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sexta-feira, 3 de julho de 2020

EROTILDES





Dona Erotildes andava sempre bem vestida. Mulher altiva, discreta, uns trinta e poucos anos. Não chegava a ser de uma beleza estonteante, mas tinha um corpaço e um par de coxas que tirava o fôlego. Dava para ver pelo desenho que se via naquele vestido justo de Jersey que colocava quando saia de vez em quando às tardes e deixava o homerio com os queixos perto do joelho, ao passar. Transpirava sensualidade. Mas nada haveria de ser igual ao que se imagina por detrás daqueles panos. “É pintosa, a balzaquiana”, minimizavam as tias de nariz torcido.

Solteira, vivia do seu ofício e talvez contasse com a ajuda de um parente que se dizia primo. Seu La Garça, que era bancário e a visitava duas vezes por semana, às vezes três.

Costureira de mão cheia, diziam. Fazia suas próprias roupas, sempre orientada pelas revistas de moda, ou pelas chiques que posavam em “O Cruzeiro“. Tinha várias clientes, e Julio, adolescente, com tanta espinha na cara quanto vergonha e as mãos cobertas de pelo, muito por causa dela, fazia entregas de bicicleta por meia dúzia de pilas. No entanto, o “prêmio” maior era estar por perto, quando aproveitava para frestear pelas portas entreabertas da casa, na esperança de flagrar pernas também entreabertas.

Alguns dias antes do aniversário de Julio, Dona Erotildes resolveu lhe dar um presente.

- Vem cá, vou tirar tuas medidas. Vais ganhar uma camisa e uma calça de aniversário.

Mediu o pescoço, tamanho das mangas “estás crescendo, guri, estás quase um homem”. E Julio estaqueado, afinal deveria ser quase um homem mesmo. Quase, porque entre outras coisas, além dos ralos pelos que vertiam no rosto, uns duelando por espaço entre as espinhas, e os pubianos que ainda mal se enroscavam, sexo apenas manipulado. Ainda era "autossuficiente". A ovelha do tio Bonifácio não contava.  

Mediu a cintura, o comprimento da perna e altura do fundilho. E foi nesse momento que o guri extrapolou a vergonha. Mal dona Erotildes roçou a braguilha dele com o dorso da mão, o membro inocente, que até ali permanecia amordaçado, mercê de muita concentração e respiração cachorrinho, intumesceu-se, inchou, perdeu o controle, não parava de crescer e ele, atônito, sem saber o que fazer, saiu correndo porta à fora.

Julio ficou um tempo sem aparecer. Chegava do colégio e se encerrava no quarto. Até o dia do seu aniversário.

Pai e filho moravam sozinhos. A esposa e mãe falecera há alguns anos e eles não tinham ânimo para festas. As tias mandavam bolo, doces, presentinhos e tal e eles se esbaldavam por uns dias.

- Dona Erotildes deixou esse pacotinho pra ti. Deve ser um presente. Tens que ir lá agradecer.  

Julio desconfiava do que era, então tomou seu banho e foi experimentar a camisa e a calça nova ganhas. Perfeito. Quase. A calça ficou um pouco apertada nos fundilhos, afinal ela tinha terminado de fazer “a olho”, já que ele “perdera a cola” enquanto ela tirava medidas, mas de resto, ótima. Então era hora de enfrentar as vergonhas. Foi agradecer o presente vestido com ele.

- Ora, ora... Apareceu o rapazinho... Deixa ver... Ficou bem, um pouco justa aqui embaixo, deve incomodar. Tira que eu arrumo.

“Puta que pariu!” – Vacilou

- Eu sei por que estás com vergonha. Achas que eu nunca vi um homem pelado antes? Vi e aposto que bem mais “documentados”.

Após algumas negaceadas Julio tirou a calça e se enrolou na cortina.

- Deixa de frescura, guri, senta ali.

“Então foda-se”, pensou. Sentou e ficou contemplando o mulherão sentado à máquina, de frente para ele, com as pernas entreabertas.  E quem diz que o “bicho velho” manipulado baixava a cabeça?

Enquanto dona Erotildes trabalhava, ele ficou lá sentado no sofá com uma estaca latejante entre as pernas. Barraca armadíssima. Vez por outra ela olhava de canto de olho e dava um dissimulado sorriso.

- Pronto. Vem cá.

Vacilou um pouco, mas foi. De pau duro mesmo. “Foda-se!”

- Não vai dar para experimentar com esse negócio duro. E eu acho que te subestimei, por isso ficou apertada. Estou curiosa, posso ver? Já “usaste” o amiguinho aí alguma vez?

- Usei só em casa – O pobre guri estava vermelho de vergonha, potencializada por derrames de testosterona. Nem se mexia.  

Sem cerimônia, ela baixou a cueca dele, ficou olhando, talvez surpresa, então pegou o membro com uma das mãos e começou a acariciar mansamente. Molhou as mãos com a língua e continuou a massagem.

- Fica calmo. Eu sei o que tu queres há muito e acho que é hora dar um passo adiante na tua formação. 

Então aproximou os lábios do cabeçote carmim, deu algumas mordiscadas, depois lambeu e passou a usar a língua e a boca em movimentos delicados. “Como assim céu e inferno são lugares distintos?” – pensou o grumete.

- Agora vem cá. Vais ganhar outro presente.

Dona Erotildes levou Julio ao quarto onde deitaram e retirou o resto das roupas que tinha feito. Enquanto também se despia, continuava aquele trabalho maravilhoso que fazia com a boca. 

Ele, no entanto, continuava estático, da mesma forma que deitara. Dona Erotildes, já satisfeita das preliminares se foi à montaria, tendo o cuidado de ajeitar o pino. Assim Julio pode ver melhor o que de fato se escondia por detrás daquele vestido justo de Jersey. Coxas, muitas coxas... Tetas fartas, mamilos enormes e o resto... Ela tinha também um leve sorriso nos lábios.

Ficou lá, como se anda a cavalo, primeiro ao passo, depois a troque curto. Com o acelerar do trote, as feições dela foram mudando, o sorriso esmaecendo, os olhos se revirando, os gemidos desafinando e trocando de tom. O suor começou a tomar conta do seu corpo até que veio o galope. No auge das cavalgadas, dona Erotildes puxou Julio ao seu encontro e esmagou seus lábios nos dele com fome. O coração dela dava saltos que pareciam esbofetear as peles justapostas. Então um frêmito final, comprimindo seu corpo... E foi se soltando aos poucos, retomando à normalidade. E ele? Bem, ele estava tão assustado, surpreso, afinal a virgindade só se perde uma vez, que apesar da excitação toda, travou. Era um obelisco intumescido plantado sobre uma laje.

Quando desmontou, dona Erotildes tratou de acalmar o guri:

- Foi apenas um bloqueio, talvez pela surpresa. Por sorte não aconteceu o contrário. Agora fica bem relaxado que vou dar um jeito nisso.

Dona Erotildes escorregou para os pés da cama e veio massageando as pernas do Julio com o seu instrumental erótico: mãos, língua e lábios... Até chegar ao obelisco, e lá repetiu aquelas maravilhas que o fizeram juntar céu e inferno. Uma massagem delicada com as mãos, contorcionismos linguais, labiais, algumas mordiscadas e engolidas. Aquilo sim era um presente de aniversário!

Na linha tênue que ele identificara entre o céu e o inferno havia um vulcão em permanente ebulição e que a qualquer momento eclodiria. Dona Erotildes sabia disso, recebia os sinais latejantes em seu instrumental erótico e tremores da estrutura, e começou a acelerar os movimentos manuais e labiais. A erupção trouxe, por fim, uma lava incandescente, densa e farta. E foi tanta, que não coube na boca de dona Erotildes, sobrava pelos cantos dos lábios. Pensou um pouco antes de quase desfalecer “Nossa... Credo!”

E assim como estava ficou. Viu dona Erotildes levantar e ir ao banho, ouviu o barulho do chuveiro, tudo muito longe, muito vago, demorado... Estava momentaneamente morto. 

Quando voltou, dona Erotildes vestia um chambre vermelho que contrastava bem com seu cabelo preto ainda molhado, e a pele alva.

- Vai tomar teu banho, está ficando tarde.

Foi flutuando em uma nuvem. Abriu o chuveiro e deixou que a água fizesse o trabalho de recuperá-lo. Banho longo, reconfortante... Enrolou-se em uma toalha e foi procurar as suas roupas.

O cenário que Julio viu ao sair do banheiro era o seguinte: dona Erotildes recostada na cabeceira da cama, meio de lado, com uma cara de paz e felicidade.  Chambre vermelho entreaberto, com um dos seios mamiludos e uma perna inteira de fora. Ora... Não demorou nada para que o pau da barraca se erguesse, a toalha caísse e ele se jogasse sobre a cama como burro no azevém. No entanto, antes que chegasse ao umbigo ela o impediu, colocando as pernas sobre os meus ombros. 

- Calma. Está na hora de conheceres melhor a tua nova amiga. É alguém que vai te dar muito prazer durante a vida, mas um homem de verdade tem que saber retribuir. Lembra daqueles carinhos que te fiz com a boca, não é mesmo? Então faz de conta que tem um pauzinho escondido aí na periquita e deixa a tua língua procurar. Talvez custe a encontrar, mas quando chegares perto, meu corpo te dará sinais.

No roteiro original, na linha dos olhos de Julio estavam aquelas maravilhas dispostas da cintura para cima. Agora era o umbigo e foi por onde ele começou a distribuir beijinhos. Passou pelo ao baixo ventre sentindo o perfume de banho recém tomado com notas almiscaradas, e a pele com pequenos arrepios. 

O clima entre ambos parecia de completa entrega e cumplicidade, e ele já estava bem à vontade. Ao  alcançar a vulva, sentia-se quase um veterano, sabendo exatamente o que deveria ser feito. Quando sentiu o primeiro tremor dela constatou “é por aqui...” E por ali ficou lambiscando, ora firme, ora delicadamente e os tremores, gemidos e suores aumentando. Ela deveria estar curtindo muito aquilo porque em determinados momentos quase enfiava a cabeça dele para dentro dela. Foi em um momento extremo desses que ela o puxou para cima. Mas Julio não se jogou. Foi subindo lentamente deslizando seu corpo sobre o dela, até que o membro encontrasse sozinho a sua parceria profunda e misteriosa, e penetrasse sem atritos por entre suas paredes ensopadas.

No roteiro adaptado, chegara a vez de Julio andar a cavalo. E montou... Primeiro ao passo, depois a trotes curtos, com muitas trocas de carinhos e olhares... A seguir trotes mais duros, com os lábios se esmagando em confronto... E então uma cavalgada frenética em busca de um fim, quando as bocas foram liberadas para a emissão de sons indecifráveis, variados e desafinados, até ultrapassarem juntos apoteoticamente a linha de chegada. Que final!

Caiu um para cada lado, mas ela não o  deixou morrer de novo.

- Está tarde. Coloca a tua roupa e vai. Teu pai deve estar preocupado. Outro dia a gente continua.   

Julio pensou “outro dia é amanhã”, invertendo o ditado popular. Olhou o relógio da cabeceira. Dez horas da noite! “Puta merda! Fui...”

Ao chegar, Julio encontrou o pai na porta, usando a sua feição mais inquiridora. 

- Onde andava o rapazinho? Mandei agradecer o presente e desapareceste?

- É. Fiquei conversando com dona Erotildes.

- Quatro horas dá uma boa conversa. Bueno... Tem janta na Frigidaire. Já comeste?

- Muito.

E se recolheu. Não era hora para conversinhas. Foi um aniversário para a posteridade, uma vez que a primeira ejaculação assistida a gente não esquece. E dona Erotildes conheceu o quanto é dura e insaciável a natureza de um adolescente.

É certo que, apesar de magro e alto, Julio era um guri. Acabara de completar 14 anos, mas uma coisa também precisava ser dita: ter feito gozar com direito a bis a mulher que era o sonho de consumo do homerio da zona, inclusive do pai dele, que mal disfarçava isso, o colocava pau a pau com eles, com vantagem a seu favor. No entanto, ninguém precisaria saber disso. Só ele e dona Eroltildes. 

O improvável casal passou a ter longos finais de tarde e algumas noites de trocas galopantes. Durou mais ou menos 5 anos, até Julio  sair da sua cidade e ir cumprir com o seu destino. Ir embora não foi uma decisão fácil, mas sua generosa parceira, mesmo que também a contragosto o aconselhara: “Vai. És jovem e precisas construir um futuro para ti. Quando sentires saudades daqui olha para dentro,  não para trás”.   

Nunca contou essa história para ninguém, exceto para seu pai, que num dado momento arrastou tanto a asa para a vizinha que até pensou em desposá-la. Então foi obrigado a abrir o jogo, implorando sigilo.  O velho não pareceu chateado, só o chamou de “filho da mãe” e, ao contrário, percebeu certo alívio na cara dele, uma vez que, como nunca tinha apresentado uma namorada, chegou a desconfiar que o filho fosse fresco. Ocorre que Julio só tinha olhares e demais sentidos para dona Erotildes, suas saliências, suas redondices cheirosas de banho recém tomado com notas almiscaradas, e sua boca mágica.    

Depois que Julio foi embora passou quase dez anos sem aparecer. Certo dia seu pai o chamou porque tinha alguns exames para fazer e estava precisando de ajuda. Então retomou o velho caminho que há muito não trilhava. Voltou à terra!

Nada era mais a mesma coisa. As pessoas, as lojas, as ruas e praças tudo modificado. Soube pelo pai que seu La Garça, que já tinha viuvado ainda no tempo em que ele estava por lá, resolvera assumir a dona Erotildes e que tinham até um filho.

- Um filho?

- É, mas todo mundo desconfia que não seja do La Garça, embora tenha registrado como seu e o trate com extremo carinho. O guri tem tudo do bom e do melhor. Todo mundo desconfia, menos eu.  Estranhamente, ou não, o meu velho amigo parou de me cumprimentar. Nem me olha na cara. Claro... Papagaio come milho e periquito leva a fama. Por sorte se mudaram daqui. Moram na casa dele, no centro. O guri é muito parecido contigo. Mas atenção: deixa quieto. São veteranos, vivem bem e até onde eu sei é uma família feliz.  Não te mete.

- Puta que pariu!    

Julio estava aturdido com a notícia. Precisava ajustar o prumo. Havia combinado uma cerveja com alguns amigos remanescente no fim da tarde e se foi à praça.

Cumprimentos, abraços, gritarias adjetivadas... “fiadaputa” pra cá “fiadaputa” pra lá... Essas coisas de amigos jovens. Às garrafas tantas daquela restauração de saudades, percebeu um casal que sentara em um banco próximo. “Ora, ora, vejam só... A nova família La Garça!” E tinha um menino ao lado dela, provavelmente o filho. A primeira vista e de longe, as informações de idade correspondiam, faltava conferir de perto as feições. Como havia prometido ao pai, não haveria de causar transtornos, mas é óbvio que iria conferir. Nada o impedia que os cumprimentasse, e era até educado que o fizesse.  Então pediu licença um instante ao grupo e forçou uma casualidade. Deu uma volta por traz do banco e passou na frente da família.

- Olá, mas que surpresa! D. Erotildes, seu La Garça... Quanto tempo? Prazer em vê-los. Que gurizão lindo, parabéns!

Dona Erotildes riu com satisfação, mas seu La Garça mal mexeu a cabeça em um “boa tarde” grunhido e mastigado entre mandíbulas cerradas.

- Olá, como vais, Julio? Muito tempo mesmo. Obrigada, prazer também em revê-lo. Juliano cumprimente o amigo da mamãe.


domingo, 10 de novembro de 2019

ELIZABETH ROSEMOND TAYLOR






Liz instalou-se no imaginário coletivo de homens e mulheres, cinéfilos ou não, a partir dos anos cinquenta como uma pasta 
compartilhada de lindas imagens. Houve quem dissesse que tenha escalado a grande e viscosa montanha hollywoodiana fincando estacas com seus olhos incomuns, encravados em lousa de alabastro. Cor indefinida, formato e a expressão únicas. Digo que não basta somente ter olhos lindos, há que saber olhar, e Liz sabia, nasceu sabendo. Era um rosto que foi, ao longo de décadas, modelo da mais perfeita arquitetura humana. 

Liz tinha como esporte favorito o casamento. Entre uma e várias "ficadas", casou oito vezes (bem mais do que eu), inclusive, entre um porre e outro, duas vezes com o Burton, que conhecia muito bem as preferências da musa. Ao invés de flores, costumava oferecer-lhe joias. Coisa pouca, como o diamante Krupp, de 33 quilates, ou a pérola La Pelegrina, a mesma que o Rei Felipe II, da Espanha deu a Maria Tudor, no século XV.  Mimos. 

Mas não foram somente seus atributos faciais que fizeram dela um ícone. Foi uma grande atriz consagrada por prêmios máximos da Academia. Um por “Disque Butterfield 8” (60) e outro por “Quem tem medo de Viginia Wolf” (66). E há no largo de sua carreira outros tantos desempenhos que a fizeram no mínimo candidata ao Oscar.  De minha parte, talvez induzido pela música, o que mais me marcou foi o drama Adeus às ilusões. Vi várias vezes, até me dar conta que a diferença entre ir ao Corbacho ou ficar em casa olhando um álbum de figurinhas dela, com um compacto simples rodando na eletrola, eram só as imagens. O valor da obra estava nelas. A paisagem da Califórnia, indescritível,  e os personagens, mereciam uma história de amor muito mais consistente.

O filme não decolou em função da levada monótona e penso também que pela fórmula gasta, pois a personagem Laura Reynolds (Liz) parece ser a mesma Gloria Wandrous (Liz) do Disque Butterfield 8. Talvez tenham tentado aproveitar a história que havia rendido um Oscar, de uma mulher linda e atormentada por suas convicções e paixões desencontradas em busca de amor. A arte imitando a vida. 

A música The shadow of your smile (A sombra do seu sorriso), ou para nós como no filme, Adeus às ilusões é uma poesia musicada. Para quem não conhece digo que é daquelas que nos faz respirar cachorrinho, ter contrações de cinco em cinco segundos e dilatação de quatro dedos. Inesquecível.

Liz se foi aos 79 anos, em 2011, sepultando para sempre os sonhos inocentes de algumas gerações.  Colocou névoas densas sobre Atlântico e Pacifico que carregava entre os cílios, em dias de melhor tom de azul, verde ou violeta. Com ela levou  as rugas e as deformidades naturais que eu nunca percebi.

sábado, 10 de agosto de 2019

YOM KIPUR


Há seres iluminados, e eu conheci alguns, que parece já terem nascido pais. Há outros que aprendem com o próprio exercício da paternidade; há os que nunca aprendem e ainda há os que ousam não saber do que se trata. O fator-pai não sei ao certo identificar. Sei que se sustenta em alguns pilares. Uns gostando e sendo amigos, outros rígidos e gerenciais, ou uma mistura disso tudo que, dizem, é o ideal. Mas tudo isso tem o prazo definido pelos filhos e sua tomada de rédeas dos próprio destinos. É inexorável.

Eu, bem assim como o meu pai, só aprendi a gostar, quase nada além disso. E amo à proporção do tempo e as distâncias que só fazem crescer, o que acaba resultando em dor e saudades.


Fui um fracasso como gestor do tema, e tomo sempre o dia dos pais como o meu Yom Kipur (dia do perdão). Nesse dia sempre peço perdão pelo que não fui como filho e pai, seja por obstáculos que eu mesmo criei, seja por circunstancialidades fatais na origem ou seja pela inabilidade inata de lidar com os temas. Nunca, no entanto, por desamor, o que no caso passa de atenuante a agravante, uma vez que consagra a certeza de que eu poderia ter feito melhor.


E o conformismo quando chega é sempre amargo, porque vem nos lembrar que as páginas em branco que nos deram, onde rabiscamos nossos passos não são rascunhos. Não há "control Z" e nada pode ser editado. Cada risco é parte da obra acabada.


No Dia dos Pais, em que os meus fantasmas vêm em bloco arrastar correntes na minha consciência; que lembrar do meu pai tem o mesmo valor que lembrar dos meus filhos, é dia também de agradecer ao Velho o fato de ter herdado e transferido com orgulho um sobrenome; de ter sido amado como filho, e além de amar os meus, ter descoberto, enfim, que ser pai é mais do que um ditongo.


Devo ter aprendido isso quando percebi que aventais, meias, cuecas e camisetas são mimos que, ao serem entregues dentro de um abraço, tem um valor maior do que qualquer conta na Suíça.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

HOMENAGEM AO DÉCIMO ENCONTRO DE BASQUETEIROS - PLACA












X ENCONTRO DOS BASQUETEIROS DE URUGUAIANA

O Encontro dos Basqueteiros nasceu para ser uma espécie de paradoxo temporal. Uma viagem lúdica iniciada em 2001; uma renovação de votos de amizade, carinho e companheirismo entre pares, e de amor a Uruguaiana, a nossa terra santa que nos realimenta e energiza.

Em quase duas décadas de encontros, afora os mapas de tempo desenhados em nossas lousas físicas, nada mudamos. Que bom que nada tenha mudado! E pouco importa para onde tenhamos levado as carcaças cedidas em comodato pelo Criador, em espírito jamais saímos daqui.

Que esta homenagem, tatuada em aço na praça que nos concentra; no coração das nossas melhores e mais puras lembranças, seja a nossa profissão de fé sobre os valores humanos declarados que nos unem desde sempre e que assim permanecerão eternamente.

Basqueteiros de Uruguaiana
Maio de 2019

segunda-feira, 24 de junho de 2019

SUPEREGO





Acumular-me de atenuantes, ainda que inúteis,
Porque sou minha acusação mais dura;
Perdoar-me, ainda que não haja perdões possíveis,
Porque sou eu a minha única redenção;
Amar-me, ainda que já não dimensione mais isso,
Porque sou meu apego mais leal,
Alimentar-me de utopias, ainda que improváveis,
Porque preciso disso e ninguém sonha melhor do que eu.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

EXPIRAÇÃO




sábado, 1 de junho de 2019

O JOELHO




Texto de 2005 - do livro Castelo de Guardanapos 

O joelho, salvo duvidosas interpretações, aberrações traumáticas ou genéticas, fica no meio da perna. Via de regra passa despercebido ou quando muito habita o imaginário fantasioso de alguns. Mas não é tão somente isso. Penso no joelho como um Everest feminino. O pico onde meio século atrás as mulheres fincaram a bandeira redentora de suas conquistas.  

No comecinho dos anos 60, meu pai me falava dos vestidos de antes que, ousados, deixavam à mostra tornozelos  e canelas. Falava e deixava brilhar o melhor tom de azul que tinha nos olhos, borboleteando pensamentos nas velhas barras rendadas, saudoso. Súbito, as barras chegaram aos joelhos e no momento imediatamente posterior, ultrapassava-os, marcando limites alguns centímetros acima. A redentora Mary Quant levava a mulher a conquistar o joelho, centro da perna e início de todos os mistérios. A época se prestava a revoluções sociais e de costumes.  

A mini-saia entrou como estandarte feminino no pacotaço, que teve seu auge naquela suruba de Woodstock.  Pais politicamente corretos  e que não queriam pagar o mico de conservadores apenas culpavam as mães pelo abuso das filhas. Pais ortodoxos davam duro em nome da moral e dos bons costumes, reprimiam e castigavam. As filhas usavam saias comportadas, na altura das canelas, plissadas, godês, amplas. Até a primeira esquina. Ali o cós se enrolava com quatro dedos gordos de dobra, até atingir a altura desejada, por elas e pela galera salivante que se desdobravam em estratégias para conseguir o melhor ângulo de observação. Ia desde a fixação nas cruzadas de perna, que instigavam o instinto selvagem de cada um, reuniões em baixo das escadas e até a lenda do espelhinho despudorado se equilibrando no bico do sapato em busca de flashes. Saudades de ti, Colégio União!

Depois que a saia transpôs os joelhos, liberou geral. Romperam-se todas as fronteiras e a mulher não parou mais de conquistar, sempre em duplas, a saber: primeiro tornozelos, depois joelhos, nádegas e seios. Estes que já se espremeram em espartilhos e corpinhos, passaram por porta-seios e outras amarras agora também ameaçam (ou prometem?) liberdade total.  Será como um assalto ou sequestro. Quando menos você, pai zeloso e de férias na praia esperar a filhinha, de costas, lhe pedirá: “pai, desamarra p’ra mim” . Você passa de inocente a cúmplice. E não se iluda, a mãe já sabia. Tudo igualzinho àquele dia de quarenta anos atrás quando uma filha descobriu os joelhos.

Assim como o homem costuma, ou costumava, afirmar seu machismo erguendo obeliscos, a mulher deveria erguer monumentos ao joelho. Lá tudo começou. Mais do que uma articulação fria no inverno, que costuma atingir rins incautos na reversão da posição "conchinha", o joelho dá ginga, balanço,  é cheio de redondices e seduz pelo imaginário, portal das reentrâncias. 


É também responsável direto pela formação da vida e conseqüente preservação da espécie. No entanto, não estarão juntos nesta última tarefa. Ela, a vida, só se faz quando os dois joelhos se afastam.

sexta-feira, 31 de maio de 2019

A CRIAÇÃO





Estava tudo certo. Fora criado o reino animal, mas o Criador estava num impasse. Já tinha decidido que voariam os pássaros, nadariam os peixes e andariam outros bípedes e os quadrúpedes. Precisava então distribuir alguns atributos especiais. Tinha destinado ao homem a inteligência absoluta, mas, só descobriria depois, isso lhe traria alguns desconfortos.

Considerou que a fidelidade deveria ser canina e a deu ao cão, lógico, além de bom faro para que pudesse se achar em dia de mudança. Na onda da mesma fidelidade entraram os peixes que, orgulhosos, sairiam mar a fora proclamando que filhinho de peixe, peixinho é. Deu olhos de lince ao lince, sem esquecer-se de produzir especialíssimos olhos de águia para a própria. Dotou o gato de acrobacia diferenciada para que mais tarde pudesse mostrar ao mundo o que haveria de ser o pulo do gato. A porca teria o rabo bastante flexível, uma vez que alguém haveria de vir torcê-lo em caso de apuros. Já o seu marido teria duas virtudes indiscutíveis: o lombinho e o pernil. Deu à vaca muita paciência  e anticorpos, pois haveria de passar a vida inteira indo para o brejo. A propósito de bovinos e paciência, enquadrou o boi, a fim de que ostentasse sem queixas os chifres e que pudesse elaborar bem suas perdas. Ele passaria a ser o símbolo de doação e desprendimento. Nasceria como qualquer mamífero. Ainda jovem lhe arrancariam a masculinidade barbaramente, sem anestesia; passaria sua curta vida como corno manso para logo a seguir ser morto, retalhado, queimado no calor das brasas e servido como pasto. E algum sádico ainda haveria de gritar: “o meu, mal passado!”.  Pobre boi. Mas ainda assim haveria de ter bom sono, pois dormiria com qualquer conversa mole.

O Criador teve dúvidas quanto ao burro. Burro ele seria, claro, por isso viveria emburrado e empacando, no entanto seria dócil o suficiente para ser amarrado à vontade do dono e humilde para que baixasse sempre as orelhas quando outro burro falasse. Ou quando alguém, despercebido, desse com ele n’água. 

A produtividade ficaria com coelhos e galinhas. Os primeiros viveriam focados num dos mandamentos para preservar a espécie. Cresceriam e se multiplicariam rapidamente, pois, mais dia menos dia, haveria de aparecer alguém com vontade de matar dois com uma única cajadada. As galinhas, que de grão em grão encheriam o papo, deveriam ser rápidas e abundantes na postura, evitando que algum apressadinho viesse a contar com o ovo no... Em trânsito. O marido desta, polígamo assumido, além de cantor e ancestral do relógio-ponto teria grande virilidade, mas não haveria de ser lá essas coisas como amante.

Deus olhou com tristeza para o peru. Haveria de ser uma dessas criaturas que nunca participam de festas, pois enchem a cara antes e morrem na véspera. Até o sétimo dia talvez não conseguisse retira-lo da depressão.


Quando procurou a serpente o Criador não encontrou. Não estava confortável. Não achou uma boa ideia a criação daquele ser frio, rastejante e sinistro. Queria livrar-se dela. Assim, resolveu premiar aquele que a matasse desde que mostrasse o pau. Mas que não houvesse mal entendido.

Por descuido nasceram insetos. O que fazer com eles? Bem, o Criador era criativo. Grilos habitariam a cabeça do homem para fazê-lo refletir,  e pulgas, vez por outra colocar-se-iam atrás de orelhas para após as reflexões.  Estes, então, participariam de momentos chatos. Chatos? De onde vieram esses?

No fim do expediente restavam poucos atributos para serem distribuídos. A quem o Criador contemplaria com a moral e os bons costumes? O homem, pela capacidade de discernimento e para justificar a imagem e semelhança seria o mais indicado. E Deus perguntou ao homem se seria capaz de arcar com essas duas virtudes, e este vacilou. Desconversou dizendo que estava bom demais o que ganhara. Além disso, tinha um projeto futuro já desenhado: seria um ser político, onde esses dois “apêndices” seriam irrelevantes.  Dependeria sim da sua inteligência, capacidade de liderança e observação.

Para esse projeto futuro, também lhe disse o homem, que dispensaria virtudes como as do cão e iria direto ao gato testar seus pulos. De linces e águias, imaginariam como ficaria com os olhos destes; aproveitaria a paciência do boi, mas só para treinar metáforas flácidas, tendo o cuidado para não seguir o caminho da vaca. Iria, por fim, até a serpente negociar. Mas iria de pau na mão, conforme desejo do Criador e, dependendo do bônus poderia matá-la. Antes, porém comeria a maçã e a Eva.

Era o sexto dia, seis da tarde. Não dava tempo para mais nada. A criação fora encomendada para ser entregue em seis dias e, que diabos (opa!), o Arquiteto era pontual. E tinha combinado com Ele mesmo que descansaria no sétimo.


Cansado, concluiu que nem tudo é perfeito. Nem Ele.

“Noé, prepara o recall!”

terça-feira, 28 de maio de 2019

O ADEUS


sábado, 25 de maio de 2019

DANÇA

Não creditado o autor da arte por desconhecido




Passos de folhas
Na valsa do vento...
Pares não sentam

O TROCO


terça-feira, 24 de julho de 2018

LEVANTA-TE E ANDA

quer nos confortar. 



Lá, se sentirmos a vida (eu chamo de vida a vontade imorredoura de viver) escorrendo preguiçosamente por entre os dedos, ainda não murchos, mas deliberadamente inertes, e essa letargia conseguir trazer um pouco de alivio ou prazer, por mórbido, significa que enfim, morremos. Apenas que por tanta preguiça esquecemo-nos de deitar, e por assim não nos decidirmos, nossos queridos ainda não choram por nós.  Mas como sofrem!

Digo isso por transeunte de uma idade crítica e por ver alguns pares entregando esse tesouro assim, à toa. Porque vejo alguém desistindo, e por querido, fragilizando também seus circundantes. Talvez haja mais alguém num cantinho da sala cuja bronquite tenha escarrado o próprio sorriso, ou que uma recém inaugurada artrite tenha entrevado a cintura, as juntas e o olhar, tirando de vez a vontade de dançar ou de apenas retribuir um afetuoso abraço.  Há por perto alguém cujas rugas, ainda em formação, tenham sulcado também a esperança, e o crítico olhar do espelho a tenha feito perder o bom costume de sonhar.

Por fim há por ai mais alguém, cuja visão tenha ficado curta e esteja impedindo de perceber que os olhos apenas retratam, mas as imagens ainda são reveladas no laboratório fino da alma e que a resolução depende de como essa interface, olhos/alma é trabalhada. 

A nossa vida não é “a nossa vida” e sim a resultante de uma convergência de afetos ou falta deles, mas nunca um conjunto vazio; é, pois, dos que um dia floresceram conosco e hoje meio murcham solidários; daqueles que vimos sair de nós, homens e mulheres paridos e formatados no melhor do nosso carinho, hoje parindo novas vidas que nos estimulam a continuar vivendo com o fôlego do carinho original. Se verdadeiramente pudermos sentir isso e acreditarmos que somos centro não apenas de dor, mas de geração de afetos, então há vida para viver e quem se foi, deliberadamente ou não, há de perder a melhor parte. 

Amanhã, quando o sol levantar para reinar sobre o universo, não pense duas vezes, apenas siga o exemplo dele. Levante-se e reine.

E que se quebrem os espelhos que não retribuam o seu sorriso, sem medo dos tais sete anos seguintes.      

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Olho a rosa na janela


Texto do livro "Assim como era no princípio"

Ao amigo Orlando Torres.
Havia uma janela grande de persianas verdes, recatada. De um lado sonhos, do outro, tocadores de sonhos. Ambos os lados de luz difusa, porque era noite e ninguém queria ser visto, por circunstâncias proibitivas... E era sexta-feira.  
Por ora bastava um violão, primeira voz e segundas que não interferissem, uma ou outra rosa roubada para assinar os breves momentos de poesia. E uma música, que fosse como Modinha, do Sérgio Bittencourt, um soneto musicado.
Modinha é um paradigma. Quisera eu tê-la escrito, se não, musicado, ou ao menos cantado em qualquer uma das nossas serenatas de sextas-feiras. Porque talento não estava no meu pacote, não escrevi, e por juízo não cantei, mas resmungava seus versos em sintonia com o momento, quase como um lamento.
Modinha é suave, romântica, entregue, poeticamente torturada em estrofes juvenis. Rosas e prosas à primeira namorada; um pouco, quase nada para dizer do amor.  É a serenata que Schubert não escreveu, em versão “morena”.  
O mundo que inventou Modinha não está mais por aqui; mudou de rota, está grosseiro, bestificado; de cores esmaecidas onde predomina um tom gris entristecido.  Andamos por aí, mas quase nunca sem um objetivo claro e urgente. Não passeamos tanto, seja por pressa ou medo. Desconfio que não pertencemos mais ao grupo humano que um dia fez de Modinha um pressuposto filosófico.
 Mas não é por Modinha, ou só por ela. É pelo tempo desconfigurado, de mandíbulas cerradas e cenho franzido, que hoje não se traduz em versos iguais; não à partitura, mas ao sentimento que a criou. Um tempo que apenas nos encaramuja em último refúgio, e vive de nos fazer enxergar vultos medonhos que se realimentam dos espíritos que os produzem.
E porque serenata hoje estaria a embirrar com códigos sociais, e porque as singelas persianas andam se abrindo em frestas reprimidas por grades e muros intolerantes.  
 Mas e então, morremos? Muito, como gente. Mas se é possível acreditar que três dias depois alguém voltou do plano misterioso, e até festejamos isso, chegou a nossa vez de ressuscitar. Que olhemos além das grades das janelas; que troquemos pesadelos por sonhos, ao menos um,  pequenino, que  propicie uma terna regressão; que andemos por ai à toa, quando o sol se finde lento soltando nossa voz, na voz do vento, despedaçando versos em busca de um perdão... Qualquer perdão, dos tantos que devemos, mas um em especial, por termos participado da construção desta versão neo-humana incapaz de ser ingenuamente feliz. Fácil não é, mas tão-somente estar vivo também não é.   
Há vivos, mesmo que poucos ou quase nada, e muito desconfiados sobre o nosso reativo pensamento sistêmico.  Faço parte desta fração intempestiva de queixosos pela ausência das subjetividades de ontem, porque lá tínhamos o bom costume de sonhar. E se tínhamos, e porque sabemos do gosto dos sonhos, também sabemos o bem que nos faria revivê-los despercebidamente. Não agendados; jamais induzidos como parece ser a única maneira.
Vez por outra consigo enxergar além das grades, vejo rosas constrangidas e de perfume reprimido. Lembro-me de um violão e um círculo de afetos que se deixava perder nos próprios passos para se encontrar numa canção. E lembro também de um tocador de voz sussurrada incomparável.
 “Play it again”, amigo Orlandinho. Assim como era no princípio.

domingo, 17 de junho de 2018

DAS PARTIDAS DOBRADAS

Do livro "Assim como era no princípio"

(Confissão de culpa... entre tangos e malbecs)
Devo ter concluído meu processo de nascimento depois de adulto. Não faz muito. E logo que terminei de nascer, fiz o pacto de vida que consagra as relações de amor.  Me prometi o que se promete na igreja em relação à  saúde e à doença; à alegria e à tristeza; à riqueza e à pobreza, até que a morte me divida nas duas partes conhecidas e me dê o destino final: uma ao pó, de onde dizem que eu vim, e outra ao éter, para onde dizem que eu vou. Um final de carreira, sem redundância, à altura de um dependente químico, mas não é o meu caso.
 Autoamado e respeitado, entendi que não haveria de ter problemas de estima, e desde então estaria pronto para viver e não ter a vergonha de ser feliz. Mas sabe, nesta pista de loucas baladas em que nos inseriram sem convite (sequer pediram a nossa opinião) não há moleza. Às vezes vacilamos e as vezes duvidamos daquilo que nos ensinaram a acreditar, contando que tenham ensinado. Dúvida sobre dúvida, até chegarmos à pergunta fatal, estimulada pelo Thomé que carregamos subjugado latente, que está sempre ali, cutucando nossos vacilos nos momentos de suspicácia: “mas se o Velho permitiu que botassem pregos nas mãos do ungido, o que não permitirá que façam comigo?
 Bueno, bueno. Já duvidei no mínimo três vezes e o galo nem precisou se manifestar. Fé é um dom, e eu não fui agraciado com ele (Anjos e demônios). Continuo, no entanto, cabo eleitoral do Mano, desejando que fique aqui onde alguns dizem que está; ou lá onde dizem outros; ou em todos os lugares onde dizem os mais otimistas. O importante é que não saia do anonimato, para sua própria segurança.   
Com ou sem fé; permitindo ou não que os pequenos vacilos criem corpo e me cubram de culpas e judiarias, sigo a trupe que não quer ser personagem de folhetins apócrifos. Que venham as histórias absurdas; os contos complexos ou meros espasmos biográficos. Se forem de doer, deixo que sangrem como letra de tango, porque as alegrias sempre serão de samba-enredo.  Faço parte do grupo que entende que o pior do baile não é não ter dançado, mas passar pelo salão sem ter sido percebido. Em algum copo ou canto devem ficar as digitais.
Como ficaram nos copos, cantos e campos da minha Uruguaiana antiga e nas quebradas da velha Porto “dos ventos uivantes”.  Não devem ser hoje as mesmas que tanto cansaram meus sapatos; que iluminaram fantasias em mil watts de neon. No vagar dos anos, as imagens se esmaecem, a luz vai apagando, o povo sumindo, a noite esfriando... (E agora, Jajá... E agora? Vai, Jajá, vai ser gauche na vida! Acabo de dar dois “pealos” no Drummond. Desculpe.)
 Mas vou sim... Fui de novo... Andar, assim como era no principio, agora e sempre (e por todos os séculos dos séculos, amém), curtindo a sensação de esvaziamento de gavetas, deixando estrelas acesas em pedaços do que pude realizar de mais precioso. Não haver deixado buracos negros sob tetos foi um desejo impossível de ser satisfeito. Mas é do enxadrismo da vida e circunstancialidades de almas inquietas, construtoras de distâncias como a que me deram.  Me deixei andar, por que se não andasse, velhas parceiras como a paz e a alegria poderiam cansar de esperar. E eu nunca transigi delas; não como busca permanente.
 Muitas vezes pisei no estribo e me fui olhando para trás, a la cria, desconfiado de perdas. Coisa de quem tem os bolsos do coração furados. Andar sempre porque tudo anda. Anda o trem, o rio; anda a fila; o tempo e o avião voam, e até o sol, que mesmo rei, não tem o direito de ficar parado. E em cada início de passo, uma certeza: a cabeça antes já se fora.  Tudo parte da sustentação do segundo processo do nascimento autodefinido, que me cobrava continuar sendo amado e respeitado por mim mesmo.
 O que eu soube depois, não muito depois, é que nem sempre as velhas parceiras, paz e alegria, andam juntas. Às vezes uma delas fica num canto de gaveta mal esvaziada ou no pó das estrelas deixadas acesas, e vem impiedosamente inundar de luz o pensamento e arrastar correntes na consciência. O sono se vai, as noites encompridam e o cansaço abate. Dos tempos insones descobri dois outros parceiros, que também nem sempre andam juntos: arrependimento e perdão. Entretanto, nada é mais virtual do que eles. Por acaso alguém se arrepende do que deu certo, mesmo que para isso tenha pisoteado sobre dores alheias? Arrependimento é uma espécie de cinismo consternado, infectado de penas frustradas. E perdão... Deixei por ai setenta vezes sete a serem pedidos! E quantos ainda irei dever?  Mas sempre soube que pedir não conserta estragos; há causas que são danos emergentes, não se curam. Só se confortam por ação do tempo e substituição do foco.  No mais das vezes, o perdoado faz de conta que se redime e o ofendido faz de conta que esquece. São placebos morais. E penso que nada pode ser pior que ouvir após um pedido de perdão “... mas agora?”. Agora sempre será tarde. 
 No metro longo deste andar, juntei os restos que pudessem sustentar os valores intrínsecos.  Percebo cada vez mais o quanto também a vida anda, e depois de um tempo, com mais pressa. Mas não me abate o fato de que seja finita.  Finais há muito não me perturbam. Tenho uma espécie de remorso prévio do dia em que isso acontecer. Neste caso, que se tenha cumprido naturalmente o ciclo das luas e, isto é um apelo: troco qualquer apoteose pelo olhar complacente dos meus filhos. Que possam perceber, apenas olhando nos meus olhos, que eles são os únicos e sagrados motivos que me levariam a reescrever a minha história, caso pudesse. Estão no centro das minhas consternações mais sentidas, cujos perdões não pedi por imerecidos, e porque acredito nas definições acima.   Mas saibam eles, os meus filhos, que os carrego sempre comigo, em ambos os lados do peito, dentro e fora. Vá que haja mesmo outras vidas e outras oportunidades.
Por fim, que o Velho me leve embora bem lá adiante mesmo, quando as pernas buscarem apoio sem encontrar e a cabeça tenha perdido todas as suas saudades. Não as perceba nem entre tangos e malbecs.
Não pense Ele, porém, que atendendo uma e outra reivindicação deste mutuário estará tudo dentro dos conformes.  Gente como eu só abandona o domicílio muito contrariada. Não sabemos morrer de bom humor.  

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Giant



Do livro “Assim como era no princípio!
O Criador estava em alfa (ou haveria de ter andado fumando coisas e “viajado”) lá pelo sexto dia, momento em que sublimou a espécie. Produziu linhas e tonalidades de formas a consagrar sua mania de perfeição, e simplesmente descartou a fórmula.  Por certo que naquelas horas de fastio e soberba, consolidada a magnífica obra, garganteou seu bordão à eternidade sobre imagem e semelhança.
 Da obra minimizada restaram céu e mar, em dias de incompreensível tom de azul encravados em lousa de alabastro, a fomentar e inquietar sonhos juvenis. Serenos, sombreados de cílios foram ter comigo, certa vez, durante três horas e meia. Flutuei à deriva sobre aquelas águas translúcidas, que simploriamente os mortais chamavam de olhos violeta. A época e a idade propiciavam navegar ao limite (que limite?) da fantasia e produzir roteiros imundos no sono adolescente.
 Sonhava com ela, e eu pergunto: quem não sonhava com Elizabeth Taylor? Ok. Tem gente que sonhava com o Rock Hudson, como a própria Liz, que soube depois e para sua decepção, tratar-se de alguém da “irmandade”. Pobre Rock, que anjos varões o tenham (*)
 Giant é o titulo original do longa metragem Assim Caminha a Humanidade. Sem redundância, gigantesca produção dos anos cinquenta estrelada pelos dois bonitões acima, e a terceira e última aparição em tela do meteórico James Dean, que nem chegou a ver o filme concluído. Morreu antes. (Sobre este, teria dito o feioso Humphrey Bogart, dolorido com o sucesso post morten do colega: ‘’a melhor coisa que aconteceu a ele foi ter morrido cedo’’).
 A história gira em torno de uma família texana tradicional comandada pelo Bick (Hudson), de um humilde empregado Jett (Dean), e uma esposa Leslie (Taylor) que foi ‘’achada’’ pelo futuro marido após uma viagem de negócios. Foi comprar cavalos, imaginem. A história é fantástica, recheada de sentimentos adversos: amor, ódio, preconceitos, com fotografia, figurino e música maravilhosos, tendo recebido dez indicações ao Oscar (levou um, secundário). Jett, além de mim e todos os homens que apreciam cerveja, apaixonou-se pela Leslie, mas não levou, e por isso foi para a porrada com o marido afortunado. O Inconformado Jett, entretanto, enriqueceu quando tratou de subverter a ordem da terra, vigente até então, (terra que estranhamente herdara da invejosa irmã do Bick, morta a coices de cavalo) passando a explorar petróleo.  E em se tornando rico, houve por bem novamente tentar furar os nossos olhos, e tomar na “mão grande” a nossa mulher - minha e do Bick. De novo não levou. Ele, que já “bebia todas, com o novo fracasso foi domiciliar-se em definitivo na garrafa.
 Nesse filme o olhar da Liz estava uma estupidez. Talvez porque o início da produção tenha ocorrido pouco depois dela ter se tornado mãe pela primeira vez e a maternidade tenha conseguido dar ainda mais luminosidade à luz; o céu tenha perdido para sempre as nuvens, e Atlântico e Pacífico tenham se dessalinizado.  E que me perdoe a finada pelas modestíssimas comparações.
 Elizabeth Taylor é dona de vários suspiros que todos demos. Não era, entretanto, de namorar no banheiro, lugar cativo da senhorita Brigitte Anne-Marie Bardot, além de outras trinta e cinco menos votadas. Liz não deveria ter as pernas da Marlene Dietrich; o corpo da Sophia Loren; certamente não tinha os seios da Uschi Digard (Ah, não sabe quem é Uschi Digard. Melhor, mais me sobra); E nem era cachorra como a senhorita Margarita Carmen Cansino, que quando se apresentou a nós já fumava muito e se chamava Rita Hayworth; Não era o "mais belo animal do mundo", como disse certa vez da piriguete-retrô Ava Gardner, o poeta Jean Cocteau, aquele animal. Não. Liz era um raio de luz, sequer deveria pertencer a este mundo. E duvido que alguém, além de seus vários maridos tenha contemplado seu corpo. Não deveria ser lá essas coisas, mas isso não importa.
 Liz gostava mesmo era de casar e isso fez bastante. “A felicidade está em colecionar amores”, repetia (mas também colecionava brilhantes). Com Richard Burton, no entanto, foi reincidente específica.
 Também casei bastante, nenhuma vez com ela. Mas sabe-se lá o que haveria de ter acontecido conosco caso ela frequentasse os bailes da Reitoria.
 (*) Rock Hudson e Liz Taylor tornaram-se muito amigos, depois da descoberta por ela da homossexualidade do galã, que morreu em decorrência de complicações com a Aids, em 1985. A partir de então, a musa mostrou que não basta ser bela nem boa atriz para ser musa. Passou a auxiliar a (American Foundation for AIDS Research). Mais tarde criou a sua própria fundação para o mesmo fim, a ETAF (Elizabeth Taylor Aids Foundation), a quem  doou um anel de diamantes e esmeraldas. A joia, com uma pedra de sete quilates e 12 diamantes lapidados em formato de pera, fazia parte da coleção particular da atriz.


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

À TERRA QUE EU CHAMEI DE SANTA



Eu nasci onde o sol se põe. Na terra onde os campos não tinham fim e o horizonte era logo ali; tudo é logo ali quando se sonha. Alcançaríamos o horizonte quando quiséssemos. Quando eu cresci, lá onde nasci, havia mais pedra que asfalto, mas muito mais pasto que pedra.
Não só lá, mas o mundo impermeabilizou suas ruas de preto, e isto, na contrapartida de fazer com que cada uma vire um rio em tempos de chuvarada, deixa a vida melhor para quem não anda mais de carro de boi, carroça e cavalo. Como era, quando e onde eu nasci. Quando fui apanhado pela vida.
Onde eu nasci, o calor queimava no verão, mas e daí? Não haveria de faltar uma sanga, um olho d’água ou um rio onde pudéssemos mergulhar nossa caixa de Pandora, esta com muitas coisas mais penduradas na aba do que simples esperanças.
O inverno era frio. Mas um frio tão intenso que os cabelos do campo, que na primavera nos enchiam os pés de rosetas, envelheciam, ficavam grisalhos, duros e úmidos de geada. E quando os pais sentenciavam especulantes “se essa geada levantar com vento...”. Vermelhavam bochechas e narizes, cortavam orelhas, e ai passavam a ter mais graça as brincadeiras a beira do fogão a lenha. E como era terrível dobrar numa esquina de sentido norte-sul, ou vice-versa.
Mas porque todos em algum momento precisam apanhar a vida, fui correr atrás do nascente. Viajei um dia inteiro na contramão do sol, até que fui viver onde ele nasce. Lá terminei o longo ciclo de me fazer homem. Lá não encontrei mais campos nem pedras. Só ruas impermeabilizadas; já não havia mais carro de boi; e campos e pedras já não me faziam tanta falta.
 Cresci, multipliquei e iniciei o lerdo caminho de quem desce a lomba da plenitude. Conformei-me para o meu sempre, acordar com o sol, nos perdermos durante o dia, e no fim, ele me apanharia onde eu estivesse e me deixaria em casa. Depois seguiria adiante para dormir com aquela que apelidei de santa e no dia seguinte voltaria para me acordar. Coisa de pai. Os guris da terra onde nasci se dizem filhos do sol. Talvez seja por isso.   
Mas um pouco sempre fica no partidor. Lá, onde o sol se põe, um pouco de mim ainda assombra os campos, mesmo que haja poucos; as ruas pedregosas, mesmo que não haja tantas, e as velhas casas, arrastando correntes douradas inocentes, do bem, para trazer de lá seus cheiros. Que importância tem se no lugar dos campos e casas haja hoje prédios enormes e modernos? A terra é revirada para que se revigore e cumpra sua missão de transformar, mesmo assim não sai do lugar. Pouco importa o que fizeram sobre as nossas primeiras pegadas. Nada vai tirá-las de lá, porque elas estão tatuadas no universo em seu conjunto, e na nossa memória mais afetiva.
É bom vez por outra andar no sentido do sol. É como sair dos álbuns para as calçadas, a fim de corrigirmos as fotos. Aí sim, com certo lamento pela brutalidade cronológica do “fotoshop” natural.
Mas o “sempre”, como lugar é uma incógnita. Mais ou menos como o horizonte dos campos sem fim de onde eu nasci. Chegar lá não deve ser uma promessa, mas representar uma esperança. E assim, tendo um dia acordado com ressaca de destino contrafeito, vi o sol nascer e decidi que era hora de seguir de fato o seu rastro. Saímos separados, mas chegamos juntos onde ele se põe, e de tanta paz encontrada devo ficar com sono por aqui mesmo.  
 A saudade de vê-lo nascer cheio de nervos existe. Querer vê-lo meio sim, meio não, entre um copo e outro; entre um papo e muitos outros; entre ruídos de carros, risos e sons de cordas, e de vê-lo vermelho e com a água pela cintura no grande estuário, me enche os pés de asas.
São coisas para fazer na contramão do dia, mas só quando a inquietude passar da conta. Lembrando que saudade é um lugar incerto, onde todas as ruas se chamam Transformação

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

UMA VEZ...

acarinhe 



Olhe fundo nos olhos, como se fosse a última vez;
Abrace forte, como se fosse a última vez;
Beije; beije como nunca, como se fosse a última vez;
Peça perdão e perdoe, como se fosse a última vez;
Ria largamente, à finitude, como se fosse a última vez;
Coma, beba o mais e o melhor como se fosse a última vez.
Arrisque tudo, como se fosse a última vez,
Ponha o melhor de si em tudo, como se fosse a última vez,
E, pela última vez encare-se, não se arrependa nada.
Assim, caso não seja a última vez,
Você terá vivido ao menos uma vez, da forma que sempre quis.