Do livro "Assim como era no princípio"
(Confissão de culpa... entre tangos e malbecs)
Devo ter
concluído meu processo de nascimento depois de adulto. Não faz muito. E logo
que terminei de nascer, fiz o pacto de vida que consagra as relações de
amor. Me prometi o que se promete na igreja em relação à saúde e à
doença; à alegria e à tristeza; à riqueza e à pobreza, até que a morte me
divida nas duas partes conhecidas e me dê o destino final: uma ao pó, de onde
dizem que eu vim, e outra ao éter, para onde dizem que eu vou. Um final de
carreira, sem redundância, à altura de um dependente químico, mas não é o meu
caso.
Autoamado
e respeitado, entendi que não haveria de ter problemas de estima, e desde então
estaria pronto para viver e não ter a vergonha de ser feliz. Mas
sabe, nesta pista de loucas baladas em que nos inseriram sem convite (sequer
pediram a nossa opinião) não há moleza. Às vezes vacilamos e as vezes
duvidamos daquilo que nos ensinaram a acreditar, contando que tenham ensinado.
Dúvida sobre dúvida, até chegarmos à pergunta fatal, estimulada pelo Thomé que
carregamos subjugado latente, que está sempre ali, cutucando nossos vacilos nos
momentos de suspicácia: “mas se o Velho permitiu que botassem pregos nas
mãos do ungido, o que não permitirá que façam comigo?”
Bueno,
bueno. Já duvidei no mínimo três vezes e o galo nem precisou se manifestar.
Fé é um dom, e eu não fui agraciado com ele (Anjos e demônios).
Continuo, no entanto, cabo eleitoral do Mano, desejando que fique aqui onde
alguns dizem que está; ou lá onde dizem outros; ou em todos os lugares onde
dizem os mais otimistas. O importante é que não saia do anonimato, para sua
própria segurança.
Com ou sem
fé; permitindo ou não que os pequenos vacilos criem corpo e me cubram de culpas
e judiarias, sigo a trupe que não quer ser personagem de folhetins apócrifos.
Que venham as histórias absurdas; os contos complexos ou meros espasmos
biográficos. Se forem de doer, deixo que sangrem como letra de tango, porque as
alegrias sempre serão de samba-enredo. Faço parte do grupo que entende
que o pior do baile não é não ter dançado, mas passar pelo salão sem ter sido
percebido. Em algum copo ou canto devem ficar as digitais.
Como ficaram
nos copos, cantos e campos da minha Uruguaiana antiga e nas quebradas da velha
Porto “dos ventos uivantes”. Não devem ser hoje as mesmas que
tanto cansaram meus sapatos; que iluminaram fantasias em mil watts de neon. No
vagar dos anos, as imagens se esmaecem, a luz vai apagando, o povo sumindo, a
noite esfriando... (E agora, Jajá... E agora? Vai, Jajá, vai ser gauche na
vida! Acabo de dar dois “pealos” no Drummond. Desculpe.)
Mas
vou sim... Fui de novo... Andar, assim como era no principio, agora e sempre (e
por todos os séculos dos séculos, amém), curtindo a sensação de esvaziamento de
gavetas, deixando estrelas acesas em pedaços do que pude realizar de mais
precioso. Não haver deixado buracos negros sob tetos foi um desejo impossível
de ser satisfeito. Mas é do enxadrismo da vida e circunstancialidades de almas
inquietas, construtoras de distâncias como a que me deram. Me deixei
andar, por que se não andasse, velhas parceiras como a paz e a alegria poderiam
cansar de esperar. E eu nunca transigi delas; não como busca permanente.
Muitas
vezes pisei no estribo e me fui olhando para trás, a la
cria, desconfiado de perdas. Coisa de quem tem os bolsos do coração
furados. Andar sempre porque tudo anda. Anda o trem, o rio; anda a fila; o
tempo e o avião voam, e até o sol, que mesmo rei, não tem o direito de ficar
parado. E em cada início de passo, uma certeza: a cabeça antes já se
fora. Tudo parte da sustentação do segundo processo do nascimento
autodefinido, que me cobrava continuar sendo amado e respeitado por mim mesmo.
O que
eu soube depois, não muito depois, é que nem sempre as velhas parceiras, paz e
alegria, andam juntas. Às vezes uma delas fica num canto de gaveta mal esvaziada
ou no pó das estrelas deixadas acesas, e vem impiedosamente inundar de luz o
pensamento e arrastar correntes na consciência. O sono se vai, as noites
encompridam e o cansaço abate. Dos tempos insones descobri dois outros
parceiros, que também nem sempre andam juntos: arrependimento e perdão.
Entretanto, nada é mais virtual do que eles. Por acaso alguém se arrepende do
que deu certo, mesmo que para isso tenha pisoteado sobre dores alheias?
Arrependimento é uma espécie de cinismo consternado, infectado de penas
frustradas. E perdão... Deixei por ai setenta vezes sete a serem pedidos! E
quantos ainda irei dever? Mas sempre soube que pedir não conserta
estragos; há causas que são danos emergentes, não se curam. Só se confortam por
ação do tempo e substituição do foco. No mais das vezes, o perdoado faz
de conta que se redime e o ofendido faz de conta que esquece. São placebos
morais. E penso que nada pode ser pior que ouvir após um pedido de perdão “...
mas agora?”. Agora sempre será tarde.
No
metro longo deste andar, juntei os restos que pudessem sustentar os valores
intrínsecos. Percebo cada vez mais o quanto também a vida anda, e depois
de um tempo, com mais pressa. Mas não me abate o fato de que seja finita.
Finais há muito não me perturbam. Tenho uma espécie de remorso prévio do
dia em que isso acontecer. Neste caso, que se tenha cumprido naturalmente
o ciclo das luas e, isto é um apelo: troco qualquer apoteose pelo olhar
complacente dos meus filhos. Que possam perceber, apenas olhando nos meus olhos,
que eles são os únicos e sagrados motivos que me levariam a reescrever a minha
história, caso pudesse. Estão no centro das minhas consternações mais sentidas,
cujos perdões não pedi por imerecidos, e porque acredito nas definições
acima. Mas saibam eles, os meus filhos, que os carrego sempre
comigo, em ambos os lados do peito, dentro e fora. Vá que haja mesmo outras
vidas e outras oportunidades.
Por fim, que
o Velho me leve embora bem lá adiante mesmo, quando as pernas buscarem apoio
sem encontrar e a cabeça tenha perdido todas as suas saudades. Não as perceba
nem entre tangos e malbecs.
Não pense Ele, porém, que
atendendo uma e outra reivindicação deste mutuário estará tudo dentro dos
conformes. Gente como eu só abandona o domicílio muito contrariada.
Não sabemos morrer de bom humor.