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sábado, 20 de fevereiro de 2021

Isis

 




 

ISIS

Era um domingo, fim de tarde e fim de férias. Armando voltava para casa com a família.  Atena, a esposa e a filha Isis, uma princesa de cinco anos. Foram quinze dias na serra para repor as baterias e enfrentar o ano.

- Bom que não tenha chovido antes, mas não precisava chover tanto agora.  Essa estrada já é complica...

Armando não viu mais nada. Apenas ouviu um forte estrondo e foi acordar uma semana depois, no hospital. Lúcido, o que o fez gritar desesperado para a enfermeira.

- Onde estão minha mulher e minha filha? Como elas estão?

- Tenha calma, por favor. Vou chamar o médico de plantão.

- Boa noite. Sou o doutor Péricles. Como o senhor está?

- Por misericórdia... Não me pergunte como estou. Não está vendo que estou acordado? Quero saber da minha família.

- Sua filha teve uma fratura no braço que não deixará sequelas e está bem. Mas vai precisar muito do senhor. Infelizmente sua esposa não resistiu. Foram ferimentos graves e houve muita perda de sangue. Foi a óbito ainda na ambulância.

Armando passou então a viver a mais profunda dor que pode sentir um ser humano. Sentimentos múltiplos, feios e indecifráveis. Uma espécie de estuário onde se despejam todas as dores. Sem fim e sem prazo.

À medida em que os dias passavam, foi tomando conhecimento dos fatos. Soube que bateu de frente em outro veículo que vinha em direção oposta, e que também teve uma vítima fatal. Mas nada mais importava. Constituiu um colega para acompanhar o caso e, tanto quanto possível, que fosse informado o mínimo sobre o acidente. E que se não houvesse denúncias, que o caso fosse esquecido. Assim foi feito.

As dores estavam apenas começando e vigeriam por toda a vida. Mas Isis precisava dele e que estivesse forte. O ano letivo estava prestes a começar e a vida precisava seguir seu curso. A casa tinha uma boa administração. Justina, a empregada, acabou vindo morar com eles, muito em função dos cuidados com Isis. Era mais que empregada. Era já uma boa amiga e seria vital contar com ela em tempo integral.

O ano que iniciava correria amargo demais. Atrena era uma figura muito presente em todos os cantos da casa. Afora a importância que tinha para a família, era uma personalidade difícil de não ser notada. Era a estrela guia, com seu jeito e carisma.  

Sem poder conter a inconformidade, Armando passou a beber de forma desmesurada. Saia e voltava tarde e as vezes sequer via a filha. Só recobrou o juízo quando foi ameaçado por Justina.

- Ou o senhor se comporta como um homem e pai, ou vai ficar sozinho. Não vou ficar aqui assistindo a sua morte e a orfandade total da pequena Isis. O senhor não está pensando nela e para mim chega! Pelo menos vá levá-la ou buscá-la no colégio. Mostre que se interessa por ela. A menina está parecendo mais madura que o pai.

- Tem razão, Justina. Obrigado. A partir de amanhã vou começar a buscar a minha filha no fim da tarde. Tem a minha palavra de que vou maneirar.

Armando passou a lutar contra seus demônios. Buscou ajuda profissional e começou a dedicar-se mais à filha. Nesse meio tempo, Isis tinha feito uma amiguinha, talvez por uma razão singular: ela também se chamava Isis. Desde que começara a ir buscar a filha,  assistia as duas amiguinhas conversando e rindo. Pareciam gostar uma da outra o que era muito bom.

- Filha, como é o nome da sua amiguinha?

- Isis. Eu sou Isis-L, de loira e ela é Isis-M, de morena.

- É mesmo? Que coincidência.

- Não acho. Ela me convidou par ir na casa dela sábado. Posso ir?

- Podemos negociar isso. Primeiro preciso saber quem são os familiares.

No dia seguinte foi abordado na saída da escola.

- Boa tarde, senhor. Sou Vera, a babá da Isis.

E fez o convite para que a sua filha passasse o sábado na casa tal, endereço tal, pertencente a família tal e tal. Surpreso, mas diante dos olhos inquisidores da sua Isis e dos olhos pedintes da outra Isis, Armando concordou.

- Ok. Sábado levo minha filha lá

- Oba!!

A casa da amiguinha da filha... Não era bem uma casa, era quase um condomínio, assentado sobre um amplo terreno, com jardins e piscinas.

- Uau! Você sabe fazer amizades, minha filha.

- Bom dia, senhor, a patroa lamenta não poder vir recebe-lo e se desculpa por isso, mas não se preocupe, as meninas estarão muito bem cuidadas. Ficarei responsável por elas. Esse é o telefone da casa e esse é o meu celular. Ligue a hora que quiser.  O senhor tem alguma recomendação especial? Ela tem alguma restrição alimentar?

- Não. Tudo bem, obrigado. Divirta-se, filha. Venho às seis horas.   

Aquele haveria de ser o primeiro de vários sábados ao longo do ano, sem que Armando tivesse a oportunidade de conhecer os pais da menina. Era sempre a atenciosa babá que o recebia. Óbvio que pela ausência de um estreitamento de relações, Armando vetou a viagem de férias da filha com a amiguinha, mesmo que fosse apenas uma semana.

- Nem pensar! Ano que vem a gente vê. Este ano não, e não se conversa mais sobre isso.

Mas não houve outra oportunidade. Passadas as férias de final de ano. Armando recebeu uma ligação.

- Bom dia, é doutor Armando? Aqui é Jaqueline, mãe da Isis. Isis-M. Prazer em conversar com o senhor, ainda que pelo telefone. Desde já me desculpo por, em nenhum dos tantos encontros de nossas filhas, eu tivesse me apresentado. Tenho um problema de locomoção, a despeito das cansativas sessões de fisioterapia. A sua Isis foi muito importante para a minha no ano passado. Eu pergunto se há a possibilidade de neste final de semana, a sua filha vir nos visitar. Minha filha está com muitas saudades da sua.

- Ah sim. Prazer. Claro, também sua filha foi muito importante para a minha. Sábado eu a levo, após o meio dia.   

Estava esclarecido o mistério da mãe da menina. Já descobrira que era viúva e agora que é doente.

Sábado Isis foi visitar a amiguinha que a esperava na grande porta da frente e sumiram para dentro da casa. Uma hora depois, Armando recebeu uma ligação:

- Boa tarde, doutor Armando? É Jaqueline novamente. Não se preocupe. Está tudo bem com as meninas, sob os cuidados da Vera. Estou ligando para lhe fazer um pedido e caso o senhor queira vir para conversarmos, sem problemas. O pedido é para que sua filha pernoite aqui conosco. Ano passado ela já ficou algumas vezes e acho que desta vez é ainda mais especial.

- Não estava preparado para isso. A senhora pode chamar a minha filha? Quero conversar com ela.

- Oi pai. Eu quero ficar, posso? Estou ajudando a Isis.

- Ajudando? Se está tudo bem, ok. Mas me ligue antes de dormir. Vou buscar você amanhã antes do almoço.

“Ora, ajudando!” Armando não dormiu. Certo. Isis tinha ficado uma ou duas vezes na casa da amiguinha, mas tinha algo  estranho desta vez. Tanto que, dez horas da manhã já estava no portão da mansão. Foi recebido pela filha chorosa e pela mãe de sua amiguinha, cadeirante.

- O que houve, filha? – perguntou Armando com cara nada amigável. 

- Bom dia, doutor Armando. Sou Jaqueline. Não se preocupe. Isis está tão chorosa quanto a amiguinha dela. Tanto que não quis descer para se despedir. Acontece que vamos viajar. Vamos nos mudar para Boston, onde poderei continuar meu tratamento dentro da especialidade que necessito. Por algum motivo ainda não consigo andar e acho que lá terei minhas respostas. É onde meu falecido marido trabalhava. Vamos embora amanhã.

Jaqueline era uma mulher bonita, estilosa, mas parecia abatida, precocemente envelhecida e triste. Era chocante vê-la em uma cadeira de rodas.

- Lamento muito por isso, em especial pela minha falta de cuidado em não perguntar a seu respeito. E lamento também pela minha Isis. Não gostaria que se repetissem suas perdas. Não tão seguido. Bem, resta-me desejar que a senhora tenha sucesso no tratamento. Saiba que, caso eu possa ajudar de alguma forma por aqui, disponha.

- Agradeço. Nunca apareci para conversarmos porque ainda me constranjo com a situação. Sempre fui muito ativa e isso acabou comigo. Isis-L, venha cá me dar mais um abraço. Você foi um anjinho de Deus para nós e lá para onde vamos, caso você queria ir, basta combinar com o papai e ficar o tempo que quiser.  

 

II – A DISTÂNCIA QUE APROXIMA

A vida tomava seu rumo. As Isis viam-se crescer conversando pela internet, rindo, brincando, trocando confidências. Os anos que passavam e a distância só faziam fortalecer a amizade entre as duas. Tinham a mesma idade, com uma diferença de dois meses uma da outra e pouquíssimas diferenças de interesses. Uma daquelas noites de conversa entre elas, Jaqueline, a mãe, entrou no meio;

- Oi Isis-L. Como vai você? Veja... Estou de pé. Mas já faz algum tempo que comecei a andar ainda devagar. Diga ao seu pai que tenho um convite para você, mas quero falar com ele.

- Oi tia... Que coisa boa. Como você é alta. Acho que é da altura do meu pai. Sim. Quando você quer conversar?

- Caso ele esteja aí, hoje mesmo.

- Paiê!

- Olá... Opa!, mas que maravilha vê-la de pé! Parabéns, Jaqueline. Fico feliz por você.

- Obrigada, Armando. Ainda não posso dançar, mas me aguarde...  Seguinte: tantos anos se passaram e a sua Isis nunca veio nos ver. Tenho um convite para ela, que é extensivo a você. As meninas fazem 15 anos este ano. A sua em outubro e a minha em dezembro. Quero fazer uma festinha para elas. Como será no final do ano, acho que vocês podem vir. O que você acha?

- Acho maravilhoso. De fato, e me desculpo por isso, nunca cedi às investidas das meninas em relação a essa viagem. São meus traumas. Mas veja...Não descarto não. De qualquer forma digo duas coisas: primeira) obrigado pelo convite; segunda) óbvio que a Isis, pelo menos ela, vai.

- Que bom. Pense no quanto nos faria feliz vindo também. Até mais. Abraço.

Mais tarde, antes de dormir, Armando foi ao quarto da filha.

- Filha, não sei se poderei ir junto. Tenho muito trabalho pela frente. Temos alguns meses ainda, vá juntando dinheiro. Pegue o meu cartão e compre a passagem. Antecipadamente sai mais barato

- Nada disso, meu velho. Você vai junto comigo e esse será o meu presente de aniversário. Nunca vi você tirar férias; sequer passar um final de semana fora. Namorar então... Sei lá. A vida seguiu, pai. Não vamos jamais esquecer dona Atena. Sempre será insubstituível, mas você não precisa fazer voto de castidade.

- Ah, você acha que eu virei celibatário? Vai nessa. Apenas não quero compromisso.

- De qualquer forma, doutor Armando, o senhor vai viajar comigo em dezembro. Vou comprar duas passagens.

- Não faça isso. Eu não autorizo você.

- Ãrrã.

No dia primeiro de dezembro, malas despachadas, cartão de embarque em punho, pai e filha na fila, rumo ao rigoroso inverno de Boston.

- Nosso hotel é perto da casa da Isis. Mas as ruas estão com um metro de gelo de altura. Bem... Relaxe. É quase um dia de viagem.

Gelo puro nas ruas e no ar. Armando e Isis chegaram ao hotel batendo queixo.

- Pai, dá para jogar água quente no corpo, descansar e irmos à noite jantar com nossas amigas. Já combinei.

- Ok, meu anjo. Você é quem manda. Você chama o motorista. É perto, mas não vou andar no gelo.

- Frouxo!

Às 19 horas chegaram à casa de Jaqueline. Foram recebidos por Isis que não cabia em si de tanta felicidade. Aliás, ambas pareciam ter ganho brinquedo novo. Impressionava a relação daquelas duas meninas!

- Oi tio. Ufa! Até que enfim... A mãe já vem. Vou servir um conhaque ou prefere uísque?

- Com qualquer um eu corro risco, mas vou arriscar. O frio é grande.  

E as meninas sumiram, deixando Armando e uma garrafa de uísque. Meia hora depois apareceu Jaqueline.

Armando teve um baque. Jaqueline andava com certa dificuldade, amparada em uma bengala, o que não inibia uma virgula de sua beleza. Linda, elegante, sorridente... Muito diferente daquela senhora cadeirante, de perfil sombrio que conhecera.

- Boa noite Armando. Muito obrigada por ter vindo. Vou ficar devendo esse presente maravilhoso que você trouxe para a minha Isis.

- Boa noite Jaqueline. Você me perdoa ter ficado impactado. Feliz em vê-la de pé e sorridente.

- Você ia me chamar de linda. Eu aceito. E como pode ver, recuperei também o humor. Fique à vontade.   

Foi uma noite extremamente agradável. Que mulher aquela Jaqueline! Tinha um “quê” da sua Atena, o carisma, talvez. Interessante saber que tenha ficado tanto tempo paraplégica e perdido o marido também em um acidente. Aquele, no entanto, era um assunto que nem ele, nem ela pareciam dispostos a reportar.

- Pai, lamento informar que você vai voltar sozinho para o hotel. As maninhas não abrem mão de dormir juntas hoje. Há uma coleção enorme de gatos sobre os quais precisamos falar.

- Ok. filha. Só não esqueça de dormir e não encha o saco da dona da casa,

- Imagine, Armando, ela é uma necessidade aqui. E você corre o risco de perdê-la para mim, uma vez que sabemos onde ela quer terminar os estudos.

- Sei. Terei que enfrentar isso. Bem. Já vou. Obrigado pela janta e pela companhia agradável.

- Eu que estou agradecida. Você também é uma ótima companhia. Vamos falando. Tem três dias até o aniversário. Boa noite.

As meninas não estavam acomodadas no quarto, estava à espreita, atrás da estante, acompanhando a conversa, alcoviteiras.

- Não sei qual dos dois será mais difícil de convencer. Mas um cedendo, o outro está no papo. Minha mãe ficou anos na cadeira de rodas, assim nem teve tempo, ou coragem ou enfim... Oportunidade de refazer a vida. Mas você viu o quanto ela é linda e resolvida. Seu pai também é um gato. Ele tem namorada?

- Tem nada. Pega uma aqui, outra ali e acha que eu não sei, só não quer compromisso. Acho que nunca vai esquecer dona Atena. Mas é verdade. Sua mãe é linda, charmosa, inteligente. Tem muito da minha. Vamos provocá-los. Temos que fazer com que se vejam todos os dias.

- Sim. Amanhã vamos a um shopping e fazer com que eles fiquem juntos. Ela ainda precisa de apoio para caminhar. Se esse apoio for um braço forte, melhor. O médico falou que daqui a um tempo estará dançando.

Nos poucos dias que ficou em Boston, Armando e Jaqueline mais do que se conheceram. Tornaram-se bem próximos. Pareciam um casal, conforme plano das filhas, uma vez que para caminhar ela precisava do braço dele como apoio. Mas não avançaram o sinal. Havia um tal constrangimento, que poderia ser explicado pela falta de convivência, falta de arrojo, traumas, e por óbvio, segredos. Mas parecia sim uma questão de tempo. Tempo que naquela oportunidade não teriam.

A festa de aniversário, a rigor, não justificaria uma viagem tão longa e cansativa para Armando. Foi uma reunião de alguns jovens mais próximos onde, como se vivesse naquele meio, a sua Isis brilhou.   Justina acabou tendo razão quando havia classificado o evento de pretexto. “Vá por mim, doutor Armandinho, é pretexto para junção dos pais”. Justina, Justina!   No entanto, serviu para que em algumas trocas de olhares, Armando e Jaqueline se percebessem como homem e mulher. Não só como pai e mãe; tio e tia. 

Passado o aniversário, era hora de voltar. Armando foi inquirido por três argumentadoras muito bem fundamentadas. Em resumo, caso quisesse ou tivesse de voltar, que o fizesse sozinho. As amigas não abriam mão de cumprirem juntas o período de férias. E acabou de ser convencido por Jaqueline que se comprometeu de ir pessoalmente entregar a filha no início de janeiro.

Não havia o que fazer e Armando retornou sozinho. Mas levou junto um sentimento inquietante. Jaqueline mexera com ele de uma forma que nenhuma outra, nesses anos todos conseguira.

“É bom sentir isso de novo, doutor Armando. Sinal de que você está vivo”

- Justina, nem adiantou argumentar: sua filhota trocou de família. Somos nos dois por enquanto. Ela só volta em janeiro.

- Imaginei que isso aconteceria, doutor. Impressionante como se dão bem essas meninas. Isso só pode ser coisa de Deus. Parecem irmãs! Será que não acabarão sendo?   

- Nem brinque com isso.

- Ué...Onde está a barreira? Só não me levem para o frio.

A relação entre pai e filha, desde a puxada de orelhas de Justina em função da bebida, quando ainda Isis era criança, passara a ser umbilical. Cuidavam-se muito. No período em que ficou nos EUA, Isis falava todos os dias com o pai. Vez por outra chamava Jaqueline para participar da conversa e estrategicamente se retirava.

- Oi mimosa, quando é que você vem?

- Vamos terça-feira.

- Vamos?

- Sim. Jaqueline vai junto e eu a convidei para ficar aí em casa.

- Ah sim... Mas minha filha. Ela não está acostumada a espaços miúdos como os da nossa casa. Vai ficar desconfortável. Não me constranja.

- É brincadeira, pai. Ela já reservou hotel, mas guarde algumas noites para fazer companhia a ela   

- Ah sim. Certamente. Será um prazer. Vou me exibir por aí com ela.

- Que bom que você acha isso, Armando. Prometo não decepcionar. – disse Jaqueline rindo

- Putz! Perdão. Não sabia que você estava escutando.

Conforme o combinado, terça-feira no final da tarde chegaram as moças.

- Olá, Armando. Aqui está a sua encomenda. Cumpri o prometido. Está sã, salva e muito feliz. Devo dizer, no entanto, que deixou dois corações despedaçados em Boston. Um é o da minha filha.

- Pare, tia Jaque...      

- Ah... Bom saber. Falamos depois sobre isso, mocinha. Como você está Jaqueline? Cansada?

- Exausta. Saímos de dez graus negativos e chegamos com trinta positivos. Haja saúde. Bem. Você me deixa no hotel? Hoje vou descansar, mas a partir de amanhã estou disponível. A minha Isis ficou triste de não poder ter vindo, mas as aulas começam logo logo. Devo ficar no máximo dez dias por aqui e faço questão de conhecer a Justina.

- Sim. Vamos. Fique tranquila, ela também quer conhecer você.

Foram dez dias em que Armando trabalhou pouco e dedicou muito tempo e atenções a Jaqueline. Isis estava exultante e diariamente passava relatórios à sua xará. Justina também se encantou com a nova amiga do patrão e nas vezes em que foi à casa, tratou de paparicá-la.

Como ainda tinha sequelas de tantos anos de imobilidade, Jaqueline cansava rápido. Caminhava um pouco, sentava, amparava-se no braço de Armando e assim passeavam. E pareciam gostar disso.

- Você não está cansado de pajear uma inválida, Armando? Veja esse barzinho, essa música... Dá vontade de dançar.

- Venha. Eu seguro você. Se ficar muito apertado reclame.

- Eu não reclamaria disso.        

Era inevitável. Tanta conspiração  haveria de ter algum resultado. Enquanto dançavam lentamente, olhando-se, e Armando segurando Jaqueline com uma firmeza além do normal, quase um amasso, beijaram-se.  E depois de um beijo, outro e mais outro e assim acordaram na manhã seguinte: beijando-se no antigo quarto do casal, na casa de Armando.

Isis foi acordada por Justina, com um largo sorriso nos lábios.

- Isis, minha filha, aconteceu aquilo. Como é que vocês dizem? “Rolou”. Não entre no quarto do seu pai. Venha tomar café.

- Meu Deus... Aleluia! Preciso mandar uma mensagem para a mana.

- Bom dia, Armando – miou Jaqueline espreguiçando-se.

- Bom dia. Você está bem?

- Sim. Foi uma noite divina. Não achei que isso pudesse acontecer tão rápido. Agora tenho um problema: com que cara vou sair daqui?

- Bem. As duas alcoviteiras, que devem estar fofocando na sala, passaram uma vida tentando me arranjar namoros, portanto, sem problemas. Encare naturalmente, Isis ama você. Aconteceu o que tinha de acontecer, mas vamos deixar o tempo resolver por nós. Nós dois temos questões sérias em aberto.

- Sim. Tudo é sério. Eu tenho assuntos muito graves para resolver, sem o que nada poderá me fazer plenamente feliz. Tem a ver conosco, mas ainda não estou pronta para falar. Peço que entenda.

- Certo. No seu tempo   

 

III AMARGO REGRESSO

- Isis, minha filha, preciso de você para me ouvir. Vai ser um longo tempo.

- Sério, mãe? O que houve? Ok, podemos falar agora.

- Não vai ser muito fácil, minha filha, até porque intrometeu-se nessa história o intruso mais imprudente e sensível de todos: o coração. E se antes eram só dois, agora são quatro.   

- Não me assuste, dona Jaqueline... 

- Vou começar pelo fim. É mais fácil. Armando e eu nos aproximamos muito nesses dias. Sinto que existe uma química forte entre nós e... Bem, ficamos juntos e eu amei cada segundo.

- Obaaaaa!! Mas?

- Bem. Há dez anos seu pai morreu. Estávamos voltando para casa quando ele surtou. Tinha uma série de questões em aberto no hospital aqui e não queria voltar. Queria ficar no Brasil. Chovia muito naquele dia e ele, ao invés de focar na estrada, falava pelo rádio. Então aconteceu o inevitável: ele bateu o carro de frente, morreu e eu fiquei todos esses anos na cadeira de rodas.

- Até aí eu sei. Estava em casa com a Vera quando recebemos a notícia

- Infelizmente, no carro em que batemos também houve um óbito. Como fiquei muito tempo inconsciente, tudo foi cuidado pelos meus irmãos e acabou ficando por isso mesmo. Nunca mais soube de nada. Sempre me protegeram e pouparam de informações. Não sabia da família que estava no outro carro. Tudo correria em direção ao esquecimento total.  Não sabia de nada, até você conhecer Isis e criarem essa ligação incompreensivelmente linda.. Eis a questão: o acidente em que seu pai morreu foi o mesmo que vitimou a mãe da nossa Isis. Você vai me perguntar desde quando eu sei, e aí entra a maior das minhas culpas: sei desde que vocês se conheceram. Também por isso eu não aparecia para conversar com Armando. Tinha vergonha, medo, sei lá o que mais, além da minha condição, claro.

- Mãe, que coisa horrível!  Inacreditável! Fora o que Armando possa entender sobre o seu silêncio de todos esses anos, não há culpados, mas precisamos encarar essa situação com ele. Eu acho que vou me entender com a Isis, mas, puxa vida, a gente gostaria tanto que você e o Armando ficassem juntos. São tão harmônicos e ele é tão delicado com você. Ademais é um gato e um paizão. Ah, meu Deus... O que vamos fazer?  

- Não sei, filha. Desde que soube, e isso faz tantos anos, tenho o peito apertado por essa proximidade de vocês. Agora meu coração está destroçado porque vejo no Armando o mesmo que eu via em seu pai, quando nos apaixonamos. Não sei o que fazer, espero que você me ajude a pensar. Estou perdida nessa correnteza. Agora veja isso aqui.

Jaqueline mostrou à filha um recorte de jornal falando sobre o acidente, cuidadosamente guardado em um saco plástico, onde também tinha um papel em branco dobrado, escrito à mão.

- Abra e leia, minha filha.

“Atena, você morreu jovem e essa culpa minha família vai levar para sempre. Eu prometo a você mover céus e terras e, com a bênção de Deus e enquanto viver, ajudar a cuidar de sua filha”.   

- Pai Todo Poderoso! Como é possível? Que coisa mais triste isso!

 

IV A REVELAÇÃO   

-Oi, Isis-L, minha irmãzinha do coração. Tenho uma pergunta: se você tivesse que dar uma informação a alguém, por dura que fosse, como você faria? Diria claramente e de cara?

- Acho que sim... Não sei, não me ocorre nada momento. Dê um exemplo.

- Hummm... Bom, sei que você ficou interessada no Bob, quando esteve aqui e que ele também tem uma queda por você. Se eu tivesse pegado ele, como você gostaria de ser informada?

- O quê? Você fez isso?

- Não, só um exemplo

- Ufa! Olha, mesmo assim, acho que gostaria de saber de cara.

- E se fosse o inverso, se você tivesse pegado o Bill, como você faria?

- Primeiro eu não faria isso, portanto, não sei. Mas o que você quer mesmo me dizer? Pare de me enrolar, mana. Ou passamos a não confiar mais uma na outra?

- Tenho algo para contar, mas não sei como. Não tem nada a ver conosco. Tem mais a ver com Jaqueline e Armando.

- Ah é isso? Posso dizer que desde que dormiram juntos, meu pai voltou a cantar no banheiro. Você precisava ver a cara de pateta dos dois no outro dia. Não sei, não, maninha, mas acho que vamos conseguir o que queríamos. Até a Justina está vibrando.

- Pois é, ela chegou aqui feliz da vida também. Mas não é sobre isso. Bem. Falamos depois. Beijo

Isis ficou com a impressão de que havia algo errado. Aquelas questões todas pareceram sem sentido... Ou com um sentido tão amplo que fez com que sua amiga tivesse bloqueado o raciocínio e por consequência o argumento. Certamente é algo grave. Seria com a Jaqueline? Teria adoecido novamente? Resolveu não esperar e retornou o contato imediatamente.   

- Oi M... Você está com tempo agora? Podemos conversar?

- Oi L... Sim. Temos que fazer isso. Acabei enrolando tudo colocando o Bill e o Bob na conversa. Bem... Essa é uma conversa que deveríamos ter pessoalmente, mas como só soube agora não pude aproveitar o seu tempo aqui. E soube por um motivo maravilhoso: Jaqueline está apaixonada por Armando, embora ainda não admita.

- Não me assuste...

- Bem, vamos aos fatos terríveis, e como não vou mais enrolar, vou apenas descrever o que ouvi. E por favor: apenas me ouça, porque vai ser difícil de falar. Sua mãe morreu no mesmo acidente em que morreu meu pai.

- O quê!  O que você está me dizendo?

- Pedi para você apenas me ouvir, porque já está sendo pesado demais falar sobre isso. Mas é bem assim. Minha mãe soube desde que nos conhecemos.  Ela foi se informar a que família você pertencia, quando ficamos amigas e descobriu. Agora leia o que ela escreveu quando você foi a primeira vez lá em casa.

Isis-M mandou o print do que Jaqueline tinha escrito. A amiga leu, ficou um tempo estática e a seguir desandou.

- Perdão, maninha, me dê um tempo, não aguento mais. Quero chorar.

- Choramos juntas. Achei que já tinha chorado tudo, mas ver você assim dói demais.

Após um tempo, Isis-M retomou a conversa:

- Meu pai dirigia o carro e por uma desatenção dele, bateu em vocês. Também por isso minha mãe custou tanto a conhecer Armando. Quando viemos para cá, a pretexto do tratamento, era para fugir da situação, mesmo presa a promessa de ajudar você. Ela não contava que a nossa amizade acabasse se fortalecendo ainda mais com a distância.

- Isis, estou sem chão...

- Eu sei, também fiquei quando soube, e comecei a rezar para que isso não nos afetasse. Eu morreria se você me desse as costas. Por favor, não me abandone...

- Jamais faria isso, muito menos agora. Só não consigo raciocinar

- Minha mãe não sabe como contar ao Armando. 

- Vamos ver... Vou preparar o terreno. Só preciso retomar o centro. Agora, por favor, fale mais comigo. Preciso de você.  

 

V – A PREPARAÇÃO

- Pai, você nunca quis saber sobre o acidente em que a mãe morreu? Quem foi... Culpa de quem... Essas coisas.

- Não. Pelas condições da estrada não posso culpar ninguém. Foi repentino. Saímos da serra com sol e em 15 minutos parece que abriram uma enorme torneira. Não se via nada. Foi terrível. Não quero lembrar disso. Foi muito sofrimento. Nunca houve um amor como o meu e o da sua mãe. Crescemos juntos, namoramos, casamos e vivemos como namorados. Ela era perfeita. Você sabe disso.  

- Sei. Também me lembro bem dela. Inesquecível. Além de linda era carismática. Que coisa... Mas a vida anda. Até achei que ia rolar com a tia Jaqueline. Ela parece bem caidinha por você.

- E vocês fazendo um esforço danado, que eu sei. Até a Justina alcovitando. Não estou preparado para isso, filha. Não sei se algum dia estarei. Atena levou a minha metade negociável. E vamos combinar: juntar duas dores não é uma boa receita, você não acha?

- Mas se você encontrasse as pessoas que provocaram o acidente, qual seria sua reação?

- Não sei. Não penso nisso. Sei, no entanto, que eles levaram metade de mim, como já disse. Que história é essa agora, Isis?

- Nada não. Vai ver há tanto sofrimento do lado de lá como o do lado de cá. Pense nisso.

- Filha, o que está acontecendo? Você tem alguma coisa para me falar?

- Tenho, claro, mas não vou falar. Não interessa no momento.

Ser filha única e ter perdido a mãe quando criança deu à Isis uma maturidade precoce. Era uma menina inteligente, articulada e com uma bela visão da vida, ainda que com apenas 15 anos. Queria plantar na mente do pai uma versão mitigada do acidente que os tinha abalado. Ele pensaria a respeito, conheci-o bem. Agora precisavam, ela e sua xará, aplainar o caminho pedregoso que tinha ficado, estava esquecido, mas que voltaria mais forte quando tudo fosse revelado. Pobre Jaqueline!

 

VI - TEMPO

Não é o tempo que aplaca as tensões. É a pluralidade de ações inseridas no tempo que ajudam a aliviar os males. Jaqueline e Armando tornaram-se assíduos pela internet. Levavam uma espécie de namoro constrangido à distância. Havia um sentimento bom entre eles, mas que carecia de combustível. Ou de revelações.  Certamente, se estivessem próximos, as coisas poderiam ser mais claras e intensas.

- Pai, em julho temos alguns dias de férias. Acho que você também pode se dar esse direito, não? Vamos viajar? A Justina está louquinha para ficar só.

- É disso aqui que você está falando?

Armando mostrou para a filha três passagens. Justina iria junto.

- Meu amor! Pai, amo você! A Justina já sabe? Vou contar para a Isis-M. Você já combinou com a Jaqueline?

- Não, a Justina não sabe. A sua tarefa é prepará-la e agilizar o passaporte dela. E avise que lá, julho é verão. E sim. Jaqueline e eu estamos acertados. E atenção: não ficaremos em hotel.

- Oba!!!!! Agora vai!

- Cale-se. Temos dois meses até lá.

... Que passam voando. Num piscar de olhos estavam reunidos como uma família, na sala de Boston. Quem os visse através da enorme janela da sala de jantar diria que era uma família comum, incomumente feliz. Um casal, duas filhas lindas e uma amiga, sentados à mesa conversando e rindo. Justina estava muito à vontade, sem fazer a mínima questão de esconder sua torcida para que aquela visão se perpetuasse. “Vocês formam um belo casal”, comentou depois de meia taça de vinho, já sonolenta e se retirando para o quarto.

Tão logo Justina saiu, as meninas cruzaram seus olhares e também se declararam cansadas. “Ãrrã... Bill e Bob na pauta”, resmungou Armando. “Papai e mamãe também...” E se foram rindo.  

 - Obrigado por ter vindo, Armando. Você me faz muito bem.

- Há muito não me esforçava tanto para isso. Quero fazer bem a você. Depois de longo período, por fim me sinto vivo.

O casal sentou-se em um sofá voltado para a janela, por onde filtrava as luzes da rua. Era verão em Boston e nessa época não há diferença das temperaturas e da umidade do sul do Brasil. Uma noite agradável. Ideal para o começo de muitas coisas boas.

Jaqueline havia preparado um texto, escolhido e decorado cada palavra, a fim de que o que fosse dito chegasse da forma mais suave possível aos ouvidos de Armando. Precisaria, no entanto, reunir coragem. Por outro lado, como estragar aquele momento tão mágico quando, depois de tantos anos, estava reencontrando o prazer de viver? A negação dessa iniciativa descia pela garganta com um sabor amargo de medo, com notas de egoísmo. Ao menos aquela noite ela haveria de preservar. Então deixou-se abraçar por Armando, sentados lado a lado, silentes e ali ficaram até que o silêncio também tomasse conta das ruas. Depois recolheram-se, cada um para o seu quarto.

Ouvidos atentos aguardavam o desfecho da noite... Ao ouvirem o ruido de duas portas se fechando, as meninas e Justina foram dormir, decepcionadas. Jaqueline, no entanto, sabia com quem lidava. Conhecia demais a filha. Por isso colocou Armando em um quarto contíguo ao seu, com uma porta de acesso. E ao inferno o medo e o egoísmo! Aquela seria a segunda noite de amor do casal.

- Meninas, vamos tomar café. Já é tarde

- Justina... Só mais meia hora...

- Nada disso. Vamos lá.

A casa tinha dois empregados. Uma moça brasileira, que cuidava das tarefas domésticas e seu marido americano, uma espécie de faz tudo. Ambos moravam lá, em uma casa anexa. Justina entrosou-se rapidamente com a moça e passou a ajudá-la.

-Cadê o casal, Justina?

- Vá saber. Eu é que não vou chamar. Como vocês dizem, acho que não “rolou”.

- Esses adultos se acham o centro da moral. Perdem um tempo enorme. Caralho!

- Modos, menina!

- Bom dia, filhotas...

- Oi mãe. Tão feliz porquê? Dormiu bem?

- Não me lembro de ter dormido.

- E meu pai, tia Jaque? Sabe se já levantou?

- Sei. Está correndo no parque aí da frente.

- E... Posso saber como você sabe disso, mamazita?

- Não é da sua conta – respondeu Jaqueline com um leve sorriso no rosto.   

Foi o suficiente para receber alguns apertões e vários beijos em cada bochecha, enquanto teve as suas pernas servindo de colo para duas marmanjas.

- Cuidado, meninas. Dona Jaqueline ainda não pode ter muito peso em cima, saiam já daí.

- Como assim “não pode receber peso em cima”, Justina? Você só pode estar de brincadeira. Pelo que dá para ver, tio Armando deve pesar 90 quilos. Mamãe não é fraca.  

- Modos! Respeite a sua mãe! -  Mas a severa Justina não conseguia nem franzir o cenho de tão feliz.  

- Vocês sabem que tudo isso pode ser uma ilusão. Fui egoísta e covarde ontem, mas não posso mais retardar o que preciso fazer. Dói porque, na verdade estou amando. Como achei que nunca mais poderia. 

- De que estão falando?

- Contem para Justina, meninas.  

As duas meninas sentaram-se na sala com Justina e detalharam tudo o que sabiam do acidente.

- Minha Aparecidinha abençoada! Doutor Armando não vai reagir bem. Sempre se escondeu do assunto. Vai trazer todo sofrimento de novo. E eu sei o quanto esse homem sofreu.

- O que devemos fazer, Justina? Ninguém conhece meu pai melhor do que você.

- Contar, claro. E já, antes que o dano fique maior. “Como”, é que não sei. Não gostaria de estar na pele da Dona Jaqueline.  Ô destino esse! Só rezando mesmo.

- A mãe deverá falar hoje com ele.

- E eu vou ter que prepará-lo. Eu sei que ele faria tudo por mim. Só não posso violentá-lo. Vocês acham que deveríamos ficar em casa ou sairmos e deixá-los à vontade?

- Eles vão precisar de nós.

Mas Jaqueline tinha outros planos. Fosse falar em casa, talvez constrangesse Armando e não quis prevalecer-se da situação. Então convidou-o para sair. Jantarem fora, apenas os dois, em um restaurante panorâmico, lindo e aconchegante.

Armando estranhou, no entanto, o comportamento das meninas. Um convite daqueles precederia, no normal, uma grande festa das duas. Ao contrário, apenas recebeu um abraço meio angustiado da filha, com uma recomendação “Pai, eu sei que você faria qualquer coisa por mim. Hoje você terá uma chance de ouro para provar isso”. Não entendeu. Ou entendeu por outro lado.

O restaurante, de fato, era maravilhoso, bem como a vista, e os espaços cabines isoladas, umas das outras. E logo quando brindaram o espumante, Jaqueline começou a falar.

- Não é por acaso que escolhi estar aqui com você hoje. Tenho algo a falar, espero que você me escute e rezo para que compreenda. Há dez anos fiquei paraplégica, processo que, você sabe, durou muitos anos de recuperação. Antes disso, também amarguei longo período de inconsciência na UTI, fato que me fez, ainda que involuntariamente, minimizar o acidente. A minha viuvez, no entanto, foi dolorosa. Tínhamos uma vida familiar harmônica e de muito amor, mais ou menos o que a sua Isis fala da vida de vocês.

- Jaqueline, por que estamos falando sobre isso?

- Por favor, me ouça, foi muito difícil para mim decidir falar. É necessário por todo esse envolvimento que temos, a partir das nossas meninas. O acidente em que faleceu meu marido e me deixou naquele estado, aconteceu em um final de tarde chuvoso. Muita chuva em um domingo. E só aconteceu porque ele se distraiu, falando pelo rádio, em uma curva, subindo a serra. Perdeu-se e bateu de frente em um carro que vinha no sentido oposto. Nesse outro carro vinha uma família: casal e uma filha. Soube muito tempo depois de ter recobrado a consciência de que a moça tinha falecido.

Armando apenas ouvia. Soltou o olhar para o infinito e passou a reprisar mentalmente o filme de terror daquele final de tarde. Suas perdas, seus medos, o estado de deterioração pessoal que viveu quando foi acudido por Justina. Se no início tinha vontade de falar alguma coisa, quando compôs o quadro fechou-se em copas. Jaqueline continuou.

- Causamos um dano enorme para sua família. A minha culpa direta, no entanto, passou a existir quando eu soube de quem vocês se tratavam. Descobri isso na primeira vez que a minha Isis me falou da sua. Quis saber com quem ela brincava e descobri o quão terrível era o destino. Ou não. Poderia ser uma oportunidade de redenção e eu fiz a promessa de ajudar a sua Isis. Pedi a Deus que me permitisse isso. Mas em relação a você me calei. Primeiro porque eu tinha vergonha do meu estado, depois porque tive medo, sei lá. E também porque, ao ver a minha filha e a sua juntas, comecei a entender o que são e o que fazem os anjos. A solução que encontrei, solução covarde, foi me mudar para cá. Meu marido trabalhava aqui nesse hospital que é referência mundial, mas eu poderia vir vez por outra e voltar e o tratamento seria igual. Tentei assim afastar as meninas. Era mais fácil que  explicar, mas você acompanhou no que se transformaram. São mais que irmãs, como se Deus estivesse me cobrando a promessa que tinha feito. E para culminar, você. O que sinto por você é algo que eu não esperava nem em um sonho juvenil sentir novamente. Não depois do casamento que tive. Você traz junto toda essa carga emocional que nos liga, que liga nossas filhas, além de ser um homem maravilhoso. Peço que você tente me perdoar e... Bem... Por favor, diga alguma coisa.

- Antes de sairmos, Isis me abraçou e me fez lembrar que eu faria qualquer coisa por ela, e que hoje eu teria uma boa oportunidade. Ela já sabe disso?

- Sim. Contei para a minha Isis quando voltei do Brasil e tínhamos ficado juntos. Ela naturalmente contou para a sua e que deve ter se aconselhado com Justina.

- Estou sem saber o que dizer. A medida em que você ia falando eu ia remontando o trailer dos acontecimentos. Lamentei por muito tempo não ter morrido naquele dia. Só me recuperei anos depois, com o  apoio dos meus anjos da guarda. Agora, as feridas estão descascadas. Estou em carne viva de novo. Não há o que perdoar, Jaqueline, você não tem culpa de nada. Eu é que não sei lidar com isso. Nunca aprendi e nunca vou aprender. Peço que você me perdoe por me sentir muito menor que a minha dor. Ela me tolhe os horizontes. Gostaria de voltar para casa.  

Não havia como superar, a despeito de culpas ou não culpas, todo o processo remasterizado. Armando deixaria Isis ficar o tempo que tinham combinado, mas retornou ao Brasil no dia seguinte. Estava devastado e a fiel Justina o acompanhou. Tanto tempo para viver um novo amor e agora que o tinha encontrado, ele era o veículo que lhe havia tirado metade da sua vida.

Dias depois retornou a filha. Ao se reencontrarem, no lugar de vivas, mais lágrimas. Armando pediu à Isis que respeitasse o seu tempo e não lhe cobrasse nada.

Armando capitulou de vez. Como se não bastasse o desleixo pessoal e profissional a que se entregara, voltou a beber fora de controle. Até o dia em que chegou em casa, serviu uma dose e chamou Justina, mas quem respondeu foi Isis.

- Justina foi embora, pai, você sabe porquê. E se as coisas continuarem assim por aqui, eu também vou. Você pode ainda ter direitos sobre mim, mas é só até daqui a pouco. E duvido que queira ficar comigo, caso eu me decida ir. E hoje eu vou dormir fora.

- Como assim, vai dormir fora? Onde e com quem? Você está louca?

- Não vou lhe dizer. Caso queira, pode mandar a polícia atrás de mim. Você perdeu o meu respeito.  

O fundo do poço estava próximo. Armando era um zumbi que não aceitava ajuda. Não queria. Acabou sendo salvo por Justina, em uma manhã, quando ela passou para ver se estava tudo em ordem. Ia na metade da manhã na certeza de que não tinha ninguém e aí aproveitava para limpar e ajustar algumas coisinhas. Encontrou o patrão desfalecido, nu, no chão do banheiro, em coma alcoólica. Era hora de não o abandona-lo, e chamou a filha, que mal o cumprimentava, isso quando o via.

- Por onde você anda, minha filha? Seu pai precisa de ajuda. Acho que nós não queremos vê-lo morrer, não é mesmo? Ontem o levei em coma para o hospital. Seu celular estava desligado, onde você estava?

- Meu Deus! Que coisa horrível é essa? Estava com Jaqueline. Ela está há uma semana aqui no Brasil, louca para se encontrar com ele, mas como? Não nesse estado.

- É mesmo? E como ela está?

- Totalmente recuperada. Linda e apaixonada por doutor Armando. Mas também muito sofrida com a situação.

Jaqueline era uma mulher de decisões firmes. Amargara alguns dias as consequências da revelação, mas a vida precisava dela forte e inteira, afinal, tinha uma filha para cuidar e uma promessa para cumprir. Estivera no Brasil, quis ver Armando, mas Isis desaconselhou. Não era o momento, porque talvez as feridas se tornassem ainda piores. Paciência. Aceitaria a situação como ela se resolvesse.  

Já as meninas pareciam cada vez mais próximas. Tornaram-se adultas, amadureceram, tiveram seus romances, suas perdas, muitos ganhos e se encaminhavam para um lindo futuro.

Armando, após um período em uma clínica de desintoxicação, exigência da filha e de Justina, voltou para casa cheio de promessas. Tivera tempo para colocar na balança a dor que não o abandonava e sua filha, que o abandonaria, caso se deixasse vencer. Ainda era relativamente jovem e poderia, porque não, ter uma vida plena e ver sua Isis realizada. E Justina estaria por perto para fazer com que cumprisse suas promessas.      

Porém, o dia em que Isis viajaria para os EUA em busca de especialização chegara. Iria, enfim, morar com Jaqueline, a convite desta. Não havia com prendê-la sob as asas, e ir embora já não estava mais à mercê de sua vontade ou opinião. Elas já tinham decidido. E ele ficaria sozinho com a sua Justina. Era seu destino, marcado a ferro e fogo em uma curva na descida da serra, num domingo chuvoso.

- Pai, não sei como vou dizer isso, mas estou feliz, perdão por deixá-lo. Vá me ver de vez em quando. E continue se cuidando, por favor. Sempre vou amar você e daqui a bem pouco tempo já estarei com saudades suas. Quando deixar de trabalhar ou quando quiser, vá morar comigo. Sempre seremos uma família, por menor que seja.

- Sim, filha. Não consigo falar. Vou morrer longe de você.

- Não. Você passou mais de vinte anos tentando morrer. Agora crie vergonha e viva. Faça isso por mim. Ao menos dessa vez tente viver por mim.  

Não foi uma vida fácil adiante, mas Armando tratava de se cuidar. Voltou a conversar com Jaqueline. Havia agora mais assuntos em comum a serem tratados, transferência de recursos para manutenção da filha e coisas afins. Tratavam-se cordialmente, sufocando os sentimentos que haviam.  E resistia aos convites de ir ver a filha.

Alguns anos depois, Armando teve mais uma perda. Justina, a sua Justina morreu. Estava sentada tomando chá, choramingando de saudade de Isis e despencou. Morreu serenamente. Triste, mas em paz.  Armando resolveu não avisar a filha que estava prestes a concluir seus estudos. Ele iria vê-la e falaria pessoalmente sobre essa perda.

Dois meses depois, Armando embarcou. Ao chegar em Boston para a formatura, Armando se sentia bem. Voltara aos exercícios físicos e desafiava a bebida, ou seja, bebia pouco e de vez em quando. Pediu que a filha fosse vê-lo no hotel. Soubera que Jaqueline estava tendo um relacionamento e não queria aparecer no momento. Já estariam juntos à noite. Mas sentia um engasgo amargo ao lembrar dela, antevendo-a com outro homem.

O evento era portentoso. Pessoas bonitas, bem arrumadas e Armando não economizou cuidados na aparência. Era noite de festa para as pessoas que amava e queria estar à altura delas. A chegada de Jaqueline foi impactante, mas dolorida. Lindíssima, desenvolta e acompanhada. Quando o viu, foi cumprimentá-lo e apresentar o suposto namorado, um americano enorme. Segundo soube, diretor do hospital onde as meninas passariam a trabalhar. Armando falava pouco inglês, portanto, resumiu-se em acenos e sorrisos. E uma questão martelava fortemente sua cabeça: “Armando, em quais dos infernos você estava que deixou escapar essa mulher?”. E durante grande parte da cerimônia não desviou os olhos dela, que parecia nem tê-lo notado. Aquilo doía, porém, era sinal de vida.

A sua Isis, foi designada para o discurso final. Antes de terminar, chamou o pai ao placo e disse algumas palavras em português que poucas pessoas entenderam. “Pai, nasci de você e de uma deusa que será eterna. Morremos um pouco com ela, mas renascemos para o resto da vida. Aqui é o seu lugar, venha ficar comigo, esse é o nosso destino. Todas nós esperamos por você”. Abraçaram-se, choraram e a plateia respondeu com aplausos e vivas.

Antes de retirarem-se Armando foi cumprimentar Jaqueline e despedir-se do casal.

- Nada disso. Você não vai embora sem conversarmos. Somos próximos demais para tanta frivolidade. Veja as nossas filhas... Você não precisa respeitar o que sinto por você, mas a nossa ligação familiar é sólida e precisa ser respeitada.

- Eu sei, querida. Sou um equívoco ambulante, sem forças para vencer meus traumas. Vou visitá-la sim, afinal, minha filha mora lá. Quando fica melhor? não quero causar constrangimentos.

- Sim. Vá amanhã à noite.

Armando usou o dia seguinte para paparicar a filha e a xará. Foi apresentado, por fim, aos namorados, Bob e Bill, todos pertencentes a mesma universidade e cursos similares.

- Vocês tratem de ensinar esses marmanjos a falar português, a fim de agradar ao sogro.

- Ao sogro? Hummm... exclamou Isis-M – Vai haver guerra e eu já sei para  que exército torcer.

- Que não custe seus empregos.

- Ah é. Melhor não torcer.

Com 20 graus negativos, Armando chegou à casa de Jaqueline no final da tarde.

- Tio Armando! Que bom que você chegou. Estávamos de saída e assim mamãe não ficará sozinha – debochou Isis.  

- Pai, você quer que eu repita o que lhe disse anos atrás, um pouquinho antes de você fugir do seu destino?

- Não precisa, filha. Senti minha alma rasgar ontem quando vi Jaqueline acompanhada. Vou custar a me perdoar.

Jaqueline entrou na sala a tempo de beijar as filhas. Sim, as filhas, com as recomendações de praxe. Pegou Armando pela mão e foram sentar-se no mesmo sofá, de anos atrás, olhando as luzes da cidade. No momento, no entanto, a cidade era quase um bloco de gelo.

- Jaqueline, eu...

- Não diga nada. A menos que vá dizer que me ama e que nunca esqueceu de mim.

- Mas e o...

Jaqueline selou os lábios de Armando com os seus e as palavras se enlambuzaram de paixão. Da sala para o quarto, até o amanhecer.

- Você quer me explicar que tipo de relação tem com aquele cidadão enorme?

- Ele é diretor do hospital em que meu marido trabalhava e onde as meninas irão trabalhar. É um amigo muito querido. Gostamos muito um do outro. Foi quem me tratou esses anos todos, mas ele gosta tanto de mulher quanto eu. Como tem receio de se expor eu o ajudo no papel hetero dele. Ele sabe de nós e o quanto você me fez sofrer esses anos todos. E agradeça às nossas filhas, em especial à sua, o fato de eu nunca ter namorado ninguém. Faziam da sala uma horta e plantavam-se como espantalhos, quando eu recebia alguma visita suspeita. Agora decida-se. O que pretende da vida?

- A minha vida mudou-se para cá. Nada mais me prende no Brasil e eu quero ficar perto da minha filha; perto de vocês. A minha querida Justina faleceu meses antes da minha viagem. Eu queria trazê-la para a formatura, mas acho que ela já não andava se sentindo bem, só não falava. Ainda não contei para Isis, não queria estragar a festa. Bem, hoje vou a embaixada. Tenho possibilidades de trabalho por lá, em função da minha especialização em direito internacional. Tenho ótimas chances e terei a resposta hoje. Só preciso melhorar o meu inglês. Vou morar aqui perto, portanto, estaremos sempre juntos, caso não haja espantalhos na sala.

- Já não era sem tempo. Você está me fazendo muito feliz e prometo cuidar bem de nós. Bem. Devo dizer a você outra coisa e, por favor, entenda que isso fez parte do meu sacramento; da promessa que fiz quando as meninas eram crianças. A sua Isis tem uma conta/investimento que abri tão logo você fez a primeira remessa para ela. Todos os seus depósitos foram para lá, excetuando o que ela usava para se manter. Está lá, intacto, ela não sabe o quanto, mas é um bom dinheiro.

- A universidade dela foi você que pagou, então?

- Não. Eu iria fazer isso, mas ela é muito talentosa e inteligente. Conseguiu a bolsa por seus próprios méritos.  Agora cale-se e me beije. Amo terrivelmente você e sua filha... Minha filha. É mais minha do que sua.

Nada mais poderia mudar o rumo das coisas. Dia seguinte, com tudo encaminhado junto a embaixada e as chaves da casa na mão, Armando foi jantar com a namorada e as filhas. Havia coisas a serem reveladas.

- Bem, meus amores, tenho novidades. Começo pela ruim, mas foi a que desencadeou o resto das minhas decisões. Isis, minha filhinha, lamento dizer, mas a nossa Justina faleceu. Estava tomando chá comigo quando apagou. Morreu serenamente, um pouco depois de me dizer que sentia muito a sua falta.

Por óbvio que foi preciso tempo e muitas palavras de conforto para Isis. Justina tinha sido a única mãe que conhecera depois de perder a sua, e antes de encontrar Jaqueline.

Alguns minutos depois, Armando continuou:

- Vou continuar, milha filha. Você disse para todos ouvirem e alguns entenderem que o meu lugar era junto de você. Então... Estas são as chaves da minha casa. É alugada e fica 50 metros daqui, ou seja, me mudei para cá – foi impossível segurar o salto de Isis sobre o pai – Calma que tem mais: fui aceito na embaixada. Vou trabalhar lá, mas preciso urgente de aulas de inglês. O meu é insuficiente. Terceira notícia... Não, não é notícia, é um pedido: Isis-M, eu amo você por tudo o que representa para a minha filha, e amo de paixão a sua mãe. Quero recuperar cada segundo que botei fora nesse tempo todo e limpar da memória a imagem terrível de vê-la entrando na festa de formatura acompanhada por outro homem. Só aceito dividi-la com você e a minha Isis, você se incomoda com isso?

- Ufa! Aleluia!  Enfim vencemos, Isis-L. Com muitos anos de atraso, finalmente seremos uma família. E vocês tratem de aproveitar estas duas damas de honra maravilhosas e se casem. Não abrimos mão disso.  Não têm mais idade para ficarem de namorico. Venha, mana, vamos deixar os velhos tirarem o atraso.

 

VII – EPÍLOGO

- Rápido, M, rápido que eles já estão chegando! Atena, minha filhinha, não mexa no bolo!

Alguns minutos depois, Armando, 75 anos, em ótima forma, aparecia na porta da frente, que tinha o acesso adaptado para cadeirantes. Trazia sua amada Jaqueline que, com o passar dos anos, ainda em função dos traumas do acidente, voltava a ter dificuldades para andar. “Entre a bengala e a cadeira, prefiro dar trabalho para o meu velho”. Mas não era aquela cadeirante amarga e sorumbática lá do início. Era uma linda septuagenária bem vestida, altiva e maquiada. “E sexualmente ativa”, não esquecia de dizer.

O terreno da casa não era nem a metade daquele em que a família de Jaqueline morava no Brasil. Mesmo assim, mas porque também se prometeram jamais se afastarem, as meninas Isis-L e Isis-M demoliram a casa, construíram uma pequena e confortável ao lado para os pais e ergueram dois sobrados geminados, onde passaram a morar depois de casadas.   

E nesse dia, comemoravam as bodas de prata de Armando e Jaqueline.

FIM

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

segunda-feira, 22 de junho de 2020

DEBRA PAGET




Pensei muito em Debra Paget a partir do primeiro filme que vi com ela "Love me tender", que contracena com Elvis Presley. Era a estreia dele no cinema e foi o seu maior sucesso. E morre no fim, para o desespero das minhas primas.

Depois vi "Tigre da Índia" e "Sepulcro Indiano" e bem mais tarde, embora fosse um filme anterior "Princesa do Nilo". Só por ela mesmo, os filmes... Belas porcarias.
A paixão era inevitável, mas pensei melhor: "Se a mina mandou um pé na bunda do Elvis Presley, porque não o achava à sua altura, que diria do guri do Portella!". Fiquei na minha e ela com Howard Hughes, o pobre.

Debra Paget não foi um cometa, desses que passam uma ou duas vezes pela tela e desaparecem. Mas quase isso.
Lindíssima! Talentosíssima! Trabalhou apenas 15 anos, de 1948 a 1963, em 36 filmes, como "Os dez mandamentos", entre outros, e deixou marcas profundas na 7º arte, além das paixões frustradas minha e do Elvis. Largou a boca com pouco mais de 30 aninhos, tornou-se uma Cristã-nova e foi criar seu filho japinha.
Quando dançamos juntos em "Tigre da Índia" (faço uma "pontinha" como naja) lembro do Neymar e falo para mim mesmo "Saudade do que não vivemos". Agora... Assistam ao vídeo e imaginem os rubores pudicos das tias assistindo a essa dança, em 1959, quando erotismo era coisa feia!
Debra ainda está entre nós. Vive isolada no Texas, está com 86 aninhos.
Ave, Debra! Morituri te salutant (os mortais te saúdam)

sábado, 10 de agosto de 2019

YOM KIPUR


Há seres iluminados, e eu conheci alguns, que parece já terem nascido pais. Há outros que aprendem com o próprio exercício da paternidade; há os que nunca aprendem e ainda há os que ousam não saber do que se trata. O fator-pai não sei ao certo identificar. Sei que se sustenta em alguns pilares. Uns gostando e sendo amigos, outros rígidos e gerenciais, ou uma mistura disso tudo que, dizem, é o ideal. Mas tudo isso tem o prazo definido pelos filhos e sua tomada de rédeas dos próprio destinos. É inexorável.

Eu, bem assim como o meu pai, só aprendi a gostar, quase nada além disso. E amo à proporção do tempo e as distâncias que só fazem crescer, o que acaba resultando em dor e saudades.


Fui um fracasso como gestor do tema, e tomo sempre o dia dos pais como o meu Yom Kipur (dia do perdão). Nesse dia sempre peço perdão pelo que não fui como filho e pai, seja por obstáculos que eu mesmo criei, seja por circunstancialidades fatais na origem ou seja pela inabilidade inata de lidar com os temas. Nunca, no entanto, por desamor, o que no caso passa de atenuante a agravante, uma vez que consagra a certeza de que eu poderia ter feito melhor.


E o conformismo quando chega é sempre amargo, porque vem nos lembrar que as páginas em branco que nos deram, onde rabiscamos nossos passos não são rascunhos. Não há "control Z" e nada pode ser editado. Cada risco é parte da obra acabada.


No Dia dos Pais, em que os meus fantasmas vêm em bloco arrastar correntes na minha consciência; que lembrar do meu pai tem o mesmo valor que lembrar dos meus filhos, é dia também de agradecer ao Velho o fato de ter herdado e transferido com orgulho um sobrenome; de ter sido amado como filho, e além de amar os meus, ter descoberto, enfim, que ser pai é mais do que um ditongo.


Devo ter aprendido isso quando percebi que aventais, meias, cuecas e camisetas são mimos que, ao serem entregues dentro de um abraço, tem um valor maior do que qualquer conta na Suíça.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

HOMENAGEM AO DÉCIMO ENCONTRO DE BASQUETEIROS - PLACA












X ENCONTRO DOS BASQUETEIROS DE URUGUAIANA

O Encontro dos Basqueteiros nasceu para ser uma espécie de paradoxo temporal. Uma viagem lúdica iniciada em 2001; uma renovação de votos de amizade, carinho e companheirismo entre pares, e de amor a Uruguaiana, a nossa terra santa que nos realimenta e energiza.

Em quase duas décadas de encontros, afora os mapas de tempo desenhados em nossas lousas físicas, nada mudamos. Que bom que nada tenha mudado! E pouco importa para onde tenhamos levado as carcaças cedidas em comodato pelo Criador, em espírito jamais saímos daqui.

Que esta homenagem, tatuada em aço na praça que nos concentra; no coração das nossas melhores e mais puras lembranças, seja a nossa profissão de fé sobre os valores humanos declarados que nos unem desde sempre e que assim permanecerão eternamente.

Basqueteiros de Uruguaiana
Maio de 2019

segunda-feira, 24 de junho de 2019

SUPEREGO





Acumular-me de atenuantes, ainda que inúteis,
Porque sou minha acusação mais dura;
Perdoar-me, ainda que não haja perdões possíveis,
Porque sou eu a minha única redenção;
Amar-me, ainda que já não dimensione mais isso,
Porque sou meu apego mais leal,
Alimentar-me de utopias, ainda que improváveis,
Porque preciso disso e ninguém sonha melhor do que eu.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

sábado, 1 de junho de 2019

O JOELHO




Texto de 2005 - do livro Castelo de Guardanapos 

O joelho, salvo duvidosas interpretações, aberrações traumáticas ou genéticas, fica no meio da perna. Via de regra passa despercebido ou quando muito habita o imaginário fantasioso de alguns. Mas não é tão somente isso. Penso no joelho como um Everest feminino. O pico onde meio século atrás as mulheres fincaram a bandeira redentora de suas conquistas.  

No comecinho dos anos 60, meu pai me falava dos vestidos de antes que, ousados, deixavam à mostra tornozelos  e canelas. Falava e deixava brilhar o melhor tom de azul que tinha nos olhos, borboleteando pensamentos nas velhas barras rendadas, saudoso. Súbito, as barras chegaram aos joelhos e no momento imediatamente posterior, ultrapassava-os, marcando limites alguns centímetros acima. A redentora Mary Quant levava a mulher a conquistar o joelho, centro da perna e início de todos os mistérios. A época se prestava a revoluções sociais e de costumes.  

A mini-saia entrou como estandarte feminino no pacotaço, que teve seu auge naquela suruba de Woodstock.  Pais politicamente corretos  e que não queriam pagar o mico de conservadores apenas culpavam as mães pelo abuso das filhas. Pais ortodoxos davam duro em nome da moral e dos bons costumes, reprimiam e castigavam. As filhas usavam saias comportadas, na altura das canelas, plissadas, godês, amplas. Até a primeira esquina. Ali o cós se enrolava com quatro dedos gordos de dobra, até atingir a altura desejada, por elas e pela galera salivante que se desdobravam em estratégias para conseguir o melhor ângulo de observação. Ia desde a fixação nas cruzadas de perna, que instigavam o instinto selvagem de cada um, reuniões em baixo das escadas e até a lenda do espelhinho despudorado se equilibrando no bico do sapato em busca de flashes. Saudades de ti, Colégio União!

Depois que a saia transpôs os joelhos, liberou geral. Romperam-se todas as fronteiras e a mulher não parou mais de conquistar, sempre em duplas, a saber: primeiro tornozelos, depois joelhos, nádegas e seios. Estes que já se espremeram em espartilhos e corpinhos, passaram por porta-seios e outras amarras agora também ameaçam (ou prometem?) liberdade total.  Será como um assalto ou sequestro. Quando menos você, pai zeloso e de férias na praia esperar a filhinha, de costas, lhe pedirá: “pai, desamarra p’ra mim” . Você passa de inocente a cúmplice. E não se iluda, a mãe já sabia. Tudo igualzinho àquele dia de quarenta anos atrás quando uma filha descobriu os joelhos.

Assim como o homem costuma, ou costumava, afirmar seu machismo erguendo obeliscos, a mulher deveria erguer monumentos ao joelho. Lá tudo começou. Mais do que uma articulação fria no inverno, que costuma atingir rins incautos na reversão da posição "conchinha", o joelho dá ginga, balanço,  é cheio de redondices e seduz pelo imaginário, portal das reentrâncias. 


É também responsável direto pela formação da vida e conseqüente preservação da espécie. No entanto, não estarão juntos nesta última tarefa. Ela, a vida, só se faz quando os dois joelhos se afastam.

sexta-feira, 31 de maio de 2019

A CRIAÇÃO





Estava tudo certo. Fora criado o reino animal, mas o Criador estava num impasse. Já tinha decidido que voariam os pássaros, nadariam os peixes e andariam outros bípedes e os quadrúpedes. Precisava então distribuir alguns atributos especiais. Tinha destinado ao homem a inteligência absoluta, mas, só descobriria depois, isso lhe traria alguns desconfortos.

Considerou que a fidelidade deveria ser canina e a deu ao cão, lógico, além de bom faro para que pudesse se achar em dia de mudança. Na onda da mesma fidelidade entraram os peixes que, orgulhosos, sairiam mar a fora proclamando que filhinho de peixe, peixinho é. Deu olhos de lince ao lince, sem esquecer-se de produzir especialíssimos olhos de águia para a própria. Dotou o gato de acrobacia diferenciada para que mais tarde pudesse mostrar ao mundo o que haveria de ser o pulo do gato. A porca teria o rabo bastante flexível, uma vez que alguém haveria de vir torcê-lo em caso de apuros. Já o seu marido teria duas virtudes indiscutíveis: o lombinho e o pernil. Deu à vaca muita paciência  e anticorpos, pois haveria de passar a vida inteira indo para o brejo. A propósito de bovinos e paciência, enquadrou o boi, a fim de que ostentasse sem queixas os chifres e que pudesse elaborar bem suas perdas. Ele passaria a ser o símbolo de doação e desprendimento. Nasceria como qualquer mamífero. Ainda jovem lhe arrancariam a masculinidade barbaramente, sem anestesia; passaria sua curta vida como corno manso para logo a seguir ser morto, retalhado, queimado no calor das brasas e servido como pasto. E algum sádico ainda haveria de gritar: “o meu, mal passado!”.  Pobre boi. Mas ainda assim haveria de ter bom sono, pois dormiria com qualquer conversa mole.

O Criador teve dúvidas quanto ao burro. Burro ele seria, claro, por isso viveria emburrado e empacando, no entanto seria dócil o suficiente para ser amarrado à vontade do dono e humilde para que baixasse sempre as orelhas quando outro burro falasse. Ou quando alguém, despercebido, desse com ele n’água. 

A produtividade ficaria com coelhos e galinhas. Os primeiros viveriam focados num dos mandamentos para preservar a espécie. Cresceriam e se multiplicariam rapidamente, pois, mais dia menos dia, haveria de aparecer alguém com vontade de matar dois com uma única cajadada. As galinhas, que de grão em grão encheriam o papo, deveriam ser rápidas e abundantes na postura, evitando que algum apressadinho viesse a contar com o ovo no... Em trânsito. O marido desta, polígamo assumido, além de cantor e ancestral do relógio-ponto teria grande virilidade, mas não haveria de ser lá essas coisas como amante.

Deus olhou com tristeza para o peru. Haveria de ser uma dessas criaturas que nunca participam de festas, pois enchem a cara antes e morrem na véspera. Até o sétimo dia talvez não conseguisse retira-lo da depressão.


Quando procurou a serpente o Criador não encontrou. Não estava confortável. Não achou uma boa ideia a criação daquele ser frio, rastejante e sinistro. Queria livrar-se dela. Assim, resolveu premiar aquele que a matasse desde que mostrasse o pau. Mas que não houvesse mal entendido.

Por descuido nasceram insetos. O que fazer com eles? Bem, o Criador era criativo. Grilos habitariam a cabeça do homem para fazê-lo refletir,  e pulgas, vez por outra colocar-se-iam atrás de orelhas para após as reflexões.  Estes, então, participariam de momentos chatos. Chatos? De onde vieram esses?

No fim do expediente restavam poucos atributos para serem distribuídos. A quem o Criador contemplaria com a moral e os bons costumes? O homem, pela capacidade de discernimento e para justificar a imagem e semelhança seria o mais indicado. E Deus perguntou ao homem se seria capaz de arcar com essas duas virtudes, e este vacilou. Desconversou dizendo que estava bom demais o que ganhara. Além disso, tinha um projeto futuro já desenhado: seria um ser político, onde esses dois “apêndices” seriam irrelevantes.  Dependeria sim da sua inteligência, capacidade de liderança e observação.

Para esse projeto futuro, também lhe disse o homem, que dispensaria virtudes como as do cão e iria direto ao gato testar seus pulos. De linces e águias, imaginariam como ficaria com os olhos destes; aproveitaria a paciência do boi, mas só para treinar metáforas flácidas, tendo o cuidado para não seguir o caminho da vaca. Iria, por fim, até a serpente negociar. Mas iria de pau na mão, conforme desejo do Criador e, dependendo do bônus poderia matá-la. Antes, porém comeria a maçã e a Eva.

Era o sexto dia, seis da tarde. Não dava tempo para mais nada. A criação fora encomendada para ser entregue em seis dias e, que diabos (opa!), o Arquiteto era pontual. E tinha combinado com Ele mesmo que descansaria no sétimo.


Cansado, concluiu que nem tudo é perfeito. Nem Ele.

“Noé, prepara o recall!”