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quinta-feira, 15 de março de 2012

A CRIAÇÃO



Estava tudo certo. Fora criado o reino animal, mas o Criador estava num impasse: já tinha decidido que voariam os pássaros, nadariam os peixes e andariam outros bípedes e os quadrúpedes. Precisava então distribuir alguns atributos especiais. Tinha destinado ao homem a inteligência absoluta, mas só descobria depois, isso lhe traria alguns aborrecimentos.

Considerou que a fidelidade deveria ser canina e a deu ao cão, lógico, além de bom faro para que pudesse se achar em dia de mudança. Na onda da mesma fidelidade entraram os peixes que, orgulhosos, sairiam mar a dentro proclamando que filhinho de peixe, peixinho é. Deu olhos de lince ao lince, sem esquecer de produzir especialíssimos olhos de águia para a própria. Dotou o gato de acrobacia diferenciada para que mais tarde pudesse mostrar ao mundo o que haveria de ser o pulo do gato. A porca teria o rabo bastante flexível, uma vez que alguém haveria de vir torcê-lo em caso de apuros. Já o seu marido teria duas virtudes indiscutíveis: o lombinho e o pernil. Deu à vaca muita paciência  e anticorpos, pois haveria de passar a vida inteira indo para o brejo. A propósito de bovinos e paciência enquadrou o boi, a fim de que ostentasse sem queixas os chifres e que pudesse elaborar bem suas perdas. Ele passaria a ser o símbolo de doação e desprendimento. Nasceria como qualquer mamífero. Ainda jovem lhe arrancariam a masculinidade barbaramente, sem anestesia; passaria sua curta vida como corno manso, para logo a seguir ser morto, retalhado, queimado no calor das brasas e servido como pasto. E alguém ainda haveria de gritar: “o meu, mal passado!”.  Pobre boi. Mas ainda assim haveria de ter bom sono, pois dormiria com qualquer conversa mole.

O Criador teve dúvidas quanto ao burro. Burro ele seria, claro, por isso viveria emburrado e empacando, no entanto seria dócil o suficiente para ser amarrado à vontade do dono e humilde para que baixasse sempre as orelhas quando outro burro falasse. Ou quando alguém, despercebido, desse com ele n’água.  A produtividade ficaria com coelhos e galinhas. Os primeiros viveriam focados num dos mandamentos para preservar a espécie. Cresceriam e se multiplicariam rapidamente, pois mais dia, menos dia apareceria alguém com vontade de matar dois com uma única cajadada. As galinhas, que de grão em grão encheriam o papo, deveriam ser rápidas e abundantes na postura, evitando que algum apressadinho viesse a contar com o ovo no... Digo, em trânsito. O marido desta, polígamo assumido, além de cantor e ancestral do relógio-ponto teria grande virilidade, mas não haveria de ser lá essas coisas como amante.

Deus olhou com tristeza para o peru. Achou que não conseguiria retira-lo da depressão. Haveria de ser uma dessas criaturas que nunca participam de festas, pois enchem a cara antes e morrem na véspera. Quando procurou a serpente, o Criador não encontrou. Não estava confortável e queria livrar-se dela. Assim, resolveu premiar aquele que a matasse desde que mostrasse o pau. Mas que não houvesse mal entendido.

Por descuido nasceram insetos. O que fazer com eles? Bem o Criador era criativo. Grilos habitariam a cabeça do homem para faze-lo refletir  e pulgas, vez por outra, colocar-se-iam atrás de orelhas para após as reflexões.  Estes, então, participariam de momentos chatos. Chatos? E estes?

No fim do expediente restavam poucos atributos para serem distribuídos. A quem o Criador contemplaria com a moral e os bons costumes? O homem, pela capacidade de discernimento e para justificar a imagem e semelhança seria o mais indicado. E Deus perguntou ao homem se seria capaz de arcar com essas duas virtudes, e este vacilou. Desconversou dizendo que estava bom demais o que ganhara. Além disso, tinha um projeto futuro já desenhado que seria irrelevante tê-las ou não.  Dependeria sim da sua inteligência, capacidade de liderança e observação.

Disse-lhe o homem que dispensaria virtudes como as do cão e iria direto ao gato para testar seus pulos. De linces e águias, imaginariam como ficaria com os olhos destes; aproveitaria a paciência do boi, mas só para treinar metáforas flácidas, tendo o cuidado para não seguir o caminho da vaca. Iria, por fim, até a serpente negociar. Mas iria de pau na mão para matá-la, depois de comer a maçã e a Eva.

Estava ali o primeiro projeto político. Era sexto dia, seis da tarde, não dava tempo para mais nada e o Arquiteto pensou que talvez não tivesse sido tão justo na distribuição de atributos.

DAS PROFUNDEZAS DE UM DIA SEM FIM



Dedicado a todos os dias dois de janeiro...

Hoje é o dia santo de dois de janeiro e todos os exageros devem ser perdoados. A presunção de vida retiro do fato de ter abertos os olhos, lido uma parte do jornal no banheiro e não ter percebido meu nome no obituário. Ademais, respirar, respiro, mas o dia se esgueira em transe lento, desestruturado. O corpo foi-se à camada pré-sal enquanto que o espírito viaja longe em busca das Três Marias.


Estou cinco litros e dois furos de cinta mais gordo de tanto pecar com a carne. Com a carne, sim, de bichos variados, fuçadores e ruminantes transeuntes dos presépios. E com líquidos múltiplos, com bolinhas e sem bolinhas, de todas as cores, mas irremediavelmente partir de cinco graus de graduação alcoólica. Impõe-se de pronto uma dieta que deverá começar, como todas, na próxima segunda-feira, por que afinal, em algum canto da casa deve ter sobrado um espumante, alguma cerveja ou ambos. Se não sobrou, o supermercado fica logo ali, ora, pois. Ninguém é de ferro e consta em qualquer literatura médica que compostos químicos não devam ser retirados assim, de súbito do nosso organismo, o pobre! 


Como judiamos da carcaça cedida em comodato pelo Criador! E muito mais judiamos em nome da felicidade. Que horror! Depois de segunda-feira (da próxima) prometo não colocar cerveja na boca por, digamos alguns dias. Vinho, claro, tem o fator coronário, é remédio, é alimento, etc, mas não mais do que uma garrafa de negrão chileno com sobrenome francês. Sim, por dia, é o pedido que faço aos céus. 


Neste dia santo de dois de janeiro ainda não estou com os sentidos aprumados para olhar os trezentos e sessenta e poucos a frente. Tenho esperanças nele, mas nada de extraordinário. Sei, por exemplo, que o Mano ainda não voltará. Se é que um dia voltará; se é que um dia se foi. Bom para Ele que fique onde está. Lá, peleando por nós, ou aqui, no anonimato material. Ou lá e aqui, tanto faz. Bom para Ele por que como malvadinhos andamos sublimando. Continuamos judiando e matando em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém. Matamos por tudo. Por Nações ou por um par de tênis. Judiamos, mais do que do nosso corpo, do corpo dos outros, da terra, das paredes e muros, do nada e por nada. Só por judiar, só por matar, cumprindo a saga maldita que nos fez inteligentes também para o mal. 


Bueno, mas é dois de janeiro e não estou a fim de rever as reflexões natalinas, quando me prometi lutar por um mundo melhor, sensibilizado pelos presépios que exibem nenês deitados nos catres, circundado por bichos que não matam nada, além da nossa fome. Não, não. Quero, no entanto, usar este dia para, além de ficar aqui me fresqueando, falando sobre o poder do Engov e da Infalivina lembrar, ainda que furtivamente, que posso ser melhor neste ano. Não vou precisar do Jorge Luiz Borges e do seu suposto poema maravilhoso de arrependimento pelo que deixou de fazer. Mas é certo que tudo o que eu fiz vou fazer melhor. Não há de me faltar tesão nem fôlego para isso. Ainda não (Tomara que não!). Portanto, amigos do meu coração, afirmo, neste dia da graça de dois de janeiro, mesmo que ainda entorpecido de excessos, que não pouparei esforços para ser mais amigo, mais pai, mais companheiro, ainda mais irmão. O Criador há de me permitir esta gauchada, por que não me quererá ver entrando em seus domínios de cara feia, riscando o facão e reclamando. É cedo.


E alguém me abra mais uma por que esse papo todo me deu sede

terça-feira, 13 de março de 2012

OLHO A ROSA NA JANELA




Ao amigo de voz incomparável Orlando Torres.

Tem uma música, Modinha, do Sérgio Bittencourt, filho do Jacó do Bandolim que é um soneto musicado. Suave, romântica, entregue, derramada em estrofes quase juvenis. Enfim, é a serenata de amor que Schubert pensou ter composto. Modinha é uma baliza importante nas minhas frustrações mais antigas. Quisera eu tê-la escrito, se não, musicado, ou ao menos cantado em uma qualquer das nossas serenatas das sextas-feiras loucas. Por incompetência não escrevi e por juízo não cantei, mas passo horas bocejando seus versos, hoje quase como um desalento.

Modinha jamais seria composta hoje. O  mundo saiu do lugar, ou  nós o tiramos. Mudou de rota, está grosseiro, animalizado. Tem muito carro na rua sem espaço para ter, muita fumaça sem fogo, muita bala à toa em busca de alvos despercebidos, muitos dentes à mostra sem haver sorriso, muito ódio de graça. Andamos, sim, por aí, mas jamais sem um objetivo claro e urgente. Não passeamos mais, seja por medo, seja pela falta de tempo que criamos, ou de saco. Não pertencemos mais ao grupo humano que um dia cometeu a doce insanidade de pensar Modinha. De sussurrar Modinha no ouvido das flores.

Mas e então, morremos? Talvez, mas se podemos acreditar que três dias depois alguém voltou do plano misterioso chegou a nossa vez de ressuscitar. Se por um mísero lapso de tempo pudéssemos olhar as grades das janelas como se olhássemos as rosas de antes dependuradas; se ao menos por uma vez pudéssemos trocar o pesadelo nosso de cada dia por um sonho pequeno que nos tornasse menos adulto, e então ousássemos roubar um buquê de grades cheirosas para ofertarmos à nossa reclusa namorada, a última, e que não fosse em mortalha; E se pudéssemos andar quando o sol se findasse lento soltando nossa voz, na voz do vento indo em busca do que,  quisesse Deus não fossem vultos, porque afinal não estamos mais tão românticos e os vultos de hoje só assustam; e se pudéssemos despedaçar nosso verso desajeitado em busca de um perdão, qualquer um, pelas tantas penas que nos devemos, mas uma em especial  por termos participado da construção  dessa versão neohumana, incapaz de ser ingenuamente feliz, então ainda teríamos chance. Fácil não é, mas tão-somente estar vivo também não é.

Não morremos, apenas moribundeamos queixosos por um ontem que nos faz falta porque lá tínhamos o bom costume de sonhar. E se tínhamos, e eu, porque sei o gosto dos sonhos, de cada um deles, me queixo pelo tão pouco que me falta, e pelo bem incalculável que me faria senti-los novamente.

Vez por outra olho e vejo rosas gradeadas, de perfume reprimido e lembro de um violão e um tocador incomparável chamado Orlandinho.

segunda-feira, 12 de março de 2012

DAQUI A POUCO


















Do livro Castelo de guardanapos. Aos meus amigos basqueteiros
Daqui a pouco a corrida ficará mais lenta, o fôlego mais curto, e o coração, porta-arquivo dos sentimentos ocidentais ameaçará sair goela a fora, esquecendo suas mínimas funções biológicas, por esforços mínimos. Daqui a pouco estarão misturadas todas as cores. O que era preto e longo, e virou cinza curto estará totalmente branco e ralo, quando muito. As glândulas gustativas passarão a ter um único padrão, ou seja, nenhum. Assim, tanto fará degustar um Bacalhau a Gomes Portela, como uma Canjinha à Santa Casa. Tudo será entendido como sendo algo do tipo “o quarto estágio da água”. E o mapa? O mapa da vida estará integralmente desenhado por toda a estrutura que um dia foi lousa virgem.

Daqui a pouco. 

Como serão importantes os horários! Todos variados e múltiplos para se fazerem as mesmas coisas. Haverá muitas horas marcadas para os sonos, os remédios, os lanches. Irão rarear os dias e as horas marcadas para aquele afago mais íntimo que lá, nem se sabe quando, alguém, não se sabe quem, chamou de arrêto. Sexo? Bem, há sempre novelas no horário da janta para a gente se recordar do que se trata. Tem até um programa que se chama Vale a pena ver de novo. Talvez seja isso.

Daqui a pouco. 

Que sina essa do ser humano! Tudo bem que o Criador tenha decidido que a vida seria finita. Só não deveria permitir chamá-la de ciclo. Ou será que daqui a pouco, ao invés de ficar sentado esperando minhas pantufas poderei colocar correndo os tênis, descer as escadas de dois em dois degraus, tomar a rua em poucos minutos me reunir com a bolerada para um jogo qualquer? O equívoco talvez nem seja a definição da vida em ciclos, mas tenha sido o fato de dotar o homem de razão e sensibilidades, de formas que nem clonando, nem por partenogênese, teremos outros vivendo por nós. Vegetais produzem sementes que produzem outros vegetais, mas eles não estão nem aí se não forem idênticos. Nós sim fomos e seremos sempre apunhalados pelo zigoto.

A ausência de um de nós significa um desfalque insubstituível. Daqui a pouco faltarão outros, e o time de amigos que se formou por afinidades e que joga por música o jogo da vida, começará a sofrer contra-ataques mortais. Tão desfalcados haveremos de estar um dia, que acabaremos perdendo por W.O. Maktub!

Por ora jogamos juntos e somos convictamente um time de amadores. Nossa torcida é a mais apaixonada, pois é composta por nós mesmos, a camiseta é sempre uma mistura de todas as nossas saudades. Os nossos adversários são sempre os mesmos: um menisco, uma bursite, um ciático... E o esquema de jogo? Bem, alguém deve guarnecer a cozinha, alguém jogar espetando, alguém entrar de bandeja. E o garrafão? Tinto, por favor.

Basquete não é um jogo, é paixão e pretexto.

O SUICÍDIO DE HAMLET




Ser ou não ser proprietário de animais de estimação, eis a questão. No meu caso, apesar de gostar muito de cães, os abomino em apartamentos. Mesmo assim fui vencido pela quadrilha familiar que me fez tragar goela abaixo um pequeno animalzinho de longa pelagem. "Nós cuidamos", diziam todos cinicamente, desde então sabendo a quem estariam destinadas as tarefas de alimentar, educar, levar para banhar, passear e outros verbos transitivos mais. Eu os conheço.

Desde que chegou a casa, Hamlet, o cão, teve da família tratamento de filho. E soube aproveitar bem isso na sua infância roendo cadeiras, sofás, mesas e marcando território em todos os aposentos e móveis da casa, fazendo continência com a patinha traseira, até agora, proximamente na sua fase adolescente. Se no começo dialogávamos tendo como tradutor o Rider, ou algum outro artefato qualquer, tipo vassoura com o qual me pudesse fazer entender, nos últimos tempos tornamo-nos muito próximos, amigos até, e eu o considerando fiel, dedicado e submisso como noiva de rico. Mas eis que a chegada da fase adulta trouxe consigo uma série de inconvenientes para ele e para nós. Hamlet precisava cruzar. Eu cruzo, tu cruzas, ele cruza, manja? E o cachorro que é também uma criatura de Deus, cujo instinto o impele a cumprir a risca o mandamento do multiplicai-vos não poderia ficar de fora desta que é a mais básica das funções masculinas (até os homens gostam, devem dizer os cães). Ocorre que não é tão fácil assim cruzar um cão de classe média. Fosse ele um vira-lata de rua não lhe teriam faltado alternativas de pelagens, tamanhos e bitolas diversas. Há muito tempo já teria experimentado aquela terrível posição descrita no kama sutra canino que me punha, antes, muito antes, a pensar que os cães ejaculavam goma arábica.  Ao contrário, para um lhasa de classe média é cobrado pedigree, exames, vacinas e outros quetais. Pobre Hamlet, não conseguiu cruzar. Sua sina foi viver de pequenos espasmos e rápidas ações sempre nas canelas das visitas, enlouquecido, ainda que não vislumbrasse qualquer possibilidade de intercurso à sua frente, antes de ser chutado.

Nestes últimos meses com o cio das fêmeas o ar da cidade fica impregnado de lascívia canina, somente sentida por eles. "Mas onde andarão essas cachorras?", deveria andar se perguntando o desafortunado Hamlet, enquanto se entregava às preliminares com o tapete da sala.

Um dia achou. Na parte traseira do edifício onde moro há uma casa e nessa casa há uma cadelinha branca, mimosa, de fitinha, rabinho felpudo e tal. Ela estava no cio e o Hamlet descobriu, e não foi por fofoca de outro cachorro. Tal qual o pólen, está no ar (Ah! Os feromônios). Moramos, entretanto, no quarto andar e como nossos filhos já estão criados, dispensamos as tais redes protetoras de janela. Pois é. Hamlet achou que era fácil, que era só pular e créu, dê-lhe goma arábica na branquela. Não mediu os riscos e voou para sempre, virgem como um anjo e sem saber por que nasceu cachorro. Hamlet se foi como um bravo macho que honra a causa.

Dizia-se de um gato de raça angorá que ao passar o trilho do trem teve seu rabo decepado e não querendo deixá-lo, tão belo e felpudo que era, ao voltar para pega-lo teve sua cabeça também arrancada pelos vagões restantes. A moral, dizia-se, repito, que por um bom rabo se perde a cabeça. Pode ser verdade, mas acho, não garanto, que só vale para os irracionais.

AL DI LÀ

Do livro "Assim como era no princípio"

Havia muitas barreiras entre ela e eu. Compreensíveis, intransponíveis... para mim, irrelevantes. Pouco importava se ela fosse mais velha, inalcançável, muito menos importava a preocupada opinião das tias. “Esse guri...”, ralhavam.
Sonhava com ela sonhos bons, inocentes, muito diferentes dos sonhos imundos e melados que eu costumava ter com a filha do “seu” Nenê, com a Anita Eckberg e as modelos do Carlos Zéfiro. Uma pena não ter dado certo, sempre achei que tínhamos tudo a ver. Mas ela ainda mora aqui dentro num sulco tatuado, cicatrizado, porém, igual a algumas espinhas, uma marca irremovível.
 Os olhos da Suzanne eram duas granadas de brócolis sem pino, tal o verde e tal a expressão quando queria dizer coisas graves. Quando, porém, queriam ser doces, cintilavam como sorvete de pistache. Não deveria ser tão linda quanto a Liz Taylor, nem mais “tudo” que a Brigitte, muito menos competia com a Ava e a Marilyn como cachorras. Abstraindo a hortaliça e o sorvete que abrigava entre os cílios, era de uma beleza comum, cuja neutralidade se potencializava pela quase permanente feição-paisagem que exibia. Mas isso deveriam pensar os outros, não eu.
Suzanne Pleshette estreou na Broadway em 1961, substituindo Anne Brancroft como Annie em "O Milagre de Ann Sullivan". Depois levou alguns sustos em "Pássaros", do Hitchcock; "Nevada Smith", de Henry Hathaway, e do açucarado "Candelabro Italiano", de DelmerDaves, quando viveu a sonhadora e imprudente Prudence Bell. Esta moça largou a vida pacata de bibliotecária na Nova Inglaterra para viver de riscos cardíacos na Itália. Foi quando a conheci e tive de disputá-la com o Troy Donahue e o RossanoBrazzi. Tentei furar os olhos do mocinho, mas perdi, claro, e passei muito tempo bocejando Al di lá, sem nunca ter descoberto exatamente do que se tratava.
 O filme é um “água com açúcar” bem ao gosto dos anos sessenta. Romântico como a época, com música e fotografia lindas. Mais que isso só ela, cuja foto em 3x4 saquei do meu álbum de figurinhas e guardei na carteira, e que teve como destino ser fracionada em múltiplos pedaços, cuspida e pisoteada por alguém que não respeitou meu domicílio mais íntimo, em momento de profundo desamor. Popular ciúme.  
A carreira da Suzanne poderia ter decolado caso tivesse aceitado o papel de Mulher-gato na série do Batman da TV. Trancou o pé e se deu mal, por isso nunca saiu daquele rame-rame intermediário. Certo que não foi lá grande coisa como atriz, e o máximo que chegou perto de um Oscar foi por ter sentado nas primeiras fileiras da Academia. A mesma distância responsável pelas minhas frustrações.
 Su foi casada três vezes, a primeira com o “cheirado”, “fumado” e “bebido” do Troy, logo depois do Candelabro. Tentaram levar a trama adocicada do filme para prorrogação e pênaltis, mas não deu certo. O casamento durou apenas algumas garrafas de uísque, e eles se separaram seis meses depois. No segundo, ficou inacreditáveis 32 anos com o  Tommy Gallagher  (talvez porque ele não fosse do meio artístico), que morreu no pleno exercício da função de marido.  Por fim, com o colega Tom Poston, que também morreu no cargo, imaginem. (Teriam justificativas as preocupações das tias?)
 Eu também casei algumas vezes, segundo minhas anotações, nenhuma com ela, e acho que por isso ainda esteja por aqui contando histórias. O certo é que fiz um filho em sua homenagem. O Sr. Igor Portela, assim como a Suzanne, nasceu em 31 de janeiro. Ela não teve filhos... (maldita distância).
Em 19/01/2008, aos 70 anos, a musa foi colocar seu nomezinho na Hollywood Walk of Fame organizada pelo Altíssimo, a quem intimei que pintasse uma estrela de verde-brócolis ou pistache. A tonalidade que tivesse mais à mão. Ainda não vi isso e considero Papai do céu inadimplente comigo. Está em decurso de prazo e, mais hoje, mais amanhã, falaremos a respeito. Não há prescrição e não aceito encontro de contas. Muito menos perdoai as nossas dívidas”.

 Partiu sem ter noticias minhas, a pobre. 

Castelo de guardanapos



Crônica título do livro
Tenho um especial apreço por guardanapos de papel. Fazem parte de momentos importantes da minha vida. Numa época distante, debruçado na mesa do boteco, às seis da tarde, entre um gole e outro de Crush, rabiscava versinhos ou fazia frasesinhas para ela, qualquer uma, das tantas que amei em guardanapos, depois guardava nos meus documentos e, por ser importante, colocava numa pasta especial que criara no porta-arquivo da mesa da sala. Era o meu word possível, numa época em que virtual era apenas o sonho produzido por nós mesmos, acordados ou não. Uma vez juntei uma quantidade grande deles e me prometi um livro. Foi um exemplar único que chamei de Castelo de guardanapos, arquitetado e construído com o carinho exigível pela delicadeza da matéria-prima, mas ambientado na bipolaridade dos sentimentos, que guardei como quem guarda um tesouro, no máximo segredo. Castelos sempre encerram misteriosos segredos. Há quem prefira construí-los de cartas ou areia, mas esses não têm mais do que o compromisso lúdico e fugaz. Um se desmancha ao sopro leve do vento, o outro com uma lambida despretensiosa do mar. O meu, quis fazê-lo eterno, porque não saberia construí-lo de novo, não poderia reviver cada parede de sua estrutura frágil de forma, mas de intenso conteúdo, nem redecorá-lo com momentos iguais. Não sei que fim deu o meu castelo. Talvez tenha se esfarelado com o tempo ou quem sabe tenha servido de artefato nas mãos de alguém que esqueceu de respeitar o domicilio do meu máximo segredo, num momento de profundo desamor.

Devo ter encharcado muitos guardanapos com pedaços de olhos machucados, naquela e em outras épocas, mas também lembro de tê-los oferecido para o mesmo derramado fim em incontáveis ocasiões, agindo como segunda ou terceira pessoa do presente. Ombros amigos, na ausência de ombros mais amigos, ou desejados. E quem não teve um guardanapinho mimoso com duas ou três palavras catalisando milhões de promessas, assinado com uma boca? Não precisava de nome, duas ou três palavras talvez. Um bilhetinho carimbado com batom é ostensivo, compromete mais que a impressão digital mais nítida. Imagine um guardanapo assinado assim pela Sophia Loren ou pela Angelina Jolie! Talvez nem sobre espaço para algumas letras e as promessas fiquem ainda mais sublimadas.

Tenho tanto carinho por guardanapos de papel que nunca os escolho no balaio de liquidações, ao contrário, vou fundo nos mais valorizados. É uma espécie de resgate do tempo em que me aboletava em balcões ou mesinhas capengas, apanhava as folhinhas miseráveis, no mais das vezes cortadas pela metade, e iniciava os rabiscos, quase sempre com a Bic emprestada do garçom, roída até a metade. Hoje me pergunto como ficava, ou me permitiam ficar, horas a fio tomando uma ou duas Cocas-cola, com o máximo de um dedinho magro de vodca, apenas para obter salvo-conduto no meio, sem emitir uma fumacinha sequer além das do cérebro, uma porção de fritas que resistiam flácidas e geladas, gastando pilhas de papéis? Devo muito a eles.

Nos meus bilhetes de geladeira, as instruções, broncas, recados são feitas em post it. Frieza é importante numa hora dessas, mas os mimos e confissões são reservados aos guardanapos. Talvez por serem absorventes me permitam ensopá-los de intimidades verbais sem que salpiquem e atinjam alguém fora do alvo. Caso não sejam guardados, já terão cumprido sua função: neles guardo resíduos de sentimentos. Como antes.