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quarta-feira, 18 de abril de 2012

LIGAÇÕES PERIGOSAS

Em 1995 o celular era artigo de luxo. Meu sócio tinha, eu não. Caminhávamos pela Rua da Praia quando o aparelho dele chamou.  Tempo estava ruim e a linha uma porcaria, mal dava para ouvir. Mas ele conseguiu identificar que chamada era de longe e para mim. Estranhando e apreensivo, atendi. Consegui descobrir que era de Uruguaiana, um chiado só. Não soube quem era, mas o assunto era sobre meu pai. Ele tinha quase oitenta anos e morava sozinho, viuvara cedo, com pouco mais de quarenta anos, mas não quisera tentar um novo casamento, apesar das sugestões, induções e assédios que recebia. Olhos azuis sempre dão bom mercado. Apesar de não ter primado por um comportamento modelar, fora um apaixonado pela mulher, e tão mais casado sentiu-se após a viuvez que se mudou para perto do cemitério, aonde ia, religiosamente, todos os domingos levar flores.

Do telefonema, pude perceber que ele estaria “esperando a faca”. Bem, meu pai era um Portella, portanto, senhor absoluto de todas as teimosias e com um agravo: ele era o ícone, precursor de uma dinastia toda de irremediáveis cabeças-duras.  Esperar a faca, para nós fronteiriços, é esperar cirurgia e sabe quando e em que condições o velho Ramão aceitaria deixar-se operar? Só por necropsia. Entrei em pânico. Era filho único, dos reconhecidos, e dera a ele muito pouco do que gostaria. Fui para casa, preparei uma pequena mala e me fui, queixoso. 

Eram dezesseis horas quando passei a ponte do Guaíba, rumo às incertezas e no momento exato em que começava a chover. Ainda não existiam pardais e com chuva, ninguém multa. Portanto, afundei o pé. Houve momentos em que o limpador de pára-brisa não vencia a força das águas. Também não tinha pedágio e a estrada era buraco puro, de ambos os lados e todas as bitolas, muito mal sinalizada e eu, a bordo de um potente Uno Mille, com a perna direita esticada. Logo, logo anoiteceu e naquela noite chuvosa poucos se arriscariam a viajar. Se por um lado era bom pela liberdade de andar, por outro se perdiam as referências luminosas que ajudariam a me manter no leito.

No trajeto refiz nossa história familiar. Fui então criança, de arranhar as mãos na barba dele, brinquei de cavalo garroneando suas costelas, soltamos pandorga. Contei quantas bolas de futebol me dera na tentativa vã de me fazer um craque à altura do que ele próprio fora e chorei, mas chorei tanto que não sabia de que lado vertia mais água e que vidros estavam mais embaçados, se os do carro ou os meus, dos olhos. Entre um solavanco e outro da estrada, matava meu pai, para logo a seguir ressuscitá-lo. E tantas vezes o matei e ressuscitei que resolvi ter esperanças de encontrá-lo bem. Mas como encontrar bem aquele velho teimoso que esperava a faca?


Quase setecentos quilômetros, rios de estradas e lágrimas de depois, às 22h45min., cheguei à entrada da cidade, mais precisamente no posto da Policia Rodoviária. Parei o carro e fui aos policiais tentar, por um guia telefônico, descobrir de quem fora a ligação. Fiz alguns contatos e ninguém sabia de nada, até que achei o amigo. O diálogo foi mais ou menos este:
-Mujica, foste tu que me ligaste hoje à tarde? Perguntei
-Sim. E aí, que tal? Onde estás? Quis saber ele, um amigo de todas as horas.
-Estou aqui, em Uruguaiana, como está meu pai? Onde ele está? Quis saber quase retomando o choro, querendo saber do corpo.
-Mas tu és louco, tchê? Não estavas em Porto Alegre? O quê tu estás fazendo aqui??
-Quero saber do meu velho querido, coitadinho.
-Teu pai está bem. Está aguardando uma vaga para fazer alguns exames de rotina, conforme te disse pelo telefone.
-Hein? Uma vaga?! Tu disseste esperando  V-A-G-A????
-Sim. Teu pai está em casa. Pediste que te mantivesse informado sobre qualquer coisa envolvendo ele. Assim fiz.

Agradeci prometendo visitá-lo e desliguei o telefone. A chuva tinha parado e uma lua enorme aparecia no céu. Acho que só nós, uruguaianenses, conhecemos o real tamanho de uma lua cheia. Liguei para casa para tranqüilizar os meus e fui ver o velho. Claro que ele achou uma visita estranha, mas eu não lhe contei por que estava lá. Era um gozador emérito e eu não estava lá para muitas graças, mas lhe dei pela primeira vez um beijo, o melhor que pude dar, e o mais caloroso abraço. Imagine poder abraçar uma pessoa querida ressuscitada? Pois é. Precisava então relaxar e estar só. Fui para um hotel amaldiçoando o celular, mas lembro de ter adormecido rindo, empernado com uma amostra grátis de Natu Nobilis. Era o que tinha.

Ora esperando a faca!

sábado, 14 de abril de 2012

SE VOCÊ FOSSE SINCERA!

Quadro de Guercino

Aurora renovava-se diariamente e cedinho voava al pedo anunciando a nova manhã. Só isso. Mas apesar de viver apenas um lapso de tempo por dia teve quatro maridos e quatro filhos. Uma loucura, presumo. Também presumo que sua grande paixão tenha sido um tal que a raptou e que antes de ser assumido como marido fora seu amante. Tithonus é o cara, cuja paixão fez com que a abobada Aurora fosse a Júpiter implorar pela imortalidade. Júpiter era bonzinho, mas não tinha cintura nenhuma e talvez nem tempo para dar-se conta de que o pedido lhe fora feito por uma mulher cuja carga horária era extremamente apertada. Imaginem levantar de madrugada, avisar a todo mundo a chegada da manhã e dar conta de quatro maridos e quatro filhos? Pois é. Aurora esqueceu de pedir a Júpiter que a vida eterna solicitada fosse acompanhada da juventude.

O cara ainda vive (Júpiter não falha), mas antes de vê-lo coisificado, Aurora, que antes o achava “tudo” deu no pé. Hoje, quando ouvirem o canto de uma cigarra, na verdade um lamento, lá estará o nosso decrépito Tithonus curtindo sua imortalidade. Dizem que Aurora é autora da frase: “que seja imortal enquanto duro”. Pergunte a um grego o que significa Tithonus. Ok, não é fácil achar um grego, então vá ao Google.

O resto da família é bem conhecido. Seus irmãos, Sol e Lua, são mais famosos, de vida mais plena, reinam soberanos e prepotentes no universo. Ah, e Boreal não é sobrenome de casada. É uma homenagem do velho e birrento Galileu à mãe e filho. Bóreas, um deles, representa o vento norte e produz alguns efeitos ópticos noturnos interessantes. Aliás, os outros três também são ventos e representam os outros quadrantes. Assim, quando o Minuano recortar a orelha já se sabe que é travessura de um dos filhos da mãe.

Outra coisa que não sei e me traz curiosidade é saber a qual Aurora quis referir-se o Mario Lago, na famosa marchinha de carnaval. Talvez seja a nossa Aurora, uma vez que a letra fala de sinceridade, o que pode ser traduzido no linguajar romântico como fidelidade. “Se você fosse sincera ô ô ô ô Aurora... Veja só que bom que era ô ô ô ô Aurora. Um lindo apartamento com porteiro e elevador e ar refrigerado para os dias de calor. Madame antes do nome, você teria agora Ô ô ô ô Aurora ...” Ô vidinha mais ou menos, hein seu Mario! E quer sinceridade? Se Tithonus, que além de bonitão deu-lhe um castelo brilhante a beira mar acabou levando um pé na bunda, querias o quê?

Conheci, não lembro quando nem em que circunstância uma mulher chamada Aurora. Não casei com ela (acho) e não lembro de como era, o que me leva a supor que como pessoa e mulher teve significado igual a zero na equação dos meus relacionamentos, que todos sabem não serem de primeiro grau. Há muitas variáveis, incógnitas e coeficientes (como queremos demonstrar). É um nome sonoro, mas não sei se acho bacana, embora os seus significados o sejam. Não chamaria uma filha minha de Aurora e caso alguém me diga “vou te apresentar a Aurora...” a formatação prévia que farei talvez não seja muito promissora. Preconceito total e absoluto assumido. Mas sou obrigado a reconhecer que a cada fevereiro lembro dela.

Saudades de Uruguaiana, lugar de ver a Aurora e os filhos.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

A UM PASSO DA ETERNIDADE





Para daqui a muito tempo

Que dias estes. Longos, sonolentos! E eu penso cá comigo: ainda bem. Sei que estas pessoas que estão ao meu redor são meus queridos. Não lembro bem deles, mas olho demoradamente para cada um e vejo o quanto somos importantes uns para os outros. Devo amá-los muito, pois me aperta até o último fôlego desconfiar que daqui a pouco provavelmente não os veja mais. E mais eu sinto por que este eventual afastamento deverá fazê-los sofrer, e eu não estarei por perto, como talvez tenha estado sempre, para emprestar-lhes ouvidos e ombros, e dizer-lhes: “estamos juntos”. Provavelmente chorarão desta vez sem mim.  Pior, por mim.

Tem um sono que chega sorrateiro e instintivamente me nego a dormir. Desconfio deste sono. Será o bom que me acompanha há quase um século ou será outro diferente, mais profundo que servirá de interface para outros amanhãs, misteriosos, sempre inesperados, nunca desejados; nunca por mim temidos. Nunca? Pois bem, sei que vou dormir daqui a pouco, mas antes quero remasterizar um bom punhado de anos. Nascer e ser criança de novo com direito a todos os cuidados, iguais aos que estou tendo agora; esverdear os pés de tanto correr pelos campos sem fim de Uruguaiana, tapados de rosetas, driblando as guanxumas, lá onde tudo é horizonte. Namorar, de verdade e de mentira. Dançar todos os bailes que dancei e outros que perdi por concomitância, e vagar como folha perdida pelas ruas que desenham os endereços desta longa caminhada. Este sono há de me vencer a qualquer momento, claro, mas haverá de perceber neste beiço que já nasceu duro toda a calosidade adquirida no largo dos anos. Não se iluda sono amigo, os olhos estarão fechados por conveniência. Assim é mais fácil empreender a regressão fantástica que farei cavalgando no tempo, agora justificadamente fantasiado de Peter Pan. O corpo poderá estar coisificado, mas o que eu tenho a ver com ele? Ele nunca me pertenceu. Quanto ao espírito, continuo em dúvida.

Fôlego, isto é o que me falta. Um restinho ainda os moços de branco se esforçam para ampliar. Acredito neles, mas não tenho esperanças. Sei lá, como diz um querido amigo, não lembro qual, mas que talvez reencontre em breve quando acordar naquele misterioso amanhã, “estou no lucro”.

Vida. Vivi com tamanha intensidade que me cansa só o fato de estar deitado. Gastei tanto esta carcaça emprestada pelo Criador que tenho vergonha do momento de devolvê-la (quantas penas haverei de pagar para reparar os estragos?). E usei de tal forma este coração que talvez esteja ele, hoje, a me cobrar desperdícios e outras espécies de bom e mau uso, tudo potencializado ao exagero. Mas a alma vou entregar juvenil como recebi. Continuo levando a sério brinquedos e sonhos, sendo egoísta e as vezes injusto em favor dos meus afetos, dando a estes o meu carinho sem reservas ou limites. E levarei a presunção de certeza do quanto foi bom ter sido meu amigo.

De resto estarei pronto. Terei gostado  de tudo vi; terei vivido tanto quanto quis e amado o quanto pude. Mais não amei por que, afinal, não sei se houve mais para amar, e houve os limites sociais; impedimentos físicos. Sobretudo e por fim, encontro de duas almas iguais, intransigentes na busca da paz.

O sono chega com força.  Não devia ter fechado os olhos, agora mal consigo abri-los.  Lembrei do filme A um passo da eternidade, ou será uma música?  Não importa, acho que me veio a mente apenas o título. Bem, neste caso avisem  o amigo Morfeu que sou hétero convicto, juramentado e praticante, mesmo que sejam prerrogativas inúteis daqui para frente..

Quem será esse novo amigo vestido de preto?

quinta-feira, 12 de abril de 2012

VERSOS SATÂNICOS 37 ...ÁGUAS DE MARÇO

Cabral, meu bom Cabral, 
Onde te meteste, afinal?
Cada março que eu vivo tenho um sobressalto contigo,
Porque não posso me descuidar do Planalto.
Embora (acredito e rezo), não espere noticias iguais as do dia dezesseis,
Quando brincando de reis, 
Fernando I e Cia meteu a mão no nosso dinheiro.
Que turma aquela! Lembro como se fosse agora.
Tu, sentando a espora naquela senhora,
Que tinha idade de ser tua nora,
Que a bem da verdade era um bucho,
Como tu, que também não era nenhum luxo.
Que papelucho!
Um velho gorducho empernado, queimando cartucho,
Naquele arretante Besame mucho!
Lembra? Passou em horário nobre, e o bacudo aqui ó,
Pobre, embuchado, dinheiro confiscado, numa merda de dar dó.

Em cada março me acordo no cagaço,
Pensando de que lado vem o relhaço.
Às vezes chego a vergar o espinhaço,
Antes mesmo de acordar, tal o trauma com esse mês.
E tu estás presente em todos os porquês.
Sei lá, a tua imagem grotesca,
Dançando com aquela fresca,
Totalmente alheios ao desespero do povo,
Me vai e vem sempre de novo e,
Por mais que o tempo tenha passado;
Que outros tantos governos tenham me enrabado, 
aquele foi especial.
Foi meu primeiro voto para presidente e acabei me dando mal.
Mesmo que eu tenha votado no rival.

Cabral, meu bom Cabral, por onde te esguelhas?
Por certo que não rasgas mais orelhas.
Na época meteste umas guampinhas na velha,
Tirando uma casquinha com a Zélia, e ela tirou um cascão contigo.
Mas também lembro bem do teu castigo.
Tiveste que largar a teta, não a murcha, a outra, a do ministério,
E de lá para cá tua vida é um mistério.
A Zélia é outra que sumiu do mapa.
Deu uma ciscadinha guapa, teve um namorico com o Chico,
Fechou o bico, pegou o penico e nunca mais figurou na capa.
Dizem que buscou um novo valete, colocando anúncio na internet.
Bueno, se quando nova já era um bagulho,
Vinte anos mais velha onde encontraria arrulho?
Em que estado estará a Zélia?
Era de uma feição quase trágica, que acho, ainda não haver recurso.
Nem botox, nem fio russo, talvez só com mágica.  
Mas será que com dois copos de Underberg,
Rezando para que ninguém me enxergue, eu não seria capaz,
Apenas por vingança, de me permitir tamanha lambança?
Bem capaz!
Dezesseis de março de noventa!
Quando me lembro que da minha poupança
Só me restou cinquenta, penso em ti Cabral,
Em ti e naquela nojenta.
Fiquei mal.
Queimei esterco para comer torresmo,
Andei por aí a esmo
Custei a encontrar meu rumo e de novo sentar o prumo;
Mas não me curei desse mês.
Pior é que depois de vocês, andam metendo ainda mais a mão,
Mas tudo fica por isso mesmo.

Teu amigo PC era fichinha perto da companheirada que veio depois.
Cada um vale por dois, com ágio de não sei quanto por cento.
A diferença é que quem tomou acento, e era para ser o bobota, não é.
Não é poliglota, mas é muito mais esperto.
Faz tudo parecer certo e quando a bronca começa a chegar perto
Tem sempre uma desculpa vazia: “eu não vi, eu não sabia...”.
E o pior de tudo Cabral, velho idiota,
Que nesse chefe da nova camarilha, 
Muito neguinho crê, exalta e vota.

Ah, Cabral, onde te meteste afinal? 
Te foste para onde o saci perdeu a bota;
Saíste daqui quase corrido,
E eu te perdi de vista, não te encontro em nenhuma lista...
Terias tu ido ao encontro do anjo caído? 

quarta-feira, 11 de abril de 2012

A PRIMEIRA NOITE DE UM HOMEM


Do livro: Castelo de guardanapos

Chamavam-no Cacho. Dito assim: Catcho Gonçalez. Não era nome, era apelido, o nome ninguém sabia, nem a origem. Era um tipo e tanto. Eternamente de linho branco, sapato duas cores, anel de rubi no mingo, cabelos abotoados atrás, e um topete seguro com cinqüenta gramas de Glostora.  Acho que nunca vira o sol. Suas únicas luzes admitidas eram nessa ordem: a vermelha, a da lua e a do seu isqueiro Zipp, de estimação, dado por uma prostituta, nunca lembrava qual. Reinava soberano na Uruguaiana antiga, do Ivo às Cabritas, circuito em que era disputado a tapas pelas frequentadoras. 


Quando o conheci já estava veterano. A idade ninguém sabia, nem o que usava nos cabelos para mantê-los pretos. O certo é que, diziam, não era mais o mesmo, apesar de continuar sendo o xodó das mariposas. Parecia manter total energia, mas tantas noites insones e várias gonorreias depois, não haveria de ter saúde para grandes extravagâncias. 


Cacho sempre tinha uma palavra de incentivo aos novos grumetes da noite. Gostava de ser abordado e perguntado sobre sua vida e experiências. Contava que mulher nenhuma o abandonara, ao contrário, tinha orgulho de proceder as trocas, às vezes várias e na mesma noite, deixando para trás um rastro de corações despedaçados. Contava histórias, ensinava truques que iam desde comportamentos sexuais pouco ortodoxos, até olhares que tinham o poder mortífero de levar à sarjeta os mais rígidos pudores. Era, portanto, o alter de todos nós, iniciantes da indormida arte da sedução.

Guardo dele uma passagem. Tínhamos um amigo com pequenos distúrbios mentais. Nada que o impedisse de socializar-se. Achávamos, porém, que aos dezessete anos já estava mais do que na hora de apresentar-lhe os prazeres da carne. Segundo desconfiávamos, e vimos  comprovar, era totalmente virgem, nem pelos na mão tinha. Seu apelido era Jiboia, não sabíamos se pela volúpia com que se atirava à mesa ou por algum recurso físico ainda não explorado. 


Conversamos com Cacho que de pronto se propôs a auxiliar. Falaria com uma de suas parceiras, explicaria a situação e indenizaria o seu horário. Pediria, entretanto, que fosse paciente, pois estaria iniciando alguém que mais tarde poderia vir a ser um cliente eternamente agradecido. Para ela teria ficado tudo bem. De certo há muito não conseguia a chance de agradar o rufião. Difícil, no entanto, foi convencer o Jiboia. Até a família envolvemos, mas claro que somente o pai, que patrocinaria o evento. 


Conseguimos. Sábado, com o personagem devidamente banhado e perfumado, fomos todos ao encontro do Cacho, solidários. Nosso amigo iniciante tremia, não falava, não sentava, apenas salivava.  Cacho havia tomado o máximo de cuidado na escolha da parceira. Escolhera a mais antiga, daquelas que têm todo o tempo do mundo em função da falta de mercado. Ela chegou ao salão rebocadíssima, como mandava o figurino ambiental, e apresentamos nosso amigo. Cacho era bom camarada, tranquilizara o estreante de que estaria logo ali, atrás da porta, a fim de ajudá-lo em qualquer problema que tivesse. Mas era também desprovido de escrúpulos. Providenciara para que estivéssemos todos no quarto ao lado, de onde poderíamos assistir e ouvir os acontecimentos, em função de algumas aberturas estratégicas. 


O casal entrou, a mulher fechou a porta e o Jiboia grudou-se de pé na parede, de costas, imóvel. Não saia de jeito nenhum. A veterana parceira, conhecedora de todas as manhas, começou então a trabalhar. Esfrega daqui, enfia a mão acolá, depois de vencer as já combalidas resistências, abriu os botões da calça do rapaz. O que saiu de lá, justificava o apelido. Descobrimos então porque se chamava Jiboia. Dali para frente tudo se tornou mais fácil, uma vez que começava a se manifestar o instinto básico adormecido, no seu formato mais animal. Estava sendo uma farra. Subitamente o parceiro, corcoveando freneticamente e em pânico, começou a gritar:  "Ai, ai, ai Catcho, filho da puta, vem cá que tá me dando uma coisa!" Não lembro, mas deve ter sido ao redor de cinco minutos de gritaria, de ambas as partes.Satisfeitos, nos reencontramos no salão. 


Jiboia não cabia em si de contentamento e a todo o momento perguntava a que horas estava marcado o encontro para o dia seguinte. Passou a olhar a vida diferente, muito diferente, e tanto retornou ao útero, muito e amiúde, numa espécie chula de regressão, que corrigiu em definitivo seu distúrbio. Talvez nem fosse só mental, mas uma conexão naturalmente improvável entre hipófise e próstata, com realimentação direta. E a veterana parceira, que prometera recebê-lo a qualquer hora, sem ônus, foi trocada por carnes mais novas e enxutas.

E os holofotes vermelhos mudaram de foco, e o mito Cacho, dito assim: Catcho Gonçalez foi engolido pela jiboia que terminara de criar.      

sexta-feira, 6 de abril de 2012

NANA MOUSKOURI

Do livro "Assim como era no principio"

Não sei e nunca soube gostar pouco. Que o digam, caso pudessem dizer, as tortas de bolacha com sabor de mãe, os palmitos tenros, as azeitonas de Libres, os ovos fritos com borda crocante e as bolachas psicografadas da Padaria Modelo. Que o dissessem, caso tivessem sido informadas, as minhas musas juvenis guardadas a sete chaves nos armários da minha timidez. Timidez... Sofri um tempo disso, mas logo, logo, passei a ouvir que na falta de vergonha na cara sobravam espinhas.
Nunca enjoei do que gosto. Em mim, a convivência; o uso ou o consumo se realimentam. A menos que tenham passado a me causar danos severos, como sardinha enlatada, por exemplo, e uma e outra relação que tenha me posto em vômitos.
Assim, num duo personagem/cenário, certa vez em uma das tantas caminhadas al pedo em calle Colón, escutei uma musica francesa cantada por um anjo. Importante esclarecer que anjos emitem sons decodificados pelos ouvidos da alma. Gravei aquela voz em memória randômica, de forma que se tornou de acesso aleatório, ou seja, ouvia sem querer e a todo o momento.
 Era uma voz sem rosto, pois que diabos, nem Da Vince, que fora um gênio criador, nem Getúlio, que prendia e mandava soltar, e nem o AI-5, nos legaram Google e Wikipédia. Assim ouvi ao extremo do massacre Le coeur trop tendre, e faço isso a quase meio século, sem enjoar.
Custei a descobrir o nome da dona daquela voz de travesseiro, e assim, durante um bom tempo, desenhei rostos e jeitos através dos sons.  Tempos depois, da mesma forma despercebida como a ouvira pela primeira vez, finalmente nos encontramos. Ela, na capa de um LP, protegida pela vitrine, e eu babando na calçada. Passei então a imaginar que cantava para mim, uma vez que a minha juventude amava os Beatles e os Roling Stones, e alguma coadjuvância similar. Ninguém sabia quem era Nana Moskouri.  Melhor assim. Dessa forma não precisaria dividi-la com ninguém dos meus pares, de pensamentos pouco higiênicos e de resultados melequentos.
A minha paixão pela música francesa, de melodias sussurradas por erres e biquinhos (boca de “u” e som de “i”, dizia o mestre Cyrillo), não devo a Edith Piaff,  SilvieVartan, MireilleMathieu, Salvatore Adammo e Charles Aznavour, que quando o ouço cantar Hier encore me leva a Paris, com vinte anos. Devo, sim, a esta grega de beleza suave e incomum, jeito professoral, criada em tempos de guerra, cuja biografia ninguém ainda escreveu. Eu, caso pudesse, pagaria para escrevê-la, desde que a ouvisse pronunciar apenas uma vez o meu nome com aquele timbre produzido de uma pequena anomalia nas pregas vocais, que o torna único.
Sei dela o que me foi dado a conhecer ao longo dos anos. Sei que ainda deve ser a mulher que mais vende discos no mundo (na França é a segunda, depois de Dalidá) e que gravou em quinze idiomas, sendo que desses, sete fala fluentemente; Sei que desobsediou-se de Maria Callas assim que conheceu o jazz através do “enorme” Quince Jones, largando canto clássico, para minha alegria, tendo logo depois incorporado Edith Piaff, de onde e quando partiu para ser eterna. Sei também que casou duas vezes, que mora na Suíça com o segundo e incensado marido, e quer porque quer deixar de cantar antes que o canto a abandone. Felizmente as plateias afortunadas da Europa não permitem.  

Pela ordem natural das coisas não devo ouvi-la cantando ao vivo, muito menos me chamando de querido. Assim, me conformo em não ter mais seu vasto repertório guardado em estante, que é coisa de velho, mas na galeria onde penduro as melhores lembranças que um dia levarei para sabe-se onde.  

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Versos Satânicos 26


  Por uma vida menos ordinária

E eu aqui querendo me aposentar. Do jeito que eu queria não vai dar, mas se eu soubesse que arrancando um dedo iria para casa mais cedo, podem ter certeza, arrancaria, mas arrancaria o fura-bolo. Seria mais convincente. Daria, entretanto, a prova cabal de que sou mais tolo. Fosse eu mais esperto pensaria em arrancar o minguinho, como fez nosso amiguinho, aquele a quem muito me refiro, que confesso, entre muitos já preferi e que hoje já não prefiro. Como disse, arrancaria um dedo, nunca os miolos nem as “vistas”, por isso sempre posso passar idéias em revista, mudar pontos-de-vista, convicções também. Dizem que só muda quem as têm.

Mas e se eu fosse deputado? Ah, trabalhar(?) para o povo   no Olimpo! Para chegar lá não precisa ser trigo limpo, nem vacilar quando for convidado a jogar no time do joio. Requer esforço e muito apoio, mídia, por certo, e uma grande cara-dura. Não precisa mais temer a linha dura. A força agora mudou de lado, quem manda é o deputado, e melhor ainda se for “daquele” lado, do lado companheiro. Não há, portanto, perigo de perda, nem de cargo nem de dinheiro. Quem governa agora se diz esquerda, pois os mandantes lutaram contra a ditadura! Ora-ora, é tudo via de duas mãos, sabe disso qualquer cristão, então vamos deixar de frescura.  A bala que vem de lá, faz o mesmo buraco que a bala que vem de cá. Seqüestros por conta de ação repressiva têm o mesmo efeito dos feitos pela “festiva”.  Mas Indenizações por luta armada, ah bom, isso só para os camaradas. Falando em camarada, alguém que esteve presidente foi tão esperto, que mesmo ante o caos eminente e a navalha ter passado tão perto, sequer arranhou a velha imagem barbuda, do cara que trabalha muito por isso não estuda. Ideológico, que dá o sangue pela causa. Lógico, com pausa, muita pausa para uma e outra cachaça, o que também acabou agradando a massa. (Pode ser que haja outro igual, mas não acho: êta povo, este nosso, para gostar de borracho!).

Se eu fosse deputado de cara já teria apoiado um reajuste no meu ordenado. Que tal cem por cento? Não chega a ser “aumeeeento” é apenas um mimo decente que vai agradar até o presidente, e é lógico que a comissão acata, e que apodreça o tal efeito cascata. Aumento, mas aumento mesmo são os seis por cento que deram aos aposentados. “Vai quebrar o Brasil!”, disse o Mantega, cujo nome renega o “i” e a mudança de tônica. Uma desfaçatez crônica que faz parte das relações cômicas não fossem elas trágicas. Pior, este ministro não precisaria de mágicas, pois não tem cabeça de ervilha, mas editou uma cartilha própria da atual bastilha e fica lá botando pilha por que nele, não aperta a virilha. Aliás, o que ele tem de melhor é a filha.

E eu querendo me aposentar! Do jeito que eu queria não vai dar.

Oh Brasil meu, de povo varonil! Tu que botaste na Câmara o Clodovil, por que não pensas em mim? Posso garantir que estou tri a fim. Caso eu venha a receber semelhante graça prometo continuar um boa praça. Repenso tudo que disse ai em cima por pura dor de cotovelo, ironizei apenas por não sê-lo.   Prometo aliviar teu pesadelo, não pintar o cabelo, ser, por fim, autêntico; um político modelo. Ah! Lutar por aumentos equânimes, nunca ser pusilânime e não sugerir que minhas colegas deputadas descansam em pé por que trabalham deitadas. Assim, meu Brasil querido, me confessando mais hodido desde que o Clodô assumiu (e na época todo mundo riu), o coitado, que agora já subiu, pouco além disso eu quero. Chega de zero a zero.

(Ah, viver a apoteose no baixo clero...)

quarta-feira, 4 de abril de 2012

PRELÚDIO PARA NINAR GENTE GRANDE



Tempos duros estes, bacudo. Pai de adolescentes, como fomos um dia, não as aves tagarelas de retoçar em luz negra, um footing, um beijo desprevenido, e porque não dizer, uma e outra coxeada roubada em fim de noite na casa da luz vermelha. Impurezas sociais de ontem que não entreteriam o mais pudico dos atores urbanos de doze anos de idade no dias de hoje. Pobres de nós, bacudo!

O velho Portella, mundano e notívago caçador não teria lá muitas coisas para informar aos netos, hoje caça, com o direito de escolherem por quem querem ser caçados. Sei que quando eu saia numa  ”sexta-feira louca”, meu velho dormia tranqüilo ao som de algum bolero ou tango, dial fincado no chiado da Mayrinck Veiga ou no som local da El Mundo. Sabia que eu voltaria, dificilmente com lua, mas para dividir o café da manhã, quem sabe o almoço. Caso não viesse confiava  que a noitada haveria de ter se saído ainda melhor que a encomenda. Eu voltaria, todos nós voltávamos porque os bons e maus filhos à casa tornavam, por motivos e em tempos diferentes, mas sempre voltávamos por que era fácil voltar. No final de qualquer jornada o caminho de casa era rota obrigatória e desimpedida, necessária, desejada, último refúgio, repouso do fulaninho de tal cansado de guerra. Sair era ótimo, mas voltar era vital.

E hoje? E quando meus filhos saem de casa, bacudo, para que santo acendo uma vela? Não durmo mais quando saem a noite e rôo as unhas até o cotovelo quando saem de dia. Não há bolero que me acalme, nem outras parafernálias eletrônicas, nem água de melissa, nem qualquer guascaço desses químicos de tarja preta. O som que me acalma, como já disse alguém, não lembro quem, é o barulho da chave. Esta é a cantiga de ninar gente grande assustada. Alguém deveria compor um chamamé de chaves abrindo portas e promovê-la como balsâmico paterno.

A noite todos os gatos são feras, pardos ou não, ferozes, bandidos e nenhuma bala mais é perdida, todas encontram um alvo, desejado ou ocasional; todas as facas furam barrigas, todos os carros avançam contra filhos em todos os sinais fechados; todos os pitibul’s atacam crianças e todas as marquises estão à espreita de nossos despercebidos pirralhos. Não há cidade segura, não há grades intransponíveis, não há turno de folga para mãos assassinas. Nenhum dedo treme quando aperta um gatilho tendo um inocente como alvo. Todo olhar maleva do mundo se volta para os filhos antes que eles cheguem a casa e o caminho de volta me parece cada vez mais distante, mais íngreme, mais corrida de obstáculo. Quando haverá free-way para filhos retornarem ao lar?   Quando construirão residências de segurança máxima já que não deu certo nas cadeias? Bosta! Eu preciso dormir e não ouço ruído de chaves, das sete que compõem meu bunker. 

domingo, 1 de abril de 2012

ROMEU MORREU. E AGORA, JULIETA?


                                                               
Lá, se concluirmos que a vida não tiver mais graça; se entendermos que a idade e suas sequelas podem mais do que eventuais momentos de felicidade, se permitirmos isso; se olharmos ao redor e enxergarmos pessoas que nos querem bem (não apenas as queridas) esforçando-se por nosso conforto, e se esse esforço ou o conforto que produza sequer nos confortar... Se sentirmos a vida (eu chamo de vida a vontade imorredoura de viver) escorrendo preguiçosamente por entre os dedos, ainda não murchos, mas deliberadamente inertes, e essa letargia conseguir trazer um pouco de alivio ou prazer, por mórbido, significa que enfim, morremos. Apenas que por tanta preguiça esquecemo-nos de deitar, e por assim não nos decidirmos, nossos queridos ainda não choram por nós.  Mas como sofrem!

Digo isso por transeunte de uma idade crítica e por ver alguns pares entregando este tesouro assim, à toa. Porque vejo alguém desistindo, e por querido, fragilizando também seus circundantes. Talvez haja mais alguém num cantinho da sala cuja bronquite tenha escarrado o próprio sorriso, ou que uma recém inaugurada artrite tenha entrevado a cintura, as juntas e o olhar, tirando de vez a vontade de dançar ou de apenas retribuir um afetuoso abraço.  Há por perto alguém cujas rugas, ainda em formação, tenham sulcado também a esperança, e o crítico olhar do espelho a tenha feito perder o bom costume de sonhar.

Por fim há por ai mais alguém cuja visão tenha ficado curta e esteja impedindo de perceber que os olhos apenas retratam, mas as imagens ainda são reveladas no laboratório fino da alma e que a resolução depende de como essa interface, olhos/alma é trabalhada. A nossa vida não é “a nossa vida” e sim a resultante de uma convergência de afetos, ou falta deles, mas nunca um conjunto vazio. É, pois, dos que um dia floresceram conosco e hoje meio murcham solidários, e daqueles que vimos sair de nós, homens e mulheres paridos e formatados no melhor do nosso carinho, hoje parindo novas vidas que nos estimulam a continuar vivendo com o fôlego do carinho original. Se verdadeiramente pudermos sentir isso e acreditarmos que somos centro não apenas de dor, mas de geração de afetos, então há vida para viver e quem se foi, deliberadamente ou não, há de perder a melhor parte. Amanhã, quando o sol levantar para reinar sobre o universo, não pense duas vezes, apenas siga o exemplo dele. Levante-se e reine no reino que lhe coube por herança ou conquista.

E que se quebrem os espelhos que não retribuam o seu sorriso, sem medo dos tais sete anos seguintes.      

sábado, 31 de março de 2012

HAJA HOJE PARA TANTO ONTEM



O título é uma frase de Paulo Leminski
HAJA HOJE PARA TANTO ONTEM

Uruguaiana não é mais Uruguaiana. Certo que é mais bonita, mais moderna, mais quase tudo. Só não me parece tão romântica como foi um dia, mas isso não chega a me deixar contrafeito. O mundo é outro; a vida é outra e eu, mesmo que  Peter Pan vez por outra buzine nos meus ouvidos, já deixei de ser o guri do Portella há muito tempo. Então sem reparos ao que vejo quando chego.

Entretanto, as pessoas que vivem por lá, que caminham em suas calçadas, dançam em seus salões, correm por suas ruas; se cansam e descansam, o fazem sobre o imenso campo santo das minhas lembranças. Lá repousam sem féretro, minhas jóias preciosas infância e adolescência; lá acordei um dia, olhei ao redor enxergando só juventude e pensei “vou antes que viva eternamente  os efeitos colaterais dos dezoito anos, mas nem que seja em pó ou folha levada (Quintana), retornarei” .

Portanto, cuidado, conterrâneos. Cuidado ao arrancarem pedras das ruas que ainda não se hajam  impermeabilizado, pois poderão estar partindo um pedaço da minha lápide. Cuidado ao pisarem na tijoleta mal cuidada da calçada. Poderá derrubá-los. Mas de certo que não será somente a tijoleta. Caso seja em dia de chuva, algo de mim poderá cuspi-los até o meio da perna e isso não será um mero acaso. Cuidado moças ao dobrarem qualquer esquina da Duque em dia de ventania. Em algum ponto, como alma penada eu estarei soprando, tentando levantar vestidos e desarrumar cabelos. Não por maldade ou nem tanto por isso, ou será que vocês acreditam que é só o Minuano que sopra naquelas esquinas? Eu morei na Duque. 

Em cemitérios enterram-se saudades, e nada pode ser maior do que as minhas. 

Cada vez que vou a Uruguaiana faço um download  de alguma coisa etérea, alguma entidade dessas cujo nome desconheço, e vou, numa espécie de regressão profunda a outras vidas, todas minhas e todas vividas por lá. E vivo isso, ainda que eu esteja confinado nesta caixa de ceticismo tomada em comodato do Criador, que está com a estrutura gasta e cheia de desenhos de tempo.  No entanto, ao contrário de Pandora, esta vive aberta e com mais coisas do que somente esperança pendurada na aba.

Quando vou a Uruguaiana, a minha terra santa, e santa porque sempre volto de lá com os fragmentos finais da minha juventude, percebo que há pouco hoje para tanto ontem.  

domingo, 25 de março de 2012

RAMON



Era uma noite de dezembro dessas mormacentas de Uruguaiana, em 1966. De diferente, a formatura do ginásio do Instituto União, com a pompa equivalente a falta de outras pompas ou alternativas. Encharcávamos tudo, desde a camisa Volta ao mundo aos carpins novos, comprados na Surreaux, e secávamos o suor da testa com a manga do casaco de tergal. Havia o lenço, mas este era engomado e enfeitava o bolsinho de cima do casaco. Éramos muitos, não lembro quantos, acompanhados por nossa claque familiar. Parecíamos doutores. Mania aquela dos familiares transformarem qualquer evento dos filhos num grande acontecimento. Hoje seria perigoso em função dos assaltos, ou proibitivo, em função da novela das nove.

O canudo nos foi entregue com um presentinho especial oferecido pelo colégio. Uma Bíblia, com amplas recomendações para que não deixássemos nunca de ler, uma vez que dali retiraríamos os ensinamentos necessários para a continuidade da nossa formação moral e religiosa. Aquele livro continha as setas que nos indicariam o caminho e as luzes que nos mostrariam a verdade e a vida. Justo e perfeito, porém,  o Criador que me anote mais esta a débito, caso haja espaço, tudo haveria de ser farra naquela noite.

Terminada a cerimônia, fomos liberados com meia dúzia de pilas cada um, para os Grapetes. A ideia clara dos pais era que ficássemos sentados no quiosque da praça olhando o footing piscando o olho para os “galetos”. 

Pensávamos diferente, portanto, fomos ao Ramoncito. (Quem não souber de quem se trata e não for mentiroso, digamos que tenha sido a versão pós-moderna e neofresca do Ivo). E de Bíblia na mão! Por certo haveríamos de converter alguma daquelas criaturas de vida fácil que enxovalhavam o nome das suas famílias vendendo seus corpos, ruborizando a sociedade pudica. A profissão mais antiga do mundo é condenada desde os tempos dos personagens do livro que carregávamos, e aquilo haveria de ser um forte argumento em favor dos nossos santos propósitos.

Ramon nos olhou atravessado, na porta de entrada. Alguns fedelhos de terno e Bíblia na mão, o que haveriam de querer?  Mas Ramon era uma criatura doce, não negaria acesso a um grupo de mórmons juvenis, ou seminaristas bem intencionados. Dentro do rendez vous nos separamos, uma vez que cada um teria que lutar por seus interesses usando seus talentos, atributos, etc., e a noite haveria de ser longa.  Soube de um colega que teria sido levado ao quarto por uma das moças para que benzesse algumas partes do seu corpo, digamos que suas ferramentas de trabalho, a fim de que jamais lhe faltasse clientes. Outro pregou durante uma hora um sermão individual, direto na orelha, condenando a atividade exercida pela moça, lembrando a ela que o corpo não nos pertence, é uma estrutura  por onde o Criador manifesta  sua imagem e semelhança, que recebemos em comodato, sendo que somos apenas fiéis depositários.  Portanto, de maneira nenhuma, sob risco de julgamento irrecorrível poderia ser comercializado, quando muito emprestado, ainda assim por uma boa causa que servisse ao próximo. E que ficasse claro que um jovem bem próximo, quase em cima e sedento de experiência seria uma boa causa.

Ramon nos deixou ficar o tempo que desejamos. Acho que tinha alguns de nós, mais taludos que chamaram muito a atenção dele, cujos nomes (calma!) não lembro.  Sei que depois, noutra oportunidade alguém, também não lembro quem, na fila do Corbacho com a namorada foi abordado com a sugestiva proposta: “yo voy a tracer um bluson muy lindo de ayá...Te gusta?”.  Ex-namorada.  

Sua casa faz parte de um tempo rico de histórias que jamais seriam contadas na Ceia de Natal, mas eram obrigatórias em qualquer outro lugar da cidade. Sua luz vermelha se apagou. Que o seu caminho  seja iluminado por  outras mais claras. Mais um que se foi e não deixou um livro, para a paz eterna dos que continuam.    

EM NOME DO FILHO


Páscoa, do livro Castelo de guardanapos


Tenho três fotos suas comigo, de três fases diferentes da vida. Na primeira, lá estava você, no colo plácido da mãe, com jeitão de nem aí para o que ocorria ao redor. Na segunda foto que tenho você montava  o  burro, vestindo aquele modelito demodê cheio de panos e pregas, sol a pino. Parecia constrangido e não mais com a virgindade da mãe. A terceira é preocupante. Não, não, você não está nada bem. Está magérrimo!  Talvez em função do esforço para multiplicar pães e peixes e alimentar-se somente deles. Esta não é uma dieta saudável. A bandana espinhenta também em nada lhe favoreceu.  Sua fisionomia cansada deixa transparecer todo o desconforto causado pela  posição de braços abertos.  Assim você se foi, dizem alguns. Outros dizem que você não demora voltará e de tão convictos pregam cartazes e estendem faixas. E há um segmento que diz que, na verdade, você está por aí, em todas as partes. Mas há ainda outros que perguntam: quem? A gente não agrada todo mundo. Nem você, como dizem.

Bueno, Mano, da minha parte quero dizer que o carrego em boa conta, embora não tenha feito ao longo da vida muita força para receber recíprocas. Confesso até que tenho lembrado mais dos seus assessores, principalmente a atarefada Edwiges (a propósito: você  influiu na mudança do Pai nosso? Estava tão bem o texto que dizia perdoai as nossas dívidas...). Mas se é verdade que você se foi é melhor deixar por isso mesmo. Fique onde está. Momentaneamente há muita necessidade, mas pouco clima para o seu discurso preferido que incluía amai o próximo como a si mesmo... Embora isso pareça amargo. Além disso, para que houvesse melhor adaptação aos novos tempos melhor seria nascer de novo, mesmo que passasse mais uma vida ouvindo cochichos sobre a sua paternidade, ou você acha que ficaria por isso mesmo a historinha aquela do Espírito Santo? Pobre Maria! Pobre José!

De você, a qualquer momento seria exigido que expulsasse os vendilhões do templo, porém não haveria de ser com aquele chicotinho ridículo. O pessoal anda pegando pesado por aqui. Mesmo que conseguisse, sobrariam quantos para ouvir os sermões? Falando em templo, você haveria de receber convites para os cultos de domingo cercados de toda pompa e luxo, uma vez que as igrejas, meu velho, têm uma arrecadação maravilhosa, isentas de impostos, mas e daí, como ficaria o papo do camelo passando pelo buraco da agulha versus rico batendo com a cara na porta do céu? Sua popularidade começaria a despencar.  E se nessa época  estivesse você  com 33 anos? Cuidado, não é uma idade de boas lembranças! Melhor, portanto não arriscar. Seria muito chato ser vaiado na casa do próprio pai e pior: acabar negociado por trinta fichinhas de vale transporte.  Por fim, mesmo que esteja acostumado a pregos, em função da infância na carpintaria do Zé, você sabe como poucos que eles não ficam nada bem cravados no meio das mãos.

Simplesmente reaparecer sem nascer de novo seria ainda pior. Você estaria um caco, quase coisificado, sem fôlego para longas  peregrinações e muito menos para assoprar duas mil e tantas velinhas. Portanto, fique onde está, meu caro. Pode ser que esse lugar seja aqui do nosso lado, como dizem aqueles, ou em todas as partes como dizem os outros, ou simplesmente habitando uma metáfora como pensa quem não quer pensar a respeito.  Pelo sim, pelo não, mantenha-se discreto e me ouvindo de vez em quando. Eu vou lembrá-lo feliz como gostaria de vê-lo. Não se esqueça de me recomendar ao Velho.

quinta-feira, 22 de março de 2012

SUPLICIO DE UMA SAUDADE




                                                                                                   Para Daisi Soares

Faz frio, chove, mas é sábado e com isso todas as agruras do tempo serão perdoadas. Serão perdoadas também as indisposições e constrangimentos da semana. As decepções dormiram ontem e esqueceram-se de acordar hoje. Também não serão lembrados os fatos bons, uma vez que já cumpriram sua função social e, caso se repitam futuramente hão de ser novos, e novidades boas sempre são bem vindas quando acontecem.

Hoje é sábado e não quero roubar mais esta do Vinicius, mas é imperativo que eu mais me espreguice do que cuide das folhagens; que eu durma um pouco à tarde induzido pelo negrão chileno de sobrenome francês (acho que da família Sauvignon) que mal chega aqui em casa e já vai embora, do que invente qualquer coisa para fazer no parque, afinal está chovendo e faz frio. Nem meu cachorro está a fim de sair para visitar seus postes, cheirar seus pares, bater continência com a patinha traseira até o último pingo, etc. Mas, sobretudo porque é um sábado que pretendo seja diferente dos demais. Por quê? Exatamente não sei, talvez por ter ouvido noite destas uma sinopse de história que tão-somente por adivinhá-la na íntegra me engasga, me tranca o ar na garganta e ameaça embaçar o vidro dos olhos. História que finda por lembrar Schopenhauer que fala de um vazio na infinitude do tempo e espaço em oposição à finitude do indivíduo em ambos. Coisa de que só os filósofos sabem falar, mas que nós, plebeus das ciências da alma sabemos viver.  O presente é fugaz; a vida é fugaz; será que ontem existiu ou foi um sonho? E amanhã, o que será de nós se não sonharmos? Mas é sábado, um dia que não foi feito para ser fugaz, caso efetivamente queiramos nos dar contas de que estamos vivos. Se águas devam rolar que sejam as das calçadas.

Vou ouvir na íntegra essa história um dia, mas de antemão já digo que a conheço, que já li a respeito; que a vi reproduzida em tela num dos tantos filmes de amor trágico que faziam sucesso nos cinemas de antes. Lembro de um em especial dirigido pelo King Vidor realizado em 1955, tendo  chegado até nós dez anos depois. O filme tem dois atores inesquecíveis e de irresistível carisma, um clima de amor e morte passado na Guerra da Coréia e uma música que, sinceramente, a gente ouve para buscar adjetivos e lacrimeja por não saber encontrá-los. A versão no cinema tem William Holden, como Mark Elliott, um correspondente de guerra americano e Jennifer Jones, como Drª Han Suyin, uma médica asiática. Amor entregue, da época do romântico, separação brusca e prematura numa história apaixonante que recebeu no Brasil um título como se fosse letra de tango: Suplício de uma saudade. Foi um filme cuja trilha sonora oscarizada era ritmada por narizes fungando e soluços incontroláveis no escurinho do Corbacho, em tempos que se afirmava: homem não chora! Mas as gurias adoravam nos ver de olhos vermelhos. 
em tempos que se afirmava: homem não chora! Mas as gurias adoravam nos ver de olhos vermelhos.

Entretanto porque hoje é sábado e eu quero apagar os cinco dias anteriores, não vou buscar o filme na locadora nem roubá-lo da internet. Hoje não é dia para sofrer, hoje é dia de dormir a tarde e arrebentar a noite, até o último fôlego. E amar muito porque afinal há neblina densa na curva da vida e os faróis já não são os mesmos.

Certo que vou depositar um sorriso carinhoso, mesmo que um pouco amargo na memória de uma amiga dizendo-lhe em pensamento que a gente vive de morrer em alguns filmes. Porém, sempre somos chamados para estrelar outros e assim devemos estar preparados para viver com garra novos personagens.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Gold finger


Do livro Castelo de guardanapos

Você chega aos cinquenta anos e nada, nunca mais, será a mesma coisa. É uma idade que dá para contar em séculos, meio, o que impacta até no mais despercebido ego.

A idade traz na mala de garupa muito mais do que uma eventual e simples aposentadoria. A vida cobra pesados ônus na razão direta das gastanças físicas, intelectuais e financeiras. Mas cobra também pelo simples fato de estarmos vivos e ousarmos desafiar a idade. Antes éramos velhos aos cinquenta, hoje podemos ser quase jovens ou metidos a isso. 

Há homens que justificam plenamente esta versão. Em nossos encontros anuais de Uruguaiana, observamos companheiros cuja cor dos cabelos de alguns que em nada se alterou, e que juram: sem química!  ou no porte de outros, que até hoje chamam a atenção de um antigo professor de geografia, mestre em meritocracia, que costumava premiar os alunos pelo desempenho; físico.  

Na balada dessa pretensão, as mulheres, felizmente estão anos-luz à nossa frente. Há um grupo de amigas, quase um clube, que se intitula PQG (Pensa Que é Gatinha) e curtem muito isso, mas dá um trabalho danado conferir calorias, medir índices de gordura e outras ginásticas, além das atividades de mães e profissionais. Tudo dá trabalho a partir da meia-idade.

Dia destes chegou a minha vez. Busquei no plano de saúde um especialista. Ninguém conhecido meu ou de meus amigos. Urologista.  Marquei consulta. 

Na noite anterior não dormi e na manhã do dia fatídico experimentei acordar mal-humorado. Jamais sou mal-humorado de manhã. Tenho várias testemunhas, todas femininas felizmente que atestam isso. Criei pretextos para não acordar, depois para não sair de casa. Sentia-me velho, um traste, indigno de vestir as calças que até então atestavam a minha condição de  homem. Na porta do edifício de casa fingi que havia esquecido as chaves do carro, na porta do consultório quis voltar, deixar para lá, afinal não tinha nada mesmo. A saúde estava como nos velhos tempos. Entrei. Na porta do consultório vacilei. Não uma vaciladinha qualquer como aquela quando o sinal troca do verde para o amarelo. Uma grande vacilada, como uma falha na hora H, brincando de bombeiro com a Luma.  Mas enfim, não era o único homem a fazer exame de próstata.

Entrei. Havia dois senhores quietos, quase sem respirar para não serem notados, olhos fixos em  revistas que até nem precisariam ter letras. Não queriam ler, queriam esconder os olhos. A educação me ensinou a dar bom dia. E fiz isso, mas nem eu ouvi o som da minha voz. Por outro lado, bom dia quando e onde, cara pálida? 

Sentei e busquei desesperadamente uma revista, qualquer uma. Sabe revista de consultório? A mais nova mancheteava: Caras-pintadas derrubam Collor !  Acho que uma das outras era O Cruzeiro. Não importava nada disso, queria, como todos os desafortunados presentes, esconder o olhos. Por prudência ou discrição, o consultório não tinha recepcionista. Já pensou, você ali, mortificado, e uma secretária lhe olhando, séria, talvez com  pena, vez por outra rindo, sabe-se lá de quê, ruminando um chiclete? Seria a ante-sala do inferno. Assim já o era. 

A porta se abriu e eu gelei. De lá saiu um cidadão, mais constrangido do que nós da sala, boné enterrado até os olhos, olhando para algum ponto do carpete, ou para o infinito além do solo. A seguir saiu o médico. Imediatamente olhei para o tamanho de suas mãos. Meu Deus! Porque não busquei alguém conhecido? O cara era enorme. Como um sujeito daquele tamanho se propõe a passar anos na universidade, gastando os olhos da cara, normalmente explorando os pais, só para se tornar urologista? E sai de sua sala sorrindo e dando bom dia! Só pode ser sádico. Vacilei de novo. 

O seguinte, ou a próxima vítima, foi chamado. Levantou-se da cadeira como uma ovelha cansada de se debater contra a fúria dos cães selvagens, entregue, arrastando-se penosamente até ser recebido à porta por aquele monstro. Fecharam-se.

Na sala de espera restavam dois, olhos fixos nas páginas da mesma revista de horas atrás. Então nos olhamos com profunda sinceridade. Ele tinha mais ou menos a minha idade e parecia em boa forma. Constrangimentos à parte, conversamos sobre o que nos levava a passar por aquilo, e que estávamos ali mais em respeito aos nossos familiares, etc. 

E variamos os assuntos, e seguimos conversando até o elevador, depois tomamos um cafezinho no bar do prédio, acabamos combinando um jantar com as famílias e um treininho da basquete no final de semana. Nos despedimos, cada um pegou seu carro e nunca mais nos vimos.  O exame!  Pela quarta vez, por motivos diversos foi transferido. Pior é que digo em casa que está tudo ok. Acho até que está, mas quem garante? Aliás, é mesmo da garantia que estou fugindo. Sei que não posso adiar ad eternum, até porque a eternidade pode chegar antes.

OS DÍGRAFOS

Adicionar legenda  (poema fraterno)

          

Do livro Assim como era no principio

Por humanos, pares,
A um tempo plurais e singulares.
Quanto mais pares, mais ímpares,
Que aglutinados e aglutinando,
Se encerram em nichos justapostos.
Números naturais, quase sempre primos,
Ao longo da vida divididos por unidade,
Ou por si, quando enfim multiplicados.
Dois perfaz um, nesta primalidade grupal,
Força que não prescinde da submissão diacrítica,

O que somos, como entidade social e afetiva?
O que buscamos além de Primus inter pares? 
Dígrafos. 
Quase sempre iguais. Nunca únicos,
De missão única, quase nunca igual.
Apegos vitais na gramática da convivência;
Recíprocos na formação do todo que importa;
Modulados para dizerem sempre mesmas coisas.
E seguirem juntos para os mesmos lugares.
Separam-se por meio, não fim, repudiando hiatos,
Apenas vez por outra, para dar curso à vida, 
E contrariados quando a linha chega ao final.

Meus afetos; meus pares; meus amigos...
Meus dígrafos... Axiomas do infinito.