“Ontem ainda eu tinha vinte anos; eu
acariciava o tempo e brincava de viver...”
Minha juventude pampeana "bombeou" à distância o surubão
de Woodstock como momento ícone do novo tempo, ainda que carregada de espanto. Mas não me rendi à maioria
de seus arquitetos e suas obras, bem como a boa parte dos conceitos resultantes daquela "Exposição aquariana". No entanto, lembro-me
de tudo. Gostei de ser uma das partículas minúsculas, eternas e indivisíveis; um átomo daquele momento. Foi ainda ontem, eu tinha vinte anos, brincava tanto de viver que fiz votos de ser jovem para sempre.
Foi ainda ontem também, e eu nem tinha vinte anos, que a música francesa
ultrapassou meus tímpanos e se instalou na memória randômica. Descobri e amei
Nana Moskouri, a grega de timbre anômalo, e que não veio só. Trouxe Adamo, Piaff, Dalidá, Vartan, Hardy, entre vários outros, e... Charles Aznavour, o franco/armênio de voz única.
Aznavour chegou para ser um grande parceiro de insônias, involuntárias por arritmias cardíacas de curto prazo, ou induzidas por absoluta necessidade de que a noite não terminasse. Com ele, Sinatra, Jobim e os quatro cavaleiros de Liverpool, apocalípticos
de muitos sonhos juvenis. São os que deixaram sons reverberando
no cosmo, para que pousem em momentos sensíveis de afeto ou falta dele, de
alegria ou falta dela. Aznavour nunca será passado. Ele é um dos
verbos de Deus que se fez carne. Nele vejo tão somente uma conjugação e um tempo
possíveis: o presente do indicativo de “ser”. O verbo de ligação dele com o
sempre.
Ainda ontem éramos
todos jovens, talvez um pouco mais românticos que os de hoje e acariciávamos o tempo. Éramos menos afeitos às sinfonias rudes. Hier encore foi o modo mágico que Aznavour
escolheu para descrever (descrever?) o que foi o “ainda ontem” de todos nós.
Não é apenas uma música linda, é um hino à reflexão. Uma regressão sentida; o sonho impossível de extinguir os calendários e estancar o inexorável. Ou uma
confissão de culpa por tudo que ficou na estação de partida, lá onde deixamos coisas a serem feitas; momentos que quiséramos reviver a cada sexta-feira, e outros judiados e jogados fora, marcas que serão os danos emergentes cobrados no juízo final.
Charles Aznavour é eterno! Digo obrigado à vida por ter vivido no mesmo
mundo que ele e com todo tempo que tive para deixar que o som da sua voz desse menos rusticidade às coisas. E Hier
encore é para mim inesquecível porque, entre outras coisas, pulsa com algo que já foi promessa e que, por impossível, contenta-se com o simples desejo e esforço de ser sempre
como ainda ontem. Parte dos tantos projetos que ficaram no ar (J'ai fait tant de projets/ Qui sont restés
en l'air).
Ainda ontem imobilizei meus sorrisos e
congelei meus choros. Onde estão agora meus vinte anos?
(Hier
encore ... J'ai figé mes sourires/Et j'ai glacé mes pleurs/ Où sont-ils à présent/A présent mes vingt
ans?). Os anos se vão, e os vinte há muito já se foram. Deles me lembro, porque lembranças e sons sempre me comovem e enfim, porque trouxe comigo os bolsos do coração cheios de afetos que não envelhecem, e assim a minha passagem por lá não tem como ser esquecida.
Primeiro de outubro é um dia comum na galeria dos melhores. Charles apenas não fará apresentação ao vivo. E nem precisa.
Merci, Charles. Toujours.
https://www.youtube.com/watch?v=cjEQVeGIRJc
Primeiro de outubro é um dia comum na galeria dos melhores. Charles apenas não fará apresentação ao vivo. E nem precisa.
Merci, Charles. Toujours.
https://www.youtube.com/watch?v=cjEQVeGIRJc