Mas a severa Justina não conseguia nem franzir o cenho de tão feliz.  

- Vocês sabem que tudo isso pode ser uma ilusão. Fui egoísta e covarde ontem, mas não posso mais retardar o que preciso fazer. Dói porque, na verdade estou amando. Como achei que nunca mais poderia. 

- De que estão falando?

- Contem para Justina, meninas.  

As duas meninas sentaram-se na sala com Justina e detalharam tudo o que sabiam do acidente.

- Minha Aparecidinha abençoada! Doutor Armando não vai reagir bem. Sempre se escondeu do assunto. Vai trazer todo sofrimento de novo. E eu sei o quanto esse homem sofreu.

- O que devemos fazer, Justina? Ninguém conhece meu pai melhor do que você.

- Contar, claro. E já, antes que o dano fique maior. “Como”, é que não sei. Não gostaria de estar na pele da Dona Jaqueline.  Ô destino esse! Só rezando mesmo.

- A mãe deverá falar hoje com ele.

- E eu vou ter que prepará-lo. Eu sei que ele faria tudo por mim. Só não posso violentá-lo. Vocês acham que deveríamos ficar em casa ou sairmos e deixá-los à vontade?

- Eles vão precisar de nós.

Mas Jaqueline tinha outros planos. Fosse falar em casa, talvez constrangesse Armando e não quis prevalecer-se da situação. Então convidou-o para sair. Jantarem fora, apenas os dois, em um restaurante panorâmico, lindo e aconchegante.

Armando estranhou, no entanto, o comportamento das meninas. Um convite daqueles precederia, no normal, uma grande festa das duas. Ao contrário, apenas recebeu um abraço meio angustiado da filha, com uma recomendação “Pai, eu sei que você faria qualquer coisa por mim. Hoje você terá uma chance de ouro para provar isso”. Não entendeu. Ou entendeu por outro lado.

O restaurante, de fato, era maravilhoso, bem como a vista, e os espaços cabines isoladas, umas das outras. E logo quando brindaram o espumante, Jaqueline começou a falar.

- Não é por acaso que escolhi estar aqui com você hoje. Tenho algo a falar, espero que você me escute e rezo para que compreenda. Há dez anos fiquei paraplégica, processo que, você sabe, durou muitos anos de recuperação. Antes disso, também amarguei longo período de inconsciência na UTI, fato que me fez, ainda que involuntariamente, minimizar o acidente. A minha viuvez, no entanto, foi dolorosa. Tínhamos uma vida familiar harmônica e de muito amor, mais ou menos o que a sua Isis fala da vida de vocês.

- Jaqueline, por que estamos falando sobre isso?

- Por favor, me ouça, foi muito difícil para mim decidir falar. É necessário por todo esse envolvimento que temos, a partir das nossas meninas. O acidente em que faleceu meu marido e me deixou naquele estado, aconteceu em um final de tarde chuvoso. Muita chuva em um domingo. E só aconteceu porque ele se distraiu, falando pelo rádio, em uma curva, subindo a serra. Perdeu-se e bateu de frente em um carro que vinha no sentido oposto. Nesse outro carro vinha uma família: casal e uma filha. Soube muito tempo depois de ter recobrado a consciência de que a moça tinha falecido.

Armando apenas ouvia. Soltou o olhar para o infinito e passou a reprisar mentalmente o filme de terror daquele final de tarde. Suas perdas, seus medos, o estado de deterioração pessoal que viveu quando foi acudido por Justina. Se no início tinha vontade de falar alguma coisa, quando compôs o quadro fechou-se em copas. Jaqueline continuou.

- Causamos um dano enorme para sua família. A minha culpa direta, no entanto, passou a existir quando eu soube de quem vocês se tratavam. Descobri isso na primeira vez que a minha Isis me falou da sua. Quis saber com quem ela brincava e descobri o quão terrível era o destino. Ou não. Poderia ser uma oportunidade de redenção e eu fiz a promessa de ajudar a sua Isis. Pedi a Deus que me permitisse isso. Mas em relação a você me calei. Primeiro porque eu tinha vergonha do meu estado, depois porque tive medo, sei lá. E também porque, ao ver a minha filha e a sua juntas, comecei a entender o que são e o que fazem os anjos. A solução que encontrei, solução covarde, foi me mudar para cá. Meu marido trabalhava aqui nesse hospital que é referência mundial, mas eu poderia vir vez por outra e voltar e o tratamento seria igual. Tentei assim afastar as meninas. Era mais fácil que  explicar, mas você acompanhou no que se transformaram. São mais que irmãs, como se Deus estivesse me cobrando a promessa que tinha feito. E para culminar, você. O que sinto por você é algo que eu não esperava nem em um sonho juvenil sentir novamente. Não depois do casamento que tive. Você traz junto toda essa carga emocional que nos liga, que liga nossas filhas, além de ser um homem maravilhoso. Peço que você tente me perdoar e... Bem... Por favor, diga alguma coisa.

- Antes de sairmos, Isis me abraçou e me fez lembrar que eu faria qualquer coisa por ela, e que hoje eu teria uma boa oportunidade. Ela já sabe disso?

- Sim. Contei para a minha Isis quando voltei do Brasil e tínhamos ficado juntos. Ela naturalmente contou para a sua e que deve ter se aconselhado com Justina.

- Estou sem saber o que dizer. A medida em que você ia falando eu ia remontando o trailer dos acontecimentos. Lamentei por muito tempo não ter morrido naquele dia. Só me recuperei anos depois, com o  apoio dos meus anjos da guarda. Agora, as feridas estão descascadas. Estou em carne viva de novo. Não há o que perdoar, Jaqueline, você não tem culpa de nada. Eu é que não sei lidar com isso. Nunca aprendi e nunca vou aprender. Peço que você me perdoe por me sentir muito menor que a minha dor. Ela me tolhe os horizontes. Gostaria de voltar para casa.  

Não havia como superar, a despeito de culpas ou não culpas, todo o processo remasterizado. Armando deixaria Isis ficar o tempo que tinham combinado, mas retornou ao Brasil no dia seguinte. Estava devastado e a fiel Justina o acompanhou. Tanto tempo para viver um novo amor e agora que o tinha encontrado, ele era o veículo que lhe havia tirado metade da sua vida.

Dias depois retornou a filha. Ao se reencontrarem, no lugar de vivas, mais lágrimas. Armando pediu à Isis que respeitasse o seu tempo e não lhe cobrasse nada.

Armando capitulou de vez. Como se não bastasse o desleixo pessoal e profissional a que se entregara, voltou a beber fora de controle. Até o dia em que chegou em casa, serviu uma dose e chamou Justina, mas quem respondeu foi Isis.

- Justina foi embora, pai, você sabe porquê. E se as coisas continuarem assim por aqui, eu também vou. Você pode ainda ter direitos sobre mim, mas é só até daqui a pouco. E duvido que queira ficar comigo, caso eu me decida ir. E hoje eu vou dormir fora.

- Como assim, vai dormir fora? Onde e com quem? Você está louca?

- Não vou lhe dizer. Caso queira, pode mandar a polícia atrás de mim. Você perdeu o meu respeito.  

O fundo do poço estava próximo. Armando era um zumbi que não aceitava ajuda. Não queria. Acabou sendo salvo por Justina, em uma manhã, quando ela passou para ver se estava tudo em ordem. Ia na metade da manhã na certeza de que não tinha ninguém e aí aproveitava para limpar e ajustar algumas coisinhas. Encontrou o patrão desfalecido, nu, no chão do banheiro, em coma alcoólica. Era hora de não o abandona-lo, e chamou a filha, que mal o cumprimentava, isso quando o via.

- Por onde você anda, minha filha? Seu pai precisa de ajuda. Acho que nós não queremos vê-lo morrer, não é mesmo? Ontem o levei em coma para o hospital. Seu celular estava desligado, onde você estava?

- Meu Deus! Que coisa horrível é essa? Estava com Jaqueline. Ela está há uma semana aqui no Brasil, louca para se encontrar com ele, mas como? Não nesse estado.

- É mesmo? E como ela está?

- Totalmente recuperada. Linda e apaixonada por doutor Armando. Mas também muito sofrida com a situação.

Jaqueline era uma mulher de decisões firmes. Amargara alguns dias as consequências da revelação, mas a vida precisava dela forte e inteira, afinal, tinha uma filha para cuidar e uma promessa para cumprir. Estivera no Brasil, quis ver Armando, mas Isis desaconselhou. Não era o momento, porque talvez as feridas se tornassem ainda piores. Paciência. Aceitaria a situação como ela se resolvesse.  

Já as meninas pareciam cada vez mais próximas. Tornaram-se adultas, amadureceram, tiveram seus romances, suas perdas, muitos ganhos e se encaminhavam para um lindo futuro.

Armando, após um período em uma clínica de desintoxicação, exigência da filha e de Justina, voltou para casa cheio de promessas. Tivera tempo para colocar na balança a dor que não o abandonava e sua filha, que o abandonaria, caso se deixasse vencer. Ainda era relativamente jovem e poderia, porque não, ter uma vida plena e ver sua Isis realizada. E Justina estaria por perto para fazer com que cumprisse suas promessas.      

Porém, o dia em que Isis viajaria para os EUA em busca de especialização chegara. Iria, enfim, morar com Jaqueline, a convite desta. Não havia com prendê-la sob as asas, e ir embora já não estava mais à mercê de sua vontade ou opinião. Elas já tinham decidido. E ele ficaria sozinho com a sua Justina. Era seu destino, marcado a ferro e fogo em uma curva na descida da serra, num domingo chuvoso.

- Pai, não sei como vou dizer isso, mas estou feliz, perdão por deixá-lo. Vá me ver de vez em quando. E continue se cuidando, por favor. Sempre vou amar você e daqui a bem pouco tempo já estarei com saudades suas. Quando deixar de trabalhar ou quando quiser, vá morar comigo. Sempre seremos uma família, por menor que seja.

- Sim, filha. Não consigo falar. Vou morrer longe de você.

- Não. Você passou mais de vinte anos tentando morrer. Agora crie vergonha e viva. Faça isso por mim. Ao menos dessa vez tente viver por mim.  

Não foi uma vida fácil adiante, mas Armando tratava de se cuidar. Voltou a conversar com Jaqueline. Havia agora mais assuntos em comum a serem tratados, transferência de recursos para manutenção da filha e coisas afins. Tratavam-se cordialmente, sufocando os sentimentos que haviam.  E resistia aos convites de ir ver a filha.

Alguns anos depois, Armando teve mais uma perda. Justina, a sua Justina morreu. Estava sentada tomando chá, choramingando de saudade de Isis e despencou. Morreu serenamente. Triste, mas em paz.  Armando resolveu não avisar a filha que estava prestes a concluir seus estudos. Ele iria vê-la e falaria pessoalmente sobre essa perda.

Dois meses depois, Armando embarcou. Ao chegar em Boston para a formatura, Armando se sentia bem. Voltara aos exercícios físicos e desafiava a bebida, ou seja, bebia pouco e de vez em quando. Pediu que a filha fosse vê-lo no hotel. Soubera que Jaqueline estava tendo um relacionamento e não queria aparecer no momento. Já estariam juntos à noite. Mas sentia um engasgo amargo ao lembrar dela, antevendo-a com outro homem.

O evento era portentoso. Pessoas bonitas, bem arrumadas e Armando não economizou cuidados na aparência. Era noite de festa para as pessoas que amava e queria estar à altura delas. A chegada de Jaqueline foi impactante, mas dolorida. Lindíssima, desenvolta e acompanhada. Quando o viu, foi cumprimentá-lo e apresentar o suposto namorado, um americano enorme. Segundo soube, diretor do hospital onde as meninas passariam a trabalhar. Armando falava pouco inglês, portanto, resumiu-se em acenos e sorrisos. E uma questão martelava fortemente sua cabeça: “Armando, em quais dos infernos você estava que deixou escapar essa mulher?”. E durante grande parte da cerimônia não desviou os olhos dela, que parecia nem tê-lo notado. Aquilo doía, porém, era sinal de vida.

A sua Isis, foi designada para o discurso final. Antes de terminar, chamou o pai ao placo e disse algumas palavras em português que poucas pessoas entenderam. “Pai, nasci de você e de uma deusa que será eterna. Morremos um pouco com ela, mas renascemos para o resto da vida. Aqui é o seu lugar, venha ficar comigo, esse é o nosso destino. Todas nós esperamos por você”. Abraçaram-se, choraram e a plateia respondeu com aplausos e vivas.

Antes de retirarem-se Armando foi cumprimentar Jaqueline e despedir-se do casal.

- Nada disso. Você não vai embora sem conversarmos. Somos próximos demais para tanta frivolidade. Veja as nossas filhas... Você não precisa respeitar o que sinto por você, mas a nossa ligação familiar é sólida e precisa ser respeitada.

- Eu sei, querida. Sou um equívoco ambulante, sem forças para vencer meus traumas. Vou visitá-la sim, afinal, minha filha mora lá. Quando fica melhor? não quero causar constrangimentos.

- Sim. Vá amanhã à noite.

Armando usou o dia seguinte para paparicar a filha e a xará. Foi apresentado, por fim, aos namorados, Bob e Bill, todos pertencentes a mesma universidade e cursos similares.

- Vocês tratem de ensinar esses marmanjos a falar português, a fim de agradar ao sogro.

- Ao sogro? Hummm... exclamou Isis-M – Vai haver guerra e eu já sei para  que exército torcer.

- Que não custe seus empregos.

- Ah é. Melhor não torcer.

Com 20 graus negativos, Armando chegou à casa de Jaqueline no final da tarde.

- Tio Armando! Que bom que você chegou. Estávamos de saída e assim mamãe não ficará sozinha – debochou Isis.  

- Pai, você quer que eu repita o que lhe disse anos atrás, um pouquinho antes de você fugir do seu destino?

- Não precisa, filha. Senti minha alma rasgar ontem quando vi Jaqueline acompanhada. Vou custar a me perdoar.

Jaqueline entrou na sala a tempo de beijar as filhas. Sim, as filhas, com as recomendações de praxe. Pegou Armando pela mão e foram sentar-se no mesmo sofá, de anos atrás, olhando as luzes da cidade. No momento, no entanto, a cidade era quase um bloco de gelo.

- Jaqueline, eu...

- Não diga nada. A menos que vá dizer que me ama e que nunca esqueceu de mim.

- Mas e o...

Jaqueline selou os lábios de Armando com os seus e as palavras se enlambuzaram de paixão. Da sala para o quarto, até o amanhecer.

- Você quer me explicar que tipo de relação tem com aquele cidadão enorme?

- Ele é diretor do hospital em que meu marido trabalhava e onde as meninas irão trabalhar. É um amigo muito querido. Gostamos muito um do outro. Foi quem me tratou esses anos todos, mas ele gosta tanto de mulher quanto eu. Como tem receio de se expor eu o ajudo no papel hetero dele. Ele sabe de nós e o quanto você me fez sofrer esses anos todos. E agradeça às nossas filhas, em especial à sua, o fato de eu nunca ter namorado ninguém. Faziam da sala uma horta e plantavam-se como espantalhos, quando eu recebia alguma visita suspeita. Agora decida-se. O que pretende da vida?

- A minha vida mudou-se para cá. Nada mais me prende no Brasil e eu quero ficar perto da minha filha; perto de vocês. A minha querida Justina faleceu meses antes da minha viagem. Eu queria trazê-la para a formatura, mas acho que ela já não andava se sentindo bem, só não falava. Ainda não contei para Isis, não queria estragar a festa. Bem, hoje vou a embaixada. Tenho possibilidades de trabalho por lá, em função da minha especialização em direito internacional. Tenho ótimas chances e terei a resposta hoje. Só preciso melhorar o meu inglês. Vou morar aqui perto, portanto, estaremos sempre juntos, caso não haja espantalhos na sala.

- Já não era sem tempo. Você está me fazendo muito feliz e prometo cuidar bem de nós. Bem. Devo dizer a você outra coisa e, por favor, entenda que isso fez parte do meu sacramento; da promessa que fiz quando as meninas eram crianças. A sua Isis tem uma conta/investimento que abri tão logo você fez a primeira remessa para ela. Todos os seus depósitos foram para lá, excetuando o que ela usava para se manter. Está lá, intacto, ela não sabe o quanto, mas é um bom dinheiro.

- A universidade dela foi você que pagou, então?

- Não. Eu iria fazer isso, mas ela é muito talentosa e inteligente. Conseguiu a bolsa por seus próprios méritos.  Agora cale-se e me beije. Amo terrivelmente você e sua filha... Minha filha. É mais minha do que sua.

Nada mais poderia mudar o rumo das coisas. Dia seguinte, com tudo encaminhado junto a embaixada e as chaves da casa na mão, Armando foi jantar com a namorada e as filhas. Havia coisas a serem reveladas.

- Bem, meus amores, tenho novidades. Começo pela ruim, mas foi a que desencadeou o resto das minhas decisões. Isis, minha filhinha, lamento dizer, mas a nossa Justina faleceu. Estava tomando chá comigo quando apagou. Morreu serenamente, um pouco depois de me dizer que sentia muito a sua falta.

Por óbvio que foi preciso tempo e muitas palavras de conforto para Isis. Justina tinha sido a única mãe que conhecera depois de perder a sua, e antes de encontrar Jaqueline.

Alguns minutos depois, Armando continuou:

- Vou continuar, milha filha. Você disse para todos ouvirem e alguns entenderem que o meu lugar era junto de você. Então... Estas são as chaves da minha casa. É alugada e fica 50 metros daqui, ou seja, me mudei para cá – foi impossível segurar o salto de Isis sobre o pai – Calma que tem mais: fui aceito na embaixada. Vou trabalhar lá, mas preciso urgente de aulas de inglês. O meu é insuficiente. Terceira notícia... Não, não é notícia, é um pedido: Isis-M, eu amo você por tudo o que representa para a minha filha, e amo de paixão a sua mãe. Quero recuperar cada segundo que botei fora nesse tempo todo e limpar da memória a imagem terrível de vê-la entrando na festa de formatura acompanhada por outro homem. Só aceito dividi-la com você e a minha Isis, você se incomoda com isso?

- Ufa! Aleluia!  Enfim vencemos, Isis-L. Com muitos anos de atraso, finalmente seremos uma família. E vocês tratem de aproveitar estas duas damas de honra maravilhosas e se casem. Não abrimos mão disso.  Não têm mais idade para ficarem de namorico. Venha, mana, vamos deixar os velhos tirarem o atraso.

 

VII – EPÍLOGO

- Rápido, M, rápido que eles já estão chegando! Atena, minha filhinha, não mexa no bolo!

Alguns minutos depois, Armando, 75 anos, em ótima forma, aparecia na porta da frente, que tinha o acesso adaptado para cadeirantes. Trazia sua amada Jaqueline que, com o passar dos anos, ainda em função dos traumas do acidente, voltava a ter dificuldades para andar. “Entre a bengala e a cadeira, prefiro dar trabalho para o meu velho”. Mas não era aquela cadeirante amarga e sorumbática lá do início. Era uma linda septuagenária bem vestida, altiva e maquiada. “E sexualmente ativa”, não esquecia de dizer.

O terreno da casa não era nem a metade daquele em que a família de Jaqueline morava no Brasil. Mesmo assim, mas porque também se prometeram jamais se afastarem, as meninas Isis-L e Isis-M demoliram a casa, construíram uma pequena e confortável ao lado para os pais e ergueram dois sobrados geminados, onde passaram a morar depois de casadas.   

E nesse dia, comemoravam as bodas de prata de Armando e Jaqueline.

FIM