Raciocinamos nós outros, que passamos por algumas gerações, desde a dureza familiar da primeira metade do século 20, depois pela revolução de costumes dos anos 60 e ... Bueno, aí se foi o boi com a corda. Perderam-se os limites e os culpados estão bem aqui, ó: nós, precursores dessa tal liberdade, que não percebemos que a fronteira com a libertinagem nem era assim tão larga. Pois racionamos como há de ser o mundo logo ali, com o saldo de gente que restar (saldo genérico e quantitativo), olhando pelo prisma alarmista que verbera pela grande mídia e faz eco entre os nossos medos.
terça-feira, 18 de maio de 2021
QUO VADIS?
terça-feira, 6 de abril de 2021
HELENA
Arthur não perdia os
bailinhos nos anos 70. Ia a todos os possíveis e a mais não ia por
concomitância. E as parcerias, guris e gurias, eram sempre as mesmas. Ou quase.
Era temporada de
férias, dezembro, e Arthur pisou no salão já com olhar de varredura. Circulou,
cumprimentou pessoas, identificou os pares, oportunidades, ameaças e tal.
Cruzou os olhos com
alguém que não conhecia... Cruzou e voltou. Chamam de olhar fixo, mas aquilo
era um pouco mais. Foi uma troca fulminante de olhares que se acharam, como se
há muito se procurassem. Era uma menina nova no lugar, acompanhada por Regina,
sua amiga, confidente, parceira de dança. Imantaram-se até o chamado de Regina. Arthur foi até a mesa
seguindo o traçado dos olhos, reafirmando a tese de que a linha reta é a menor
distância entre dois pontos.
- Arthur, esta é minha
prima Helena, que mora em Minas.
- Oi, prima Helena. Vou
dizer algo que você deve ter cansado de
ouvir hoje: como você é linda!
- Oi Arthur, obrigada.
Mais ou menos já conheço você. Regina fala muito a seu respeito.
- São calúnias. Tudo mentira, juro. Me dê a
chance de provar.
Juntaram-se mais amigos
e um, em especial não perdeu tempo. Pegou Helena pela mão e foi dançar, como se
já se conhecessem há tempos. Arthur que já estava perturbado desde a troca de
olhares, impactou-se. “Como assim? Será que já se conheciam? Merda!” Dançaram e
dançaram sem folga, para a contrariedade de Arthur, que esquecera que estava
junto da sua velha companheira de danças.
- Ok. O próximo parente
que eu convidar para passar as férias aqui será um primo – disse Regina
brincando, mas visivelmente chateada.
- Oi? Claro, por que
não dançamos?
Mas Arthur não tirava
os olhos de Helena, que lhe retribuía, mas desviava o olhar, como se desse um
aviso de não conformidade. Dançava e conversava alegremente com Emílio. “Será que não
terei chance? O cara não larga o osso”. E enfim pararam. Arthur e Regina também pararam, óbvio.
Emílio puxou Arthur até o
bar, com a desculpa de comprarem refrigerantes.
- Olha só, bicho, desde
que Helena chegou estou investindo forte nela. Tive a sorte de vir no mesmo
ônibus que ela, começamos a conversar e nos entrosamos. Portanto... Cai fora!
Conheço muito bem essa ligação entre seus olhos e suas garras. Certo?
“Puta que pariu!”
- Não sei, mano. Ela me
atordoou. Não posso prometer muita coisa além de respeitar uma distância
mínima. Por enquanto vou deixar você em paz, mas se é assim vou embora. Não vou
ficar aqui.
E Arthur não voltou à
mesa, dando um tchauzinho à distância.
- O que deu nele? –
perguntou Regina.
Emílio olhou para Helena,
Regina também olhou para a prima que se constrangeu um pouco, e todos mais ou
menos entenderam, só acharam uma atitude estranha e incompatível com Arthur. Um
dia depois ele foi procurar Regina. Precisava falar com ela, desculpar-se,
entre outras coisas.
- Regina, meu amor,
sabemos um do outro desde que andávamos pelados dentro de casa, portanto nós nos conhecemos bem e
não precisamos de rodeios para falar. Antes de dizer o que quero, descobri que Emílio está de quatro pela
prima. Bem... Ele e eu. Uma vez você me falou sobre amor à primeira vista e eu
gozei com a sua cara, lembra? Pois bem... Chegou a sua vez. Divirta-se. Estou
como se tivesse sido abduzido.
- Putz! Não acredito...
Bem, diga isso diretamente à destinatária. Ela está bem atrás de você e já
ouviu, mas é bom repetir. Vou deixar vocês sozinhos.
Arthur não tinha a
timidez entre suas características, mas aquela
era uma situação nova, diferente e ele se enredou um pouco.
- Helena...
- Não fale. Eu falo
primeiro, pode ser? Ok. Quando você chegou no bailinho a gente se olhou e teve
um magnetismo muito forte, sabemos que sim e não precisamos mentir ou
disfarçar. Perguntei para a Regina quem era “aquele” e ela o identificou.
Aliás, ela me falava a seu respeito há muito tempo e eu já conhecia muito de
você. Então tratei de desviar o foco, por uma questão simples e é
impressionante como você não tenha percebido – esses homens! – ela é
apaixonada; louca por você! Mas me prometa, por favor, não diga que eu lhe
contei isso, ok? Por favor. Percebe por
quê não podemos ter nada, não é mesmo?
- Não acredito nisso! A
minha Regina? Quase uma irmã! Não sei o que fazer com isso! Estou desarmado.
Helena, acho que você já entendeu o que eu sinto. Nunca aconteceu comigo nada
parecido e foi logo de cara. Tenho certeza de que é isso que chamam de amor. É algo absurdamente forte, que domina a minha
vontade.
- Não sei medir muito
isso. Fui educada para ter controle das coisas. O que sei é que você não está
sozinho nessa tormenta. Penso em ficar até o final de janeiro, mas não sei não.
- Bah! Vai ser difícil.
Lembrei do meu tio diabético, apaixonado por quindim. Dá pena de ver como olha
a vitrine da confeitaria. Não quero atrapalhar as suas férias, mas também não
vou poder ficar apenas olhando você. Posso ganhar um abraço?
Abraçaram-se, trocaram
alguns carinhos, colaram seus rostos e Arthur quis beijá-la, mas ela colocou um
dedo em seus lábios.
- Não. Por favor. Nada
que eu não queira, mas não posso fazer isso com a prima. Ao menos não agora.
Os dias passavam,
Arthur e Helena encontravam-se em grupo, ele sempre buscando o olhar dela que
viajava entre os presentes e a vida que passava ao largo daquele campo
magnético. Helena demonstrava já uma certa tristeza e Arthur experimentava um
misto de revolta e frustração; vontade de forçar a barra, chutar o balde
e outros atropelos. Tomou então uma decisão: viajaria. Sairia de perto.
No final de semana, um
novo evento. Um baile mesmo, com trajes sociais, vestidos longos, cabelos
lambidos de um lado, cabelos edificados de outro. Arthur não era mais o mesmo e
estava em dúvida sobre ir ao baile. Emílio não deixou por menos:
- Vamos lá ciumento. De
hoje Helena não me escapa. Não vai querer conferir?
- Vou. Agora eu vou. E
já comprei a minha passagem para depois de amanhã. Vou ficar uns tempos em
Porto. Estou me enterrando e acho que estou fazendo mal à Helena.
Desculpe.
Helena era loira, tinha
cabelos longos, mas até então os mantinha
presos de alguma forma. Nessa noite, diferentemente do usual na época,
onde se armavam em cachopas duras de laquê, ela os soltou para que varressem as
costas decotadas enquanto caminhava. O vestido era o contraste do inferno. Um
vermelho escuro, quase grená e que... bem... Arthur ficou em dúvidas se estava
diante de um anjo ou de um demônio. E Emílio salivando do
lado.
Regina também estava
muito bonita. Aliás, tanto era o costume de tê-la por perto que nunca havia
percebido no mulherão que se tornara. E tão logo viu o amigo o chamou. Arthur
não foi. Não tão logo chamado. Fez ondinha, experimentou um uísque, ele que se
gabava de não beber álcool, e mais uma dose e uma terceira. Parecia um bicho
encurralado precisando de sedativo. Então foi à mesa.
- Nossa, mas que
mulherio lindo! Vou ter que escolher com quem dançar primeiro e não será fácil.
- Arthur, vi você
bebendo... É isso mesmo? - Perguntou Regina apreensiva
- Ah, uns golinhos de
álcool para desinfetar uma ferida.
Todos se entreolharam e
Emílio
puxou o amigo para darem uma volta.
- Bicho, você não está
nada bem. Acho que deve ir para casa. Vai ficar feio, olhe o seu estado. A
gente sabe que não está acostumado com bebida, daqui a pouco vai fazer fiasco.
- Vou. Vou mesmo e vai
ser agora.
Arthur deixou o amigo
falando sozinho e voltou à mesa.
- Regina, minha
querida, minha amiga, minha irmãzinha, a última pessoa do mundo que eu gostaria
de magoar. Que vida linda que tivemos! Mas... Mas... E me perdoe também Emílio, mas... Helena, eu
estou bêbado e vou embora. Vou mesmo. Quarta vou para Porto Alegre e talvez a
gente não se veja nunca mais. Antes quero que todos saibam que eu estou
completamente apaixonado por você. É mais forte que eu e muito mais forte que
esse uísque horroroso que eu tomei. Vou embora, Vou embora porque o lugar onde
eu gostaria de estar ou estará vago, ou ocupado por outra pessoa. Helena... Não
tivemos nada, infelizmente, talvez nem possamos ter, mas prometo uma coisa:
nunca, nunca mesmo vou esquecer você. Enfim, o tal amor existe e à primeira
vista é ainda mais devastador. Estou destruído.
Olhe aqui ó... Pegue... É o meu coração. A partir de hoje ele começa a
bater fora do meu peito. Fique com ele, não quero de volta. Acredite: é
usufruto vitalício. Minha alma beija a tua com muito amor e eu me vou. O diabo
me aguarda na porta do inferno e ele não gosta de esperar. Amor, bosta de amor...
Arthur fez o discurso
bêbado, rasgado, dolorido como letra de tango, em frente a mesa onde estavam os
amigos, constrangendo a todos. O baile ainda não havia começado e assim não só
foi ouvido por uma grande plateia, como aplaudido, com gritos de viva e “dá uma chance,
Helena!”. Mas já era tarde. Ele tinha saído, indo embora tropeçando nos passos,
tentando equilibrar-se na corda bamba da calçada. Helena estava imóvel. Olhar firme para frente,
mas com os olhos borrados de uma lava preta que escorria pelas bochechas.
Apesar de ter sempre o controle das coisas, fora demais e ela pediu para que Emílio a acompanhasse até
a casa.
No dia seguinte e
durante o dia da viagem, deu um jeito de não ser visto. Ninguém sabia onde
Arthur se encontrava. Os pais apenas informavam -“saiu cedo e não disse
para onde ia”. No momento de embarcar,
uma rápida despedida em casa e chegou à rodoviária em cima da hora. Não queria
dar chance a nada e a ninguém que pudesse relembrar o fiasco do clube, ou
despedidas melosas.
Com o pé no degrau do
ônibus uma mão segurou a sua. Helena estava lá, carinha de choro e um olhar
cheio de promessas impossíveis.
- Quero um abraço de
despedida.
Abraçaram-se, trocaram
carinhos e beijaram-se longamente, sendo separados pela buzina do
motorista. Quietos e sem promessas, soltaram-se. Ato contínuo ela foi embora às
pressas e ele subiu no ônibus, louco para ficar.
“Que loucura, meu Deus!
Que loucura! Preciso tirar essa guria da cabeça”.
No bolso do casaco
tinha ficado uma foto deixada por Helena, com uma dedicatória e um endereço de
Belo Horizonte. Era, enfim, uma promessa: “você me deu seu coração, não esqueça
disso. Eu entrego o meu a você, cuide bem dele. Helena”.
II
- Esse é o livro que
não consigo concluir, Arthurzinho. Não acho um fim porque talvez não tenha tido
um começo. Mas são fragmentos de uma história real
Arthur estava revivendo
essa história, contando-a ao neto, recém saído da adolescência, que teve seu
namorico interrompido por que sua namoradinha fora morar nos EUA com os pais.
Estava inconsolável. Não queria comer, se negava a ir à escola, sequer sair do
quarto.
- E você nunca mais viu
ela, vô?
- Vi. Tempos depois
mandei uma carta e ela me respondeu. Fiquei de ir a Belo Horizonte, mas na
mesma ocasião tive que voltar para ver meus velhos que estavam doentes e a
coisa não aconteceu. Ela veio meses depois. Passamos um feriadão juntos em
Gramado, maravilhoso, cheio de amor e promessas. Depois eu comecei a me virar
para ver se encontrava trabalho por lá. Porém, passados alguns meses, ela me
mandou uma carta curta, dizendo que ia para a Austrália. Ia fazer intercâmbio e
aí... Bem, aí mixou tudo. É isso. Nunca mais soube dela.
Cada vez que lembrava
dessa história, Arthur viajava, degustava o tempo experimentando todas as notas
e aromas. Entrava em transe. De fato, como havia dito naquela fatídica noite do
único porre que tomou na vida, ratificado no único momento em que estiveram
juntos, nunca esqueceu Helena.
- A vó sabia disso,
vô?
- Sua avó soube desde
sempre, não tudo, claro. No leito de morte tentou falar alguma coisa que não
entendi sobre a prima. Parecia importante, mas... Foi traída pela morte. Fique
tranquilo. Regina e eu sempre fomos mais amigos do que um casal.
Arthur casou com
Regina, com quem viveu por 35 anos. Uma relação harmônica sem sobressaltos e
paixões. Uma brisa suave e morna. Tiveram um filho, Bruno, que resultou em um
casal de netos, Arthurzinho e Nina, ainda criança.
Desde a morte de
Regina, Arthur vivia só. Tinha imaginado uma vida intensa, mas a paixão
frustrada por Helena fez com que sossegasse o pito. Não foi um caso duro
demais, até porque não chegou a ser um caso, mas carregou ou carrega, um sonho frustrado há quase meio século, e
isso sim é muito duro.
Tinha um plano para
dali a pouco tempo. Com sessenta e oito anos, apesar da saúde boa, negava-se a falar em futuro “na minha idade não
existe futuro e passado foi minutos atrás. Só existe presente e eu tenho que prestar a atenção em
tudo, caso queira aproveitar a vida. Mas eu reconheço que vivo com um pé no
passado”. O plano consistia em mudar-se para um condomínio de idosos, com
facilitadores e recursos para uma vida independente. Seu foco era mudar-se para
Caldas Novas, em Goiânia, onde conhecera um local desses, com toda a estrutura e conforto que queria. Apenas
esperava a melhor hora para anunciar aos seus.
E em um churrasco de final de semana pegou o notebook e mostrou o vídeo do lugar ao filho, nora e
netos.
- Tem tudo o que eu
quero. Internet boa, TV a cabo. Vou poder ver meus jogos e filmes, continuar
pintando, escrevendo e publicando. Já fui lá. É muito lindo e agradável.
- Mas pai...
- E aqui está o
contrato. Vou mês que vem e, claro, sempre que quiserem ir me ver é só ir.
- Velho teimoso.
II
O condomínio era
composto por pequenas cabanas independentes, uma sede social e uma
administrativa, com um ambulatório e supervisão médica. Tudo simples, mas muito confortável. Já o
lugar era maravilhoso, com matas, corredeiras e quedas d’água e um lago de
águas termais.
Arthur não era muito
bom de relacionamentos. Foi procurado por outros condôminos para fazer
programas de velho, tipo jogo de cartas, bocha, dama e por aí vai. Não era a
praia dele e aquilo o tornava antipático aos grupos que se formavam. Mal
cumprimentavam-se. Não que fosse obrigatória, mas era bom para a convivência
que todos se dessem bem.
Um tempo depois recebeu
um chamado da administração. Dr. O’Neil, o administrador, gostaria de ter uma
conversa com ele. Apenas para se conhecerem, mas ele sabia que deveria ter algo
mais. “Mal cheguei e já arrumei confusão! Bueno...”
- Bom dia, sou Almeida,
Arthur Almeida, vim falar com doutor O’Neil.
- Sim, só um instante.
- Bom dia, sr. Almeida.
Sou doutora O’Neil. Meu marido e eu administramos o condomínio. No momento ele
está em Brasília. Faz quimioterapia. Entre, sente e fique à vontade. Então...
Como está se sentindo em seus primeiros dias conosco?
- Puxa. Lamento pelo
seu marido. Falei com ele ano passado, quando vim conhecer o lugar. É aqui que vou encerrar meus
dias, se tudo correr bem.
- “Encerrar meus dias”
não é uma pauta que eu gosto. Mas diga: o que podemos fazer para que o senhor
se sinta mais à vontade entre nós?
- Nada não. Tenho tudo
o que preciso. Ver filmes, internet boa e tempo para escrever.
- Ah, o senhor é
escritor? Que maravilha. Gostaria de ler suas publicações. Trabalha em algo
atualmente?
- Sim. Quero finalizar
um romance.
- Reserve o meu
exemplar. Bem, mas era só isso. Gostaria de conhecê-lo. Observo que o senhor é
bastante reservado e agora está explicado, não que precisasse. Cada um é dono
do seu próprio espaço.
Arthur despediu-se bem
impressionado com a doutora e se foi cantarolando: Que bonitos ojos tienes debajo
de esas dos cejas? Vou rever "El
secreto de sus ojos" hoje. "Bonitona, ela" .
Doutora O’Neil, médica,
com especialização em gerontologia, era casada com Dr. Charles O’Neil, inglês e
seu antigo orientador na universidade de Sidney, uma referência nessa área.
Chegaram ao Brasil com o planejamento pronto para o condomínio de idosos. Compraram
uma antiga pousada, reformaram e deram o toque final para o fim a que se
destina.O doutor Charles O’Neil estava com 82 anos e tratava de
um câncer no pulmão.
Doutora O’Neil, Helena
O'Neil, ficou observando da janela o condômino caminhando em direção a sua
cabana. A seguir, abriu uma gaveta e retirou uma caixinha metálica, onde
guardava dezenas de cartas e uma foto. “Arthur Almeida... Arthur... Meu Arthur,
como a vida ficou nos devendo coisas! E agora você está aqui. Veio morar
comigo. Como pode não ter me reconhecido? Sequer desconfiado? Ah, Regina...
Regina.. O que me fizeste prometer... Quando nos virmos de novo vou puxar
seus cabelos”. Helena levantou-se e foi olhar-se no espelho. “É, envelheci, mas
os corações continuam batendo forte e agora já não dá para destrocá-los”.
Após esse encontro,
Arthur não viu mais a doutora O’Neil. Nem quando foi até a sede levar alguns
livros antigos seus, destinados à biblioteca do condomínio. Deveria estar
envolvida com o marido.
De fato, Helena estava
cuidando do marido que piorava rapidamente e as sessões de quimioterapia, além
de não surtirem o efeito desejado, fragilizavam cada vez mais o organismo.
Recebeu os livros deixados por Arthur, passou rapidamente os olhos sobre eles.
Abriu um que falava sobre a juventude. Leu algumas crônicas, viajou no tempo, e
,quando fechou, deixou cair uma foto
que estava dentro. Uma foto bem conhecida: a mesma que dera a Arthur quando
fora despedir-se dele na rodoviária, mais de meio século atrás.
“Meu Deus! Como evitar
o inevitável?”
Doutor Charles O’Neil
faleceu dois meses depois.
- Doutora, sei que não
há palavras para momentos como este. Também tive uma perda dessas e a gente
custa a elaborar a nova realidade. Meus pêsames.
- Obrigada. Tivemos uma
vida boa. Charles era um bom homem e fomos ótimos parceiros de vida. Vai fazer
falta aqui. Ah, veja, essa foto caiu de um dos livros que o senhor nos deixou.
- Puxa! Que coisa boa!
Há muito procurava por essa foto. Achei que a tinha perdido. Agora vou poder concluir o trabalho. O nome
dela é o título do romance: “Helena”, uma longa e interminável história de
amor. Minha Helena! Obrigado, doutora.
Arthur se retirou com
mais algumas palavras de conforto, uma vez que finalmente a
doutora
O’Neil começara a chorar convulsivamente, pedindo para ficar só. “Coitada,
deveria estar ainda em choque pela perda. A ficha deve ter caído finalmente”.
O reencontro com a foto
que julgara perdida deu um up nos textos. Conseguira amarrar bem a história e
encaminhar um final legal. Pronto. Agora era entregar para a editora que faria
o resto. Por certo que alguns ajustes ainda haveriam de ser feitos durante a
revisão.
Depois de uma obra
pronta vem o relaxamento. Um vazio interminável onde o que sobra é apenas a
saudade dos personagens. Arthur, que
havia encomendado pela internet o material de pintura, passaria à segunda coisa
que mais lhe preenchia o tempo: pintura. Não era um virtuose, mas retratava
bem, e de posse da foto que julgava perdida, iria reproduzi-la em tela. “Vai
demorar.
Espero não jogar tantas telas fora”.
A viuvez da doutora
produziu um recolhimento além da conta. Foram algumas semanas em que sequer se
ouvia falar da administradora. Mas Arthur, absorto, ou alienado como sempre,
pouco percebeu isso. Até que um dia, final de tarde, enquanto tomava um
chimarrão sentado na varanda recebeu uma visita.
- Boa tarde, Arthur,
vou tratá-lo de você e espero o mesmo. Nunca consegui compreender como vocês,
gaúchos, conseguem beber água quente em pleno verão.
- Boa tarde, doutora.
Que surpresa boa! Também não entendo esse hábito, aliás nem tento entender.
Tudo bem?
- Sim, está tudo bem.
Ando me sentindo muito sozinha e hoje escolhi o mais solitário e retraído dos
meus condôminos para conversar. Espero não atrapalhar o seu chimarrão.
- Nada. Por favor, sente-se.
Helena sentou-se à
frente de Arthur e ficou um tempo quietinha, como se estivesse escolhendo um
assunto para começar.
- Seu livro... Como
está o seu livro?
- Terminei. Está na
editora. Fiz recentemente alguns ajustes após a revisão. Deve sair mês que vem.
Mas foi um livro que escrevi durante quase dez anos. Tudo por causa do final,
que nunca me agradou.
- Ótimo. Não esqueça do
meu exemplar. Amo finais felizes. Espero que tenha tido um final feliz para a
sua Helena.
- Não sei se é feliz. É
um final vago, já que é uma história que não terminou. Ou melhor: sequer
começou.
- Agora você me deixou
curiosa. Não me obrigue a torturá-lo para que me conte como terminou - riram.
- Ok. Vou lhe contar a
última sentença. Tenho bem presente na memória porque demorei um mês para
decidir como encerraria. “Cá estamos, Helena, como idealizamos na única vez em
que estivemos juntos. Mas permanecemos como sempre matéria e sonho, agora no paraíso”. É isso.
- Foi um amor de
verdade?
- Se foi verdadeiro?
Não sei. As vezes acho que foi um sonho. Um sonho escolhido na estante dos
maravilhosos. Amei... Amei? Amo demais uma imagem desde o primeiro momento que
a vi e sofro desde que se tornou lembrança.
Venha. Vou lhe mostrar a capa.
Arthur pegou Helena
pela mão e a levou para dentro, onde estava a tela com a foto que havia
perdido, reproduzida em tela. Ele não percebeu, mas a doutora lacrimejava
mansamente. Até que uma tempestade salgada explodiu em seus olhos.
Imediatamente Helena deu as costas e foi embora sem dizer uma única palavra.
Arthur ficou
desconcertado, culpado, entristecido. O que teria feito de errado? “Puta que
pariu! Pobrezinha! Ainda deve estar muito sentida”.
Menos de um mês depois,
Arthur recebeu sua cota de livros, enviados pela editora. Uma ótima desculpa
para visitar a doutora. Iria entregar-lhe o exemplar.
- Bom dia, doutora.
Tudo bem? Posso entrar?
- Claro. Por favor
sente-se. Estava justamente reunindo coragem para ir à sua casa pedir-lhe
perdão pelo fiasco que fiz.
- Nada. Não precisa.
Sua viuvez ainda é muito recente e eu compreendo.
- Não é isso. Ou não
foi por isso. Você tem tempo para ouvir uma historinha?
- O que mais tenho é
tempo e preenchê-lo é uma luta terrível. Por favor, fale.
- A sua história sobre
a foto e o livro, que ainda não li, mas que imagino, mexeu comigo por demais. Minha história
também passa por algo assim.
Helena serviu os cafés
e sentou-se em frente a Arthur.
- Eu tinha dezoito anos
e conheci um rapaz, numa cidadezinha bem longe daqui. Foi daquelas coisas que
não se explica pela ciência. Talvez encontre parâmetro naquilo que não podemos
ver, só queremos acreditar. Ele e eu apenas nos olhamos em meio a várias pessoas
e houve um magnetismo imediato, impulsivo, só controlável, porque eu sempre fui
controlada, e eu digo hoje: infelizmente. Perguntei quem era "aquele"
à pessoa que estava comigo, e que me era muito cara, e ela me disse: é ele.
Ele, no caso, era o rapaz que era pauta permanente dela, sempre que trocávamos
confidências por carta ou telefone. Ela era louca por ele e o babaca não
percebia. Uma guerra dentro de mim começou de pronto. O
porquê, eu
não sei, mas sabia que aquele rapaz tinha muito a ver comigo. Fisicamente era o
que eu havia idealizado a partir das descrições dela e depois, quando nos
falamos, tinha aquela tempestade mal contida em tudo o que dizia. Era intenso,
cheio de energia boa. Mas ceder ao impulso magoaria outra pessoa. E tudo ficou pior quando soube que a
recíproca era verdadeira. Enfim... Ele foi embora, embora mesmo, foi viajar e
não voltou mais. Levou uma foto minha como lembrança.
- Puxa! Você parece que
leu o meu livro. É mais ou menos isso. Ele levou uma foto sua e não deixou
nenhuma?
- Tenho uma, mas ele
não sabe. É o seguinte: quando ele percebeu que eu não arredaria pé de me
manter fiel à pessoa que era apaixonada por ele, uma quase irmã minha, ele se
desesperou de vez. Antes de viajar houve um baile na cidade e ele, que segundo soube,
jamais havia experimentado bebida de álcool, tomou um porre e fez uma
declaração pública de amor para mim, em frente a todos os que estavam no baile.
Perdi o chão, flutuei nas nuvens, me apaixonei e despenquei do salto... A foto
dele, bêbado, me foi entregue pelo fotógrafo da festa, alguns dias depois, com
a seguinte dedicatória: “jamais ouvi uma declaração de amor tão intensa e
verdadeira”.
- E eu achando que a
história do meu livro, que é quase uma biografia, era algo incomum, única,
extraordinária. Que nada! Quase tudo tão igual!
Helena estava
impressionada com a falta de conexão de Arthur.
A ponto de perder a paciência. "Como pode ser tão abobado?"
- É isso. Bem, daqui a
alguns dias devo me mudar. Estou negociando o condomínio. Não tenho condições
de cuidar sozinha e a minha especialização médica é muito cara para poder
contratar um colega. Inviabilizaria o projeto. Vou procurar a foto para lhe
mostrar.
- Que pena! Você é das
poucas pessoas que eu gosto de sentar e conversar. Estava me acostumando a ter
alguém com quem podia trocar ideias. Bem. Vou autografar o seu exemplar. Dedico
para...
- Helena,
- Sim, Helena. Dedico
para?
- Helena. Achei, eis a
foto que lhe falei.
Arthur apanhou a foto,
pareceu perder o foco e o fôlego. Ficou lapsos de segundo cabisbaixo, sentindo
uma forte alteração nos batimentos cardíacos e sem levantar os olhos disse:
- Não pode ser... Não
pode ser verdade.
E olhou para Helena. E
viu Helena. Foi a vez de Arthur fazer o que não fazia desde que nascera seu
filho. Rompeu um choro convulsivo, misto de dor e alegria, com notas de
espanto.
Helena levantou-se,
serviu mais um café e um copo de água e voltou a sentar-se, agora ao lado de
Arthur. Parecia degustar cada lágrima jorrada, afinal, era a segunda declaração
de amor intensa que recebia, meio século após a primeira. Pegou a mão dele
entre as suas e falou:
- Não esqueci um minuto
sequer de tudo o que vivemos e sonhamos na única vez em que estivemos juntos.
Tive quase certeza de que ali era o início de uma relação com gostinho de
eternidade. Tínhamos tudo a ver, pelo menos era o que eu achava. Voltei para BH
com a missão de contar à Regina o que aconteceu e o que eu queria para o meu
futuro. Ia contrariá-la; ia descumprir a promessa que fizera a ela, de mantê-lo
à distância, tão logo ela soube que eu tinha ido à rodoviária me despedir de
você.
- Que coisa... Pobre
Regina. Sempre soube que o nosso casamento era uma ação entre amigos, dispostos
a nos protegermos da vida. Apesar disso, como já falei, tivemos uma vida
boa.
- Era completamente
louca por você. Mas preciso contar mais algumas coisas...
- Antes me prometa que
não vai embora.
- Bem... Por favor,
mantenha-se o mais calmo possível, porque vou lhe contar o pior. O nosso
momento lá na serra rendeu um fruto. Eu engravidei. Descobri dois meses depois
do nosso encontro. Estava indo ao Correio postar uma carta para Regina, onde
pedia perdão e falaria do resto. No entanto, enquanto atravessava a rua para
enviar a carta fui atropelada. Tive vários ferimentos no rosto, em especial no
nariz, que teve de ser reconstruído. Talvez por isso você não tenha me reconhecido.
Infelizmente perdi não só o nosso bebê, mas o útero também e isso mudou a minha
vida. Alguém, não sei quem, talvez um transeunte com pena, fez a gentileza de
postar a carta. O que sei é que Regina me respondeu rudemente tempos depois e
nunca mais falou comigo. Eu fiquei destroçada muito mais por dentro que por
fora. Entrei em depressão, experimentei drogas, até que meu pai chegou com a
notícia do intercâmbio na Austrália. Não pensei duas vezes e acho que foi a
minha salvação. Escrevi umas dez cartas
para você, porém só mandei a última, curta e objetiva, como você bem sabe e que
deve ter odiado. Estava me sentindo sofrida, deprimida, castigada, desleal. Mas
nunca esqueci ou deixei de amar você. Veja aqui, tenho todas as suas cartas
guardadas. Isso é tudo.
- Não. Isso é nada.
Você não vai fugir de novo. Olhe para mim; olhe para nós... O que temos mais a
perder? E o que temos de vida pela frente? Quanto tempo? Pode não parecer,
porque sou muito desligado, pareço desligado, mas o nosso link permanece.
Sabemos disso desde que conversamos a primeira vez aqui, depois de tanto
tempo. Você sabe que sim, é uma ligação
de alma, ancestral. Saí daqui cantando e fui rever um filme chamado "O
segredo dos seus olhos". Tudo o que eu sinto por você estava em pausa,
aguardando um click. Nós não precisamos ter nada. Não precisamos namorar,
sequer sermos muito próximos, caso você não queira, mas nunca mais vou permitir
que você se afaste de mim. Ainda assim, caso queira ir embora, saiba que eu vou
atrás. Não passei uma vida inteira pendurado em uma lembrança ou a um sonho, para vê-lo
esfumaçar à minha frente. Não mesmo.
III
- Alô, velhote! Quanta
saudade, vô querido! Achei que tinha esquecido de nós. Pai, vô está na linha.
Quer falar com você. Beijo vô. Venha nos ver. Ah, obrigado pelo livro, isso é o que eu chamo de amor.
Fui!
- Pai? Puxa, quase me
queixei no conselho tutelar por abandono.
Pai e filho falaram
durante meia hora. Ou melhor, Bruno ouviu o pai por quase meia hora, apenas
sacudindo a cabeça, esboçando um riso, arqueando as sobrancelhas e vez por
outra engasgando-se nas poucas palavras
que proferiu. Assim que desligou, ficou um tempinho absorto, com cara de
incredulidade. Então chamou a família.
- Solange, venha cá,
meu bem, tenho algo a contar. Arthur! Desça, vamos falar.
- Olha... Vocês não
sabem da maior... O pai vai casar. E ele me disse que o Arthur sabe com quem. O
que você sabe que nós não sabemos, filho?
- Ué... Como posso
saber? O velho se foi morar no mato. Deve ter encontrado uma índia por lá e...
Se eu sei... A menos que... Não! Não dá para acreditar! O velho tinha tudo
armado! Pai, o que você sabe sobre uma tal de Helena? Essa da capa do livro?
- É brincadeira? Helena que eu conheço, além da gerente da
nossa conta, tinha uma da mãe que ela odiava. O livro é ficção. O pai é muito
bom nisso.
- Ficção é o caralho,
paizinho. Lembra que me descornei aquela vez que a Liliane foi embora para os
Estados Unidos? Saí com o vô, tomamos uma cerveja e ele me contou uma de suas
histórias. Eu nem preciso ler esse livro para saber o que tem dentro. É a
história dele com essa moça. Peraí, Tive uma ideia. Vou ligar e colocar no
viva-voz
- Alô, tia Rejane? É
Arthur, tudo bem? Tenho uma pergunta para fazer. Vocês tinham uma prima que foi
embora não sei pra onde... era Helena, é isso? Você sabe dela?
Rejane, irmã mais velha
de Regina confirmou e acrescentou que a irmã tinha brigado com a prima, antes
da viagem dela, não sabia porquê. Disse que nunca mais queria vê-la e tal. Ela,
Rejane, soube apenas que a prima sofrera um acidente grave, ainda quando morava
no Brasil, que estava grávida, mas que perdera a criança no acidente, que tinha
entrado em parafuso e depois fora embora para a Austrália. Depois disso,
nunca mais
soube nada.
- Mas olha,
Arthurzinho, eu desconfiava que as duas tinham brigado por causa do meu
cunhado, seu avô. Aí vi a capa do romance e tive certeza. É ela, a prima,
quando jovem. Lembro bem. Era linda pra dedéu e causou rebuliço entre o homerio
daqui, quando veio nos
visitar. Beijo. Saudades.
- Escutou pai?
- Mas então ele já
tinha marcado de encontrar com ela lá onde está morando. Não pode ser
coincidência. Vejam só, que malandro! Bem, ele sabe o que está fazendo, e mesmo
que não saiba, vai fazer igual.
Bruno foi para o
computador trocar mensagens com o pai, e quase juntaram material para um novo
livro.
- Helena... É ela na
capa. Agora eu entendi muita coisa das tristezas da mãe. Inacreditável isso
tudo. Venha ler, Solange, ela é médica e dona do condomínio onde ele mora.
Parece ficção. Bem, vamos visitá-los no
final do ano. Mas aviso: também estou apaixonado por ela.
- Eu também! -
gritou Arthurzinho.
Solange, que tinha
unhas poderosas, deixou mais uma marca em Bruno e apenas resmungou:
- Estamos juntas, minha
sogra.
domingo, 14 de março de 2021
À TERRA SANTA
Nunca deveria começar com versinhos. Não sei compatibilizar direito os ritmos, muito menos consegui definir o tal modelo estruturante das métricas. Não me entendo bem com os aspectos técnicos da poesia e estamos conversados. Porém, o prenúncio de ir à minha terra santa mexe com os guardanapos escondidos e rabiscados, e fico cá tomado de wamosys, o Alceu que me perdoe.
A Uruguaiana nunca vou, sempre volto, e penso que este é um pensamento comum a todas as pessoas amigas que fazem parte da enorme delegação prestes a chegar em mais um setembro, esse cheio de cuidados e medos. Vamos atrás da nossa saudade. Lá vamos nós tentar crucificá-la, ela que tanto nos judia, para depois, logo ali no terceiro dia, como aconteceu com o Mano, ressuscitá-la. E assim há de ser até que tenhamos esquecido o número do nosso CPF.
É teimosa nossa saudade e imorredoura, porque a cada volta, menos sabemos da terra que estamos visitando. Não é a mesma, claro. Alguns sorrisos já se perderam; as ruas se impermeabilizaram de negro, as casas treparam umas sobre as outras e as quadras traçadas pela régua cuidadosa de Domingos de Almeida, pela periferia expandida, se entortaram. Mas é lá, bem lá e antes de tudo isso, que mora quem vamos visitar. Ou é aqui, bem aqui onde só nós pensamos ver.
Breve estaremos em Uruguaiana. Ainda de máscaras, receosos, com beijos e abraços amordaçados. Somos sempre uma comitiva moribunda de lembranças, só as boas. Que possamos festejar o fato insólito de mais uma vez viajarmos no tempo, naquela equação improvável de quilômetros, raiz quadrada de anos, cumprindo um paradoxo temporal, sem a menor intenção mudar nada. Os nativos verão o mesmo bando de velhos adolescentes em excursão colegial. Meninos e meninas-avós em busca de novas fotos que retratem um passado mais que perfeito, mesmo que a esse passado se agreguem fatos novos. Mas passado é passado, vale como for contado, e do jeito que eu conto às vezes até eu acredito.
Quando setembro vier!
sábado, 20 de fevereiro de 2021
Isis
ISIS
Era um domingo, fim de tarde e
fim de férias. Armando voltava para casa com a
família. Atena, a esposa e a filha Isis, uma princesa de
cinco anos. Foram quinze dias na serra para repor as baterias e enfrentar o
ano.
- Bom que não tenha chovido
antes, mas não precisava chover tanto agora. Essa estrada já é
complica...
Armando não viu mais nada.
Apenas ouviu um forte estrondo e foi acordar uma semana depois, no hospital.
Lúcido, o que o fez gritar desesperado para a enfermeira.
- Onde estão minha mulher e minha
filha? Como elas estão?
- Tenha calma, por favor. Vou
chamar o médico de plantão.
- Boa noite. Sou o doutor
Péricles. Como o senhor está?
- Por misericórdia... Não me
pergunte como estou. Não está vendo que estou acordado? Quero saber da minha
família.
- Sua filha teve uma fratura no
braço que não deixará sequelas e está bem. Mas vai precisar muito do senhor.
Infelizmente sua esposa não resistiu. Foram ferimentos graves e houve muita
perda de sangue. Foi a óbito ainda na ambulância.
Armando passou então a viver a
mais profunda dor que pode sentir um ser humano. Sentimentos múltiplos, feios e
indecifráveis. Uma espécie de estuário onde se despejam todas as dores. Sem fim
e sem prazo.
À medida em que os dias
passavam, foi tomando conhecimento dos fatos. Soube que bateu de frente em
outro veículo que vinha em direção oposta, e que também teve uma vítima fatal.
Mas nada mais importava. Constituiu um colega para acompanhar o caso e, tanto
quanto possível, que fosse informado o mínimo sobre o acidente. E que se não
houvesse denúncias, que o caso fosse esquecido. Assim foi feito.
As dores estavam apenas
começando e vigeriam por toda a vida. Mas Isis precisava dele e que
estivesse forte. O ano letivo estava prestes a começar e a vida precisava
seguir seu curso. A casa tinha uma boa administração. Justina, a empregada,
acabou vindo morar com eles, muito em função dos cuidados com Isis. Era
mais que empregada. Era já uma boa amiga e seria vital contar com ela em tempo
integral.
O ano que iniciava correria
amargo demais. Atrena era uma figura muito presente em todos os cantos da casa.
Afora a importância que tinha para a família, era uma personalidade difícil de
não ser notada. Era a estrela guia, com seu jeito e carisma.
Sem poder conter a
inconformidade, Armando passou a beber de forma desmesurada. Saia e voltava
tarde e as vezes sequer via a filha. Só recobrou o juízo quando foi ameaçado
por Justina.
- Ou o senhor se comporta como
um homem e pai, ou vai ficar sozinho. Não vou ficar aqui assistindo a sua morte
e a orfandade total da pequena Isis. O senhor não está pensando nela e
para mim chega! Pelo menos vá levá-la ou buscá-la no colégio. Mostre que se
interessa por ela. A menina está parecendo mais madura que o pai.
- Tem razão, Justina. Obrigado.
A partir de amanhã vou começar a buscar a minha filha no fim da
tarde. Tem a minha palavra de que vou maneirar.
Armando passou a lutar contra
seus demônios. Buscou ajuda profissional e começou a dedicar-se mais à filha. Nesse
meio tempo, Isis tinha feito uma amiguinha, talvez por uma razão singular:
ela também se chamava Isis. Desde que começara a ir buscar a filha, assistia as duas amiguinhas conversando e
rindo. Pareciam gostar uma da outra o que era muito bom.
- Filha, como é o nome da sua
amiguinha?
- Isis. Eu
sou Isis-L, de loira e ela é Isis-M, de morena.
- É mesmo? Que coincidência.
- Não acho. Ela me convidou par
ir na casa dela sábado. Posso ir?
- Podemos negociar isso.
Primeiro preciso saber quem são os familiares.
No dia seguinte foi abordado na
saída da escola.
- Boa tarde, senhor. Sou Vera,
a babá da Isis.
E fez o convite para que a sua
filha passasse o sábado na casa tal, endereço tal, pertencente a família tal e
tal. Surpreso, mas diante dos olhos inquisidores da sua Isis e dos
olhos pedintes da outra Isis, Armando concordou.
- Ok. Sábado levo minha filha
lá
- Oba!!
A casa da amiguinha da filha...
Não era bem uma casa, era quase um condomínio, assentado sobre um amplo
terreno, com jardins e piscinas.
- Uau! Você sabe fazer
amizades, minha filha.
- Bom dia, senhor, a patroa
lamenta não poder vir recebe-lo e se desculpa por isso, mas não se preocupe, as
meninas estarão muito bem cuidadas. Ficarei responsável por elas. Esse é o
telefone da casa e esse é o meu celular. Ligue a hora que quiser. O
senhor tem alguma recomendação especial? Ela tem alguma restrição alimentar?
- Não. Tudo bem, obrigado.
Divirta-se, filha. Venho às seis horas.
Aquele haveria de ser o
primeiro de vários sábados ao longo do ano, sem que Armando tivesse a
oportunidade de conhecer os pais da menina. Era sempre a atenciosa babá que o
recebia. Óbvio que pela ausência de um estreitamento de relações, Armando vetou
a viagem de férias da filha com a amiguinha, mesmo que fosse apenas uma semana.
- Nem pensar! Ano que vem a
gente vê. Este ano não, e não se conversa mais sobre isso.
Mas não houve outra
oportunidade. Passadas as férias de final de ano. Armando recebeu uma ligação.
- Bom dia, é doutor Armando?
Aqui é Jaqueline, mãe da Isis. Isis-M. Prazer em conversar com o senhor, ainda
que pelo telefone. Desde já me desculpo por, em nenhum dos tantos encontros de
nossas filhas, eu tivesse me apresentado. Tenho um problema de locomoção, a
despeito das cansativas sessões de fisioterapia. A sua Isis foi muito
importante para a minha no ano passado. Eu pergunto se há a possibilidade de
neste final de semana, a sua filha vir nos visitar. Minha filha está com muitas
saudades da sua.
- Ah sim. Prazer. Claro, também
sua filha foi muito importante para a minha. Sábado eu a levo, após o meio
dia.
Estava esclarecido o mistério
da mãe da menina. Já descobrira que era viúva e agora que é doente.
Sábado Isis foi
visitar a amiguinha que a esperava na grande porta da frente e sumiram para
dentro da casa. Uma hora depois, Armando recebeu uma ligação:
- Boa tarde, doutor Armando? É
Jaqueline novamente. Não se preocupe. Está tudo bem com as meninas, sob os
cuidados da Vera. Estou ligando para lhe fazer um pedido e caso o senhor queira
vir para conversarmos, sem problemas. O pedido é para que sua filha pernoite
aqui conosco. Ano passado ela já ficou algumas vezes e acho que desta vez é
ainda mais especial.
- Não estava preparado para
isso. A senhora pode chamar a minha filha? Quero conversar com ela.
- Oi pai. Eu quero ficar,
posso? Estou ajudando a Isis.
- Ajudando? Se está tudo bem,
ok. Mas me ligue antes de dormir. Vou buscar você amanhã antes do almoço.
“Ora, ajudando!” Armando não
dormiu. Certo. Isis tinha ficado uma ou duas vezes na casa da
amiguinha, mas tinha algo estranho desta vez. Tanto que, dez horas
da manhã já estava no portão da mansão. Foi recebido pela filha chorosa e pela
mãe de sua amiguinha, cadeirante.
- O que houve, filha? –
perguntou Armando com cara nada amigável.
- Bom dia, doutor Armando. Sou
Jaqueline. Não se preocupe. Isis está tão chorosa quanto a amiguinha
dela. Tanto que não quis descer para se despedir. Acontece que vamos viajar.
Vamos nos mudar para Boston, onde poderei continuar meu tratamento dentro da
especialidade que necessito. Por algum motivo ainda não consigo andar e acho
que lá terei minhas respostas. É onde meu falecido marido trabalhava. Vamos
embora amanhã.
Jaqueline era uma mulher
bonita, estilosa, mas parecia abatida, precocemente envelhecida e triste. Era
chocante vê-la em uma cadeira de rodas.
- Lamento muito por isso, em
especial pela minha falta de cuidado em não perguntar a seu respeito. E lamento
também pela minha Isis. Não gostaria que se repetissem suas perdas. Não
tão seguido. Bem, resta-me desejar que a senhora tenha sucesso no tratamento.
Saiba que, caso eu possa ajudar de alguma forma por aqui, disponha.
- Agradeço. Nunca apareci para
conversarmos porque ainda me constranjo com a situação. Sempre fui muito ativa
e isso acabou comigo. Isis-L, venha cá me dar mais um abraço. Você foi um
anjinho de Deus para nós e lá para onde vamos, caso você queria ir, basta
combinar com o papai e ficar o tempo que quiser.
II – A DISTÂNCIA
QUE APROXIMA
A vida tomava seu rumo. As Isis
viam-se crescer conversando pela internet, rindo, brincando, trocando
confidências. Os anos que passavam e a distância só faziam fortalecer a amizade
entre as duas. Tinham a mesma idade, com uma diferença de dois meses uma da
outra e pouquíssimas diferenças de interesses. Uma daquelas noites de conversa
entre elas, Jaqueline, a mãe, entrou no meio;
- Oi Isis-L. Como vai
você? Veja... Estou de pé. Mas já faz algum tempo que comecei a andar ainda
devagar. Diga ao seu pai que tenho um convite para você, mas quero falar com
ele.
- Oi tia... Que coisa boa. Como
você é alta. Acho que é da altura do meu pai. Sim. Quando você quer conversar?
- Caso ele esteja aí, hoje
mesmo.
- Paiê!
- Olá... Opa!, mas que
maravilha vê-la de pé! Parabéns, Jaqueline. Fico feliz por você.
- Obrigada, Armando. Ainda não
posso dançar, mas me aguarde... Seguinte: tantos anos se passaram e
a sua Isis nunca veio nos ver. Tenho um convite para ela, que é extensivo
a você. As meninas fazem 15 anos este ano. A sua em outubro e a minha em
dezembro. Quero fazer uma festinha para elas. Como será no final do ano, acho
que vocês podem vir. O que você acha?
- Acho maravilhoso. De fato, e
me desculpo por isso, nunca cedi às investidas das meninas em relação a essa
viagem. São meus traumas. Mas veja...Não descarto não. De qualquer forma digo
duas coisas: primeira) obrigado pelo convite; segunda) óbvio que a Isis,
pelo menos ela, vai.
- Que bom. Pense no quanto nos
faria feliz vindo também. Até mais. Abraço.
Mais tarde, antes de dormir,
Armando foi ao quarto da filha.
- Filha, não sei se poderei ir
junto. Tenho muito trabalho pela frente. Temos alguns meses ainda, vá juntando
dinheiro. Pegue o meu cartão e compre a passagem. Antecipadamente sai mais
barato
- Nada disso, meu velho. Você
vai junto comigo e esse será o meu presente de aniversário. Nunca vi você tirar
férias; sequer passar um final de semana fora. Namorar então... Sei lá. A vida
seguiu, pai. Não vamos jamais esquecer dona Atena. Sempre será insubstituível,
mas você não precisa fazer voto de castidade.
- Ah, você acha que eu virei
celibatário? Vai nessa. Apenas não quero compromisso.
- De qualquer forma, doutor
Armando, o senhor vai viajar comigo em dezembro. Vou comprar duas passagens.
- Não faça isso. Eu não
autorizo você.
- Ãrrã.
No dia primeiro de dezembro,
malas despachadas, cartão de embarque em punho, pai e filha na fila, rumo ao
rigoroso inverno de Boston.
- Nosso hotel é perto da casa
da Isis. Mas as ruas estão com um metro de gelo de altura. Bem... Relaxe.
É quase um dia de viagem.
Gelo puro nas ruas e no ar.
Armando e Isis chegaram ao hotel batendo queixo.
- Pai, dá para jogar água
quente no corpo, descansar e irmos à noite jantar com nossas amigas. Já
combinei.
- Ok, meu anjo. Você é quem
manda. Você chama o motorista. É perto, mas não vou andar no gelo.
- Frouxo!
Às 19 horas chegaram à casa de
Jaqueline. Foram recebidos por Isis que não cabia em si de tanta
felicidade. Aliás, ambas pareciam ter ganho brinquedo novo. Impressionava a
relação daquelas duas meninas!
- Oi tio. Ufa! Até que enfim...
A mãe já vem. Vou servir um conhaque ou prefere uísque?
- Com qualquer um eu corro
risco, mas vou arriscar. O frio é grande.
E as meninas sumiram, deixando
Armando e uma garrafa de uísque. Meia hora depois apareceu Jaqueline.
Armando teve um baque.
Jaqueline andava com certa dificuldade, amparada em uma bengala, o que não
inibia uma virgula de sua beleza. Linda, elegante, sorridente... Muito
diferente daquela senhora cadeirante, de perfil sombrio que conhecera.
- Boa noite Armando. Muito
obrigada por ter vindo. Vou ficar devendo esse presente maravilhoso que você
trouxe para a minha Isis.
- Boa noite Jaqueline. Você me
perdoa ter ficado impactado. Feliz em vê-la de pé e sorridente.
- Você ia me chamar de linda.
Eu aceito. E como pode ver, recuperei também o humor. Fique à
vontade.
Foi uma noite extremamente
agradável. Que mulher aquela Jaqueline! Tinha um “quê” da sua Atena, o carisma,
talvez. Interessante saber que tenha ficado tanto tempo paraplégica e perdido o
marido também em um acidente. Aquele, no entanto, era um assunto que nem ele,
nem ela pareciam dispostos a reportar.
- Pai, lamento informar que
você vai voltar sozinho para o hotel. As maninhas não abrem mão de dormir
juntas hoje. Há uma coleção enorme de gatos sobre os quais precisamos falar.
- Ok. filha. Só não esqueça de
dormir e não encha o saco da dona da casa,
- Imagine, Armando, ela é uma
necessidade aqui. E você corre o risco de perdê-la para mim, uma vez que
sabemos onde ela quer terminar os estudos.
- Sei. Terei que enfrentar
isso. Bem. Já vou. Obrigado pela janta e pela companhia agradável.
- Eu que estou agradecida. Você
também é uma ótima companhia. Vamos falando. Tem três dias até o aniversário.
Boa noite.
As meninas não estavam
acomodadas no quarto, estava à espreita, atrás da estante, acompanhando a
conversa, alcoviteiras.
- Não sei qual dos dois será mais
difícil de convencer. Mas um cedendo, o outro está no papo. Minha mãe ficou
anos na cadeira de rodas, assim nem teve tempo, ou coragem ou enfim...
Oportunidade de refazer a vida. Mas você viu o quanto ela é linda e resolvida.
Seu pai também é um gato. Ele tem namorada?
- Tem nada. Pega uma aqui,
outra ali e acha que eu não sei, só não quer compromisso. Acho que nunca vai
esquecer dona Atena. Mas é verdade. Sua mãe é linda, charmosa, inteligente. Tem
muito da minha. Vamos provocá-los. Temos que fazer com que se vejam todos os
dias.
- Sim. Amanhã vamos a um
shopping e fazer com que eles fiquem juntos. Ela ainda precisa de apoio para
caminhar. Se esse apoio for um braço forte, melhor. O médico falou que daqui a
um tempo estará dançando.
Nos poucos dias que ficou em
Boston, Armando e Jaqueline mais do que se conheceram. Tornaram-se bem próximos.
Pareciam um casal, conforme plano das filhas, uma vez que para caminhar ela
precisava do braço dele como apoio. Mas não avançaram o sinal. Havia um tal
constrangimento, que poderia ser explicado pela falta de convivência, falta de
arrojo, traumas, e por óbvio, segredos. Mas parecia sim uma questão de tempo.
Tempo que naquela oportunidade não teriam.
A festa de aniversário, a
rigor, não justificaria uma viagem tão longa e cansativa para Armando. Foi uma
reunião de alguns jovens mais próximos onde, como se vivesse naquele meio, a
sua Isis brilhou. Justina acabou tendo razão quando havia
classificado o evento de pretexto. “Vá por mim, doutor Armandinho, é pretexto
para junção dos pais”. Justina, Justina! No entanto, serviu para
que em algumas trocas de olhares, Armando e Jaqueline se percebessem como homem
e mulher. Não só como pai e mãe; tio e tia.
Passado o aniversário, era hora
de voltar. Armando foi inquirido por três argumentadoras muito bem
fundamentadas. Em resumo, caso quisesse ou tivesse de voltar, que o fizesse
sozinho. As amigas não abriam mão de cumprirem juntas o período de férias. E
acabou de ser convencido por Jaqueline que se comprometeu de ir pessoalmente
entregar a filha no início de janeiro.
Não havia o que fazer e Armando
retornou sozinho. Mas levou junto um sentimento inquietante. Jaqueline mexera
com ele de uma forma que nenhuma outra, nesses anos todos conseguira.
“É bom sentir isso de novo,
doutor Armando. Sinal de que você está vivo”
- Justina, nem adiantou
argumentar: sua filhota trocou de família. Somos nos dois por enquanto. Ela só
volta em janeiro.
- Imaginei que isso
aconteceria, doutor. Impressionante como se dão bem essas meninas. Isso só pode
ser coisa de Deus. Parecem irmãs! Será que não acabarão
sendo?
- Nem brinque com isso.
- Ué...Onde está a barreira? Só
não me levem para o frio.
A relação entre pai e filha,
desde a puxada de orelhas de Justina em função da bebida, quando
ainda Isis era criança, passara a ser umbilical. Cuidavam-se muito.
No período em que ficou nos EUA, Isis falava todos os dias com o pai. Vez por
outra chamava Jaqueline para participar da conversa e estrategicamente se
retirava.
- Oi mimosa, quando é que você
vem?
- Vamos terça-feira.
- Vamos?
- Sim. Jaqueline vai junto e eu
a convidei para ficar aí em casa.
- Ah sim... Mas minha filha.
Ela não está acostumada a espaços miúdos como os da nossa casa. Vai ficar
desconfortável. Não me constranja.
- É brincadeira, pai. Ela já
reservou hotel, mas guarde algumas noites para fazer companhia a
ela
- Ah sim. Certamente. Será um
prazer. Vou me exibir por aí com ela.
- Que bom que você acha isso,
Armando. Prometo não decepcionar. – disse Jaqueline rindo
- Putz! Perdão. Não sabia que
você estava escutando.
Conforme o combinado,
terça-feira no final da tarde chegaram as moças.
- Olá, Armando. Aqui está a sua
encomenda. Cumpri o prometido. Está sã, salva e muito feliz. Devo dizer, no
entanto, que deixou dois corações despedaçados em Boston. Um é o da minha filha.
- Pare, tia
Jaque...
- Ah... Bom saber. Falamos
depois sobre isso, mocinha. Como você está Jaqueline? Cansada?
- Exausta. Saímos de dez graus
negativos e chegamos com trinta positivos. Haja saúde. Bem. Você me deixa no
hotel? Hoje vou descansar, mas a partir de amanhã estou disponível. A
minha Isis ficou triste de não poder ter vindo, mas as aulas começam
logo logo. Devo ficar no máximo dez dias por aqui e faço questão de conhecer a
Justina.
- Sim. Vamos. Fique tranquila,
ela também quer conhecer você.
Foram dez dias em que Armando
trabalhou pouco e dedicou muito tempo e atenções a
Jaqueline. Isis estava exultante e diariamente passava relatórios à
sua xará. Justina também se encantou com a nova amiga do patrão e nas vezes em
que foi à casa, tratou de paparicá-la.
Como ainda tinha sequelas de
tantos anos de imobilidade, Jaqueline cansava rápido. Caminhava um pouco,
sentava, amparava-se no braço de Armando e assim passeavam. E pareciam gostar
disso.
- Você não está cansado de
pajear uma inválida, Armando? Veja esse barzinho, essa música... Dá vontade de
dançar.
- Venha. Eu seguro você. Se
ficar muito apertado reclame.
- Eu não reclamaria
disso.
Era inevitável. Tanta
conspiração haveria de ter algum resultado. Enquanto dançavam
lentamente, olhando-se, e Armando segurando Jaqueline com uma firmeza além do
normal, quase um amasso, beijaram-se. E depois de um beijo, outro e
mais outro e assim acordaram na manhã seguinte: beijando-se no antigo quarto do
casal, na casa de Armando.
Isis foi acordada por
Justina, com um largo sorriso nos lábios.
- Isis, minha filha,
aconteceu aquilo. Como é que vocês dizem? “Rolou”. Não entre no quarto do seu
pai. Venha tomar café.
- Meu Deus... Aleluia! Preciso
mandar uma mensagem para a mana.
- Bom dia, Armando – miou
Jaqueline espreguiçando-se.
- Bom dia. Você está bem?
- Sim. Foi uma noite divina.
Não achei que isso pudesse acontecer tão rápido. Agora tenho um problema: com
que cara vou sair daqui?
- Bem. As duas alcoviteiras,
que devem estar fofocando na sala, passaram uma vida tentando me arranjar
namoros, portanto, sem problemas. Encare naturalmente, Isis ama você.
Aconteceu o que tinha de acontecer, mas vamos deixar o tempo resolver por nós.
Nós dois temos questões sérias em aberto.
- Sim. Tudo é sério. Eu tenho
assuntos muito graves para resolver, sem o que nada poderá me fazer plenamente
feliz. Tem a ver conosco, mas ainda não estou pronta para falar. Peço que
entenda.
- Certo. No seu
tempo
III AMARGO
REGRESSO
- Isis, minha filha, preciso
de você para me ouvir. Vai ser um longo tempo.
- Sério, mãe? O que houve? Ok,
podemos falar agora.
- Não vai ser muito fácil,
minha filha, até porque intrometeu-se nessa história o intruso mais imprudente
e sensível de todos: o coração. E se antes eram só dois, agora são
quatro.
- Não me assuste, dona
Jaqueline...
- Vou começar pelo fim. É mais
fácil. Armando e eu nos aproximamos muito nesses dias. Sinto que existe uma
química forte entre nós e... Bem, ficamos juntos e eu amei cada segundo.
- Obaaaaa!! Mas?
- Bem. Há dez anos seu pai
morreu. Estávamos voltando para casa quando ele surtou. Tinha uma série de
questões em aberto no hospital aqui e não queria voltar. Queria ficar no
Brasil. Chovia muito naquele dia e ele, ao invés de focar na estrada, falava
pelo rádio. Então aconteceu o inevitável: ele bateu o carro de frente, morreu e
eu fiquei todos esses anos na cadeira de rodas.
- Até aí eu sei. Estava em casa
com a Vera quando recebemos a notícia
- Infelizmente, no carro em que
batemos também houve um óbito. Como fiquei muito tempo inconsciente, tudo foi
cuidado pelos meus irmãos e acabou ficando por isso mesmo. Nunca mais soube de
nada. Sempre me protegeram e pouparam de informações. Não sabia da família que
estava no outro carro. Tudo correria em direção ao esquecimento total. Não sabia de nada, até você conhecer Isis e
criarem essa ligação incompreensivelmente linda.. Eis a questão: o acidente em
que seu pai morreu foi o mesmo que vitimou a mãe da nossa Isis. Você vai
me perguntar desde quando eu sei, e aí entra a maior das minhas culpas: sei
desde que vocês se conheceram. Também por isso eu não aparecia para conversar
com Armando. Tinha vergonha, medo, sei lá o que mais, além da minha condição,
claro.
- Mãe, que coisa
horrível! Inacreditável! Fora o que Armando possa entender sobre o
seu silêncio de todos esses anos, não há culpados, mas precisamos encarar essa
situação com ele. Eu acho que vou me entender com a Isis, mas, puxa vida,
a gente gostaria tanto que você e o Armando ficassem juntos. São tão harmônicos
e ele é tão delicado com você. Ademais é um gato e um paizão. Ah, meu Deus... O
que vamos fazer?
- Não sei, filha. Desde que
soube, e isso faz tantos anos, tenho o peito apertado por essa proximidade de
vocês. Agora meu coração está destroçado porque vejo no Armando o mesmo que eu
via em seu pai, quando nos apaixonamos. Não sei o que fazer, espero que você me
ajude a pensar. Estou perdida nessa correnteza. Agora veja isso aqui.
Jaqueline mostrou à filha um
recorte de jornal falando sobre o acidente, cuidadosamente guardado em um saco
plástico, onde também tinha um papel em branco dobrado, escrito à mão.
- Abra e leia, minha filha.
“Atena, você
morreu jovem e essa culpa minha família vai levar para sempre. Eu prometo a
você mover céus e terras e, com a bênção de Deus e enquanto viver, ajudar a
cuidar de sua filha”.
- Pai Todo Poderoso! Como é
possível? Que coisa mais triste isso!
IV A
REVELAÇÃO
-Oi, Isis-L, minha
irmãzinha do coração. Tenho uma pergunta: se você tivesse que dar uma
informação a alguém, por dura que fosse, como você faria? Diria claramente e de
cara?
- Acho que sim... Não sei, não
me ocorre nada momento. Dê um exemplo.
- Hummm... Bom, sei que você
ficou interessada no Bob, quando esteve aqui e que ele também tem uma queda por
você. Se eu tivesse pegado ele, como você gostaria de ser informada?
- O quê? Você fez isso?
- Não, só um exemplo
- Ufa! Olha, mesmo assim, acho
que gostaria de saber de cara.
- E se fosse o inverso, se você
tivesse pegado o Bill, como você faria?
- Primeiro eu não faria isso,
portanto, não sei. Mas o que você quer mesmo me dizer? Pare de me enrolar, mana.
Ou passamos a não confiar mais uma na outra?
- Tenho algo para contar, mas
não sei como. Não tem nada a ver conosco. Tem mais a ver com Jaqueline e
Armando.
- Ah é isso? Posso dizer que
desde que dormiram juntos, meu pai voltou a cantar no banheiro. Você precisava
ver a cara de pateta dos dois no outro dia. Não sei, não, maninha, mas acho que
vamos conseguir o que queríamos. Até a Justina está vibrando.
- Pois é, ela chegou aqui feliz
da vida também. Mas não é sobre isso. Bem. Falamos depois. Beijo
Isis ficou com a impressão
de que havia algo errado. Aquelas questões todas pareceram sem sentido... Ou
com um sentido tão amplo que fez com que sua amiga tivesse bloqueado o
raciocínio e por consequência o argumento. Certamente é algo grave. Seria com a
Jaqueline? Teria adoecido novamente? Resolveu não esperar e retornou o contato
imediatamente.
- Oi M... Você está com
tempo agora? Podemos conversar?
- Oi L... Sim. Temos que
fazer isso. Acabei enrolando tudo colocando o Bill e o Bob na conversa. Bem... Essa
é uma conversa que deveríamos ter pessoalmente, mas como só soube agora não
pude aproveitar o seu tempo aqui. E soube por um motivo maravilhoso: Jaqueline
está apaixonada por Armando, embora ainda não admita.
- Não me assuste...
- Bem, vamos aos fatos
terríveis, e como não vou mais enrolar, vou apenas descrever o que ouvi. E por
favor: apenas me ouça, porque vai ser difícil de falar. Sua mãe morreu no mesmo
acidente em que morreu meu pai.
- O quê! O que você está
me dizendo?
- Pedi para você apenas me
ouvir, porque já está sendo pesado demais falar sobre isso. Mas é bem assim.
Minha mãe soube desde que nos conhecemos. Ela foi se informar a que
família você pertencia, quando ficamos amigas e descobriu. Agora leia o que ela
escreveu quando você foi a primeira vez lá em casa.
Isis-M mandou o print do que
Jaqueline tinha escrito. A amiga leu, ficou um tempo estática e a seguir
desandou.
- Perdão, maninha, me dê um
tempo, não aguento mais. Quero chorar.
- Choramos juntas. Achei que já
tinha chorado tudo, mas ver você assim dói demais.
Após um tempo, Isis-M retomou a
conversa:
- Meu pai dirigia o carro e por
uma desatenção dele, bateu em vocês. Também por isso minha mãe custou tanto a
conhecer Armando. Quando viemos para cá, a pretexto do tratamento, era para
fugir da situação, mesmo presa a promessa de ajudar você. Ela não contava que a
nossa amizade acabasse se fortalecendo ainda mais com a distância.
- Isis, estou sem chão...
- Eu sei, também fiquei quando
soube, e comecei a rezar para que isso não nos afetasse. Eu morreria se você me
desse as costas. Por favor, não me abandone...
- Jamais faria isso, muito
menos agora. Só não consigo raciocinar
- Minha mãe não sabe como
contar ao Armando.
- Vamos ver... Vou preparar o
terreno. Só preciso retomar o centro. Agora, por favor, fale mais comigo.
Preciso de você.
V – A PREPARAÇÃO
- Pai, você nunca quis saber
sobre o acidente em que a mãe morreu? Quem foi... Culpa de quem... Essas
coisas.
- Não. Pelas condições da
estrada não posso culpar ninguém. Foi repentino. Saímos da serra com sol e em
15 minutos parece que abriram uma enorme torneira. Não se via nada. Foi
terrível. Não quero lembrar disso. Foi muito sofrimento. Nunca houve um amor como
o meu e o da sua mãe. Crescemos juntos, namoramos, casamos e vivemos como
namorados. Ela era perfeita. Você sabe disso.
- Sei. Também me lembro bem
dela. Inesquecível. Além de linda era carismática. Que coisa... Mas a vida
anda. Até achei que ia rolar com a tia Jaqueline. Ela parece bem caidinha por
você.
- E vocês fazendo um esforço
danado, que eu sei. Até a Justina alcovitando. Não estou preparado para isso,
filha. Não sei se algum dia estarei. Atena levou a minha metade negociável. E
vamos combinar: juntar duas dores não é uma boa receita, você não acha?
- Mas se você encontrasse as
pessoas que provocaram o acidente, qual seria sua reação?
- Não sei. Não penso nisso.
Sei, no entanto, que eles levaram metade de mim, como já disse. Que história é
essa agora, Isis?
- Nada não. Vai ver há tanto
sofrimento do lado de lá como o do lado de cá. Pense nisso.
- Filha, o que está
acontecendo? Você tem alguma coisa para me falar?
- Tenho, claro, mas não vou
falar. Não interessa no momento.
Ser filha única e ter perdido a
mãe quando criança deu à Isis uma maturidade precoce. Era uma menina
inteligente, articulada e com uma bela visão da vida, ainda que com apenas 15
anos. Queria plantar na mente do pai uma versão mitigada do acidente que os
tinha abalado. Ele pensaria a respeito, conheci-o bem. Agora precisavam, ela e
sua xará, aplainar o caminho pedregoso que tinha ficado, estava esquecido, mas
que voltaria mais forte quando tudo fosse revelado. Pobre Jaqueline!
VI - TEMPO
Não é o tempo que aplaca as
tensões. É a pluralidade de ações inseridas no tempo que ajudam a aliviar os
males. Jaqueline e Armando tornaram-se assíduos pela internet. Levavam uma
espécie de namoro constrangido à distância. Havia um sentimento bom entre eles,
mas que carecia de combustível. Ou de revelações. Certamente, se
estivessem próximos, as coisas poderiam ser mais claras e intensas.
- Pai, em julho temos alguns
dias de férias. Acho que você também pode se dar esse direito, não? Vamos
viajar? A Justina está louquinha para ficar só.
- É disso aqui que você está
falando?
Armando mostrou para a filha
três passagens. Justina iria junto.
- Meu amor! Pai, amo você! A
Justina já sabe? Vou contar para a Isis-M. Você já combinou com a
Jaqueline?
- Não, a Justina não sabe. A
sua tarefa é prepará-la e agilizar o passaporte dela. E avise que lá, julho é
verão. E sim. Jaqueline e eu estamos acertados. E atenção: não ficaremos em
hotel.
- Oba!!!!! Agora vai!
- Cale-se. Temos dois meses até
lá.
... Que passam voando. Num
piscar de olhos estavam reunidos como uma família, na sala de Boston. Quem os
visse através da enorme janela da sala de jantar diria que era uma família
comum, incomumente feliz. Um casal, duas filhas lindas e uma amiga, sentados à
mesa conversando e rindo. Justina estava muito à vontade, sem fazer a mínima
questão de esconder sua torcida para que aquela visão se perpetuasse. “Vocês
formam um belo casal”, comentou depois de meia taça de vinho, já sonolenta e se
retirando para o quarto.
Tão logo Justina saiu, as
meninas cruzaram seus olhares e também se declararam cansadas. “Ãrrã... Bill e
Bob na pauta”, resmungou Armando. “Papai e mamãe também...” E se foram
rindo.
- Obrigado por ter vindo,
Armando. Você me faz muito bem.
- Há muito não me esforçava
tanto para isso. Quero fazer bem a você. Depois de longo período, por fim me
sinto vivo.
O casal sentou-se em um sofá
voltado para a janela, por onde filtrava as luzes da rua. Era verão em Boston e
nessa época não há diferença das temperaturas e da umidade do sul do Brasil.
Uma noite agradável. Ideal para o começo de muitas coisas boas.
Jaqueline havia preparado um
texto, escolhido e decorado cada palavra, a fim de que o que fosse dito
chegasse da forma mais suave possível aos ouvidos de Armando. Precisaria, no
entanto, reunir coragem. Por outro lado, como estragar aquele momento tão
mágico quando, depois de tantos anos, estava reencontrando o prazer de viver? A
negação dessa iniciativa descia pela garganta com um sabor amargo de medo, com
notas de egoísmo. Ao menos aquela noite ela haveria de preservar. Então
deixou-se abraçar por Armando, sentados lado a lado, silentes e ali ficaram até
que o silêncio também tomasse conta das ruas. Depois recolheram-se, cada um para
o seu quarto.
Ouvidos atentos aguardavam o
desfecho da noite... Ao ouvirem o ruido de duas portas se fechando, as meninas
e Justina foram dormir, decepcionadas. Jaqueline, no entanto, sabia com quem
lidava. Conhecia demais a filha. Por isso colocou Armando em um quarto contíguo
ao seu, com uma porta de acesso. E ao inferno o medo e o egoísmo! Aquela seria
a segunda noite de amor do casal.
- Meninas, vamos tomar café. Já
é tarde
- Justina... Só mais meia
hora...
- Nada disso. Vamos lá.
A casa tinha dois empregados.
Uma moça brasileira, que cuidava das tarefas domésticas e seu marido americano,
uma espécie de faz tudo. Ambos moravam lá, em uma casa anexa. Justina
entrosou-se rapidamente com a moça e passou a ajudá-la.
-Cadê o casal, Justina?
- Vá saber. Eu é que não vou
chamar. Como vocês dizem, acho que não “rolou”.
- Esses adultos se acham o
centro da moral. Perdem um tempo enorme. Caralho!
- Modos, menina!
- Bom dia, filhotas...
- Oi mãe. Tão feliz porquê?
Dormiu bem?
- Não me lembro de ter dormido.
- E meu pai, tia Jaque? Sabe se
já levantou?
- Sei. Está correndo no parque
aí da frente.
- E... Posso saber como você
sabe disso, mamazita?
- Não é da sua conta –
respondeu Jaqueline com um leve sorriso no rosto.
Foi o suficiente para receber
alguns apertões e vários beijos em cada bochecha, enquanto teve as suas pernas
servindo de colo para duas marmanjas.
- Cuidado, meninas. Dona
Jaqueline ainda não pode ter muito peso em cima, saiam já daí.
- Como assim “não pode receber
peso em cima”, Justina? Você só pode estar de brincadeira. Pelo que dá para
ver, tio Armando deve pesar 90 quilos. Mamãe não é fraca.
- Modos! Respeite a sua mãe!
- Mas a severa Justina não conseguia nem franzir o cenho de tão
feliz.
- Vocês sabem que tudo isso
pode ser uma ilusão. Fui egoísta e covarde ontem, mas não posso mais retardar o
que preciso fazer. Dói porque, na verdade estou amando. Como achei que nunca
mais poderia.
- De que estão falando?
- Contem para Justina,
meninas.
As duas meninas sentaram-se na
sala com Justina e detalharam tudo o que sabiam do acidente.
- Minha Aparecidinha abençoada!
Doutor Armando não vai reagir bem. Sempre se escondeu do assunto. Vai trazer
todo sofrimento de novo. E eu sei o quanto esse homem sofreu.
- O que devemos fazer, Justina?
Ninguém conhece meu pai melhor do que você.
- Contar, claro. E já, antes
que o dano fique maior. “Como”, é que não sei. Não gostaria de estar na pele da
Dona Jaqueline. Ô destino esse! Só rezando mesmo.
- A mãe deverá falar hoje com
ele.
- E eu vou ter que prepará-lo.
Eu sei que ele faria tudo por mim. Só não posso violentá-lo. Vocês acham que
deveríamos ficar em casa ou sairmos e deixá-los à vontade?
- Eles vão precisar de nós.
Mas Jaqueline tinha outros
planos. Fosse falar em casa, talvez constrangesse Armando e não quis
prevalecer-se da situação. Então convidou-o para sair. Jantarem fora, apenas os
dois, em um restaurante panorâmico, lindo e aconchegante.
Armando estranhou, no entanto,
o comportamento das meninas. Um convite daqueles precederia, no normal, uma
grande festa das duas. Ao contrário, apenas recebeu um abraço meio angustiado
da filha, com uma recomendação “Pai, eu sei que você faria qualquer coisa por
mim. Hoje você terá uma chance de ouro para provar isso”. Não entendeu. Ou
entendeu por outro lado.
O restaurante, de fato, era
maravilhoso, bem como a vista, e os espaços cabines isoladas, umas das outras.
E logo quando brindaram o espumante, Jaqueline começou a falar.
- Não é por acaso que escolhi
estar aqui com você hoje. Tenho algo a falar, espero que você me escute e rezo
para que compreenda. Há dez anos fiquei paraplégica, processo que, você sabe,
durou muitos anos de recuperação. Antes disso, também amarguei longo período de
inconsciência na UTI, fato que me fez, ainda que involuntariamente, minimizar o
acidente. A minha viuvez, no entanto, foi dolorosa. Tínhamos uma vida familiar
harmônica e de muito amor, mais ou menos o que a sua Isis fala da
vida de vocês.
- Jaqueline, por que estamos
falando sobre isso?
- Por favor, me ouça, foi muito
difícil para mim decidir falar. É necessário por todo esse envolvimento que
temos, a partir das nossas meninas. O acidente em que faleceu meu marido e me
deixou naquele estado, aconteceu em um final de tarde chuvoso. Muita chuva em
um domingo. E só aconteceu porque ele se distraiu, falando pelo rádio, em uma
curva, subindo a serra. Perdeu-se e bateu de frente em um carro que vinha no
sentido oposto. Nesse outro carro vinha uma família: casal e uma filha. Soube
muito tempo depois de ter recobrado a consciência de que a moça tinha falecido.
Armando apenas ouvia. Soltou o
olhar para o infinito e passou a reprisar mentalmente o filme de terror daquele
final de tarde. Suas perdas, seus medos, o estado de deterioração pessoal que
viveu quando foi acudido por Justina. Se no início tinha vontade de falar
alguma coisa, quando compôs o quadro fechou-se em copas. Jaqueline continuou.
- Causamos um dano enorme para
sua família. A minha culpa direta, no entanto, passou a existir quando eu soube
de quem vocês se tratavam. Descobri isso na primeira vez que a
minha Isis me falou da sua. Quis saber com quem ela brincava e
descobri o quão terrível era o destino. Ou não. Poderia ser uma oportunidade de
redenção e eu fiz a promessa de ajudar a sua Isis. Pedi a Deus que me
permitisse isso. Mas em relação a você me calei. Primeiro porque eu tinha
vergonha do meu estado, depois porque tive medo, sei lá. E também porque, ao
ver a minha filha e a sua juntas, comecei a entender o que são e o que fazem os
anjos. A solução que encontrei, solução covarde, foi me mudar para cá. Meu
marido trabalhava aqui nesse hospital que é referência mundial, mas eu poderia
vir vez por outra e voltar e o tratamento seria igual. Tentei assim afastar as
meninas. Era mais fácil que explicar, mas você acompanhou no que se
transformaram. São mais que irmãs, como se Deus estivesse me cobrando a
promessa que tinha feito. E para culminar, você. O que sinto por você é algo
que eu não esperava nem em um sonho juvenil sentir novamente. Não depois do
casamento que tive. Você traz junto toda essa carga emocional que nos liga, que
liga nossas filhas, além de ser um homem maravilhoso. Peço que você tente me
perdoar e... Bem... Por favor, diga alguma coisa.
- Antes de
sairmos, Isis me abraçou e me fez lembrar que eu faria qualquer coisa
por ela, e que hoje eu teria uma boa oportunidade. Ela já sabe disso?
- Sim. Contei para a
minha Isis quando voltei do Brasil e tínhamos ficado juntos. Ela
naturalmente contou para a sua e que deve ter se aconselhado com Justina.
- Estou sem saber o que dizer.
A medida em que você ia falando eu ia remontando o trailer dos acontecimentos.
Lamentei por muito tempo não ter morrido naquele dia. Só me recuperei anos
depois, com o apoio dos meus anjos da guarda. Agora, as feridas
estão descascadas. Estou em carne viva de novo. Não há o que perdoar,
Jaqueline, você não tem culpa de nada. Eu é que não sei lidar com isso. Nunca
aprendi e nunca vou aprender. Peço que você me perdoe por me sentir muito menor
que a minha dor. Ela me tolhe os horizontes. Gostaria de voltar para
casa.
Não havia como superar, a
despeito de culpas ou não culpas, todo o processo remasterizado. Armando
deixaria Isis ficar o tempo que tinham combinado, mas retornou ao
Brasil no dia seguinte. Estava devastado e a fiel Justina o acompanhou. Tanto
tempo para viver um novo amor e agora que o tinha encontrado, ele era o veículo
que lhe havia tirado metade da sua vida.
Dias depois retornou a filha.
Ao se reencontrarem, no lugar de vivas, mais lágrimas. Armando pediu à Isis que
respeitasse o seu tempo e não lhe cobrasse nada.
Armando capitulou de vez. Como
se não bastasse o desleixo pessoal e profissional a que se entregara, voltou a
beber fora de controle. Até o dia em que chegou em casa, serviu uma dose e
chamou Justina, mas quem respondeu foi Isis.
- Justina foi embora, pai, você
sabe porquê. E se as coisas continuarem assim por aqui, eu também vou. Você
pode ainda ter direitos sobre mim, mas é só até daqui a pouco. E duvido que
queira ficar comigo, caso eu me decida ir. E hoje eu vou dormir fora.
- Como assim, vai dormir fora?
Onde e com quem? Você está louca?
- Não vou lhe dizer. Caso
queira, pode mandar a polícia atrás de mim. Você perdeu o meu
respeito.
O fundo do poço estava próximo.
Armando era um zumbi que não aceitava ajuda. Não queria. Acabou sendo salvo por
Justina, em uma manhã, quando ela passou para ver se estava tudo em ordem. Ia
na metade da manhã na certeza de que não tinha ninguém e aí aproveitava para
limpar e ajustar algumas coisinhas. Encontrou o patrão desfalecido, nu, no chão
do banheiro, em coma alcoólica. Era hora de não o abandona-lo, e chamou a
filha, que mal o cumprimentava, isso quando o via.
- Por onde você anda, minha
filha? Seu pai precisa de ajuda. Acho que nós não queremos vê-lo morrer, não é
mesmo? Ontem o levei em coma para o hospital. Seu celular estava desligado,
onde você estava?
- Meu Deus! Que coisa horrível
é essa? Estava com Jaqueline. Ela está há uma semana aqui no Brasil, louca para
se encontrar com ele, mas como? Não nesse estado.
- É mesmo? E como ela está?
- Totalmente recuperada. Linda
e apaixonada por doutor Armando. Mas também muito sofrida com a situação.
Jaqueline era uma mulher de
decisões firmes. Amargara alguns dias as consequências da revelação, mas a vida
precisava dela forte e inteira, afinal, tinha uma filha para cuidar e uma
promessa para cumprir. Estivera no Brasil, quis ver Armando, mas Isis
desaconselhou. Não era o momento, porque talvez as feridas se tornassem ainda
piores. Paciência. Aceitaria a situação como ela se resolvesse.
Já as meninas pareciam cada vez
mais próximas. Tornaram-se adultas, amadureceram, tiveram seus romances, suas
perdas, muitos ganhos e se encaminhavam para um lindo futuro.
Armando, após um período em uma
clínica de desintoxicação, exigência da filha e de Justina, voltou para casa
cheio de promessas. Tivera tempo para colocar na balança a dor que não o
abandonava e sua filha, que o abandonaria, caso se deixasse vencer. Ainda era
relativamente jovem e poderia, porque não, ter uma vida plena e ver sua Isis
realizada. E Justina estaria por perto para fazer com que cumprisse suas
promessas.
Porém, o dia em
que Isis viajaria para os EUA em busca de especialização chegara.
Iria, enfim, morar com Jaqueline, a convite desta. Não havia com prendê-la sob
as asas, e ir embora já não estava mais à mercê de sua vontade ou opinião. Elas
já tinham decidido. E ele ficaria sozinho com a sua Justina. Era seu destino,
marcado a ferro e fogo em uma curva na descida da serra, num domingo chuvoso.
- Pai, não sei como vou dizer
isso, mas estou feliz, perdão por deixá-lo. Vá me ver de vez em quando. E
continue se cuidando, por favor. Sempre vou amar você e daqui a bem pouco tempo
já estarei com saudades suas. Quando deixar de trabalhar ou quando quiser, vá
morar comigo. Sempre seremos uma família, por menor que seja.
- Sim, filha. Não consigo
falar. Vou morrer longe de você.
- Não. Você passou mais de
vinte anos tentando morrer. Agora crie vergonha e viva. Faça isso por mim. Ao
menos dessa vez tente viver por mim.
Não foi uma vida fácil adiante,
mas Armando tratava de se cuidar. Voltou a conversar com Jaqueline. Havia agora
mais assuntos em comum a serem tratados, transferência de recursos para
manutenção da filha e coisas afins. Tratavam-se cordialmente, sufocando os
sentimentos que haviam. E resistia aos convites de ir ver a filha.
Alguns anos depois, Armando
teve mais uma perda. Justina, a sua Justina morreu. Estava sentada tomando chá,
choramingando de saudade de Isis e despencou. Morreu serenamente. Triste, mas
em paz. Armando resolveu não avisar a filha que estava prestes a concluir
seus estudos. Ele iria vê-la e falaria pessoalmente sobre essa perda.
Dois meses depois, Armando
embarcou. Ao chegar em Boston para a formatura, Armando se sentia bem. Voltara
aos exercícios físicos e desafiava a bebida, ou seja, bebia pouco e de vez em
quando. Pediu que a filha fosse vê-lo no hotel. Soubera que Jaqueline estava
tendo um relacionamento e não queria aparecer no momento. Já estariam juntos à
noite. Mas sentia um engasgo amargo ao lembrar dela, antevendo-a com outro
homem.
O evento era portentoso.
Pessoas bonitas, bem arrumadas e Armando não economizou cuidados na aparência. Era
noite de festa para as pessoas que amava e queria estar à altura delas. A
chegada de Jaqueline foi impactante, mas dolorida. Lindíssima, desenvolta e
acompanhada. Quando o viu, foi cumprimentá-lo e apresentar o suposto namorado,
um americano enorme. Segundo soube, diretor do hospital onde as meninas
passariam a trabalhar. Armando falava pouco inglês, portanto, resumiu-se em
acenos e sorrisos. E uma questão martelava fortemente sua cabeça: “Armando, em
quais dos infernos você estava que deixou escapar essa mulher?”. E durante
grande parte da cerimônia não desviou os olhos dela, que parecia nem tê-lo
notado. Aquilo doía, porém, era sinal de vida.
A sua Isis, foi designada
para o discurso final. Antes de terminar, chamou o pai ao placo e disse algumas
palavras em português que poucas pessoas entenderam. “Pai, nasci de você e de
uma deusa que será eterna. Morremos um pouco com ela, mas renascemos para o
resto da vida. Aqui é o seu lugar, venha ficar comigo, esse é o nosso destino.
Todas nós esperamos por você”. Abraçaram-se, choraram e a plateia respondeu com
aplausos e vivas.
Antes de retirarem-se Armando
foi cumprimentar Jaqueline e despedir-se do casal.
- Nada disso. Você não vai
embora sem conversarmos. Somos próximos demais para tanta frivolidade. Veja as
nossas filhas... Você não precisa respeitar o que sinto por você, mas a nossa
ligação familiar é sólida e precisa ser respeitada.
- Eu sei, querida. Sou um
equívoco ambulante, sem forças para vencer meus traumas. Vou visitá-la sim,
afinal, minha filha mora lá. Quando fica melhor? não quero causar
constrangimentos.
- Sim. Vá amanhã à noite.
Armando usou o dia seguinte
para paparicar a filha e a xará. Foi apresentado, por fim, aos namorados, Bob e
Bill, todos pertencentes a mesma universidade e cursos similares.
- Vocês tratem de ensinar esses
marmanjos a falar português, a fim de agradar ao sogro.
- Ao sogro? Hummm...
exclamou Isis-M – Vai haver guerra e eu já sei para que
exército torcer.
- Que não custe seus empregos.
- Ah é. Melhor não torcer.
Com 20 graus negativos, Armando
chegou à casa de Jaqueline no final da tarde.
- Tio Armando! Que bom que você
chegou. Estávamos de saída e assim mamãe não ficará sozinha –
debochou Isis.
- Pai, você quer que eu repita
o que lhe disse anos atrás, um pouquinho antes de você fugir do seu destino?
- Não precisa, filha. Senti
minha alma rasgar ontem quando vi Jaqueline acompanhada. Vou custar a me
perdoar.
Jaqueline entrou na sala a
tempo de beijar as filhas. Sim, as filhas, com as recomendações de praxe. Pegou
Armando pela mão e foram sentar-se no mesmo sofá, de anos atrás, olhando as
luzes da cidade. No momento, no entanto, a cidade era quase um bloco de gelo.
- Jaqueline, eu...
- Não diga nada. A menos que vá
dizer que me ama e que nunca esqueceu de mim.
- Mas e o...
Jaqueline selou os lábios de
Armando com os seus e as palavras se enlambuzaram de paixão. Da sala para o
quarto, até o amanhecer.
- Você quer me explicar que
tipo de relação tem com aquele cidadão enorme?
- Ele é diretor do hospital em
que meu marido trabalhava e onde as meninas irão trabalhar. É um amigo muito
querido. Gostamos muito um do outro. Foi quem me tratou esses anos todos, mas
ele gosta tanto de mulher quanto eu. Como tem receio de se expor eu o ajudo no
papel hetero dele. Ele sabe de nós e o quanto você me fez sofrer esses anos
todos. E agradeça às nossas filhas, em especial à sua, o fato de eu nunca ter
namorado ninguém. Faziam da sala uma horta e plantavam-se como espantalhos,
quando eu recebia alguma visita suspeita. Agora decida-se. O que pretende da
vida?
- A minha vida mudou-se para
cá. Nada mais me prende no Brasil e eu quero ficar perto da minha filha; perto
de vocês. A minha querida Justina faleceu meses antes da minha viagem. Eu
queria trazê-la para a formatura, mas acho que ela já não andava se sentindo
bem, só não falava. Ainda não contei para Isis, não queria estragar a festa.
Bem, hoje vou a embaixada. Tenho possibilidades de trabalho por lá, em função
da minha especialização em direito internacional. Tenho ótimas chances e terei
a resposta hoje. Só preciso melhorar o meu inglês. Vou morar aqui perto,
portanto, estaremos sempre juntos, caso não haja espantalhos na sala.
- Já não era sem tempo. Você
está me fazendo muito feliz e prometo cuidar bem de nós. Bem. Devo dizer a você
outra coisa e, por favor, entenda que isso fez parte do meu sacramento; da
promessa que fiz quando as meninas eram crianças. A sua Isis tem uma
conta/investimento que abri tão logo você fez a primeira remessa para ela.
Todos os seus depósitos foram para lá, excetuando o que ela usava para se
manter. Está lá, intacto, ela não sabe o quanto, mas é um bom dinheiro.
- A universidade dela foi você
que pagou, então?
- Não. Eu iria fazer isso, mas
ela é muito talentosa e inteligente. Conseguiu a bolsa por seus próprios
méritos. Agora cale-se e me beije. Amo terrivelmente você e sua
filha... Minha filha. É mais minha do que sua.
Nada mais poderia mudar o rumo
das coisas. Dia seguinte, com tudo encaminhado junto a embaixada e as chaves da
casa na mão, Armando foi jantar com a namorada e as filhas. Havia coisas a
serem reveladas.
- Bem, meus amores, tenho
novidades. Começo pela ruim, mas foi a que desencadeou o resto das minhas decisões. Isis,
minha filhinha, lamento dizer, mas a nossa Justina faleceu. Estava tomando chá
comigo quando apagou. Morreu serenamente, um pouco depois de me dizer que
sentia muito a sua falta.
Por óbvio que foi preciso tempo
e muitas palavras de conforto para Isis. Justina tinha sido a única mãe
que conhecera depois de perder a sua, e antes de encontrar Jaqueline.
Alguns minutos depois, Armando
continuou:
- Vou continuar, milha filha.
Você disse para todos ouvirem e alguns entenderem que o meu lugar era junto de
você. Então... Estas são as chaves da minha casa. É alugada e fica 50 metros
daqui, ou seja, me mudei para cá – foi impossível segurar o salto
de Isis sobre o pai – Calma que tem mais: fui aceito na embaixada.
Vou trabalhar lá, mas preciso urgente de aulas de inglês. O meu é insuficiente.
Terceira notícia... Não, não é notícia, é um pedido: Isis-M, eu amo você
por tudo o que representa para a minha filha, e amo de paixão a sua mãe. Quero
recuperar cada segundo que botei fora nesse tempo todo e limpar da memória a
imagem terrível de vê-la entrando na festa de formatura acompanhada por outro
homem. Só aceito dividi-la com você e a minha Isis, você se incomoda com
isso?
- Ufa!
Aleluia! Enfim vencemos, Isis-L. Com muitos anos de atraso,
finalmente seremos uma família. E vocês tratem de aproveitar estas duas damas
de honra maravilhosas e se casem. Não abrimos mão disso. Não têm
mais idade para ficarem de namorico. Venha, mana, vamos deixar os velhos
tirarem o atraso.
VII – EPÍLOGO
- Rápido, M, rápido que eles já
estão chegando! Atena, minha filhinha, não mexa no bolo!
Alguns minutos depois, Armando,
75 anos, em ótima forma, aparecia na porta da frente, que tinha o acesso
adaptado para cadeirantes. Trazia sua amada Jaqueline que, com o passar dos
anos, ainda em função dos traumas do acidente, voltava a ter dificuldades para
andar. “Entre a bengala e a cadeira, prefiro dar trabalho para o meu velho”.
Mas não era aquela cadeirante amarga e sorumbática lá do início. Era uma linda
septuagenária bem vestida, altiva e maquiada. “E sexualmente ativa”, não
esquecia de dizer.
O terreno da casa não era nem a
metade daquele em que a família de Jaqueline morava no Brasil. Mesmo assim, mas
porque também se prometeram jamais se afastarem, as meninas Isis-L
e Isis-M demoliram a casa, construíram uma pequena e confortável ao lado
para os pais e ergueram dois sobrados geminados, onde passaram a morar depois
de casadas.
E nesse dia, comemoravam as
bodas de prata de Armando e Jaqueline.
FIM