ISIS
Era um domingo, fim de tarde e
fim de férias. Armando voltava para casa com a
família. Atena, a esposa e a filha Isis, uma princesa de
cinco anos. Foram quinze dias na serra para repor as baterias e enfrentar o
ano.
- Bom que não tenha chovido
antes, mas não precisava chover tanto agora. Essa estrada já é
complica...
Armando não viu mais nada.
Apenas ouviu um forte estrondo e foi acordar uma semana depois, no hospital.
Lúcido, o que o fez gritar desesperado para a enfermeira.
- Onde estão minha mulher e minha
filha? Como elas estão?
- Tenha calma, por favor. Vou
chamar o médico de plantão.
- Boa noite. Sou o doutor
Péricles. Como o senhor está?
- Por misericórdia... Não me
pergunte como estou. Não está vendo que estou acordado? Quero saber da minha
família.
- Sua filha teve uma fratura no
braço que não deixará sequelas e está bem. Mas vai precisar muito do senhor.
Infelizmente sua esposa não resistiu. Foram ferimentos graves e houve muita
perda de sangue. Foi a óbito ainda na ambulância.
Armando passou então a viver a
mais profunda dor que pode sentir um ser humano. Sentimentos múltiplos, feios e
indecifráveis. Uma espécie de estuário onde se despejam todas as dores. Sem fim
e sem prazo.
À medida em que os dias
passavam, foi tomando conhecimento dos fatos. Soube que bateu de frente em
outro veículo que vinha em direção oposta, e que também teve uma vítima fatal.
Mas nada mais importava. Constituiu um colega para acompanhar o caso e, tanto
quanto possível, que fosse informado o mínimo sobre o acidente. E que se não
houvesse denúncias, que o caso fosse esquecido. Assim foi feito.
As dores estavam apenas
começando e vigeriam por toda a vida. Mas Isis precisava dele e que
estivesse forte. O ano letivo estava prestes a começar e a vida precisava
seguir seu curso. A casa tinha uma boa administração. Justina, a empregada,
acabou vindo morar com eles, muito em função dos cuidados com Isis. Era
mais que empregada. Era já uma boa amiga e seria vital contar com ela em tempo
integral.
O ano que iniciava correria
amargo demais. Atrena era uma figura muito presente em todos os cantos da casa.
Afora a importância que tinha para a família, era uma personalidade difícil de
não ser notada. Era a estrela guia, com seu jeito e carisma.
Sem poder conter a
inconformidade, Armando passou a beber de forma desmesurada. Saia e voltava
tarde e as vezes sequer via a filha. Só recobrou o juízo quando foi ameaçado
por Justina.
- Ou o senhor se comporta como
um homem e pai, ou vai ficar sozinho. Não vou ficar aqui assistindo a sua morte
e a orfandade total da pequena Isis. O senhor não está pensando nela e
para mim chega! Pelo menos vá levá-la ou buscá-la no colégio. Mostre que se
interessa por ela. A menina está parecendo mais madura que o pai.
- Tem razão, Justina. Obrigado.
A partir de amanhã vou começar a buscar a minha filha no fim da
tarde. Tem a minha palavra de que vou maneirar.
Armando passou a lutar contra
seus demônios. Buscou ajuda profissional e começou a dedicar-se mais à filha. Nesse
meio tempo, Isis tinha feito uma amiguinha, talvez por uma razão singular:
ela também se chamava Isis. Desde que começara a ir buscar a filha, assistia as duas amiguinhas conversando e
rindo. Pareciam gostar uma da outra o que era muito bom.
- Filha, como é o nome da sua
amiguinha?
- Isis. Eu
sou Isis-L, de loira e ela é Isis-M, de morena.
- É mesmo? Que coincidência.
- Não acho. Ela me convidou par
ir na casa dela sábado. Posso ir?
- Podemos negociar isso.
Primeiro preciso saber quem são os familiares.
No dia seguinte foi abordado na
saída da escola.
- Boa tarde, senhor. Sou Vera,
a babá da Isis.
E fez o convite para que a sua
filha passasse o sábado na casa tal, endereço tal, pertencente a família tal e
tal. Surpreso, mas diante dos olhos inquisidores da sua Isis e dos
olhos pedintes da outra Isis, Armando concordou.
- Ok. Sábado levo minha filha
lá
- Oba!!
A casa da amiguinha da filha...
Não era bem uma casa, era quase um condomínio, assentado sobre um amplo
terreno, com jardins e piscinas.
- Uau! Você sabe fazer
amizades, minha filha.
- Bom dia, senhor, a patroa
lamenta não poder vir recebe-lo e se desculpa por isso, mas não se preocupe, as
meninas estarão muito bem cuidadas. Ficarei responsável por elas. Esse é o
telefone da casa e esse é o meu celular. Ligue a hora que quiser. O
senhor tem alguma recomendação especial? Ela tem alguma restrição alimentar?
- Não. Tudo bem, obrigado.
Divirta-se, filha. Venho às seis horas.
Aquele haveria de ser o
primeiro de vários sábados ao longo do ano, sem que Armando tivesse a
oportunidade de conhecer os pais da menina. Era sempre a atenciosa babá que o
recebia. Óbvio que pela ausência de um estreitamento de relações, Armando vetou
a viagem de férias da filha com a amiguinha, mesmo que fosse apenas uma semana.
- Nem pensar! Ano que vem a
gente vê. Este ano não, e não se conversa mais sobre isso.
Mas não houve outra
oportunidade. Passadas as férias de final de ano. Armando recebeu uma ligação.
- Bom dia, é doutor Armando?
Aqui é Jaqueline, mãe da Isis. Isis-M. Prazer em conversar com o senhor, ainda
que pelo telefone. Desde já me desculpo por, em nenhum dos tantos encontros de
nossas filhas, eu tivesse me apresentado. Tenho um problema de locomoção, a
despeito das cansativas sessões de fisioterapia. A sua Isis foi muito
importante para a minha no ano passado. Eu pergunto se há a possibilidade de
neste final de semana, a sua filha vir nos visitar. Minha filha está com muitas
saudades da sua.
- Ah sim. Prazer. Claro, também
sua filha foi muito importante para a minha. Sábado eu a levo, após o meio
dia.
Estava esclarecido o mistério
da mãe da menina. Já descobrira que era viúva e agora que é doente.
Sábado Isis foi
visitar a amiguinha que a esperava na grande porta da frente e sumiram para
dentro da casa. Uma hora depois, Armando recebeu uma ligação:
- Boa tarde, doutor Armando? É
Jaqueline novamente. Não se preocupe. Está tudo bem com as meninas, sob os
cuidados da Vera. Estou ligando para lhe fazer um pedido e caso o senhor queira
vir para conversarmos, sem problemas. O pedido é para que sua filha pernoite
aqui conosco. Ano passado ela já ficou algumas vezes e acho que desta vez é
ainda mais especial.
- Não estava preparado para
isso. A senhora pode chamar a minha filha? Quero conversar com ela.
- Oi pai. Eu quero ficar,
posso? Estou ajudando a Isis.
- Ajudando? Se está tudo bem,
ok. Mas me ligue antes de dormir. Vou buscar você amanhã antes do almoço.
“Ora, ajudando!” Armando não
dormiu. Certo. Isis tinha ficado uma ou duas vezes na casa da
amiguinha, mas tinha algo estranho desta vez. Tanto que, dez horas
da manhã já estava no portão da mansão. Foi recebido pela filha chorosa e pela
mãe de sua amiguinha, cadeirante.
- O que houve, filha? –
perguntou Armando com cara nada amigável.
- Bom dia, doutor Armando. Sou
Jaqueline. Não se preocupe. Isis está tão chorosa quanto a amiguinha
dela. Tanto que não quis descer para se despedir. Acontece que vamos viajar.
Vamos nos mudar para Boston, onde poderei continuar meu tratamento dentro da
especialidade que necessito. Por algum motivo ainda não consigo andar e acho
que lá terei minhas respostas. É onde meu falecido marido trabalhava. Vamos
embora amanhã.
Jaqueline era uma mulher
bonita, estilosa, mas parecia abatida, precocemente envelhecida e triste. Era
chocante vê-la em uma cadeira de rodas.
- Lamento muito por isso, em
especial pela minha falta de cuidado em não perguntar a seu respeito. E lamento
também pela minha Isis. Não gostaria que se repetissem suas perdas. Não
tão seguido. Bem, resta-me desejar que a senhora tenha sucesso no tratamento.
Saiba que, caso eu possa ajudar de alguma forma por aqui, disponha.
- Agradeço. Nunca apareci para
conversarmos porque ainda me constranjo com a situação. Sempre fui muito ativa
e isso acabou comigo. Isis-L, venha cá me dar mais um abraço. Você foi um
anjinho de Deus para nós e lá para onde vamos, caso você queria ir, basta
combinar com o papai e ficar o tempo que quiser.
II – A DISTÂNCIA
QUE APROXIMA
A vida tomava seu rumo. As Isis
viam-se crescer conversando pela internet, rindo, brincando, trocando
confidências. Os anos que passavam e a distância só faziam fortalecer a amizade
entre as duas. Tinham a mesma idade, com uma diferença de dois meses uma da
outra e pouquíssimas diferenças de interesses. Uma daquelas noites de conversa
entre elas, Jaqueline, a mãe, entrou no meio;
- Oi Isis-L. Como vai
você? Veja... Estou de pé. Mas já faz algum tempo que comecei a andar ainda
devagar. Diga ao seu pai que tenho um convite para você, mas quero falar com
ele.
- Oi tia... Que coisa boa. Como
você é alta. Acho que é da altura do meu pai. Sim. Quando você quer conversar?
- Caso ele esteja aí, hoje
mesmo.
- Paiê!
- Olá... Opa!, mas que
maravilha vê-la de pé! Parabéns, Jaqueline. Fico feliz por você.
- Obrigada, Armando. Ainda não
posso dançar, mas me aguarde... Seguinte: tantos anos se passaram e
a sua Isis nunca veio nos ver. Tenho um convite para ela, que é extensivo
a você. As meninas fazem 15 anos este ano. A sua em outubro e a minha em
dezembro. Quero fazer uma festinha para elas. Como será no final do ano, acho
que vocês podem vir. O que você acha?
- Acho maravilhoso. De fato, e
me desculpo por isso, nunca cedi às investidas das meninas em relação a essa
viagem. São meus traumas. Mas veja...Não descarto não. De qualquer forma digo
duas coisas: primeira) obrigado pelo convite; segunda) óbvio que a Isis,
pelo menos ela, vai.
- Que bom. Pense no quanto nos
faria feliz vindo também. Até mais. Abraço.
Mais tarde, antes de dormir,
Armando foi ao quarto da filha.
- Filha, não sei se poderei ir
junto. Tenho muito trabalho pela frente. Temos alguns meses ainda, vá juntando
dinheiro. Pegue o meu cartão e compre a passagem. Antecipadamente sai mais
barato
- Nada disso, meu velho. Você
vai junto comigo e esse será o meu presente de aniversário. Nunca vi você tirar
férias; sequer passar um final de semana fora. Namorar então... Sei lá. A vida
seguiu, pai. Não vamos jamais esquecer dona Atena. Sempre será insubstituível,
mas você não precisa fazer voto de castidade.
- Ah, você acha que eu virei
celibatário? Vai nessa. Apenas não quero compromisso.
- De qualquer forma, doutor
Armando, o senhor vai viajar comigo em dezembro. Vou comprar duas passagens.
- Não faça isso. Eu não
autorizo você.
- Ãrrã.
No dia primeiro de dezembro,
malas despachadas, cartão de embarque em punho, pai e filha na fila, rumo ao
rigoroso inverno de Boston.
- Nosso hotel é perto da casa
da Isis. Mas as ruas estão com um metro de gelo de altura. Bem... Relaxe.
É quase um dia de viagem.
Gelo puro nas ruas e no ar.
Armando e Isis chegaram ao hotel batendo queixo.
- Pai, dá para jogar água
quente no corpo, descansar e irmos à noite jantar com nossas amigas. Já
combinei.
- Ok, meu anjo. Você é quem
manda. Você chama o motorista. É perto, mas não vou andar no gelo.
- Frouxo!
Às 19 horas chegaram à casa de
Jaqueline. Foram recebidos por Isis que não cabia em si de tanta
felicidade. Aliás, ambas pareciam ter ganho brinquedo novo. Impressionava a
relação daquelas duas meninas!
- Oi tio. Ufa! Até que enfim...
A mãe já vem. Vou servir um conhaque ou prefere uísque?
- Com qualquer um eu corro
risco, mas vou arriscar. O frio é grande.
E as meninas sumiram, deixando
Armando e uma garrafa de uísque. Meia hora depois apareceu Jaqueline.
Armando teve um baque.
Jaqueline andava com certa dificuldade, amparada em uma bengala, o que não
inibia uma virgula de sua beleza. Linda, elegante, sorridente... Muito
diferente daquela senhora cadeirante, de perfil sombrio que conhecera.
- Boa noite Armando. Muito
obrigada por ter vindo. Vou ficar devendo esse presente maravilhoso que você
trouxe para a minha Isis.
- Boa noite Jaqueline. Você me
perdoa ter ficado impactado. Feliz em vê-la de pé e sorridente.
- Você ia me chamar de linda.
Eu aceito. E como pode ver, recuperei também o humor. Fique à
vontade.
Foi uma noite extremamente
agradável. Que mulher aquela Jaqueline! Tinha um “quê” da sua Atena, o carisma,
talvez. Interessante saber que tenha ficado tanto tempo paraplégica e perdido o
marido também em um acidente. Aquele, no entanto, era um assunto que nem ele,
nem ela pareciam dispostos a reportar.
- Pai, lamento informar que
você vai voltar sozinho para o hotel. As maninhas não abrem mão de dormir
juntas hoje. Há uma coleção enorme de gatos sobre os quais precisamos falar.
- Ok. filha. Só não esqueça de
dormir e não encha o saco da dona da casa,
- Imagine, Armando, ela é uma
necessidade aqui. E você corre o risco de perdê-la para mim, uma vez que
sabemos onde ela quer terminar os estudos.
- Sei. Terei que enfrentar
isso. Bem. Já vou. Obrigado pela janta e pela companhia agradável.
- Eu que estou agradecida. Você
também é uma ótima companhia. Vamos falando. Tem três dias até o aniversário.
Boa noite.
As meninas não estavam
acomodadas no quarto, estava à espreita, atrás da estante, acompanhando a
conversa, alcoviteiras.
- Não sei qual dos dois será mais
difícil de convencer. Mas um cedendo, o outro está no papo. Minha mãe ficou
anos na cadeira de rodas, assim nem teve tempo, ou coragem ou enfim...
Oportunidade de refazer a vida. Mas você viu o quanto ela é linda e resolvida.
Seu pai também é um gato. Ele tem namorada?
- Tem nada. Pega uma aqui,
outra ali e acha que eu não sei, só não quer compromisso. Acho que nunca vai
esquecer dona Atena. Mas é verdade. Sua mãe é linda, charmosa, inteligente. Tem
muito da minha. Vamos provocá-los. Temos que fazer com que se vejam todos os
dias.
- Sim. Amanhã vamos a um
shopping e fazer com que eles fiquem juntos. Ela ainda precisa de apoio para
caminhar. Se esse apoio for um braço forte, melhor. O médico falou que daqui a
um tempo estará dançando.
Nos poucos dias que ficou em
Boston, Armando e Jaqueline mais do que se conheceram. Tornaram-se bem próximos.
Pareciam um casal, conforme plano das filhas, uma vez que para caminhar ela
precisava do braço dele como apoio. Mas não avançaram o sinal. Havia um tal
constrangimento, que poderia ser explicado pela falta de convivência, falta de
arrojo, traumas, e por óbvio, segredos. Mas parecia sim uma questão de tempo.
Tempo que naquela oportunidade não teriam.
A festa de aniversário, a
rigor, não justificaria uma viagem tão longa e cansativa para Armando. Foi uma
reunião de alguns jovens mais próximos onde, como se vivesse naquele meio, a
sua Isis brilhou. Justina acabou tendo razão quando havia
classificado o evento de pretexto. “Vá por mim, doutor Armandinho, é pretexto
para junção dos pais”. Justina, Justina! No entanto, serviu para
que em algumas trocas de olhares, Armando e Jaqueline se percebessem como homem
e mulher. Não só como pai e mãe; tio e tia.
Passado o aniversário, era hora
de voltar. Armando foi inquirido por três argumentadoras muito bem
fundamentadas. Em resumo, caso quisesse ou tivesse de voltar, que o fizesse
sozinho. As amigas não abriam mão de cumprirem juntas o período de férias. E
acabou de ser convencido por Jaqueline que se comprometeu de ir pessoalmente
entregar a filha no início de janeiro.
Não havia o que fazer e Armando
retornou sozinho. Mas levou junto um sentimento inquietante. Jaqueline mexera
com ele de uma forma que nenhuma outra, nesses anos todos conseguira.
“É bom sentir isso de novo,
doutor Armando. Sinal de que você está vivo”
- Justina, nem adiantou
argumentar: sua filhota trocou de família. Somos nos dois por enquanto. Ela só
volta em janeiro.
- Imaginei que isso
aconteceria, doutor. Impressionante como se dão bem essas meninas. Isso só pode
ser coisa de Deus. Parecem irmãs! Será que não acabarão
sendo?
- Nem brinque com isso.
- Ué...Onde está a barreira? Só
não me levem para o frio.
A relação entre pai e filha,
desde a puxada de orelhas de Justina em função da bebida, quando
ainda Isis era criança, passara a ser umbilical. Cuidavam-se muito.
No período em que ficou nos EUA, Isis falava todos os dias com o pai. Vez por
outra chamava Jaqueline para participar da conversa e estrategicamente se
retirava.
- Oi mimosa, quando é que você
vem?
- Vamos terça-feira.
- Vamos?
- Sim. Jaqueline vai junto e eu
a convidei para ficar aí em casa.
- Ah sim... Mas minha filha.
Ela não está acostumada a espaços miúdos como os da nossa casa. Vai ficar
desconfortável. Não me constranja.
- É brincadeira, pai. Ela já
reservou hotel, mas guarde algumas noites para fazer companhia a
ela
- Ah sim. Certamente. Será um
prazer. Vou me exibir por aí com ela.
- Que bom que você acha isso,
Armando. Prometo não decepcionar. – disse Jaqueline rindo
- Putz! Perdão. Não sabia que
você estava escutando.
Conforme o combinado,
terça-feira no final da tarde chegaram as moças.
- Olá, Armando. Aqui está a sua
encomenda. Cumpri o prometido. Está sã, salva e muito feliz. Devo dizer, no
entanto, que deixou dois corações despedaçados em Boston. Um é o da minha filha.
- Pare, tia
Jaque...
- Ah... Bom saber. Falamos
depois sobre isso, mocinha. Como você está Jaqueline? Cansada?
- Exausta. Saímos de dez graus
negativos e chegamos com trinta positivos. Haja saúde. Bem. Você me deixa no
hotel? Hoje vou descansar, mas a partir de amanhã estou disponível. A
minha Isis ficou triste de não poder ter vindo, mas as aulas começam
logo logo. Devo ficar no máximo dez dias por aqui e faço questão de conhecer a
Justina.
- Sim. Vamos. Fique tranquila,
ela também quer conhecer você.
Foram dez dias em que Armando
trabalhou pouco e dedicou muito tempo e atenções a
Jaqueline. Isis estava exultante e diariamente passava relatórios à
sua xará. Justina também se encantou com a nova amiga do patrão e nas vezes em
que foi à casa, tratou de paparicá-la.
Como ainda tinha sequelas de
tantos anos de imobilidade, Jaqueline cansava rápido. Caminhava um pouco,
sentava, amparava-se no braço de Armando e assim passeavam. E pareciam gostar
disso.
- Você não está cansado de
pajear uma inválida, Armando? Veja esse barzinho, essa música... Dá vontade de
dançar.
- Venha. Eu seguro você. Se
ficar muito apertado reclame.
- Eu não reclamaria
disso.
Era inevitável. Tanta
conspiração haveria de ter algum resultado. Enquanto dançavam
lentamente, olhando-se, e Armando segurando Jaqueline com uma firmeza além do
normal, quase um amasso, beijaram-se. E depois de um beijo, outro e
mais outro e assim acordaram na manhã seguinte: beijando-se no antigo quarto do
casal, na casa de Armando.
Isis foi acordada por
Justina, com um largo sorriso nos lábios.
- Isis, minha filha,
aconteceu aquilo. Como é que vocês dizem? “Rolou”. Não entre no quarto do seu
pai. Venha tomar café.
- Meu Deus... Aleluia! Preciso
mandar uma mensagem para a mana.
- Bom dia, Armando – miou
Jaqueline espreguiçando-se.
- Bom dia. Você está bem?
- Sim. Foi uma noite divina.
Não achei que isso pudesse acontecer tão rápido. Agora tenho um problema: com
que cara vou sair daqui?
- Bem. As duas alcoviteiras,
que devem estar fofocando na sala, passaram uma vida tentando me arranjar
namoros, portanto, sem problemas. Encare naturalmente, Isis ama você.
Aconteceu o que tinha de acontecer, mas vamos deixar o tempo resolver por nós.
Nós dois temos questões sérias em aberto.
- Sim. Tudo é sério. Eu tenho
assuntos muito graves para resolver, sem o que nada poderá me fazer plenamente
feliz. Tem a ver conosco, mas ainda não estou pronta para falar. Peço que
entenda.
- Certo. No seu
tempo
III AMARGO
REGRESSO
- Isis, minha filha, preciso
de você para me ouvir. Vai ser um longo tempo.
- Sério, mãe? O que houve? Ok,
podemos falar agora.
- Não vai ser muito fácil,
minha filha, até porque intrometeu-se nessa história o intruso mais imprudente
e sensível de todos: o coração. E se antes eram só dois, agora são
quatro.
- Não me assuste, dona
Jaqueline...
- Vou começar pelo fim. É mais
fácil. Armando e eu nos aproximamos muito nesses dias. Sinto que existe uma
química forte entre nós e... Bem, ficamos juntos e eu amei cada segundo.
- Obaaaaa!! Mas?
- Bem. Há dez anos seu pai
morreu. Estávamos voltando para casa quando ele surtou. Tinha uma série de
questões em aberto no hospital aqui e não queria voltar. Queria ficar no
Brasil. Chovia muito naquele dia e ele, ao invés de focar na estrada, falava
pelo rádio. Então aconteceu o inevitável: ele bateu o carro de frente, morreu e
eu fiquei todos esses anos na cadeira de rodas.
- Até aí eu sei. Estava em casa
com a Vera quando recebemos a notícia
- Infelizmente, no carro em que
batemos também houve um óbito. Como fiquei muito tempo inconsciente, tudo foi
cuidado pelos meus irmãos e acabou ficando por isso mesmo. Nunca mais soube de
nada. Sempre me protegeram e pouparam de informações. Não sabia da família que
estava no outro carro. Tudo correria em direção ao esquecimento total. Não sabia de nada, até você conhecer Isis e
criarem essa ligação incompreensivelmente linda.. Eis a questão: o acidente em
que seu pai morreu foi o mesmo que vitimou a mãe da nossa Isis. Você vai
me perguntar desde quando eu sei, e aí entra a maior das minhas culpas: sei
desde que vocês se conheceram. Também por isso eu não aparecia para conversar
com Armando. Tinha vergonha, medo, sei lá o que mais, além da minha condição,
claro.
- Mãe, que coisa
horrível! Inacreditável! Fora o que Armando possa entender sobre o
seu silêncio de todos esses anos, não há culpados, mas precisamos encarar essa
situação com ele. Eu acho que vou me entender com a Isis, mas, puxa vida,
a gente gostaria tanto que você e o Armando ficassem juntos. São tão harmônicos
e ele é tão delicado com você. Ademais é um gato e um paizão. Ah, meu Deus... O
que vamos fazer?
- Não sei, filha. Desde que
soube, e isso faz tantos anos, tenho o peito apertado por essa proximidade de
vocês. Agora meu coração está destroçado porque vejo no Armando o mesmo que eu
via em seu pai, quando nos apaixonamos. Não sei o que fazer, espero que você me
ajude a pensar. Estou perdida nessa correnteza. Agora veja isso aqui.
Jaqueline mostrou à filha um
recorte de jornal falando sobre o acidente, cuidadosamente guardado em um saco
plástico, onde também tinha um papel em branco dobrado, escrito à mão.
- Abra e leia, minha filha.
“Atena, você
morreu jovem e essa culpa minha família vai levar para sempre. Eu prometo a
você mover céus e terras e, com a bênção de Deus e enquanto viver, ajudar a
cuidar de sua filha”.
- Pai Todo Poderoso! Como é
possível? Que coisa mais triste isso!
IV A
REVELAÇÃO
-Oi, Isis-L, minha
irmãzinha do coração. Tenho uma pergunta: se você tivesse que dar uma
informação a alguém, por dura que fosse, como você faria? Diria claramente e de
cara?
- Acho que sim... Não sei, não
me ocorre nada momento. Dê um exemplo.
- Hummm... Bom, sei que você
ficou interessada no Bob, quando esteve aqui e que ele também tem uma queda por
você. Se eu tivesse pegado ele, como você gostaria de ser informada?
- O quê? Você fez isso?
- Não, só um exemplo
- Ufa! Olha, mesmo assim, acho
que gostaria de saber de cara.
- E se fosse o inverso, se você
tivesse pegado o Bill, como você faria?
- Primeiro eu não faria isso,
portanto, não sei. Mas o que você quer mesmo me dizer? Pare de me enrolar, mana.
Ou passamos a não confiar mais uma na outra?
- Tenho algo para contar, mas
não sei como. Não tem nada a ver conosco. Tem mais a ver com Jaqueline e
Armando.
- Ah é isso? Posso dizer que
desde que dormiram juntos, meu pai voltou a cantar no banheiro. Você precisava
ver a cara de pateta dos dois no outro dia. Não sei, não, maninha, mas acho que
vamos conseguir o que queríamos. Até a Justina está vibrando.
- Pois é, ela chegou aqui feliz
da vida também. Mas não é sobre isso. Bem. Falamos depois. Beijo
Isis ficou com a impressão
de que havia algo errado. Aquelas questões todas pareceram sem sentido... Ou
com um sentido tão amplo que fez com que sua amiga tivesse bloqueado o
raciocínio e por consequência o argumento. Certamente é algo grave. Seria com a
Jaqueline? Teria adoecido novamente? Resolveu não esperar e retornou o contato
imediatamente.
- Oi M... Você está com
tempo agora? Podemos conversar?
- Oi L... Sim. Temos que
fazer isso. Acabei enrolando tudo colocando o Bill e o Bob na conversa. Bem... Essa
é uma conversa que deveríamos ter pessoalmente, mas como só soube agora não
pude aproveitar o seu tempo aqui. E soube por um motivo maravilhoso: Jaqueline
está apaixonada por Armando, embora ainda não admita.
- Não me assuste...
- Bem, vamos aos fatos
terríveis, e como não vou mais enrolar, vou apenas descrever o que ouvi. E por
favor: apenas me ouça, porque vai ser difícil de falar. Sua mãe morreu no mesmo
acidente em que morreu meu pai.
- O quê! O que você está
me dizendo?
- Pedi para você apenas me
ouvir, porque já está sendo pesado demais falar sobre isso. Mas é bem assim.
Minha mãe soube desde que nos conhecemos. Ela foi se informar a que
família você pertencia, quando ficamos amigas e descobriu. Agora leia o que ela
escreveu quando você foi a primeira vez lá em casa.
Isis-M mandou o print do que
Jaqueline tinha escrito. A amiga leu, ficou um tempo estática e a seguir
desandou.
- Perdão, maninha, me dê um
tempo, não aguento mais. Quero chorar.
- Choramos juntas. Achei que já
tinha chorado tudo, mas ver você assim dói demais.
Após um tempo, Isis-M retomou a
conversa:
- Meu pai dirigia o carro e por
uma desatenção dele, bateu em vocês. Também por isso minha mãe custou tanto a
conhecer Armando. Quando viemos para cá, a pretexto do tratamento, era para
fugir da situação, mesmo presa a promessa de ajudar você. Ela não contava que a
nossa amizade acabasse se fortalecendo ainda mais com a distância.
- Isis, estou sem chão...
- Eu sei, também fiquei quando
soube, e comecei a rezar para que isso não nos afetasse. Eu morreria se você me
desse as costas. Por favor, não me abandone...
- Jamais faria isso, muito
menos agora. Só não consigo raciocinar
- Minha mãe não sabe como
contar ao Armando.
- Vamos ver... Vou preparar o
terreno. Só preciso retomar o centro. Agora, por favor, fale mais comigo.
Preciso de você.
V – A PREPARAÇÃO
- Pai, você nunca quis saber
sobre o acidente em que a mãe morreu? Quem foi... Culpa de quem... Essas
coisas.
- Não. Pelas condições da
estrada não posso culpar ninguém. Foi repentino. Saímos da serra com sol e em
15 minutos parece que abriram uma enorme torneira. Não se via nada. Foi
terrível. Não quero lembrar disso. Foi muito sofrimento. Nunca houve um amor como
o meu e o da sua mãe. Crescemos juntos, namoramos, casamos e vivemos como
namorados. Ela era perfeita. Você sabe disso.
- Sei. Também me lembro bem
dela. Inesquecível. Além de linda era carismática. Que coisa... Mas a vida
anda. Até achei que ia rolar com a tia Jaqueline. Ela parece bem caidinha por
você.
- E vocês fazendo um esforço
danado, que eu sei. Até a Justina alcovitando. Não estou preparado para isso,
filha. Não sei se algum dia estarei. Atena levou a minha metade negociável. E
vamos combinar: juntar duas dores não é uma boa receita, você não acha?
- Mas se você encontrasse as
pessoas que provocaram o acidente, qual seria sua reação?
- Não sei. Não penso nisso.
Sei, no entanto, que eles levaram metade de mim, como já disse. Que história é
essa agora, Isis?
- Nada não. Vai ver há tanto
sofrimento do lado de lá como o do lado de cá. Pense nisso.
- Filha, o que está
acontecendo? Você tem alguma coisa para me falar?
- Tenho, claro, mas não vou
falar. Não interessa no momento.
Ser filha única e ter perdido a
mãe quando criança deu à Isis uma maturidade precoce. Era uma menina
inteligente, articulada e com uma bela visão da vida, ainda que com apenas 15
anos. Queria plantar na mente do pai uma versão mitigada do acidente que os
tinha abalado. Ele pensaria a respeito, conheci-o bem. Agora precisavam, ela e
sua xará, aplainar o caminho pedregoso que tinha ficado, estava esquecido, mas
que voltaria mais forte quando tudo fosse revelado. Pobre Jaqueline!
VI - TEMPO
Não é o tempo que aplaca as
tensões. É a pluralidade de ações inseridas no tempo que ajudam a aliviar os
males. Jaqueline e Armando tornaram-se assíduos pela internet. Levavam uma
espécie de namoro constrangido à distância. Havia um sentimento bom entre eles,
mas que carecia de combustível. Ou de revelações. Certamente, se
estivessem próximos, as coisas poderiam ser mais claras e intensas.
- Pai, em julho temos alguns
dias de férias. Acho que você também pode se dar esse direito, não? Vamos
viajar? A Justina está louquinha para ficar só.
- É disso aqui que você está
falando?
Armando mostrou para a filha
três passagens. Justina iria junto.
- Meu amor! Pai, amo você! A
Justina já sabe? Vou contar para a Isis-M. Você já combinou com a
Jaqueline?
- Não, a Justina não sabe. A
sua tarefa é prepará-la e agilizar o passaporte dela. E avise que lá, julho é
verão. E sim. Jaqueline e eu estamos acertados. E atenção: não ficaremos em
hotel.
- Oba!!!!! Agora vai!
- Cale-se. Temos dois meses até
lá.
... Que passam voando. Num
piscar de olhos estavam reunidos como uma família, na sala de Boston. Quem os
visse através da enorme janela da sala de jantar diria que era uma família
comum, incomumente feliz. Um casal, duas filhas lindas e uma amiga, sentados à
mesa conversando e rindo. Justina estava muito à vontade, sem fazer a mínima
questão de esconder sua torcida para que aquela visão se perpetuasse. “Vocês
formam um belo casal”, comentou depois de meia taça de vinho, já sonolenta e se
retirando para o quarto.
Tão logo Justina saiu, as
meninas cruzaram seus olhares e também se declararam cansadas. “Ãrrã... Bill e
Bob na pauta”, resmungou Armando. “Papai e mamãe também...” E se foram
rindo.
- Obrigado por ter vindo,
Armando. Você me faz muito bem.
- Há muito não me esforçava
tanto para isso. Quero fazer bem a você. Depois de longo período, por fim me
sinto vivo.
O casal sentou-se em um sofá
voltado para a janela, por onde filtrava as luzes da rua. Era verão em Boston e
nessa época não há diferença das temperaturas e da umidade do sul do Brasil.
Uma noite agradável. Ideal para o começo de muitas coisas boas.
Jaqueline havia preparado um
texto, escolhido e decorado cada palavra, a fim de que o que fosse dito
chegasse da forma mais suave possível aos ouvidos de Armando. Precisaria, no
entanto, reunir coragem. Por outro lado, como estragar aquele momento tão
mágico quando, depois de tantos anos, estava reencontrando o prazer de viver? A
negação dessa iniciativa descia pela garganta com um sabor amargo de medo, com
notas de egoísmo. Ao menos aquela noite ela haveria de preservar. Então
deixou-se abraçar por Armando, sentados lado a lado, silentes e ali ficaram até
que o silêncio também tomasse conta das ruas. Depois recolheram-se, cada um para
o seu quarto.
Ouvidos atentos aguardavam o
desfecho da noite... Ao ouvirem o ruido de duas portas se fechando, as meninas
e Justina foram dormir, decepcionadas. Jaqueline, no entanto, sabia com quem
lidava. Conhecia demais a filha. Por isso colocou Armando em um quarto contíguo
ao seu, com uma porta de acesso. E ao inferno o medo e o egoísmo! Aquela seria
a segunda noite de amor do casal.
- Meninas, vamos tomar café. Já
é tarde
- Justina... Só mais meia
hora...
- Nada disso. Vamos lá.
A casa tinha dois empregados.
Uma moça brasileira, que cuidava das tarefas domésticas e seu marido americano,
uma espécie de faz tudo. Ambos moravam lá, em uma casa anexa. Justina
entrosou-se rapidamente com a moça e passou a ajudá-la.
-Cadê o casal, Justina?
- Vá saber. Eu é que não vou
chamar. Como vocês dizem, acho que não “rolou”.
- Esses adultos se acham o
centro da moral. Perdem um tempo enorme. Caralho!
- Modos, menina!
- Bom dia, filhotas...
- Oi mãe. Tão feliz porquê?
Dormiu bem?
- Não me lembro de ter dormido.
- E meu pai, tia Jaque? Sabe se
já levantou?
- Sei. Está correndo no parque
aí da frente.
- E... Posso saber como você
sabe disso, mamazita?
- Não é da sua conta –
respondeu Jaqueline com um leve sorriso no rosto.
Foi o suficiente para receber
alguns apertões e vários beijos em cada bochecha, enquanto teve as suas pernas
servindo de colo para duas marmanjas.
- Cuidado, meninas. Dona
Jaqueline ainda não pode ter muito peso em cima, saiam já daí.
- Como assim “não pode receber
peso em cima”, Justina? Você só pode estar de brincadeira. Pelo que dá para
ver, tio Armando deve pesar 90 quilos. Mamãe não é fraca.
- Modos! Respeite a sua mãe!
- Mas a severa Justina não conseguia nem franzir o cenho de tão
feliz.
- Vocês sabem que tudo isso
pode ser uma ilusão. Fui egoísta e covarde ontem, mas não posso mais retardar o
que preciso fazer. Dói porque, na verdade estou amando. Como achei que nunca
mais poderia.
- De que estão falando?
- Contem para Justina,
meninas.
As duas meninas sentaram-se na
sala com Justina e detalharam tudo o que sabiam do acidente.
- Minha Aparecidinha abençoada!
Doutor Armando não vai reagir bem. Sempre se escondeu do assunto. Vai trazer
todo sofrimento de novo. E eu sei o quanto esse homem sofreu.
- O que devemos fazer, Justina?
Ninguém conhece meu pai melhor do que você.
- Contar, claro. E já, antes
que o dano fique maior. “Como”, é que não sei. Não gostaria de estar na pele da
Dona Jaqueline. Ô destino esse! Só rezando mesmo.
- A mãe deverá falar hoje com
ele.
- E eu vou ter que prepará-lo.
Eu sei que ele faria tudo por mim. Só não posso violentá-lo. Vocês acham que
deveríamos ficar em casa ou sairmos e deixá-los à vontade?
- Eles vão precisar de nós.
Mas Jaqueline tinha outros
planos. Fosse falar em casa, talvez constrangesse Armando e não quis
prevalecer-se da situação. Então convidou-o para sair. Jantarem fora, apenas os
dois, em um restaurante panorâmico, lindo e aconchegante.
Armando estranhou, no entanto,
o comportamento das meninas. Um convite daqueles precederia, no normal, uma
grande festa das duas. Ao contrário, apenas recebeu um abraço meio angustiado
da filha, com uma recomendação “Pai, eu sei que você faria qualquer coisa por
mim. Hoje você terá uma chance de ouro para provar isso”. Não entendeu. Ou
entendeu por outro lado.
O restaurante, de fato, era
maravilhoso, bem como a vista, e os espaços cabines isoladas, umas das outras.
E logo quando brindaram o espumante, Jaqueline começou a falar.
- Não é por acaso que escolhi
estar aqui com você hoje. Tenho algo a falar, espero que você me escute e rezo
para que compreenda. Há dez anos fiquei paraplégica, processo que, você sabe,
durou muitos anos de recuperação. Antes disso, também amarguei longo período de
inconsciência na UTI, fato que me fez, ainda que involuntariamente, minimizar o
acidente. A minha viuvez, no entanto, foi dolorosa. Tínhamos uma vida familiar
harmônica e de muito amor, mais ou menos o que a sua Isis fala da
vida de vocês.
- Jaqueline, por que estamos
falando sobre isso?
- Por favor, me ouça, foi muito
difícil para mim decidir falar. É necessário por todo esse envolvimento que
temos, a partir das nossas meninas. O acidente em que faleceu meu marido e me
deixou naquele estado, aconteceu em um final de tarde chuvoso. Muita chuva em
um domingo. E só aconteceu porque ele se distraiu, falando pelo rádio, em uma
curva, subindo a serra. Perdeu-se e bateu de frente em um carro que vinha no
sentido oposto. Nesse outro carro vinha uma família: casal e uma filha. Soube
muito tempo depois de ter recobrado a consciência de que a moça tinha falecido.
Armando apenas ouvia. Soltou o
olhar para o infinito e passou a reprisar mentalmente o filme de terror daquele
final de tarde. Suas perdas, seus medos, o estado de deterioração pessoal que
viveu quando foi acudido por Justina. Se no início tinha vontade de falar
alguma coisa, quando compôs o quadro fechou-se em copas. Jaqueline continuou.
- Causamos um dano enorme para
sua família. A minha culpa direta, no entanto, passou a existir quando eu soube
de quem vocês se tratavam. Descobri isso na primeira vez que a
minha Isis me falou da sua. Quis saber com quem ela brincava e
descobri o quão terrível era o destino. Ou não. Poderia ser uma oportunidade de
redenção e eu fiz a promessa de ajudar a sua Isis. Pedi a Deus que me
permitisse isso. Mas em relação a você me calei. Primeiro porque eu tinha
vergonha do meu estado, depois porque tive medo, sei lá. E também porque, ao
ver a minha filha e a sua juntas, comecei a entender o que são e o que fazem os
anjos. A solução que encontrei, solução covarde, foi me mudar para cá. Meu
marido trabalhava aqui nesse hospital que é referência mundial, mas eu poderia
vir vez por outra e voltar e o tratamento seria igual. Tentei assim afastar as
meninas. Era mais fácil que explicar, mas você acompanhou no que se
transformaram. São mais que irmãs, como se Deus estivesse me cobrando a
promessa que tinha feito. E para culminar, você. O que sinto por você é algo
que eu não esperava nem em um sonho juvenil sentir novamente. Não depois do
casamento que tive. Você traz junto toda essa carga emocional que nos liga, que
liga nossas filhas, além de ser um homem maravilhoso. Peço que você tente me
perdoar e... Bem... Por favor, diga alguma coisa.
- Antes de
sairmos, Isis me abraçou e me fez lembrar que eu faria qualquer coisa
por ela, e que hoje eu teria uma boa oportunidade. Ela já sabe disso?
- Sim. Contei para a
minha Isis quando voltei do Brasil e tínhamos ficado juntos. Ela
naturalmente contou para a sua e que deve ter se aconselhado com Justina.
- Estou sem saber o que dizer.
A medida em que você ia falando eu ia remontando o trailer dos acontecimentos.
Lamentei por muito tempo não ter morrido naquele dia. Só me recuperei anos
depois, com o apoio dos meus anjos da guarda. Agora, as feridas
estão descascadas. Estou em carne viva de novo. Não há o que perdoar,
Jaqueline, você não tem culpa de nada. Eu é que não sei lidar com isso. Nunca
aprendi e nunca vou aprender. Peço que você me perdoe por me sentir muito menor
que a minha dor. Ela me tolhe os horizontes. Gostaria de voltar para
casa.
Não havia como superar, a
despeito de culpas ou não culpas, todo o processo remasterizado. Armando
deixaria Isis ficar o tempo que tinham combinado, mas retornou ao
Brasil no dia seguinte. Estava devastado e a fiel Justina o acompanhou. Tanto
tempo para viver um novo amor e agora que o tinha encontrado, ele era o veículo
que lhe havia tirado metade da sua vida.
Dias depois retornou a filha.
Ao se reencontrarem, no lugar de vivas, mais lágrimas. Armando pediu à Isis que
respeitasse o seu tempo e não lhe cobrasse nada.
Armando capitulou de vez. Como
se não bastasse o desleixo pessoal e profissional a que se entregara, voltou a
beber fora de controle. Até o dia em que chegou em casa, serviu uma dose e
chamou Justina, mas quem respondeu foi Isis.
- Justina foi embora, pai, você
sabe porquê. E se as coisas continuarem assim por aqui, eu também vou. Você
pode ainda ter direitos sobre mim, mas é só até daqui a pouco. E duvido que
queira ficar comigo, caso eu me decida ir. E hoje eu vou dormir fora.
- Como assim, vai dormir fora?
Onde e com quem? Você está louca?
- Não vou lhe dizer. Caso
queira, pode mandar a polícia atrás de mim. Você perdeu o meu
respeito.
O fundo do poço estava próximo.
Armando era um zumbi que não aceitava ajuda. Não queria. Acabou sendo salvo por
Justina, em uma manhã, quando ela passou para ver se estava tudo em ordem. Ia
na metade da manhã na certeza de que não tinha ninguém e aí aproveitava para
limpar e ajustar algumas coisinhas. Encontrou o patrão desfalecido, nu, no chão
do banheiro, em coma alcoólica. Era hora de não o abandona-lo, e chamou a
filha, que mal o cumprimentava, isso quando o via.
- Por onde você anda, minha
filha? Seu pai precisa de ajuda. Acho que nós não queremos vê-lo morrer, não é
mesmo? Ontem o levei em coma para o hospital. Seu celular estava desligado,
onde você estava?
- Meu Deus! Que coisa horrível
é essa? Estava com Jaqueline. Ela está há uma semana aqui no Brasil, louca para
se encontrar com ele, mas como? Não nesse estado.
- É mesmo? E como ela está?
- Totalmente recuperada. Linda
e apaixonada por doutor Armando. Mas também muito sofrida com a situação.
Jaqueline era uma mulher de
decisões firmes. Amargara alguns dias as consequências da revelação, mas a vida
precisava dela forte e inteira, afinal, tinha uma filha para cuidar e uma
promessa para cumprir. Estivera no Brasil, quis ver Armando, mas Isis
desaconselhou. Não era o momento, porque talvez as feridas se tornassem ainda
piores. Paciência. Aceitaria a situação como ela se resolvesse.
Já as meninas pareciam cada vez
mais próximas. Tornaram-se adultas, amadureceram, tiveram seus romances, suas
perdas, muitos ganhos e se encaminhavam para um lindo futuro.
Armando, após um período em uma
clínica de desintoxicação, exigência da filha e de Justina, voltou para casa
cheio de promessas. Tivera tempo para colocar na balança a dor que não o
abandonava e sua filha, que o abandonaria, caso se deixasse vencer. Ainda era
relativamente jovem e poderia, porque não, ter uma vida plena e ver sua Isis
realizada. E Justina estaria por perto para fazer com que cumprisse suas
promessas.
Porém, o dia em
que Isis viajaria para os EUA em busca de especialização chegara.
Iria, enfim, morar com Jaqueline, a convite desta. Não havia com prendê-la sob
as asas, e ir embora já não estava mais à mercê de sua vontade ou opinião. Elas
já tinham decidido. E ele ficaria sozinho com a sua Justina. Era seu destino,
marcado a ferro e fogo em uma curva na descida da serra, num domingo chuvoso.
- Pai, não sei como vou dizer
isso, mas estou feliz, perdão por deixá-lo. Vá me ver de vez em quando. E
continue se cuidando, por favor. Sempre vou amar você e daqui a bem pouco tempo
já estarei com saudades suas. Quando deixar de trabalhar ou quando quiser, vá
morar comigo. Sempre seremos uma família, por menor que seja.
- Sim, filha. Não consigo
falar. Vou morrer longe de você.
- Não. Você passou mais de
vinte anos tentando morrer. Agora crie vergonha e viva. Faça isso por mim. Ao
menos dessa vez tente viver por mim.
Não foi uma vida fácil adiante,
mas Armando tratava de se cuidar. Voltou a conversar com Jaqueline. Havia agora
mais assuntos em comum a serem tratados, transferência de recursos para
manutenção da filha e coisas afins. Tratavam-se cordialmente, sufocando os
sentimentos que haviam. E resistia aos convites de ir ver a filha.
Alguns anos depois, Armando
teve mais uma perda. Justina, a sua Justina morreu. Estava sentada tomando chá,
choramingando de saudade de Isis e despencou. Morreu serenamente. Triste, mas
em paz. Armando resolveu não avisar a filha que estava prestes a concluir
seus estudos. Ele iria vê-la e falaria pessoalmente sobre essa perda.
Dois meses depois, Armando
embarcou. Ao chegar em Boston para a formatura, Armando se sentia bem. Voltara
aos exercícios físicos e desafiava a bebida, ou seja, bebia pouco e de vez em
quando. Pediu que a filha fosse vê-lo no hotel. Soubera que Jaqueline estava
tendo um relacionamento e não queria aparecer no momento. Já estariam juntos à
noite. Mas sentia um engasgo amargo ao lembrar dela, antevendo-a com outro
homem.
O evento era portentoso.
Pessoas bonitas, bem arrumadas e Armando não economizou cuidados na aparência. Era
noite de festa para as pessoas que amava e queria estar à altura delas. A
chegada de Jaqueline foi impactante, mas dolorida. Lindíssima, desenvolta e
acompanhada. Quando o viu, foi cumprimentá-lo e apresentar o suposto namorado,
um americano enorme. Segundo soube, diretor do hospital onde as meninas
passariam a trabalhar. Armando falava pouco inglês, portanto, resumiu-se em
acenos e sorrisos. E uma questão martelava fortemente sua cabeça: “Armando, em
quais dos infernos você estava que deixou escapar essa mulher?”. E durante
grande parte da cerimônia não desviou os olhos dela, que parecia nem tê-lo
notado. Aquilo doía, porém, era sinal de vida.
A sua Isis, foi designada
para o discurso final. Antes de terminar, chamou o pai ao placo e disse algumas
palavras em português que poucas pessoas entenderam. “Pai, nasci de você e de
uma deusa que será eterna. Morremos um pouco com ela, mas renascemos para o
resto da vida. Aqui é o seu lugar, venha ficar comigo, esse é o nosso destino.
Todas nós esperamos por você”. Abraçaram-se, choraram e a plateia respondeu com
aplausos e vivas.
Antes de retirarem-se Armando
foi cumprimentar Jaqueline e despedir-se do casal.
- Nada disso. Você não vai
embora sem conversarmos. Somos próximos demais para tanta frivolidade. Veja as
nossas filhas... Você não precisa respeitar o que sinto por você, mas a nossa
ligação familiar é sólida e precisa ser respeitada.
- Eu sei, querida. Sou um
equívoco ambulante, sem forças para vencer meus traumas. Vou visitá-la sim,
afinal, minha filha mora lá. Quando fica melhor? não quero causar
constrangimentos.
- Sim. Vá amanhã à noite.
Armando usou o dia seguinte
para paparicar a filha e a xará. Foi apresentado, por fim, aos namorados, Bob e
Bill, todos pertencentes a mesma universidade e cursos similares.
- Vocês tratem de ensinar esses
marmanjos a falar português, a fim de agradar ao sogro.
- Ao sogro? Hummm...
exclamou Isis-M – Vai haver guerra e eu já sei para que
exército torcer.
- Que não custe seus empregos.
- Ah é. Melhor não torcer.
Com 20 graus negativos, Armando
chegou à casa de Jaqueline no final da tarde.
- Tio Armando! Que bom que você
chegou. Estávamos de saída e assim mamãe não ficará sozinha –
debochou Isis.
- Pai, você quer que eu repita
o que lhe disse anos atrás, um pouquinho antes de você fugir do seu destino?
- Não precisa, filha. Senti
minha alma rasgar ontem quando vi Jaqueline acompanhada. Vou custar a me
perdoar.
Jaqueline entrou na sala a
tempo de beijar as filhas. Sim, as filhas, com as recomendações de praxe. Pegou
Armando pela mão e foram sentar-se no mesmo sofá, de anos atrás, olhando as
luzes da cidade. No momento, no entanto, a cidade era quase um bloco de gelo.
- Jaqueline, eu...
- Não diga nada. A menos que vá
dizer que me ama e que nunca esqueceu de mim.
- Mas e o...
Jaqueline selou os lábios de
Armando com os seus e as palavras se enlambuzaram de paixão. Da sala para o
quarto, até o amanhecer.
- Você quer me explicar que
tipo de relação tem com aquele cidadão enorme?
- Ele é diretor do hospital em
que meu marido trabalhava e onde as meninas irão trabalhar. É um amigo muito
querido. Gostamos muito um do outro. Foi quem me tratou esses anos todos, mas
ele gosta tanto de mulher quanto eu. Como tem receio de se expor eu o ajudo no
papel hetero dele. Ele sabe de nós e o quanto você me fez sofrer esses anos
todos. E agradeça às nossas filhas, em especial à sua, o fato de eu nunca ter
namorado ninguém. Faziam da sala uma horta e plantavam-se como espantalhos,
quando eu recebia alguma visita suspeita. Agora decida-se. O que pretende da
vida?
- A minha vida mudou-se para
cá. Nada mais me prende no Brasil e eu quero ficar perto da minha filha; perto
de vocês. A minha querida Justina faleceu meses antes da minha viagem. Eu
queria trazê-la para a formatura, mas acho que ela já não andava se sentindo
bem, só não falava. Ainda não contei para Isis, não queria estragar a festa.
Bem, hoje vou a embaixada. Tenho possibilidades de trabalho por lá, em função
da minha especialização em direito internacional. Tenho ótimas chances e terei
a resposta hoje. Só preciso melhorar o meu inglês. Vou morar aqui perto,
portanto, estaremos sempre juntos, caso não haja espantalhos na sala.
- Já não era sem tempo. Você
está me fazendo muito feliz e prometo cuidar bem de nós. Bem. Devo dizer a você
outra coisa e, por favor, entenda que isso fez parte do meu sacramento; da
promessa que fiz quando as meninas eram crianças. A sua Isis tem uma
conta/investimento que abri tão logo você fez a primeira remessa para ela.
Todos os seus depósitos foram para lá, excetuando o que ela usava para se
manter. Está lá, intacto, ela não sabe o quanto, mas é um bom dinheiro.
- A universidade dela foi você
que pagou, então?
- Não. Eu iria fazer isso, mas
ela é muito talentosa e inteligente. Conseguiu a bolsa por seus próprios
méritos. Agora cale-se e me beije. Amo terrivelmente você e sua
filha... Minha filha. É mais minha do que sua.
Nada mais poderia mudar o rumo
das coisas. Dia seguinte, com tudo encaminhado junto a embaixada e as chaves da
casa na mão, Armando foi jantar com a namorada e as filhas. Havia coisas a
serem reveladas.
- Bem, meus amores, tenho
novidades. Começo pela ruim, mas foi a que desencadeou o resto das minhas decisões. Isis,
minha filhinha, lamento dizer, mas a nossa Justina faleceu. Estava tomando chá
comigo quando apagou. Morreu serenamente, um pouco depois de me dizer que
sentia muito a sua falta.
Por óbvio que foi preciso tempo
e muitas palavras de conforto para Isis. Justina tinha sido a única mãe
que conhecera depois de perder a sua, e antes de encontrar Jaqueline.
Alguns minutos depois, Armando
continuou:
- Vou continuar, milha filha.
Você disse para todos ouvirem e alguns entenderem que o meu lugar era junto de
você. Então... Estas são as chaves da minha casa. É alugada e fica 50 metros
daqui, ou seja, me mudei para cá – foi impossível segurar o salto
de Isis sobre o pai – Calma que tem mais: fui aceito na embaixada.
Vou trabalhar lá, mas preciso urgente de aulas de inglês. O meu é insuficiente.
Terceira notícia... Não, não é notícia, é um pedido: Isis-M, eu amo você
por tudo o que representa para a minha filha, e amo de paixão a sua mãe. Quero
recuperar cada segundo que botei fora nesse tempo todo e limpar da memória a
imagem terrível de vê-la entrando na festa de formatura acompanhada por outro
homem. Só aceito dividi-la com você e a minha Isis, você se incomoda com
isso?
- Ufa!
Aleluia! Enfim vencemos, Isis-L. Com muitos anos de atraso,
finalmente seremos uma família. E vocês tratem de aproveitar estas duas damas
de honra maravilhosas e se casem. Não abrimos mão disso. Não têm
mais idade para ficarem de namorico. Venha, mana, vamos deixar os velhos
tirarem o atraso.
VII – EPÍLOGO
- Rápido, M, rápido que eles já
estão chegando! Atena, minha filhinha, não mexa no bolo!
Alguns minutos depois, Armando,
75 anos, em ótima forma, aparecia na porta da frente, que tinha o acesso
adaptado para cadeirantes. Trazia sua amada Jaqueline que, com o passar dos
anos, ainda em função dos traumas do acidente, voltava a ter dificuldades para
andar. “Entre a bengala e a cadeira, prefiro dar trabalho para o meu velho”.
Mas não era aquela cadeirante amarga e sorumbática lá do início. Era uma linda
septuagenária bem vestida, altiva e maquiada. “E sexualmente ativa”, não
esquecia de dizer.
O terreno da casa não era nem a
metade daquele em que a família de Jaqueline morava no Brasil. Mesmo assim, mas
porque também se prometeram jamais se afastarem, as meninas Isis-L
e Isis-M demoliram a casa, construíram uma pequena e confortável ao lado
para os pais e ergueram dois sobrados geminados, onde passaram a morar depois
de casadas.
E nesse dia, comemoravam as
bodas de prata de Armando e Jaqueline.
FIM