Do livro "Assim como era no principio"
Não sei e nunca soube gostar pouco. Que o digam,
caso pudessem dizer, as tortas de bolacha com sabor de mãe, os palmitos tenros,
as azeitonas de Libres, os ovos fritos com borda crocante e as
bolachas psicografadas da Padaria Modelo. Que o dissessem, caso tivessem sido
informadas, as minhas musas juvenis guardadas a sete chaves nos armários da
minha timidez. Timidez... Sofri um tempo disso, mas logo, logo, passei a ouvir
que na falta de vergonha na cara sobravam espinhas.
Nunca enjoei do que gosto. Em mim, a convivência; o
uso ou o consumo se realimentam. A menos que tenham passado a me causar danos
severos, como sardinha enlatada, por exemplo, e uma e outra relação que tenha
me posto em vômitos.
Assim, num duo personagem/cenário, certa vez em uma
das tantas caminhadas al pedo em calle Colón,
escutei uma musica francesa cantada por um anjo. Importante esclarecer que
anjos emitem sons decodificados pelos ouvidos da alma. Gravei aquela voz em
memória randômica, de forma que se tornou de acesso aleatório, ou seja, ouvia
sem querer e a todo o momento.
Era uma voz sem rosto, pois que diabos, nem
Da Vince, que fora um gênio criador, nem Getúlio, que prendia e mandava soltar,
e nem o AI-5, nos legaram Google e Wikipédia. Assim ouvi ao extremo do
massacre Le coeur trop tendre, e faço isso a quase meio
século, sem enjoar.
Custei a descobrir o nome da dona daquela voz de
travesseiro, e assim, durante um bom tempo, desenhei rostos e jeitos através
dos sons. Tempos depois, da mesma forma despercebida como a ouvira pela
primeira vez, finalmente nos encontramos. Ela, na capa de um LP, protegida pela
vitrine, e eu babando na calçada. Passei então a imaginar que cantava para mim,
uma vez que a minha juventude amava os Beatles e os Roling Stones, e alguma
coadjuvância similar. Ninguém sabia quem era Nana Moskouri. Melhor assim. Dessa forma não precisaria
dividi-la com ninguém dos meus pares, de pensamentos pouco higiênicos e de
resultados melequentos.
A minha paixão pela música francesa, de melodias
sussurradas por erres e biquinhos (boca de “u” e som de “i”, dizia o mestre
Cyrillo), não devo a Edith Piaff, SilvieVartan, MireilleMathieu,
Salvatore Adammo e Charles Aznavour, que quando o ouço cantar Hier encore me leva a Paris, com vinte
anos. Devo, sim, a esta grega de beleza suave e incomum, jeito professoral,
criada em tempos de guerra, cuja biografia ninguém ainda escreveu. Eu, caso
pudesse, pagaria para escrevê-la, desde que a ouvisse pronunciar apenas uma vez
o meu nome com aquele timbre produzido de uma pequena anomalia nas pregas
vocais, que o torna único.
Sei dela o que me foi dado a conhecer ao longo dos
anos. Sei que ainda deve ser a mulher que mais vende discos no mundo (na França
é a segunda, depois de Dalidá) e que gravou em quinze idiomas, sendo que
desses, sete fala fluentemente; Sei que desobsediou-se de Maria Callas assim
que conheceu o jazz através do “enorme” Quince Jones, largando canto clássico,
para minha alegria, tendo logo depois incorporado Edith Piaff, de onde e quando
partiu para ser eterna. Sei também que casou duas vezes, que mora na Suíça com
o segundo e incensado marido, e quer porque quer deixar de cantar antes que o
canto a abandone. Felizmente as plateias afortunadas da Europa não permitem.
Pela ordem natural das coisas não devo ouvi-la
cantando ao vivo, muito menos me chamando de querido. Assim, me conformo em não
ter mais seu vasto repertório guardado em estante, que é coisa de velho, mas na
galeria onde penduro as melhores lembranças que um dia levarei para sabe-se
onde.
4 comentários:
Sem comentários!Isto vale tanto para o teu texto como para a Nana Mouskouri!(Enquanto lia,passava por Uruguaiana,sentia o cheirinho gostoso das bolachas,dos pães e das cucas da Modelo e,de quebra,visitava Libres.Isto não tem preço).Obrigada,Jair!(Ana Maria Garcia de Figueiredo)
Estou publicando como anônimo porque não tenho nenhuma das contas sugeridas.
Que lindo, lendo e obrigatoriamente percorrendo os caminhos que nos levam a adolescência e nossas paixões platônicas, belas lembranças, obrigada amigo. Daisi Soares
Nana Mouskouri, em qualquer dos idiomas que canta, encanta, por sua afinação, voz de fada, de anjo, empatia com o público alvo, não tem quem não seja alvo desta musa, salvo algum desprovido de audição, ainda assim lhe perseguirá a postura encantadora, meu amigo Palito, em qualquer idioma que escreva, mas preferencialmente em portugues, até onde sei ler, alcanço, me custaria em outro idioma, mas me esforçaria em traduzi-lo, porque me encanta o que escreve, se teu público alvo não chega a ler-te, sinto pena deles, porque perdem coisas lindas escritas não só para agradar, também para fazer viajar para dentro de si. Grande abraço e aplausos(e não são poucos) Nilo
Eu amo a Nana, curto suas canções desde 1971 e tenho vários Cds, realmente, ela é insuperável ao cantar em qualquer idioma, mas em francês é divina, Em 17/11/2013 fomos agraciados com o único show - em solo brasileiro - dessa que considero a maior e melhor cantora de todos os tempos. Foi um show deslumbrante, inesquecível, estou em estado de graça até agora. Foi um show para comemorar seus 80 anos, que na realidade será em 13/10/2014. Realizei um sonho, estou muito feliz. Foi maravilhoso. Adorei i texto do Joel, muito inspirado, parabéns. Izabel Santamaria.
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