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sábado, 11 de maio de 2013

BENÇÃO, SAUDADE





Quero dizer que me lembro de tudo. Herdei uma memória privilegiada e assim como me enche de alegrias e saudades boas, me castiga. E me castiga ao ponto de viver cada momento do nosso último dia, que chego a sentir o cheiro das flores que te acompanhavam. Havia tantas! Não salgam mais os olhos, claro, secaram há muito. Mesmo por que me obriguei cedo a pensar como os que crêem, num novo e melhor lugar que estivesse a tua altura.

Desde sempre, entretanto, me pergunto: onde haveria de ser o melhor lugar para quem ainda não tem trinta anos? Aqui dividindo e multiplicando vidas, espalhando alegrias, chorando mortos ou lá, num tal indefinido melhor lugar? A ausência de respostas, estranhamente, me conforta.

Lembro de tudo, apesar de termos vivido tão pouco tempo juntos. Por isso talvez andem dizendo por ai que a gente vive o tempo suficiente para se tornar inesquecível.

Era um rosto meigo, quase envergonhado, circundado por longos e lisos cabelos e de grandes olhos negros. Quando ria, ria tudo, boca, olhos, enchendo de vincos a pele ainda sem rugas. E seu choro só não era imperceptível por que vez por outra o nariz fungava. E, convenhamos, sem ter completado trinta anos deve ter havido pouquíssimos motivos para chorar, além das coisas comuns às gurias.

Há muito não tenho idade de filho, embora jamais tenha perdido a orfandade. Mas nestes dias tudo parece que foi ontem. Sinto gosto de tortas de bolacha sabor-mãe, cheiro de roupa passada; olhares críticos aos redemoinhos do meu cabelo, fiscalização rigorosa nas unhas e ouvidos, ponta do lápis afinada, borracha limpa e caderno sem orelhas. Tudo acompanhado por melodias indecifráveis, quebradas por sustenidos risonhos.

Lembro de tudo sim. Mais do que o chinelo na mão e o avental todo sujo de ovo.  Do pouco tudo que tivemos, mas que se revigora duas ou três vezes por ano, quando de uma forma ou de outra festejo o fato de estar vivo, e posso me permitir a estes devaneios meio Peter Pan.

A sua benção, saudade.  

domingo, 14 de abril de 2013

RADICAIS LIVRES

Câmara aprova a PEC em segunda votação

Aos dezesseis anos andamos a cata de símbolos que nos indiquem um lugar ou uma rota. Tudo então é viagem. Estações de passagem, cujo destino é um lugar chamado “onde?”.

Aos dezesseis anos, ora estamos de mal, ora de bem, e permanentemente escravizados pelos hormônios.

Quando estamos com dezesseis anos, somos vulneráveis aos ídolos que nos vendem ou os que compramos por familiaridade, ou ainda por similaridade com nosso alter confuso e por vezes deformado.

Podemos tudo; queremos tudo e damos pouco, afinal é época de colher, embora nem tenhamos começado a plantar. Mantemos e potencializamos a energia juvenil e a ela juntamos a força do adulto. Podemos gerar vida ou tirá-la, escolher nosso destino e o destino de um país. Podemos tudo e não devemos nada, a não ser às sacrificadas satisfações domésticas, e algum compromisso que conseguirmos introjetar para o bem do nosso futuro. 

Temos, portanto, aos dezesseis anos, o poder da vida e da morte. O privilégio de brincar de Deus, sem inferir o código da vida, e sem que responsabilidade alguma nos seja imputada.  

Oh, tempos! Oh, costumes! Mudei, mudamos. Hoje, aos dezesseis anos, bombados de porcarias químicas e/ou de ferros academistas, o jovem pode juntar a tudo o que penso ter dito, uma estrutura corporal diferenciada. Mal direcionado psicologicamente pode transformar-se em uma bomba de efeito social devastador.

Ora, se social e politicamente pode definir rumos, porque não responsabilizar-se por seus atos?

O governo fala em ausência de estruturas de ressocialização adequados para receber jovens; fala de inconstitucionalidade na revisão da idade penal e outros bichos, como se desse bola à Carta maior quando não lhe convém, como é o caso de oferecer saúde, educação e segurança ao povo. Fala, só consegue dizer que não quer chocar um nicho eleitoral sempre atento aos chicletes de ouvido recheados de messianismo quixotesco.

Infelizmente, apesar dos tímidos apelos de redes sociais, só enxergo no país dois grupos capazes de mobilização de massas, entretanto ambos comprometidos. Os jovens e os homossexuais. O primeiro não haveria de mobilizar-se para legislar contra si próprio. E o segundo virou casta privilegiada, em permanente busca de blindagem. Só enxerga e luta por interesses que não vão muito alem da própria sexualidade.  

Sou a favor da redução da maioridade penal. Dezesseis anos, com a facilidade de informações de hoje, o jovem é um adulto precoce, mesmo que não queira. 

As idades mudaram. Antes também éramos velhos aos cinquenta. 

terça-feira, 2 de abril de 2013

NO RASTRO DO SOL




Eu nasci onde o sol se põe. Na terra onde os campos não tinham fim e o horizonte sequer me permitia chegar perto. Quando eu cresci, lá onde nasci, havia mais pedra que asfalto, mas muito mais pasto do que pedra

Onde eu nasci o calor queimava no verão, mas e daí? Não haveria de faltar uma sanga, um olho d’água ou um rio onde eu pudesse mergulhar a caixa de sonhos.

O inverno era frio. Mas um frio tão intenso que os cabelos do campo, que antes nos enchiam os pés de rosetas, envelheciam, ficavam grisalhos, duros e úmidos de geada. E quando os pais sentenciavam especulantes “se essa geada levantar com vento...”. Vermelhavam bochechas e narizes, cortavam orelhas. Ai passavam a ter mais graça as brincadeiras a beira do fogão a lenha.

E como era terrível dobrar numa esquina de sentido norte-sul!

Não só lá, mas o mundo impermeabilizou suas ruas de preto, e isto, na contrapartida de fazer com que cada rua vire um rio em tempos de chuvarada deixa a vida melhor para quem não anda mais de carro de boi, carroça, cavalo e bicicleta. Como era, quando e onde eu nasci. Quando fui apanhado pela vida.

Mas por que todos em algum momento precisam apanhar a vida, mudei para onde nasce o sol. Viajamos um dia inteiro na contramão até que fui viver onde ele nasce, e ele foi dormir onde eu nasci. Lá terminei o longo ciclo de me fazer homem. Lá não encontrei mais campos nem pedras. Só asfalto, entretanto, já não havia mais carro de boi, e campos e pedras já não me faziam tanta falta. Cresci, multipliquei e iniciei o lerdo caminho de quem desce a lomba da plenitude. Então elegi para o meu sempre acordar com o sol, nos perdermos durante o dia, mas voltarmos para casa juntos. Como dois irmãos de ofícios diversos e... Tudo bem, de luminosidades quase opostas.  

O “sempre” é um lugar muito distante. Mais ou menos como o horizonte dos campos sem fim de onde eu nasci. Chegar lá não deve ser uma promessa, mas representar uma esperança.
E assim, tendo um dia acordado com cheiro e gosto de destino contrafeito, vi o sol nascer e decidi que era hora de seguir-lhe o rastro. Chegamos juntos onde ele se pôs, e de tanta paz encontrada devo ficar com sono por aqui mesmo.  

A saudade de vê-lo nascer cheio de nervos, no entanto; de vê-lo meio sim, meio não, entre um copo e outro; entre um papo e muitos outros; entre ruídos de carros, risos e sons de cordas, cair cansado na água do grande estuário me enche os pés de asas, e vez por outra me inquieta na contramão do dia. 

sexta-feira, 15 de março de 2013

O NOME DOS ANJOS





Meu pai foi um cantor de bar, voz enrouquecida de abusos e intempérie, com duas espingardas azuis em baixo das sobrancelhas.  Viveu sua juventude à custa do charme e da virilidade. Na idade madura, mesmo desgastado, conseguia arrancar mais do que suspiros das antigas namoradas. Seu nome deveria subscrever os convites para os cultos ou missas de domingo: Santo José dos Anjos, apelidado pelas amantes e os amigos, colegas de copo e de cruz de “Santinho”. Um santo de reino pagão. Quando morreu não resisti, coloquei na sua lápide com toda a minha saudade: “santificado seja o Vosso reino”

Há um ditado que diz: Deus cria, o diabo espalha e eles por si se juntam. Santinho encontrou numa de suas tantas noitadas, uma mulher diferente das que costumava vencer pelos olhos ou pelos ouvidos. Uma ruiva de personalidade fortíssima que lhe custou mais do que um encontro, buquês e muitas canções dedicadas. Era uma mulher vivida, sábia, que aceitara o jogo proposto, mas que se sentara a mesa com um coringa escondido. E quanto mais trabalho gerava aquela conquista, mais foco e empenho do velho garanhão. Um dia ela se entregou, ou se deixou entregar. Nesse dia, contava meu pai, se amaram tanto e com tal intensidade que se finaram à míngua. Horas, talvez dias de confinamento. Despercebidos e sem planos, quando sequer sabiam o que seria da manhã seguinte, se houvesse um amanhã, eu começava a minha caminhada em direção a vida. Quem poderá dizer que o período fértil não era o naipe do coringa?

Contam que minha mãe segurou meu pai com grilhões de sedução até a primeira percepção da transformação física. Alguns meses depois, entretanto, ele foi embora a deixando parada, pregada na pedra do porto. Mas ela também era dessas que apequenam o mundo e nem teve tempo de me ninar cantando cantigas de cabaré, embora tivesse (aqui se junta o que o diabo espalhou) o que muitas candidatas a santa gostariam de ver escrito na sua certidão de nascimento, o nome: Agnes de Jesus Purezza. Minha mãe, de quem guardo uma foto, nossa única proximidade desde que me pariu, foi ao mundo cumprir o seu destino. Não sabemos um do outro, mas eu a compreendo, acho. Deve ter tentando construir a sagrada vida em família tendo, desafortunadamente escolhido o santo pelo nome.

Santinho, meu pai, acabou sendo o anjo torto que ressurgiu tão logo eu nasci, impedindo que eu fosse parar na roda dos enjeitados. Me deu nome, origem e depois me entregou a um orfanato cuidado por religiosas. Uma espécie de remissão de pecados via terceiros.

Cresci encomendado para o sacerdócio. Minha infância e adolescência conheceram um único mundo. O mundo de rezas e privações, perfeito na visão dos conformados e genuflexos operários de Deus. A primeira inquietação adolescente veio à luz quando vi um padre benzendo uma noviça. Ele não rezava, apenas gemia e segurava a cabeça da religiosa, ajoelhada à sua frente, num ritual estranho, que em determinado momento tornou-se frenético. Quando quis saber que tipo de benção era aquela, a noviça nada falou. Em vez disso me mostrou o procedimento. E tantas vezes outras quis repetir a tal benção que fui repreendido, castigado, confinado e acabei excluído da ordem. Santinho tinha me deixado algo mais do que origem e nome. Mas enfim, eis o que queriam dizer com “crescei e multiplicai-vos”.

A propósito, meu nome, certamente mais por ironia que por amor é quase uma homilia: Angelo Purezza dos Anjos, ou simplesmente Anjo, como chamam os amigos. Mesmo que corte pela metade, faça conjugações diferentes não tenho saída, o primeiro olhar que recebo é sempre de reverência. Afinal os nomes dizem o que somos. Ou deveriam.




Nota: Algumas expressões da música Menino Jesus, Chico Buarque.   

sábado, 23 de fevereiro de 2013

DA TERRA NASCEM OS HOMENS









Ao herói brasileiro Demétrio Toniolo 

A tarde escorregava. Lenta, saldo de ressaca, e comportada. Havia uma viagem pela frente e estrada requer concentração e juízo.

A figura observadora de conversas era um senhor, sentado a parte, quieto. Sentei do lado e falamos coisas à toa. Variamos pela temperatura, clima e a indefectível violência urbana. Mortes ocorrem a toda hora, de todas as formas e por quaisquer motivos. Nada satisfaz este bicho racional e incompreensível que não mata apenas para comer. Daí até a guerra entre nações nem precisou interface específico.

O pracinha Demétrio Toniolo tinha estado na Itália, em 1945, lutando pelos aliados contra o Eixo, na tomada de Monte Castelo. E lutara contra seus ancestrais italianos, mas isto pouco contava porque afinal, quem vai ao fronte vai para causas bem definidas, e no mais fundo do íntimo, vai com esperanças de poder voltar. Lá, mata ou morre. Com a cruel especificidade de que no campo de batalha só estarão inocentes guerreiros compulsórios.

Lembrava com detalhes seus meses de privações, onde a única saída para vencer o medo era não ter medo. Demorou uma vida inteira para limpar dos tímpanos os zumbidos de bala, matraquear de metralhadoras, canhões e minas. Por muito tempo viu sangue em lugar de poças d’água; ouvia gritos em vários idiomas. 

Saíram daqui meninos, e ficaram marcados para o resto da vida, física e moralmente, pelo convescote sangrento com os Quatro Cavaleiros do Apocalipse.

Entre tantos fatos impressionantes de suas lembranças, ele recordou um colega de farda, companheiro de primeira hora, que embarcara junto no Porto de Santos, com o qual permanecera irmanado a jornada inteira, e que junto retornou ouvindo os vivas da vitória. Não só pela amizade formada, mas por um detalhe peculiar: Enquanto a "cobra fumava", o amigo resolvera registrar em um diário todo o processo que passaram. E como era poeta, registrou em versos.

Na conjunção impensada entre a brutalidade da guerra e o lirismo, ficou o relato de um poeta; de um momento inesquecível para o bem e para o mal da humanidade.

É uma figura e tanto, seu Toniolo. Um veterano de guerra, que traz no espírito a paz que foi buscar. Um documento vivo da história; Um herói brasileiro, que só não é anônimo porque onde mora, a cada semana da pátria é reverenciado. Mas a república não o visita vez por outra para perguntar sobre eventuais sequelas, do tempo em que arriscou a vida para que pudéssemos continuar respirando os ares da liberdade.


(*)Dia 02 de maio, dia do Ex-combatente










quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

UM DIA VIERAM E LEVARAM MEU RISO




Um dia me pediram as armas que eu tinha guardado. Não seriam usadas; repugnava-me, e porque não dizer, me assustava ter de um dia usá-las. Mas estavam ali. De certa forma me sentia seguro com elas. Mas disseram que era por uma boa causa e eu as entreguei, mesmo antes de ser coagido a isto, ainda que sem convicção.

Em outra oportunidade me proibiram de beber. Nem um pequeno drinque poderia, caso fosse dirigir. Sempre me mantive dentro dos limites, uma e outra vez quem sabe tenha me excedido, não me lembro, nada que me tivesse tirado a consciência e o equilíbrio. Jamais provoquei ou sofri acidente de carro nestas condições, mas assustado com os números trágicos da mídia, e convencido que iria ajudar, ou muito mais que isto, me preservar física e economicamente, aquiesci. Diziam que o grande vilão das mortes do trânsito era o álcool, e enfim as boas causas estavam postas e eu não iria contrariá-las.

As noites ficaram mais longas e chatas; os amigos foram se recolhendo mais cedo e eu fui ficando mais em casa. Casa que sem as armas foi adquirindo cada dia mais grades, porque as mãos que acompanham os olhos da noite continuam armadas e cada vez mais violentas. E nos cérebros que gerenciam esses olhos, a vida ganha cada vez mais desimportância.   

Então criaram o sistema de cotas. Nossos irmãos afrodescendentes teriam privilégios em universidades em função de séculos de repressão, supressão e pobreza. Eu que já não podia chamar meus amigos negrões de negrões, ainda que isso demonstrasse carinho, não ousaria fazê-lo agora, que passaram de iguais a privilegiados. Corrigir a história com erros que um dia serão históricos cria injustiças imediatas; no caso oficializa a desigualdade racial; promove novos conflitos que só o tempo haverá de materializar, e talvez nunca mais recomponha. 

Mas também não perguntaram qual era a minha opinião a respeito e eu tive de concordar. Não sem antes pensar nos milhares de filhos pobres que não tiveram o privilégio de nascerem negros. Penso que haverá, mas não sei se chegarei a presenciar, hordas de brancos empobrecidos clamando por justiça racial.

AÍ resolveram que homossexuais seriam uma casta especial de pessoas; uma nova e moderna família, sobre as quais pouco poderia ser dito que não fosse do seu agrado. Além disso, talvez lhes providenciassem cotas de acesso aos serviços públicos. Meus amigos negros e meus amigos homossexuais perderam (não quero pensar que talvez tenham ganhado com a perda) a minha espontaneidade. Eu, que não consigo viver  de alegrias contidas ou patrulhadas, por certo perdi o jeito leve de interagir com eles.

Antigamente se dizia, e se brincava com isso, no quanto era terrível ser feio, pobre e morar longe. É? Experimente ser feio, pobre, branco, hétero,  morar longe e ter bom gosto? Por sorte eu cresci, e sem problemas de auto-estima. Mas viver a juventude nessas condições hoje teria sido uma teimosia imperdoável.

Vi, por fim, que talvez tirem o nome dos velhos Ramão e Ernestina da minha identidade; que meus netos possam não cantar e representar no Dia dos Pais, e que o Dia das Mães das escolinhas sequer seja lembrado.

Pensei em protestar, mas vejo olhos sinistros à espreita; canetas com tinta fresca e carimbos que sacramentam essas opções, e que embora não possam me tolher da liberdade, por certo tratarão de tisnar a minha alegria. Meu riso ainda não se foi, embora todo esforço legal para que ele me abandone; minha felicidade até poderá não ser completa, mas quem sabe possa acabar se e quando portugueses, loiras, gordos, magros, feios, brancos pobres, baixinhos e papagaios resolverem se  juntar e pressionar a OAB para o derradeiro golpe na alegria. 

Há espaço, clima sustentado pelo cinismo mórbido politicamente correto; gente com sede de fazer história a qualquer custo, intermediários de viseiras, e na ponta de tudo isso as maiorias inocentes que trocam seus novos privilégios por votos a cada dois anos.  

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

SOFRIMENTO COMO MEIO, IMORTALIDADE COMO FIM



A história de São Paulo e Bolivar já estava contada, bem como a generosa quantidade de gols. Enquanto houve pernas, os bambis fizeram valer sua melhor qualificação, depois, o craque bolivariano (um gigante de 3660 metros de altura) entrou em campo. Feito. O São Paulo é sério candidato a jogar em Tóquio em dezembro.

Em Porto Alegre a cobra fumou, bem no estilo gremista de ser. Parto de fórcipes. Contrações de cinco em cinco segundos, dilatação de quatro dedos e respiração cachorrinho.

O Grêmio mostrou um início esperançoso, forçando o ferrolho composto por onze equatorianos (ou seriam espartanos?), que se dedicaram a rebater tudo que representasse matéria, bola, corpos, leivas, quero-queros... Sob o olhar complacente do juiz argentino. Parêntese.  “Deixar o jogo correr” não está entre as dezessete regras da arbitragem. É critério, estilo, etc, desde que coadjuvado pelo bom senso. No caso de ontem, além da cera impune por cartões, os equatorianos estavam liberados para o anti-jogo. Tanto que o no final um cidadão, dos onze defensores, sentiu-se a vontade para retirar de bicicleta a cabeça de um atacante gremista (ao menos tentou). Ok foi expulso, mas já passava de 40 min. do segundo tempo, e a eminência de pênaltis se consagrava. Fecho parênteses, não sem antes pensar na mãe daquele juiz. A verdadeira, não a do campo.

A má atuação gremista pode ser creditada a vários fatores, como pressão pela necessidade de vencer sem levar gols, tendo uma defesa formada por reservas; a monumental retranca equatoriana, o início de temporada, o dia “não” de alguns (dia não, ou fase não?), a arbitragem frouxa, mas acho que o principal está no gramado. A gestão anterior não quis deixar para a atual o privilégio de inaugurar a Arena, e assim, apressou, bem como fazem os políticos em final de mandato, a inauguração da obra.

Não há um campo de futebol e isso, claro, prejudica quem precisa jogar. Um areão mal disfarçado no meio do pasto. E para completar, frágeis gradis para segurar a turba em debandada.

Espero que o bom senso impere e se retire as condições de jogo na Arena, antes que algo de mais grave ocorra.
            

sábado, 15 de dezembro de 2012

O ANJO ROSALINO


O anjo Rosalino

Meu pai, com a sabedoria dos velhos me aconselhava: “melhor baixar os braços a perder os dentes”; “nenhuma discussão ganha vale a perda de uma amizade”. E particularmente me dizia: “tu não tens nem tamanho para ser valente”.

E de fato nunca fui de brigar, mas o verbo sempre me atormentou e nunca houve travas suficientes que o fizesse acomodar-se antes da língua. Nem em situações críticas e de perigo eminente como quando de minha passagem pelo quartel, prestando serviço militar em pleno AI-5. Penso, logo falo. Sem meditações metafísicas, não é mesmo seu Descartes? Mas pago por isto. E a respeito de amizades que se perdem por discussões vagas, penso que elas também o tenham sido.  

Eu tinha pouco mais de dez anos e vinha de um bate-boca forte com outro menino, este com tamanho de quinze. O motivo era o futebol, um coicezinho desproporcional, uma cotovelada, ou apenas um “paninho”... Essas coisas. Em um determinado momento, o oponente, perdendo o argumento, não lembro se com um soco, ou com o vento do seu soco me jogou ao solo. Eu ainda me preparava para levantar, quando lá veio a maldita mão pesada, que vi chegar perto do meu rosto. Mas não alcançou. Não alcançou e na seqüência lá estava o “provalecido” estatelado ao meu lado, surpreso e manso. De pé, um amigo da idade dele, enfurecido, mas controlado, dizendo apenas: “tiscapa daqui! Se te pego de novo te cago a pau!”.

Também em outra oportunidade, na saída de um jogo no campo do Ferro Carril, eu estava prestes também a pagar caro por alguma firula debochada, e o mesmo anjo da guarda, ai com calma e jeito afastou o desaforado, abraçando-o e aconselhando. Afinal, aquele era vizinho e amigo.

Minha mãe, vendo o fato, perguntou: “aquele guri mais velho é teu amigo?”. Sim, ele era meu amigo e detalhei às vezes em que ele esteve ao meu lado. Minha mãe perguntou: “sabes por que ele faz isto?”. Eu não sabia, mas desconfiava que ele gostasse de mim. Ela, por fim, com a calma exigível me esclareceu: “ele cuida de ti por que é teu irmão”.

Não lembro se entendi, mas lembro de ter ficado intrigado. “Como assim, meu irmão?”. Jeitosa, me contou que antes de casarem, meu pai tinha tido outra esposa e dali nascera aquele filho. Disse-me ainda que eu deveria gostar sempre muito dele, uma vez que ela também gostava, embora ele não soubesse. 

Depois disso eu o procurei várias vezes para falarmos, mas como era muito tímido, desconversava. O tempo se ia, veloz como quem corre atrás de uma bola, e ele aos poucos iam percebendo que sua missão de anjo anônimo fora cumprida, embora permanecesse sempre vigilante. Falávamos pouco, mas sempre que falávamos o sangue puxava, e a partir de um momento melhor de maturidade e compreensão fomos carinhosos e muito amigos.

A última vez que o vi, combinamos um encontro no final daquele ano em uma das praias, e finalmente praticarmos juntos os abusos permitidos a irmãos em férias. Mas não deu tempo. Um descuido o levou embora mais cedo. Sempre é cedo para morrer, mas irmãos devem viver pelo menos cinqüenta anos juntos, e algumas praias.  
Cumpro assim outra sina. Saudades eternas, Rosalino Ribeiro, meu irmão. Ainda temos uma praia agendada.   





quinta-feira, 8 de novembro de 2012

TUCA




Tenho saudades do irmão emprestado; do irmão que quase tive e por não poder tê-lo mais hoje, tenho um buraco impreenchível no peito. 

Sinto falta do amigo que, sozinho era a festa, e que ao seu redor fazia luzir todas as barbaridades inocentes de uma noite barulhenta, por vezes bizarra.  As noites, sim, não tinham fim. Confundiam-se as luzes amarelas, vermelhas ou negras de dentro de qualquer boteco onde se ouvisse uma batida razoavelmente harmônica com os raios do sol, e tudo continuava no mesmo diapasão. 

Ele era incansável, com um fôlego improvável; vivia com urgência, como se tivesse medo que de hora para outra fosse chamado para uma farra no andar de cima e ainda não tivesse gastado tudo por aqui.

Tuca se foi como se estivesse fazendo um vestibular para a vida eterna. Preparou-se, esforçou-se muito e amiúde nas lições diárias de não conformidade. Desafiava até dormindo seu status físico, como se estivesse acima do bem e do mal. Abusava de tudo, mas muito e especialmente da desgastante tarefa de se fazer feliz a qualquer custo. E se fez. E fez também a nós, que a cada noitada o agradecíamos com nossos olhares cínicos de repreensão. E acho que, afora suas penas clínicas, seus últimos meses de vida foram seu paraíso. Só vi medo em seus olhos na última vez que nos olhamos, e quando ainda lúcido, percebeu que preparava longa viagem. Naquele momento sabíamos, ele e eu, que não nos veríamos de novo. Até porque somos formados da mesma cepa incrédula dos que vivem com tudo, com força e atrevimento, com arrojo, sujeitos a todos os erros e suas sequelas porque, no fim, quando nos formos, seremos nada mais do que restos da carcaça cedida pelo Criador em comodato, até o pó definitivo. 

Se morrer, morremos. E Tuca morreu, as noites ficaram menores, e ninguém depois dele contará as histórias que ele viveu, reais ou fictícias não importa, mas incomparavelmente fantásticas.

Maldito seja nosso metro de vida estabelecido lá, não sei em que momento, quando apertaram nosso “enter”.  Os que se amam deveriam partir todos juntos, como se uma dinastia afetiva inteira perdesse seu reinado, a fim de que não houvesse este residual enorme e quase infindável de sofrimento, quando da ausência de um elemento.  A rigor, ninguém sabe perder afetos, mas pessoas que vivem com o coração no cartão de visitas nunca estarão minimamente preparadas, nem na situação mais candente e finada de seu ente, para o momento de dizer “até breve”, mesmo que não acredite nisso.

Hoje, particularmente hoje, dia em que estarei contigo vivo na memória, desconfiarei de qualquer música alta que escutar. E caso beba uma cerveja o farei em dois copos. Vamos brindar a essa festa de aniversário que em algum lugar está acontecendo.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

PEDRO COUTINHO




Não me lembro dele com precisão. Era uma figura imponente, fundida com o cavalo. Perto dele não havia molecagem, nem dos moleques mirins da bucólica Uruguaiana de pretérito tão perfeito, muito menos dos provectos.  Meu pai era amigo dele, mas o chamava de “comandante”, quase um pronome. E era mesmo.

Em momentos como este quando eu, em especial os irmãos paulistanos, e de resto toda torcida verde-amarela andamos por ai encagaçados, entrincheirados em nossos bunker’s, enquanto a marginalia toma conta, destemida, livre e debochada, estabelecendo uma nova federação criminosa plenipotenciária, figuras como aquela me passam da mera lembrança à cruenta saudade.

Segurança pública parece não dar votos. Ou por outra, bandido também vota, e vejam que nicho populoso de interesses que não deve ser contrariado! Por isso talvez não haja legisladores a fim de investir campanha mexendo no Código Penal. Muito menos executivos eleitos aportando verba, ou melhorando as estruturas em nome da defesa do cidadão. A omissão tem duas formas nocivas: a covardia e a cumplicidade. Ou, concluo por simples, que não desejam legislar contra si.

O cidadão que me empresta o título e o símbolo era uma espécie de personalização da liderança autoritária. Jamais falei com ele, mas sei que quando andava por perto havia ordem.  E é do que mais sentimos falta do Chui para cima: ordem; lideranças; Gente que não apenas mande, mas que saiba mandar; que não apenas seja transeunte de cargo, mas o faça respeitar. Crescemos, evoluímos e nos modernizamos, mas se há algo que ficamos devendo ao passado é na formação de lideres, embora haja hoje escolas, cursos, orientadores e outros gurus para esse fim. Hoje sabemos, por exemplo, que se comanda por autoridade, capacidade e/ou influência; Que essas características juntas fazem um grande líder. O duro, porém, é identificá-las, com tantos jogos de interesses que os circundam. Poder também é recurso de comando (na Democracia este é o nosso).  O poder está na base, na massa, mas ela continua sendo de manobra. Nem vamos considerar que atualmente nos falta até mocinho para rodarmos um bang-bang, seja porque os atuais estão comprometidos, ou porque atualmente andamos nos apixando até para os índios. E bobota tem um monte. Ah, como a minha geração tem culpa por isso!

Por outro lado, as vezes observo postagens, listas, correntes pedindo para anular o voto. E gente esclarecida, o que potencializa a responsabilidade ou falta dela. Para qualquer vivente de médias luzes deveria ser fácil perceber que é muito melhor ter o poder de decisão na mão do que transferi-lo para terceiros. A questão é: não votar é a solução? Claro que não. Não podemos permitir que o desencanto com os políticos e seus partidos faça com que eles se eternizem em seus postos. Se os atuais não estão resolvendo, ou por outra, trabalham e/ou legislam em causa própria, se apropriam de bens públicos, e não estão nem ai se você “dança na corda bamba de sombrinha e em cada passo dessa linha pode se machucar”, então trabalhe para renovar os quadros. Opte por não reeleger. Energia nova, gente que venha prospectar novos caminhos e levar não só como plataforma, mas como dogma os anseios e medos de quem vive longe do Olimpo. Os pedrocoutinhos surgem naturalmente, mas hoje só vamos descobri-los garimpando nas urnas eletrônicas.

Não custa lembrar que Democracia requer disciplina, ordem e regras. O que não requer nada disso chama-se anarquismo (acorda São Paulo!).  Excluir-se, omitir-se; é conformar-se em ver a marginália cantando tá tudo dominado, dando as cartas e jogando de mão, enquanto que você, pagador dos maiores impostos do mundo está proibido de tomar mate na calçada às sete da noite.   

domingo, 19 de agosto de 2012

SASHENKA




Sashenka, de Simon Montefiore, é um romance de fôlego, inspirado na história soviética. Montefiore tem, como eu, paixão pela história russa, e talvez, também como eu, medo dela.  Conta a vida de uma jovem idealista, de origem judia que aos 16 anos, nos dias turbulentos do início do século dezenove, rompe com sua família, rica e de grande influência no czarado, comensais assíduos da Casa Romanov, e se lança na grande utopia revolucionári
a bolchevique. A revolução social mais importante da História da humanidade.

Quando menina, Sashenka viveu a fartura e o glamour imperial dos Romanov,  depois conspirou para sua derrocada, ajudando erguer a fantástica dinastia proletária. Mesmo convicta na causa, acabou sendo morta por ela, sob o terror de Stalin, o monstro social que ajudara a criar. Uma história comovente que descreve em minúscia a luta pela fé no ideal socialista. A supressão da identidade pela causa; o obscurantismo do pensamento padrão, o culto a personalidade totalitária e o massacre das contrariedades, por ínfimas que pudessem ser. Um sistema que tinha nas mãos o poder da vida e da morte de irmãos.

Os vários personagens reais 
e seus comportamentos 
são retratados com  fidelidade, através do que os 
arquivos secretos que Kremlin permitiram que viessem à luz
. Mas não há como não supor, que o pior virou cinza nevada, indo morar no substrato junto dos milhares que ousaram desviar-se da linha mestra moral e política estabelecida pela burocracia do Politiburo. Regras duras e casos omissos decididos pela Punição Maior dos inimigos do povo (leia-se oligarquia), sem contemplação, dor ou remorsos.

Sashenka é um personagem fictício, segundo o próprio autor, mas sua história bem pode ter sido a de milhares de pessoas, atores da revolução de 1917, que tornou a União soviética centro do que ficou conhecido na Guerra Fria como Cortina de Ferro. Uma história que também pode ter sido nossa; Que também pode estar sendo a nossa, salvadas atrocidades peculiares, pois não aprendemos nada com o passado político. 

É uma leitura intensa, dramática desenvolvida com maestria, pois prende o leitor em sua trajetória de 90 anos, narrada em mais de 400 páginas. 

sexta-feira, 25 de maio de 2012

ESQUERDA, VOLVER!

VERSOS SATÂNICOS (50) – 
Grande chefe da tribo Tupiniquim, morubixaba Molusco que Voa estava muito a fim de andar por ai à toa, ele mais patroa, a índia galega Caturrita de Pirata. Com o fim da  mamata, não iria querer embrenhar-se na mata. Por que não ser diplomata? Ah, botar um biquíni à moda Gabeira, um maiozinho tomara-que-caia, muito coco na algibeira e um Panamá estilo Zelaya! Mas ele, por influente, precisou dar suporte à pretendente que é oriunda da tribo afluente Val Palmares. Morubixaba Molusco que Voa, ele mais patroa, queria novos ares, porém, não sem antes de eleger um sucessor. Queria alguém que lhe fizessem um favor singular: que lhe guardasse  faixa, cetro e cocar, e que depois lhe restituísse. Alguém da casa que o substituísse, usufruísse, mas que soubesse que no ano da Copa, dali a quatro luas, chave da oca seria de novo sua.

Deve ter pensado numa embaixada de além-mares, onde pudesse exercitar seus milhares de conhecimentos invulgares. Suaves formas de sugar jugulares e outras artérias auxiliares. Morubixaba Molusco que Voa, ele mais patroa, queria ficar numa boa, mas sabe que o oceano não se atravessa de canoa. Meio apedeuta pode ser, mas não é burro nem louco, portanto, todo cuidado seria pouco. Assim, aceitaria viver em outros lugares, de preferência onde não houvesse militares. Não que descarte, pois sabe que existem em toda parte, mas sabe que seria vigiado desde o desembarque, a menos que.... a menos que estivesse na jurisdição das FARC.

E assim, com uma oposição mequetrefe, nem precisou de blefe. Temos um novo comandante-em-chefe. Por sinal, acho que morubixaba Molusco que voa quase se deu mal. O marsupial não se bandeou do curral, e não que venha a ser rival, mas é poste de luz própria, etcétera e tal. Apesar da herança recebida do antigo patrão, roubalheira do primeiro ao quinto escalão, parcerias indigestas; a companheirada em festas; mensalão, ela se vira pelas Emendas. Óbvio, tem que contentar a legenda, ajeitar-se com os coligados, nem sempre do mesmo lado, mas sempre exigentes e quase sempre descontentes. A  nova morubixaba não está disposta a  governar a esmo. Não quer deixar nada “por isso mesmo” e pelo visto não quer nada que não seja seu. E por isso, de cara, indispôs-se com Palocci, Genoino e Zé Dirceu. Isto para “economia externa” creio eu.


O que vale, no entanto, é a tendência. Afinal, na vizinhança todo mundo está ficando igual. Uruguai, Colômbia e Venezuela, claro. O Uruguai elegeu um Tupamaro. E é certo que com eles nos comparo quando me deparo com esse tal fato raro. Tupamaro lá, Val Palmares, cá. Huguito (por que no te callas) acima, verdadeira obra-prima da neodemocracia latina, e morubixaba Evo Morales, a bombordo (todos a bombordo). E para completar o balaio tivemos um prolífero ex-padre paraguaio. Este com um modo peculiar de multiplicar seu rebanho, já que vinha produzindo o próprio desde antanho. No melhor estilo lacaio, vinha servindo hóstia às beatas, olhando de soslaio, examinando em que anca fincaria roseta e papagaio.

Morubixaba Molusco que Voa andava frouxo que nem calça de palhaço. Andou com muito companheiro devasso que lhe causou embaraço, mas incrivelmente não lhe tirou nenhum pedaço, pois nas pesquisas nunca dobrou o espinhaço (tipo: saiu da suruba sem perder o cabaço!). Ele sempre soube que não se transfere carisma, por isso usou e abusou do sofisma. Entretanto, com ele o povo não cisma, tampouco se abisma, e por isso seu apoio foi decisivo na conquista do objetivo, que nada mais é do que a continuidade do comando festivo rotativo.   

quarta-feira, 23 de maio de 2012

APRES MOI LE DELUGE



A Bíblia fala em retornarmos ao pó, mas não sei não. Segundo a classe competente somos ao redor de oitenta por cento compostos de água, o resto é matéria orgânica de qualidade duvidosa. Se bem que alguns seres vivos honram por demais a categoria. Dá gosto de vê-los nas telas, passarelas, praias, etc. Mas a menos que o Livrão esteja profetizando que iremos, no fim dos tempos, secar o planeta com nossos vícios e maus costumes, e nos matarmos desidratados, não vejo a menor possibilidade  de voltarmos ao tal pó, se é que de lá viemos. Acho que a coisa está mais para o lado da que consagrou o velho Noé.  

Fala-se tanto em aquecimento do globo, derretimento das camadas polares e outros cagaços metereológicos (vide os tsunamis), fora os não sei quantos desastres naturais com nomes mimosos ( El niño, La niña, imaginem!) que matam e destroem todos os anos, tudo regado a água guasqueada, que penso no nosso fim de caso com o vale de lágrimas na condição de afogados.

Dizem que vivemos vários ciclos desde os primórdios e a informação que fica é a que lá, bem no início, isto aqui era tudo água. Tudo o que é gelado na terra vira água e todo o vapor também. É o ciclo.  Tudo que sobe desce, tudo que nasce morre; quem cai para a segunda divisão sobe depois às estrelas, erguendo-se por Tóquio. O tamanho do ciclo define as grandezas, ora pois.

A metáfora religiosa fala sobre o Dilúvio e eu me ponho cá a pensar  se não é isso mesmo que acontecerá. A dúvida intrigante é saber quem seriam os escolhidos para subirem à arca. 

Quem seria o novo Noé, por exemplo? Haveria por certo algum deputado de já hoje , como se diz nas casas, fazendo lobby, acordos de lideranças, etc. Acontece que pelo tamanho da torta a disputa haveria de ser muito acirrada. Republicanos assexuados e democratas tarados; petistas e anti-petista, cada um com seu dogma de fé e uma quadrilha de aproveitadores por trás.  

Muçulmanos e judeus, católicos e protestantes,  Eta, Ira ; Ferro e Sá Vianna,... União contra Dom Hermeto e os dois enquadrilhados  contra Club Barracas, numa disputa a morrer. Jamais poderíamos admitir  um Noé nascido em Libres! Enquanto isso, a turma do Bin nem ai, largando bombinhas nas nuvens para fazer chover mais. 

Seria difícil encontrar um novo Noé que agradasse a todos, o Mano cansa de dizer  “nem eu consegui isso”. Por outro lado posso imaginar, se é que continua valendo a velha sentença  de que é mais fácil um camelo passar no buraco da agulha do que um rico entrar reino dos céus, alguns figurões sendo barrados na porta da arca pela sua condição social, todos prudentemente acompanhados de advogados com mandado de segurança na mão. E  Paulo Salim e Zé Ribamar? Quem haveria de segurar o Paulo Salim e Zé Ribamar? Não adianta.  Eles vão, vestidos não sei de que espécies, mas vão. Portanto, não vem ao caso. 

Como o Noé haveria de ser biônico, espera-se dele que seja justo e honesto . Que no exercício da função não faça conchavos, não edite MPs, não distribua cargos de confiança, não pratique nepotismo, nem seja fisiológico, e muito menos faça acordo com o anjo caído para livrar o seu, tipo duas almas por uma; que faça as licitações corretamente na aquisição da matéria prima para a construção da arca; que leve moças do sul, por que  lá  é que a gente deve casar quando a chuva parar, e os  rios  e os juízos voltarem ao leito normal;  que leve ovelha texel e gado  de sobre-ano,  e não repita a burrice histórica de juntar serpente com maçã.

Ah! E que verifique na entrada atentamente as mãos de quem entra. É fundamental que todos tenham todos os dedos. Não podemos arriscar. E desde já convido meu amigo Precioso para manipular a bomba e gelar a serpentina, por que ninguém é louco ou burro de ficar quarenta dias e quarenta noites de bico seco ou bebendo água da chuva.

terça-feira, 15 de maio de 2012

A MÃO QUE BALANÇA O BERÇO



O fato de lacrimejarmos quando ouvimos o hino não é o suficiente para que possamos nos definir como patriotas. Parece que somente aqueles povos que tiveram um dia, ou têm, suas casas e famílias mutiladas por guerras e outras hecatombes conseguem verdadeiramente experimentar este sentimento. Pena que assim seja. 

Temos um país digno de paixão. É muito fácil amar o Brasil. É multicolorido, clima tropical, gente bonita miscigenada para todos os gostos, sejam mulatófílos ou germanófilos, e outras tantas virtudes default, que um dia alguém chamou de florão da América.

Mas patriotismo é também educação e aí, com esses milhões de sub-letrados que grassam do Oiapoque para baixo pela ordem de importância; que elegem governos, mas sequer sabem os porquês, nos resta mesmo lacrimejar quando a bandeira sobe e quando o hino toca.  


Vivemos ainda em berço esplêndido e nessa condição, a mão que nos balança acha que as nossas únicas necessidades são as de sobrevivência. Andamos entregues a babás deprimidas que pensam em matar a nossa fome, mas não pensam que está mais que na hora de começarmos a andar, a crescer, a pensar num grande futuro. Babás que até desconfiam termos tudo em casa, mas como nada sabem e nada vêem não podem tirar proveito. E assim vamos nós, deixando-as que realizem suas tarefas básicas, ensinando-nos apenas a ser como elas, creditando seus equívocos à sua condição de origem. Não crescemos nada, aprendemos pouco e tudo ao nosso redor parece poder mais do que nós, mesmo que não possa. Daqui a pouco nem vamos mais entender por que disseram que um dia iluminaríamos o sol do novo mundo.

Aprendi com os sopros da juventude a odiar as ditaduras. Condição em que os comandos nos mantinham sob controle. Não nos deixavam reclamar, votar; sequer pensar em voz alta. Assim, nossa salvação somente viria pela via democrática. A ditadura que eu vivi, apesar dos olhos da espreita, pudemos fazer as revoluções sociais e de costumes que quisemos. Pudemos usar cabelos longos, pouco importando se os mais velhos considerassem inversamente ao tamanho das idéias; apertamos as calças e as meninas subiram as saias; as mulheres iniciaram a libertação dos grilhões domésticos; mudamos músicas, comportamentos, mesmo a contragosto dos pais. Poderíamos fazer de tudo desde que ordeiramente. 


Mas em nome da liberdade de podermos decidir nossos caminhos como nação, exageramos e a perdemos, e tivemos de suar sangue para recuperá-la.

Muito bem. Saímos daquela clausura e conquistamos todos os direitos reivindicados, e o que vejo: uma ditadura ainda mais forte e mais violenta; mais intransigente e o que é pior: cheia de tentáculos escondidos sob o disfarce da inclusão social. Ou não será repressão extrema o fato de vivermos enclausurados em residências de segurança máxima, ainda assim inócuas, com medo das ruas? Ou não será ditadura assistirmos impotentes sermos monitorados por Medidas Provisórias, ou firulas do politiquês equivalentes, ao bel prazer do gerente de plantão? Ou não será de exceção um governo que permite a formação de oligarquias fascistas ao seu redor? Que democracia é essa que permite a formação de milícias rurais impunes e soberanas do seu direito de apropriação do bem alheio, e cujos gerentes se dão ao desplante de se declararem despercebidos? 


E que regime é esse que nos deixa  aplastados no sofá da sala ouvindo diariamente que hoje,  mais uma vez, alguém em algum lugar sangrou os cofres públicos e deverá ser investigado? Talvez seja mesmo, talvez seja preso, talvez devolva algo do que roubou, mas certamente não dirá o quanto e mancomunado com quem. 


Ricos, sim. Somos muito ricos. Temos reservas que sustentam nosso mínimo conforto, reservas para emprestar aos vizinhos e grandes reservas para satisfazer o apetite dos nossos sócios majoritários que, vez por outra, limpam nossas gavetas sem deixar recibo. 


Um dia, tido como ato patriótico, uma parte da juventude letrada pintou a cara e fez com que se retirasse do poder um presidente alvo de suspeitas e de acompanhar-se mal. Aquela juventude amadureceu, assumiu poderes, mas parece ter perdido a capacidade de julgar e de se indignar. Deixou-se contaminar, necrosar, criar metástase daquelas feridas morais que espontaneamente antes quis ver extirpadas.

Sou contra todas as ditaduras, mas me tornei ainda mais inimigo dessas que são “escolhidas” por fantoches que se deixam induzir pela mídia conveniente, e por uma maioria que vota pelo trágico apelo da fome.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

SE TODOS FOSSEM IGUAIS A VOCÊ (Dia das Mães)





Uma moça chamada Ernestina, aos dezenove anos fazia o que hoje se reverbera como trabalho social. Não tinha grande preparo a não ser na delicada missão de ser mãe, mas o que a maturidade precoce e a escolaridade média lhe ensinaram distribuía graciosamente à vizinhança ainda menos favorecida. Assim, brincava de dar aulas alfabetizando crianças, e ensinava as meninas coisas práticas para as exigências vigentes, como costurar, cozinhar, aplicar injeções. Tarefas que a levavam a percorrer grandes distâncias vez por outra. Lembro que era muito querida e requisitada naquela periferia erma, distante do grande povo. Parte do contexto, ganhei com isso a alfabetização aos quatro anos e as honras mal percebidas de ser o filho da “santinha”. Ela morou pouco por aqui, viveu com urgência extrema, mas fez além da parte dela, um grande pedaço da minha.

Fez o que manda fazer aquele velho pescador da fábula, que ao amanhecer encontrou a orla repleta de estrelas do mar. Uma por uma ia gastando seu dia devolvendo-as à água, esquecendo de sua própria tarefa de sobrevivência. Alguém que observava teria lhe dito: “meu velho, nem que leves a vida inteira poderás devolver todas ao mar”.  Ao que ele teria respondido: “mesmo que conseguisse devolver apenas uma já teria feito a minha parte”. Piegas? Pode ser. Pessoas assim se multiplicam pouco, tornam-se fototrópicas negativas e vicejam apenas no substrato social, pela grandiosidade da sua modéstia. 

Minha mãe morreu numa idade de chorar perdas. Foi enterrada numa idade de enterrar seus mortos: vinte e oito anos. Não deve ter levado nada, pois tudo que teve e foi,  sepultou na enorme cova que deixou no peito dos que a amam, com um recado monossilábico, mas suficiente na  lápide: inesquecível. Foi um lapso de vida de desfecho incompreensível, resistente a curas. E se foi brilhar no nada, deixando um homem e meio tateando caminhos de penas, abrandadas pelas pegadas de luz que deixou cair.

Neste dia eu paro um tempo, não sei quanto. O tempo suficiente para desenhar seu jeito. Sei que existem ameixas pretas e até as vejo por ai, graúdas e lindas, mas nunca terão o brilho e a doçura que ela tinha no olhar. A grande floresta negra  que despencava em linha reta para muito além dos ombros, hoje talvez tivesse outra cor, ou outras cores, mas ai já não seria a grande floresta negra onde eu enroscava meus dedos infantis. Paro um tempo e paro no tempo. Lá longe, onde nem lembro mais, mas onde tenho certeza que vivi por que é o endereço da minha saudade.  Passados dezenas de anos, neste dia, ela bate na porta do meu coração trazendo seus biscoitos com sabor de mãe.

Feliz Dia das Mães, guria. E que estejas bem e feliz ai onde nossos queridos, contemplados por fé dizem que estás. 

terça-feira, 8 de maio de 2012

DO QUE AS MULHERES GOSTAM



Mulheres têm gostos estranhos, somente vindo a furo após a revolução feminista. Bundas, elas adoram bundas masculinas, o que nos obriga hoje a levantar da cadeira e, no mínimo, caminhar sobre uma esteira para que se mantenham. É cansativo agradar mulheres. Não é por nada, mas quando passamos por aquele grupinho sentado, tricotando, bem sabemos por onde seremos reconhecidos. Já vi e achei natural cabelos, barbas, bigodes, bíceps e outras protuberâncias mais lógicas serem admiradas, mas porque a fissura por glúteos?

Tenho um amigo diabético, zen, que adora olhar quindins. É doente por quindins. Fica longo tempo olhando-os nas vitrines salivando e desafiando o desejo de possuí-los. Acha-os incomparavelmente lindos. Mas o meu amigo não pode, não agora, na flor da idade, consumi-los, deixará para fazê-lo quando estiver quase desistindo do mundo cão, por que aí dependerá de um simples assumir riscos e conseqüências, e seja lá o que Deus quiser.  Quindins e glúteos, assim, me parecem casos quase análogos.

Uma amiga gosta de queixos. Um em especial. Não, não é o do  Brad Pitt ou do Fabio Assunção, é do Nick Nolte. Ele tem queixo. E como tem! Quadrado, enorme, um fetiche, segundo ela. Essa minha amiga, sonha com o queixo do Nick Nolte e por não encontrar similares disponíveis, fechou-se em copas para o mercado. Mas por que queixos? Queixos não são olhos que seduzem. Mal comparando, também não é aquele armador de pé esquerdo com grande visão de jogo que pode a qualquer momento decidir uma partida com o seu talento. Não, não. O queixo fica lá na ponta de baixo do rosto, sem autonomia e sem saber qual é a sua função no esquema tático, sangrando após a barba, batendo forte no inverno e despencando por qualquer coisinha. Biquínis, por exemplo. Tem mais: Noel Rosa fez sucesso sem ele.

Queixo, quando muito serve como anteparo de jab’s. Não decide jogo nenhum e não interfere nas relações humanas, a não ser quando se eleva. Aí está. Talvez seja isso. Queixos elevados podem querer dizer: Aí mulheres, venham, aceito o desafio!   Em tempos de fragilidade masculina talvez funcione. Estranho não haver notícias sobre implantes.

A última vez que vi o Nick foi no Príncipe das Marés e mais me chamou a atenção  o nariz da Barbra, embora o filme seja lindo. Meu queixo não é igual ao dele, não consigo conferir a retaguarda, bíceps, tríceps e outros que tais nunca foram o meu forte. Mas respirar, respiro e a vida se esgueira lentamente.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

HOUVE UMA VEZ UM VERÃO


Ao amigo Antonio Martins - um grande contador de histórias - Do livro Castelo de guardanapos
Meu nome é Antonio, sou casado há pouco tempo com a Lú. Um dia serei advogado, mas por enquanto dou um duro danado no banco. Colegas e amigos me conhecem pelo excelente senso de humor. Estou com a perna engessada. Quebrei a tíbia jogando futebol. Os colegas de departamento haviam me avisado que o pessoal da cobrança sempre dividia por cima da bola. Eu não acreditei.
Estamos em 1986, tempos difíceis estes, sem graça. Por exemplo: O que fazer neste feriadão de fevereiro em Porto Alegre, sem um pila no bolso?  Um colega, não sei se por simpatia ou culpa (foi o que entrou por cima da bola) me convidou para um final de semana na praia. Magistério. Não queria deixar transparecer minha mágoa, mas praia com este gesso? Pensei na Lú e resolvi aceitar. Meu colega tinha um fusca, mulher e filhos, não contei quantos. Agora, no entanto já estava combinado e não sou de voltar atrás. Tratei de acomodar a perna engessada da forma mais confortável possível, temendo pelo meu bom humor.

A viagem de ida foi relativamente calma. O amigo era calmo, ou melhor, lerdo. Sessenta por hora, curvas a trinta. Quatro horas depois, a praia. A praia e os pingos, pois começara a chover. Chegando a casa o primeiro grande susto: Caberíamos todos? Por certo daríamos um jeito, éramos jovens, fortes, dispostos e, mesmo apertados, certamente estaríamos melhores do que no bafo de Porto Alegre. Ademais, haveria de ser uma chuvinha de verão e a areia da praia estava logo ali nos esperando, iluminada pelo solaço de amanhã. Por enquanto era chuva e chuva. Na casa tratei de acomodar a perna de forma que ficasse longe dos bolaços, tropeções, almofadaços, lambidas do cachorro, que fora junto, imaginem. Chuva e chuva, percebida pelo suor das vidraças fechadas, barulho no zinco e uma ou outra goteira. E mosquitos, muitos, de todos os tamanhos e apetites. E choveu no outro dia, no outro, e até virmos embora de volta. Já não lembrava de um dia ter sido bem humorado.

Mesmo inchados por vários motivos, portanto ainda maiores, coubemos todos no fusca.  A estrada era estreita, ruim e por essas coisas da vida, todo mundo resolveu voltar ao mesmo tempo. Lá vínhamos nós. Dez, vinte km por hora era lucro. Eu naturalmente não ria. Apenas olhava fixo e incomunicável para a estrada sendo engolida pelas rodas do carro, quando este conseguia se mexer.  Súbito, enguiçou o limpador do pára-brisa, bem no meio. “Não falta mais nada” – pensei. “Agora mesmo que este corno não anda”. Tive a impressão de que ele ouvia o meu silêncio, por isso não parou. O cara, no entanto, usava lentes grau sete para enxergar mal, e enxergar nada para o jeito que estava dirigindo: com a cabeça para fora, limpando os óculos com a mão. Paramos para pensar. Chuva e chuva. E veio a idéia. Amarraríamos um barbante no limpador, cada um de nós ficaria com uma das pontas e estudaríamos um sincronismo perfeito para movimentarmos o instrumento. A alternativa que tínhamos era uma fita, dessas de pacote de presente. Talvez houvesse outra, mas como procurar no meio daquela multidão? Blasfemando em função da dificuldade para enxergar, meu colega foi até a frente do carro amarrar o barbante. Voltou pingando, mas satisfeito, afinal tinha solucionado o problema. Testamos a sincronia, deu certo e reiniciamos. “Vai” – dizia ele, feliz. “Vai”- repetia eu entre dentes. Pelo menos estávamos indo, janelas abertas inundando tudo. Sabe cheiro de cachorro molhado?  Até uns 100 metros adiante quando o laço desfiou e rebentou. E o limpador parou, de novo, bem no meio.  Não lembro o que pensei, nem o que resmunguei, mas era sobre a mãe de algum dos presentes. Andamos mais um pouco e paramos em um boteco, desses que vende tudo. Estava tão necessitado de liberdade e de algo que me tornasse a cabeça um pouco menor que mal chegando a frente do boteco  saltei de carro, não dando a mínima para a perna que há muito já doía, e fui saltando até a casa. O bom homem tratou de arranjar o que lhe pedira. Tirou um barbante que enrolava não sei o quê e gentilmente me entregou. Saltei de volta. Um pé só, ensopado, rindo. De raiva. Amarrei o cordão no limpador e retomamos a viagem, agora sem ensaio. “Vai” – dizia ele, feliz. “Vai” – dizia eu como uma vontade louca de completar a frase com todas as indelicadezas que conhecia. Chuva e chuva, a perna doendo, e eu ali, olhos fixos na estrada sendo engolida pelas rodas do fusca, quando este conseguia se movimentar.

Anoitecia ligeiro. Engraçado, olhando pela janela não parecia tão escuro, olhando para frente já não víamos nada. Estava ficando impossível de continuar quando passei a mão no pára-brisa. Graxa, graxa pura. Lembrei que o tal barbante gentilmente cedido pelo bolicheiro estava amarrando lingüiças e salames, e trazia consigo toda gordura que conseguira absorver com a convivência. Era o caos. Sem recordar em que dia e em que circunstâncias rira com gosto pela última vez, retirei do fusca meus 1,85m e fui lá esfregar a Zero Hora de domingo inteira para retirar a gordura. Chuva e chuva e eu ensopado, ainda assim, melhor na chuva do que lá dentro. Aquele pára-brisa nunca mais seria o mesmo. Mas em algum momento aquelas lesmas, carro e motorista haveriam de atingir o ponto em que a estrada alargaria e talvez pudéssemos retomar os saudosos 40 km por hora. E chegamos ao ponto. No exato momento em que pifaram as luzes do carro e a chuva parou. Quem estava na frente sumiu, quem estava atrás sumia na frente e todas as referências luminosas que indicavam o leito da estrada foram para o brejo. Dez, vinte... Meu amigo míope pisava leve, não podia arriscar. Oito horas de purgatório, um fio de cabelo branco e alguns dentes gastos depois chegamos em casa. Nunca um JK pareceu tão espaçoso. Nunca o bafo de fevereiro em Porto Alegre foi tão refrescante.

-II-

Hoje sou advogado, tenho ótimo senso de humor. Eu e a Lú vivemos bem, somos felizes e temos uma filha. Fiquei momentaneamente tenso revivendo uma história ao receber um convite para ir à praia. Magistério é logo ali, diz a Lú. Eu não lembro. Nunca mais fui lá.