Quero
dizer que me lembro de tudo. Herdei uma memória privilegiada e assim como me
enche de alegrias e saudades boas, me castiga. E me castiga ao ponto de viver
cada momento do nosso último dia; chego a sentir o cheiro das flores que te
acompanhavam. Havia tantas! Meus olhos já não se salgam, claro, secaram há
muito. Mesmo porque me obriguei cedo a pensar como os que crêem, num novo e
melhor lugar que estivesse a tua altura. É mais reconfortante.
Desde
sempre, entretanto, me pergunto: onde haveria de ser o melhor lugar para quem
ainda não tem trinta anos? Aqui dividindo e multiplicando vidas, espalhando
alegrias, chorando mortos ou lá, num tal indecifrável melhor lugar? A ausência
de respostas, estranhamente, me conforta.
Lembro-me
de tudo, apesar de termos vivido tão pouco tempo juntos. Por isso talvez tenha
se tornado clichê, o fato de haver pessoas que vivem o suficiente para se
tornarem inesquecíveis.
Era
um rosto meigo, quase envergonhado, cabelos longos e lisos caídos sobre os
ombros como cascata de piche, e grandes olhos negros. Quando ria, ria tudo,
boca, olhos, enchendo de vincos a pele ainda sem rugas. E seu choro só não era
imperceptível, porque vez por outra o nariz fungava. E, convenhamos, sem ter completado
trinta anos deve ter havido pouquíssimos motivos para chorar, além das coisas
comuns às gurias.
Há
muito não tenho idade de filho, embora jamais tenha perdido a orfandade. Mas
nesses dias tudo parece que foi ontem. Sinto gosto de tortas de bolacha
sabor-mãe, cheiro de roupa passada; olhares críticos aos redemoinhos do meu
cabelo, fiscalização rigorosa nas unhas e ouvidos, ponta do lápis afinada,
borracha limpa e caderno sem orelhas. Tudo acompanhado por melodias
indecifráveis, quebradas por sustenidos risonhos.
Lembro
de tudo sim. Mais do que o chinelo na mão e o avental todo sujo de ovo. Do pouco/tudo que tivemos, mas que se revigora
duas ou três vezes por ano, quando de uma forma ou de outra festejo o fato de
estar vivo, e posso me permitir a esses devaneios piegas e meio Peter Pan.