Esse pedaço ainda assombra a velha casa onde nascemos, arrastando correntes douradas inocentes, do bem, pelo assoalho velho. Que importância tem se no lugar da casa haja hoje um prédio enorme e moderno? A terra é revirada para que se revigore e cumpra sua missão de transformar, mesmo assim não sai do lugar. Portanto, essa parte importante de nós não está nem ai com que o que fizeram sobre as nossas primeiras pegadas. Nada vai tirá-las de lá, porque elas estão tatuadas no universo em seu conjunto, e na memória mais afetiva.
Uruguaiana também é o epicentro de uma geração de apaixonados por uma juventude, que se nega a assumir os efeitos dos seus brancos, caso haja ao menos brancos; suas rugas e modificações de estrutura físicas. Estar em Uruguaiana em um momento especial é ser, por um lapso roubado de história, um pouco do que fomos. É como se saíssemos dos álbuns velhos de fotografia, colados com Goma Arábica, para as calçadas, a fim de corrigirmos status, e sem o lamento pela brutalidade cronológica do foto shop natural. Não somos então o que somos; somos brevemente o que fomos, abençoados por bafejos fortuitos de energia, de fonte autossustentável. Eis porque chamo a minha cidade de Terra Santa. Lá ganho fôlego de vida.
Lá também é célula de um grupo de amigos que adotou o basquetebol como início, meio e fim, por suas circunstâncias convergentes e catalisadoras, capaz de produzir reações improváveis; retornos inimagináveis. Porque um dia alguém ousou sonhar com uma bola quicando nas quadras de antes; porque outro alguém se perguntou “por que não?”. E, por fim, porque nesse caso todos os meios conspiraram para que o fim se justificasse.
Assim, no nosso espaço/tempo de 2001, a nave não era uma nave, era uma bola, e o diretor não era Kubrick, era Saldanha. De comum, o fato de ambos terem dirigido uma odisseia no espaço. Kubrick para o futuro do presente, Saldanha para o passado mais que perfeito. 2001, ano da remasterização de nós mesmos; ano do Primeiro Encontro dos Basqueteiros de Uruguaiana.
E lá se foram 16 anos! Neste abril de 2017, acabamos de viver intensamente o IX Encontro. Um acontecimento difícil de narrar, porque é um coquetel de sentimentos, onde os cérebros apenas flutuam sem registros novos, e é como se estivéssemos contando várias vezes a mesma história. São momentos em que raciocinamos com os olhos e nos manifestamos através de beijos e abraços.
O fato de passarmos dois anos nos preparando para esse evento, em tese, quando de sua realização, haveria de ter esgotado o fator surpresa. Todos os passos são previamente definidos, com seus dias, locais e horários combinados. Os protagonistas são todos, e seus papéis já estão decorados, basta vive-los lembrando de como eram, meio século atrás, ou apenas se deixar levar.
Certo, alguma surpresa pode haver para um e outro homenageado, mas como tantos já estão potencialmente inscritos, ser escolhido ou não, não muda seus estados anímicos, ou eventuais discursos. Para estes, falar sobre um eventual troféu ou comenda recebida seria apenas contar um pouco de suas vidas.
A sensação de pertencimento de grupo do Encontro dos Basqueteiros, no entanto, se esvaiu. A programação esportiva que já fazia parte do coletivo de abnegados da cidade, e adotada pelo seu calendário, teve agregado a si outra parte do sonho. Jogar, jogávamos, mas também dançávamos. Que juventude dançante aquela nossa! Assim, vendo a migração para a cidade de tantos amigos antigos, alguns músicos, ícones da época, houveram por bem voltar aos palcos e fazer também o que faziam, ou seja, nos encantarem com o som das músicas dos anos 60/70.
O show Jovem Guarda para sempre se juntou a programação esportiva, e Uruguaiana, que já respirava um passado limpo e lindo, com a presença de ex-atletas e aficionados, passou também a dançar ao som das músicas de antes.
Que dias, esses que vivemos! Dias de realimentar a saudade, porque saudade a gente não mata. Mas é fato que poderemos morrer dela, caso não a realimentemos.
Há muitos agradecimentos a fazer. À organização geral do evento; à dedicação e desprendimento dos músicos; à entidade realizadora SESC FECOMERCIO, aos patrocinadores; ao vendedor de sonhos Matheus Saldanha Filho, e a toda comunidade uruguaianense que sempre nos abraça quando chegamos, e custa a nos soltar dos braços quando precisamos ir embora. Saibam todos que também são esses abraços e laços que nos prendem e nos fazem ter sempre vontade de voltar. Seja em matéria, como estas cedidas em comodato pelo Criador; seja como “poeira ou folha levada, no vento da madrugada...”
Resta dizer do sentimento que tive ao ver o teatro lotado, quando do show, que me sugeriu repetir Paulo Leminski: “haja hoje para tanto ontem”. E haja amanhã para tanto hoje; e haja eu para tantos nós.