Arthur não perdia os
bailinhos nos anos 70. Ia a todos os possíveis e a mais não ia por
concomitância. E as parcerias, guris e gurias, eram sempre as mesmas. Ou quase.
Era temporada de
férias, dezembro, e Arthur pisou no salão já com olhar de varredura. Circulou,
cumprimentou pessoas, identificou os pares, oportunidades, ameaças e tal.
Cruzou os olhos com
alguém que não conhecia... Cruzou e voltou. Chamam de olhar fixo, mas aquilo
era um pouco mais. Foi uma troca fulminante de olhares que se acharam, como se
há muito se procurassem. Era uma menina nova no lugar, acompanhada por Regina,
sua amiga, confidente, parceira de dança. Imantaram-se até o chamado de Regina. Arthur foi até a mesa
seguindo o traçado dos olhos, reafirmando a tese de que a linha reta é a menor
distância entre dois pontos.
- Arthur, esta é minha
prima Helena, que mora em Minas.
- Oi, prima Helena. Vou
dizer algo que você deve ter cansado de
ouvir hoje: como você é linda!
- Oi Arthur, obrigada.
Mais ou menos já conheço você. Regina fala muito a seu respeito.
- São calúnias. Tudo mentira, juro. Me dê a
chance de provar.
Juntaram-se mais amigos
e um, em especial não perdeu tempo. Pegou Helena pela mão e foi dançar, como se
já se conhecessem há tempos. Arthur que já estava perturbado desde a troca de
olhares, impactou-se. “Como assim? Será que já se conheciam? Merda!” Dançaram e
dançaram sem folga, para a contrariedade de Arthur, que esquecera que estava
junto da sua velha companheira de danças.
- Ok. O próximo parente
que eu convidar para passar as férias aqui será um primo – disse Regina
brincando, mas visivelmente chateada.
- Oi? Claro, por que
não dançamos?
Mas Arthur não tirava
os olhos de Helena, que lhe retribuía, mas desviava o olhar, como se desse um
aviso de não conformidade. Dançava e conversava alegremente com Emílio. “Será que não
terei chance? O cara não larga o osso”. E enfim pararam. Arthur e Regina também pararam, óbvio.
Emílio puxou Arthur até o
bar, com a desculpa de comprarem refrigerantes.
- Olha só, bicho, desde
que Helena chegou estou investindo forte nela. Tive a sorte de vir no mesmo
ônibus que ela, começamos a conversar e nos entrosamos. Portanto... Cai fora!
Conheço muito bem essa ligação entre seus olhos e suas garras. Certo?
“Puta que pariu!”
- Não sei, mano. Ela me
atordoou. Não posso prometer muita coisa além de respeitar uma distância
mínima. Por enquanto vou deixar você em paz, mas se é assim vou embora. Não vou
ficar aqui.
E Arthur não voltou à
mesa, dando um tchauzinho à distância.
- O que deu nele? –
perguntou Regina.
Emílio olhou para Helena,
Regina também olhou para a prima que se constrangeu um pouco, e todos mais ou
menos entenderam, só acharam uma atitude estranha e incompatível com Arthur. Um
dia depois ele foi procurar Regina. Precisava falar com ela, desculpar-se,
entre outras coisas.
- Regina, meu amor,
sabemos um do outro desde que andávamos pelados dentro de casa, portanto nós nos conhecemos bem e
não precisamos de rodeios para falar. Antes de dizer o que quero, descobri que Emílio está de quatro pela
prima. Bem... Ele e eu. Uma vez você me falou sobre amor à primeira vista e eu
gozei com a sua cara, lembra? Pois bem... Chegou a sua vez. Divirta-se. Estou
como se tivesse sido abduzido.
- Putz! Não acredito...
Bem, diga isso diretamente à destinatária. Ela está bem atrás de você e já
ouviu, mas é bom repetir. Vou deixar vocês sozinhos.
Arthur não tinha a
timidez entre suas características, mas aquela
era uma situação nova, diferente e ele se enredou um pouco.
- Helena...
- Não fale. Eu falo
primeiro, pode ser? Ok. Quando você chegou no bailinho a gente se olhou e teve
um magnetismo muito forte, sabemos que sim e não precisamos mentir ou
disfarçar. Perguntei para a Regina quem era “aquele” e ela o identificou.
Aliás, ela me falava a seu respeito há muito tempo e eu já conhecia muito de
você. Então tratei de desviar o foco, por uma questão simples e é
impressionante como você não tenha percebido – esses homens! – ela é
apaixonada; louca por você! Mas me prometa, por favor, não diga que eu lhe
contei isso, ok? Por favor. Percebe por
quê não podemos ter nada, não é mesmo?
- Não acredito nisso! A
minha Regina? Quase uma irmã! Não sei o que fazer com isso! Estou desarmado.
Helena, acho que você já entendeu o que eu sinto. Nunca aconteceu comigo nada
parecido e foi logo de cara. Tenho certeza de que é isso que chamam de amor. É algo absurdamente forte, que domina a minha
vontade.
- Não sei medir muito
isso. Fui educada para ter controle das coisas. O que sei é que você não está
sozinho nessa tormenta. Penso em ficar até o final de janeiro, mas não sei não.
- Bah! Vai ser difícil.
Lembrei do meu tio diabético, apaixonado por quindim. Dá pena de ver como olha
a vitrine da confeitaria. Não quero atrapalhar as suas férias, mas também não
vou poder ficar apenas olhando você. Posso ganhar um abraço?
Abraçaram-se, trocaram
alguns carinhos, colaram seus rostos e Arthur quis beijá-la, mas ela colocou um
dedo em seus lábios.
- Não. Por favor. Nada
que eu não queira, mas não posso fazer isso com a prima. Ao menos não agora.
Os dias passavam,
Arthur e Helena encontravam-se em grupo, ele sempre buscando o olhar dela que
viajava entre os presentes e a vida que passava ao largo daquele campo
magnético. Helena demonstrava já uma certa tristeza e Arthur experimentava um
misto de revolta e frustração; vontade de forçar a barra, chutar o balde
e outros atropelos. Tomou então uma decisão: viajaria. Sairia de perto.
No final de semana, um
novo evento. Um baile mesmo, com trajes sociais, vestidos longos, cabelos
lambidos de um lado, cabelos edificados de outro. Arthur não era mais o mesmo e
estava em dúvida sobre ir ao baile. Emílio não deixou por menos:
- Vamos lá ciumento. De
hoje Helena não me escapa. Não vai querer conferir?
- Vou. Agora eu vou. E
já comprei a minha passagem para depois de amanhã. Vou ficar uns tempos em
Porto. Estou me enterrando e acho que estou fazendo mal à Helena.
Desculpe.
Helena era loira, tinha
cabelos longos, mas até então os mantinha
presos de alguma forma. Nessa noite, diferentemente do usual na época,
onde se armavam em cachopas duras de laquê, ela os soltou para que varressem as
costas decotadas enquanto caminhava. O vestido era o contraste do inferno. Um
vermelho escuro, quase grená e que... bem... Arthur ficou em dúvidas se estava
diante de um anjo ou de um demônio. E Emílio salivando do
lado.
Regina também estava
muito bonita. Aliás, tanto era o costume de tê-la por perto que nunca havia
percebido no mulherão que se tornara. E tão logo viu o amigo o chamou. Arthur
não foi. Não tão logo chamado. Fez ondinha, experimentou um uísque, ele que se
gabava de não beber álcool, e mais uma dose e uma terceira. Parecia um bicho
encurralado precisando de sedativo. Então foi à mesa.
- Nossa, mas que
mulherio lindo! Vou ter que escolher com quem dançar primeiro e não será fácil.
- Arthur, vi você
bebendo... É isso mesmo? - Perguntou Regina apreensiva
- Ah, uns golinhos de
álcool para desinfetar uma ferida.
Todos se entreolharam e
Emílio
puxou o amigo para darem uma volta.
- Bicho, você não está
nada bem. Acho que deve ir para casa. Vai ficar feio, olhe o seu estado. A
gente sabe que não está acostumado com bebida, daqui a pouco vai fazer fiasco.
- Vou. Vou mesmo e vai
ser agora.
Arthur deixou o amigo
falando sozinho e voltou à mesa.
- Regina, minha
querida, minha amiga, minha irmãzinha, a última pessoa do mundo que eu gostaria
de magoar. Que vida linda que tivemos! Mas... Mas... E me perdoe também Emílio, mas... Helena, eu
estou bêbado e vou embora. Vou mesmo. Quarta vou para Porto Alegre e talvez a
gente não se veja nunca mais. Antes quero que todos saibam que eu estou
completamente apaixonado por você. É mais forte que eu e muito mais forte que
esse uísque horroroso que eu tomei. Vou embora, Vou embora porque o lugar onde
eu gostaria de estar ou estará vago, ou ocupado por outra pessoa. Helena... Não
tivemos nada, infelizmente, talvez nem possamos ter, mas prometo uma coisa:
nunca, nunca mesmo vou esquecer você. Enfim, o tal amor existe e à primeira
vista é ainda mais devastador. Estou destruído.
Olhe aqui ó... Pegue... É o meu coração. A partir de hoje ele começa a
bater fora do meu peito. Fique com ele, não quero de volta. Acredite: é
usufruto vitalício. Minha alma beija a tua com muito amor e eu me vou. O diabo
me aguarda na porta do inferno e ele não gosta de esperar. Amor, bosta de amor...
Arthur fez o discurso
bêbado, rasgado, dolorido como letra de tango, em frente a mesa onde estavam os
amigos, constrangendo a todos. O baile ainda não havia começado e assim não só
foi ouvido por uma grande plateia, como aplaudido, com gritos de viva e “dá uma chance,
Helena!”. Mas já era tarde. Ele tinha saído, indo embora tropeçando nos passos,
tentando equilibrar-se na corda bamba da calçada. Helena estava imóvel. Olhar firme para frente,
mas com os olhos borrados de uma lava preta que escorria pelas bochechas.
Apesar de ter sempre o controle das coisas, fora demais e ela pediu para que Emílio a acompanhasse até
a casa.
No dia seguinte e
durante o dia da viagem, deu um jeito de não ser visto. Ninguém sabia onde
Arthur se encontrava. Os pais apenas informavam -“saiu cedo e não disse
para onde ia”. No momento de embarcar,
uma rápida despedida em casa e chegou à rodoviária em cima da hora. Não queria
dar chance a nada e a ninguém que pudesse relembrar o fiasco do clube, ou
despedidas melosas.
Com o pé no degrau do
ônibus uma mão segurou a sua. Helena estava lá, carinha de choro e um olhar
cheio de promessas impossíveis.
- Quero um abraço de
despedida.
Abraçaram-se, trocaram
carinhos e beijaram-se longamente, sendo separados pela buzina do
motorista. Quietos e sem promessas, soltaram-se. Ato contínuo ela foi embora às
pressas e ele subiu no ônibus, louco para ficar.
“Que loucura, meu Deus!
Que loucura! Preciso tirar essa guria da cabeça”.
No bolso do casaco
tinha ficado uma foto deixada por Helena, com uma dedicatória e um endereço de
Belo Horizonte. Era, enfim, uma promessa: “você me deu seu coração, não esqueça
disso. Eu entrego o meu a você, cuide bem dele. Helena”.
II
- Esse é o livro que
não consigo concluir, Arthurzinho. Não acho um fim porque talvez não tenha tido
um começo. Mas são fragmentos de uma história real
Arthur estava revivendo
essa história, contando-a ao neto, recém saído da adolescência, que teve seu
namorico interrompido por que sua namoradinha fora morar nos EUA com os pais.
Estava inconsolável. Não queria comer, se negava a ir à escola, sequer sair do
quarto.
- E você nunca mais viu
ela, vô?
- Vi. Tempos depois
mandei uma carta e ela me respondeu. Fiquei de ir a Belo Horizonte, mas na
mesma ocasião tive que voltar para ver meus velhos que estavam doentes e a
coisa não aconteceu. Ela veio meses depois. Passamos um feriadão juntos em
Gramado, maravilhoso, cheio de amor e promessas. Depois eu comecei a me virar
para ver se encontrava trabalho por lá. Porém, passados alguns meses, ela me
mandou uma carta curta, dizendo que ia para a Austrália. Ia fazer intercâmbio e
aí... Bem, aí mixou tudo. É isso. Nunca mais soube dela.
Cada vez que lembrava
dessa história, Arthur viajava, degustava o tempo experimentando todas as notas
e aromas. Entrava em transe. De fato, como havia dito naquela fatídica noite do
único porre que tomou na vida, ratificado no único momento em que estiveram
juntos, nunca esqueceu Helena.
- A vó sabia disso,
vô?
- Sua avó soube desde
sempre, não tudo, claro. No leito de morte tentou falar alguma coisa que não
entendi sobre a prima. Parecia importante, mas... Foi traída pela morte. Fique
tranquilo. Regina e eu sempre fomos mais amigos do que um casal.
Arthur casou com
Regina, com quem viveu por 35 anos. Uma relação harmônica sem sobressaltos e
paixões. Uma brisa suave e morna. Tiveram um filho, Bruno, que resultou em um
casal de netos, Arthurzinho e Nina, ainda criança.
Desde a morte de
Regina, Arthur vivia só. Tinha imaginado uma vida intensa, mas a paixão
frustrada por Helena fez com que sossegasse o pito. Não foi um caso duro
demais, até porque não chegou a ser um caso, mas carregou ou carrega, um sonho frustrado há quase meio século, e
isso sim é muito duro.
Tinha um plano para
dali a pouco tempo. Com sessenta e oito anos, apesar da saúde boa, negava-se a falar em futuro “na minha idade não
existe futuro e passado foi minutos atrás. Só existe presente e eu tenho que prestar a atenção em
tudo, caso queira aproveitar a vida. Mas eu reconheço que vivo com um pé no
passado”. O plano consistia em mudar-se para um condomínio de idosos, com
facilitadores e recursos para uma vida independente. Seu foco era mudar-se para
Caldas Novas, em Goiânia, onde conhecera um local desses, com toda a estrutura e conforto que queria. Apenas
esperava a melhor hora para anunciar aos seus.
E em um churrasco de final de semana pegou o notebook e mostrou o vídeo do lugar ao filho, nora e
netos.
- Tem tudo o que eu
quero. Internet boa, TV a cabo. Vou poder ver meus jogos e filmes, continuar
pintando, escrevendo e publicando. Já fui lá. É muito lindo e agradável.
- Mas pai...
- E aqui está o
contrato. Vou mês que vem e, claro, sempre que quiserem ir me ver é só ir.
- Velho teimoso.
II
O condomínio era
composto por pequenas cabanas independentes, uma sede social e uma
administrativa, com um ambulatório e supervisão médica. Tudo simples, mas muito confortável. Já o
lugar era maravilhoso, com matas, corredeiras e quedas d’água e um lago de
águas termais.
Arthur não era muito
bom de relacionamentos. Foi procurado por outros condôminos para fazer
programas de velho, tipo jogo de cartas, bocha, dama e por aí vai. Não era a
praia dele e aquilo o tornava antipático aos grupos que se formavam. Mal
cumprimentavam-se. Não que fosse obrigatória, mas era bom para a convivência
que todos se dessem bem.
Um tempo depois recebeu
um chamado da administração. Dr. O’Neil, o administrador, gostaria de ter uma
conversa com ele. Apenas para se conhecerem, mas ele sabia que deveria ter algo
mais. “Mal cheguei e já arrumei confusão! Bueno...”
- Bom dia, sou Almeida,
Arthur Almeida, vim falar com doutor O’Neil.
- Sim, só um instante.
- Bom dia, sr. Almeida.
Sou doutora O’Neil. Meu marido e eu administramos o condomínio. No momento ele
está em Brasília. Faz quimioterapia. Entre, sente e fique à vontade. Então...
Como está se sentindo em seus primeiros dias conosco?
- Puxa. Lamento pelo
seu marido. Falei com ele ano passado, quando vim conhecer o lugar. É aqui que vou encerrar meus
dias, se tudo correr bem.
- “Encerrar meus dias”
não é uma pauta que eu gosto. Mas diga: o que podemos fazer para que o senhor
se sinta mais à vontade entre nós?
- Nada não. Tenho tudo
o que preciso. Ver filmes, internet boa e tempo para escrever.
- Ah, o senhor é
escritor? Que maravilha. Gostaria de ler suas publicações. Trabalha em algo
atualmente?
- Sim. Quero finalizar
um romance.
- Reserve o meu
exemplar. Bem, mas era só isso. Gostaria de conhecê-lo. Observo que o senhor é
bastante reservado e agora está explicado, não que precisasse. Cada um é dono
do seu próprio espaço.
Arthur despediu-se bem
impressionado com a doutora e se foi cantarolando: Que bonitos ojos tienes debajo
de esas dos cejas? Vou rever "El
secreto de sus ojos" hoje. "Bonitona, ela" .
Doutora O’Neil, médica,
com especialização em gerontologia, era casada com Dr. Charles O’Neil, inglês e
seu antigo orientador na universidade de Sidney, uma referência nessa área.
Chegaram ao Brasil com o planejamento pronto para o condomínio de idosos. Compraram
uma antiga pousada, reformaram e deram o toque final para o fim a que se
destina.O doutor Charles O’Neil estava com 82 anos e tratava de
um câncer no pulmão.
Doutora O’Neil, Helena
O'Neil, ficou observando da janela o condômino caminhando em direção a sua
cabana. A seguir, abriu uma gaveta e retirou uma caixinha metálica, onde
guardava dezenas de cartas e uma foto. “Arthur Almeida... Arthur... Meu Arthur,
como a vida ficou nos devendo coisas! E agora você está aqui. Veio morar
comigo. Como pode não ter me reconhecido? Sequer desconfiado? Ah, Regina...
Regina.. O que me fizeste prometer... Quando nos virmos de novo vou puxar
seus cabelos”. Helena levantou-se e foi olhar-se no espelho. “É, envelheci, mas
os corações continuam batendo forte e agora já não dá para destrocá-los”.
Após esse encontro,
Arthur não viu mais a doutora O’Neil. Nem quando foi até a sede levar alguns
livros antigos seus, destinados à biblioteca do condomínio. Deveria estar
envolvida com o marido.
De fato, Helena estava
cuidando do marido que piorava rapidamente e as sessões de quimioterapia, além
de não surtirem o efeito desejado, fragilizavam cada vez mais o organismo.
Recebeu os livros deixados por Arthur, passou rapidamente os olhos sobre eles.
Abriu um que falava sobre a juventude. Leu algumas crônicas, viajou no tempo, e
,quando fechou, deixou cair uma foto
que estava dentro. Uma foto bem conhecida: a mesma que dera a Arthur quando
fora despedir-se dele na rodoviária, mais de meio século atrás.
“Meu Deus! Como evitar
o inevitável?”
Doutor Charles O’Neil
faleceu dois meses depois.
- Doutora, sei que não
há palavras para momentos como este. Também tive uma perda dessas e a gente
custa a elaborar a nova realidade. Meus pêsames.
- Obrigada. Tivemos uma
vida boa. Charles era um bom homem e fomos ótimos parceiros de vida. Vai fazer
falta aqui. Ah, veja, essa foto caiu de um dos livros que o senhor nos deixou.
- Puxa! Que coisa boa!
Há muito procurava por essa foto. Achei que a tinha perdido. Agora vou poder concluir o trabalho. O nome
dela é o título do romance: “Helena”, uma longa e interminável história de
amor. Minha Helena! Obrigado, doutora.
Arthur se retirou com
mais algumas palavras de conforto, uma vez que finalmente a
doutora
O’Neil começara a chorar convulsivamente, pedindo para ficar só. “Coitada,
deveria estar ainda em choque pela perda. A ficha deve ter caído finalmente”.
O reencontro com a foto
que julgara perdida deu um up nos textos. Conseguira amarrar bem a história e
encaminhar um final legal. Pronto. Agora era entregar para a editora que faria
o resto. Por certo que alguns ajustes ainda haveriam de ser feitos durante a
revisão.
Depois de uma obra
pronta vem o relaxamento. Um vazio interminável onde o que sobra é apenas a
saudade dos personagens. Arthur, que
havia encomendado pela internet o material de pintura, passaria à segunda coisa
que mais lhe preenchia o tempo: pintura. Não era um virtuose, mas retratava
bem, e de posse da foto que julgava perdida, iria reproduzi-la em tela. “Vai
demorar.
Espero não jogar tantas telas fora”.
A viuvez da doutora
produziu um recolhimento além da conta. Foram algumas semanas em que sequer se
ouvia falar da administradora. Mas Arthur, absorto, ou alienado como sempre,
pouco percebeu isso. Até que um dia, final de tarde, enquanto tomava um
chimarrão sentado na varanda recebeu uma visita.
- Boa tarde, Arthur,
vou tratá-lo de você e espero o mesmo. Nunca consegui compreender como vocês,
gaúchos, conseguem beber água quente em pleno verão.
- Boa tarde, doutora.
Que surpresa boa! Também não entendo esse hábito, aliás nem tento entender.
Tudo bem?
- Sim, está tudo bem.
Ando me sentindo muito sozinha e hoje escolhi o mais solitário e retraído dos
meus condôminos para conversar. Espero não atrapalhar o seu chimarrão.
- Nada. Por favor, sente-se.
Helena sentou-se à
frente de Arthur e ficou um tempo quietinha, como se estivesse escolhendo um
assunto para começar.
- Seu livro... Como
está o seu livro?
- Terminei. Está na
editora. Fiz recentemente alguns ajustes após a revisão. Deve sair mês que vem.
Mas foi um livro que escrevi durante quase dez anos. Tudo por causa do final,
que nunca me agradou.
- Ótimo. Não esqueça do
meu exemplar. Amo finais felizes. Espero que tenha tido um final feliz para a
sua Helena.
- Não sei se é feliz. É
um final vago, já que é uma história que não terminou. Ou melhor: sequer
começou.
- Agora você me deixou
curiosa. Não me obrigue a torturá-lo para que me conte como terminou - riram.
- Ok. Vou lhe contar a
última sentença. Tenho bem presente na memória porque demorei um mês para
decidir como encerraria. “Cá estamos, Helena, como idealizamos na única vez em
que estivemos juntos. Mas permanecemos como sempre matéria e sonho, agora no paraíso”. É isso.
- Foi um amor de
verdade?
- Se foi verdadeiro?
Não sei. As vezes acho que foi um sonho. Um sonho escolhido na estante dos
maravilhosos. Amei... Amei? Amo demais uma imagem desde o primeiro momento que
a vi e sofro desde que se tornou lembrança.
Venha. Vou lhe mostrar a capa.
Arthur pegou Helena
pela mão e a levou para dentro, onde estava a tela com a foto que havia
perdido, reproduzida em tela. Ele não percebeu, mas a doutora lacrimejava
mansamente. Até que uma tempestade salgada explodiu em seus olhos.
Imediatamente Helena deu as costas e foi embora sem dizer uma única palavra.
Arthur ficou
desconcertado, culpado, entristecido. O que teria feito de errado? “Puta que
pariu! Pobrezinha! Ainda deve estar muito sentida”.
Menos de um mês depois,
Arthur recebeu sua cota de livros, enviados pela editora. Uma ótima desculpa
para visitar a doutora. Iria entregar-lhe o exemplar.
- Bom dia, doutora.
Tudo bem? Posso entrar?
- Claro. Por favor
sente-se. Estava justamente reunindo coragem para ir à sua casa pedir-lhe
perdão pelo fiasco que fiz.
- Nada. Não precisa.
Sua viuvez ainda é muito recente e eu compreendo.
- Não é isso. Ou não
foi por isso. Você tem tempo para ouvir uma historinha?
- O que mais tenho é
tempo e preenchê-lo é uma luta terrível. Por favor, fale.
- A sua história sobre
a foto e o livro, que ainda não li, mas que imagino, mexeu comigo por demais. Minha história
também passa por algo assim.
Helena serviu os cafés
e sentou-se em frente a Arthur.
- Eu tinha dezoito anos
e conheci um rapaz, numa cidadezinha bem longe daqui. Foi daquelas coisas que
não se explica pela ciência. Talvez encontre parâmetro naquilo que não podemos
ver, só queremos acreditar. Ele e eu apenas nos olhamos em meio a várias pessoas
e houve um magnetismo imediato, impulsivo, só controlável, porque eu sempre fui
controlada, e eu digo hoje: infelizmente. Perguntei quem era "aquele"
à pessoa que estava comigo, e que me era muito cara, e ela me disse: é ele.
Ele, no caso, era o rapaz que era pauta permanente dela, sempre que trocávamos
confidências por carta ou telefone. Ela era louca por ele e o babaca não
percebia. Uma guerra dentro de mim começou de pronto. O
porquê, eu
não sei, mas sabia que aquele rapaz tinha muito a ver comigo. Fisicamente era o
que eu havia idealizado a partir das descrições dela e depois, quando nos
falamos, tinha aquela tempestade mal contida em tudo o que dizia. Era intenso,
cheio de energia boa. Mas ceder ao impulso magoaria outra pessoa. E tudo ficou pior quando soube que a
recíproca era verdadeira. Enfim... Ele foi embora, embora mesmo, foi viajar e
não voltou mais. Levou uma foto minha como lembrança.
- Puxa! Você parece que
leu o meu livro. É mais ou menos isso. Ele levou uma foto sua e não deixou
nenhuma?
- Tenho uma, mas ele
não sabe. É o seguinte: quando ele percebeu que eu não arredaria pé de me
manter fiel à pessoa que era apaixonada por ele, uma quase irmã minha, ele se
desesperou de vez. Antes de viajar houve um baile na cidade e ele, que segundo soube,
jamais havia experimentado bebida de álcool, tomou um porre e fez uma
declaração pública de amor para mim, em frente a todos os que estavam no baile.
Perdi o chão, flutuei nas nuvens, me apaixonei e despenquei do salto... A foto
dele, bêbado, me foi entregue pelo fotógrafo da festa, alguns dias depois, com
a seguinte dedicatória: “jamais ouvi uma declaração de amor tão intensa e
verdadeira”.
- E eu achando que a
história do meu livro, que é quase uma biografia, era algo incomum, única,
extraordinária. Que nada! Quase tudo tão igual!
Helena estava
impressionada com a falta de conexão de Arthur.
A ponto de perder a paciência. "Como pode ser tão abobado?"
- É isso. Bem, daqui a
alguns dias devo me mudar. Estou negociando o condomínio. Não tenho condições
de cuidar sozinha e a minha especialização médica é muito cara para poder
contratar um colega. Inviabilizaria o projeto. Vou procurar a foto para lhe
mostrar.
- Que pena! Você é das
poucas pessoas que eu gosto de sentar e conversar. Estava me acostumando a ter
alguém com quem podia trocar ideias. Bem. Vou autografar o seu exemplar. Dedico
para...
- Helena,
- Sim, Helena. Dedico
para?
- Helena. Achei, eis a
foto que lhe falei.
Arthur apanhou a foto,
pareceu perder o foco e o fôlego. Ficou lapsos de segundo cabisbaixo, sentindo
uma forte alteração nos batimentos cardíacos e sem levantar os olhos disse:
- Não pode ser... Não
pode ser verdade.
E olhou para Helena. E
viu Helena. Foi a vez de Arthur fazer o que não fazia desde que nascera seu
filho. Rompeu um choro convulsivo, misto de dor e alegria, com notas de
espanto.
Helena levantou-se,
serviu mais um café e um copo de água e voltou a sentar-se, agora ao lado de
Arthur. Parecia degustar cada lágrima jorrada, afinal, era a segunda declaração
de amor intensa que recebia, meio século após a primeira. Pegou a mão dele
entre as suas e falou:
- Não esqueci um minuto
sequer de tudo o que vivemos e sonhamos na única vez em que estivemos juntos.
Tive quase certeza de que ali era o início de uma relação com gostinho de
eternidade. Tínhamos tudo a ver, pelo menos era o que eu achava. Voltei para BH
com a missão de contar à Regina o que aconteceu e o que eu queria para o meu
futuro. Ia contrariá-la; ia descumprir a promessa que fizera a ela, de mantê-lo
à distância, tão logo ela soube que eu tinha ido à rodoviária me despedir de
você.
- Que coisa... Pobre
Regina. Sempre soube que o nosso casamento era uma ação entre amigos, dispostos
a nos protegermos da vida. Apesar disso, como já falei, tivemos uma vida
boa.
- Era completamente
louca por você. Mas preciso contar mais algumas coisas...
- Antes me prometa que
não vai embora.
- Bem... Por favor,
mantenha-se o mais calmo possível, porque vou lhe contar o pior. O nosso
momento lá na serra rendeu um fruto. Eu engravidei. Descobri dois meses depois
do nosso encontro. Estava indo ao Correio postar uma carta para Regina, onde
pedia perdão e falaria do resto. No entanto, enquanto atravessava a rua para
enviar a carta fui atropelada. Tive vários ferimentos no rosto, em especial no
nariz, que teve de ser reconstruído. Talvez por isso você não tenha me reconhecido.
Infelizmente perdi não só o nosso bebê, mas o útero também e isso mudou a minha
vida. Alguém, não sei quem, talvez um transeunte com pena, fez a gentileza de
postar a carta. O que sei é que Regina me respondeu rudemente tempos depois e
nunca mais falou comigo. Eu fiquei destroçada muito mais por dentro que por
fora. Entrei em depressão, experimentei drogas, até que meu pai chegou com a
notícia do intercâmbio na Austrália. Não pensei duas vezes e acho que foi a
minha salvação. Escrevi umas dez cartas
para você, porém só mandei a última, curta e objetiva, como você bem sabe e que
deve ter odiado. Estava me sentindo sofrida, deprimida, castigada, desleal. Mas
nunca esqueci ou deixei de amar você. Veja aqui, tenho todas as suas cartas
guardadas. Isso é tudo.
- Não. Isso é nada.
Você não vai fugir de novo. Olhe para mim; olhe para nós... O que temos mais a
perder? E o que temos de vida pela frente? Quanto tempo? Pode não parecer,
porque sou muito desligado, pareço desligado, mas o nosso link permanece.
Sabemos disso desde que conversamos a primeira vez aqui, depois de tanto
tempo. Você sabe que sim, é uma ligação
de alma, ancestral. Saí daqui cantando e fui rever um filme chamado "O
segredo dos seus olhos". Tudo o que eu sinto por você estava em pausa,
aguardando um click. Nós não precisamos ter nada. Não precisamos namorar,
sequer sermos muito próximos, caso você não queira, mas nunca mais vou permitir
que você se afaste de mim. Ainda assim, caso queira ir embora, saiba que eu vou
atrás. Não passei uma vida inteira pendurado em uma lembrança ou a um sonho, para vê-lo
esfumaçar à minha frente. Não mesmo.
III
- Alô, velhote! Quanta
saudade, vô querido! Achei que tinha esquecido de nós. Pai, vô está na linha.
Quer falar com você. Beijo vô. Venha nos ver. Ah, obrigado pelo livro, isso é o que eu chamo de amor.
Fui!
- Pai? Puxa, quase me
queixei no conselho tutelar por abandono.
Pai e filho falaram
durante meia hora. Ou melhor, Bruno ouviu o pai por quase meia hora, apenas
sacudindo a cabeça, esboçando um riso, arqueando as sobrancelhas e vez por
outra engasgando-se nas poucas palavras
que proferiu. Assim que desligou, ficou um tempinho absorto, com cara de
incredulidade. Então chamou a família.
- Solange, venha cá,
meu bem, tenho algo a contar. Arthur! Desça, vamos falar.
- Olha... Vocês não
sabem da maior... O pai vai casar. E ele me disse que o Arthur sabe com quem. O
que você sabe que nós não sabemos, filho?
- Ué... Como posso
saber? O velho se foi morar no mato. Deve ter encontrado uma índia por lá e...
Se eu sei... A menos que... Não! Não dá para acreditar! O velho tinha tudo
armado! Pai, o que você sabe sobre uma tal de Helena? Essa da capa do livro?
- É brincadeira? Helena que eu conheço, além da gerente da
nossa conta, tinha uma da mãe que ela odiava. O livro é ficção. O pai é muito
bom nisso.
- Ficção é o caralho,
paizinho. Lembra que me descornei aquela vez que a Liliane foi embora para os
Estados Unidos? Saí com o vô, tomamos uma cerveja e ele me contou uma de suas
histórias. Eu nem preciso ler esse livro para saber o que tem dentro. É a
história dele com essa moça. Peraí, Tive uma ideia. Vou ligar e colocar no
viva-voz
- Alô, tia Rejane? É
Arthur, tudo bem? Tenho uma pergunta para fazer. Vocês tinham uma prima que foi
embora não sei pra onde... era Helena, é isso? Você sabe dela?
Rejane, irmã mais velha
de Regina confirmou e acrescentou que a irmã tinha brigado com a prima, antes
da viagem dela, não sabia porquê. Disse que nunca mais queria vê-la e tal. Ela,
Rejane, soube apenas que a prima sofrera um acidente grave, ainda quando morava
no Brasil, que estava grávida, mas que perdera a criança no acidente, que tinha
entrado em parafuso e depois fora embora para a Austrália. Depois disso,
nunca mais
soube nada.
- Mas olha,
Arthurzinho, eu desconfiava que as duas tinham brigado por causa do meu
cunhado, seu avô. Aí vi a capa do romance e tive certeza. É ela, a prima,
quando jovem. Lembro bem. Era linda pra dedéu e causou rebuliço entre o homerio
daqui, quando veio nos
visitar. Beijo. Saudades.
- Escutou pai?
- Mas então ele já
tinha marcado de encontrar com ela lá onde está morando. Não pode ser
coincidência. Vejam só, que malandro! Bem, ele sabe o que está fazendo, e mesmo
que não saiba, vai fazer igual.
Bruno foi para o
computador trocar mensagens com o pai, e quase juntaram material para um novo
livro.
- Helena... É ela na
capa. Agora eu entendi muita coisa das tristezas da mãe. Inacreditável isso
tudo. Venha ler, Solange, ela é médica e dona do condomínio onde ele mora.
Parece ficção. Bem, vamos visitá-los no
final do ano. Mas aviso: também estou apaixonado por ela.
- Eu também! -
gritou Arthurzinho.
Solange, que tinha
unhas poderosas, deixou mais uma marca em Bruno e apenas resmungou:
- Estamos juntas, minha
sogra.